Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Assim, a dado passo, canta o tanka do contoLXXXII de Ise. Talvez por ler e reler tais contos velhinhos de mais de um milénio, e de neles, para além da distância no tempo, nada estranhar, mas apenas reconhecer tantas facetas da minha própria sensibilidade portuguesa, que me comovo ao ponto de confundir esta minha rebusca do Japão com as cartas do meu sentimento de mim que te vou escrevendo. Se bem que os Contos de Ise se debrucem intencionalmente sobre sucessos e insucessos de namorados e amantes muito humanos, o seu lirismo veicula sentimentos e preocupações mais fundas, como se de raízes fasciculadas se tratasse, pertinentes ao sentido e à perplexidade com que nos defrontamos em súbita presença do nosso próprio destino humano. O aguilhão do sentimento permanente da efemeridade do tempo, das coisas todas e da vida, parece sobretudo destinado a reflectir esse paradoxo que será a consistência permanente do efémero. Lembro, Princesa de mim, este haiku de Basho:
Acima da cotovia no céu
eis impassível
o desfiladeiro da montanha...
Acima do ukyio, deste mundo contingente, flutuante, há sempre uma passagem, um caminho para a permanência. No seu «Diálogo com um Japonês» (in Aus einem Gespräch von der Sprache - Unterwegs zur Sprache, Pfullingen, Neske, 1959), Martin Heidegger, referindo-se à questão da relação entre a letra das Escrituras e o pensamento especulativo da teologia com fonte das suas interrogações (cf. Bernard Stevens in Heidegger et l ́École de Kyoto - Soleil Levant sur Forêt Noire, Les Éditions du Cerf, Paris, 2020) escreveu: Sem essa proveniência teológica, nunca teria chegado ao caminho do pensamento. Proveniência é sempre porvir. E Bernard Stevens, da Universidade Católica de Louvain (la Neuve) comenta, pertinentemente: O que retém a atenção de Heidegger sobre este tema é, no plano da vida efectiva, uma certa experiência do tempo na fé cristã primitiva, antes da dogmática eclesial e a teologia escolástica. Trata-se de uma experiência do tempo e da história, orientada para um evento determinante do porvir: a esperança no regresso de Cristo ou no Juízo Final, para os primeiros cristãos que todavia se tornará, no Sein und Zeit (obra chave de Heidegger), em neutralidade religiosa - momento decisivo da morte. Tal momento não é um instante preciso do futuro, mas no seu repente imprevisível é a nascente desconhecida de uma orientação de vida em função do porvir, pondo o humano em face da necessidade de uma decisão: a de uma opção por uma vida autêntica ou inautêntica. Do porvir imprevisível, indisponível, carregado de ameaças, provirá o sentido que o humano, resolutamente, deverá dar à sua vida presente.
A partir daqui, defronto-me com uma surpreendente - para mim - distinção entre a temporalidade «kairológica» e outra, a «cronológica», sendo que a primeira será obliterada, pela Idade Média e a Renascença, em favor do conceito do ser como substância, simultaneamente presença constante (ousia) e visão teoricamente objectivável (theoria), portanto impermeávelà efectividade kairológica da vida efectiva...
Será que tal obliteração conduziu, como alguns pretendem, a um duradouro esquecimento do ser pelo pensamento ocidental?
Bernard Stevens defende que a própria noção do ser como ousia foi radicalizada durante a Idade Média pela reinterpretação como substantia, sendo o ser, aí subsistente, o sendo, na constância estável de si próprio. E afirma que tal noção de ousia provém da compreensão grega do ser, cuja memória é guardada pela pluri vocação aristotélica do sendo. E prossegue: a compreensão grega do ser como ousia sublinha um só sentido lexical do ser, sentido esse que remonta ao wasami indo-europeu (permanecer, ficar na constância do presente) e que, ao associar-se com o sentido nuclear do «viver» (es-, esti), escamoteará todavia o sentido igualmente essencial do crescer (bhu-, phy-) que, por outro lado, encontramos na palavra physis. Este vocábulo, em tempos pré-socráticos, sobretudo entre os iónicos, designa o conjunto do sendo no seu ser.
Evitando continuar a escrever-te, Princesa de mim, a remar entre escolhos de elucubrações "técnico-filosóficas" (terá tal expressão algum sentido?), vou procurar chegar ao dito do que quero comunicar-te, isto é, ao pensarsentir do tempo e do ser - para recordar o Sein und Zeit de Heidegger - nas culturas ocidental e extremo-oriental. Já entre gregos havia divergência entre reconhecer o ser do sendo na totalidade como porvir, movimento, crescimento, ou seja, enquanto physis, e o conceito de ousia, no qual o ser do sendo na totalidade é identidade consigo na presença constante. Ora, precisamente, é a ideia de physis que mais se aproxima do conceito extremo oriental de ziran (em chinês) ou shizen (em japonês), o qual aponta para o modo de ser do que é por si mesmo e por si mesmo se desenvolve, em incessante dinâmica que escapa a qualquer objetivação estabilizante e ao domínio de qualquer olhar teórico, assim exigindo nova achega. O mundo flutuante é, portanto, inapreensível ou, melhor dito, apreensível apenas na fugacidade de ocorrências surpreendidas em privilegiados momentos. Podemos, pois, dizer que ele é plurívoco, o que nos deixa entender melhor aquela interrogação de Heidegger que, no Japão, foi acolhida e reflectida pela escola de Kyoto, com Nishida Kitaro à cabeça: «Se o sendo é dito com significado múltiplo, qual será então o seu significado director e fundamental? Que quer dizer ser?»
A cultura japonesa, ao longo de séculos, tem respondido privilegiando a poesia, tal como a caligrafia, a pintura e a gravura - visões simultaneamente místicas e ambíguas - na intuição de um olhar que interroga o mistério e busca surpreender no fugidio a possível ou impossível permanência... Andará muito longe de um Novalis que diz ser a poesia o real absoluto, ou quanto mais poético mais verdadeiro?
Proximamente - e, espero, de modo menos árido e, quiçá, confuso do que o desta minha escrita de hoje - voltarei a estes temas. Para que me perdoes, pelo menos tu, Princesa de mim, deixo-te a tradução de uns pensamentos do monge budista Urabe Kenko (século XIV), respigados do seu Tsurezure-gusa (Horas de Lazer...):
Mesmo eu, que tudo deixei, compreendo que neste triste mundo haja coisas do agrado do meu coração...
... Mas não há outro mundo em que possa esconder-me, além deste mundo efémero. Aquilo de que fugi era o meu próprio coração.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 10.01.2021 neste blogue.
Há semanas que não te escrevo. Além de distraído por outras cismas, tenho sofrido repetidas cargas das minhas maleitas álgicas, perco sono e fico prostrado pelo cansaço. Vale-me o amparo de alguma música, desta feita - e curiosamente - a de compositores da última década do século XIX e primeiras do XX, de Debussy e Satie a Ravel e Stravinsky, sem esquecer a escola de Viena... E vou navegando por mares poéticos, por Paul Claudel e os japoneses, e ainda - talvez sobretudo - pelo imenso e forte oceano do nosso frei José Augusto Mourão, cuja poesia é, ela própria, uma liturgia da Palavra que o sopro do Espírito vai enfunando em nós. Tornando-nos sempre bem presente a saudade vital que é o fado da nossa humana condição. Citando um dos títulos da obra de frei José Augusto, afirmo que a sua poesia é Dizer Deus ao (des)abrigo do nome.
Topamos por aí com "poetas" medíocres, carreiristas de encómios, que vão encobrindo a indigência dos seus escritos e discursos com citações frequentemente deslocadas do seu sentido próprio, para apenas decorarem a moldura do retrato em que se miram ao espelho do charco sobre que se debruçam com alguma "flor de cultura". Talvez distraídos daqueles versos de J. A. Mourão, insertos no seu protestatio et confessio:
à banalização do mal eu digo não à tecnologia das próteses e ao mercado que conforta em nós Narciso, digo não
Afinal, o Poeta mesmo, aquele que vive como dom, como promessa e espera, a liturgia essencial da Palavra sabe as horas pelos relógios da fé:
A nós que agora vemos em espelho aguardando o face a face do teu Dia que o fogo do mal não nos devore os olhos nem a ira queime a compaixão que falta mas que a tua paz nos mostre o possível do mundo o amanhecer da graça e da beleza
que não recuemos diante da tua sombra nem nos contem as horas os relógios da fé
dá a vigilância e o fervor à nossa vida a atenção ao escondido da esperança e a resistência às tentações da transparência para o instante e o agora do mundo
Encontrei neste poema uma oração para todos os humanos em todos os dias deste tempo difícil e tão incerto. Bem hajas, frei José Augusto Mourão!
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 21.06.2020 neste blogue.
De cada vez que venho ao Japão, guardo pelo menos um fim de semana para estar niponicamente instalado num ryokan, em Kyoto. Tenho encontro marcado com um certo Japão, talvez esse de quando esta cidade capital se chamava Heian-kyo (de 794 a 1185). E capital foi ela, por mais de mil anos, até à restauração Meiji (1868). Chama-se Kyoto desde o início do primeiro governo de bushi (guerreiros), instalado em Kamakura por Minamoto no Yoritomo, no final do período Heian. Aos Minamoto sucederam (1333) os Ashikaga (período Muromachi), estes por sua vez substituídos (1568) pelos reunificadores do poder no Japão: Oda Nobunaga e Toyotomi Hideyoshi (período Azumi-Momoyama, até 1600). Seguiu-se o longo shogunato Tokugawa, que fez de Edo, a leste de Kyoto, o seu centro. Para aí se mudaria a capital imperial, depois de restabelecido o poder político efetivo do imperador Meiji sobre o bakufu ou governo shogunal. E Edo passaria então a ser Tokyo, ou capital de leste. Kyoto conservaria a sua designação de capital imperial e uma certa quintessência do Japão. A era Heian inicia-se com a mudança da capital imperial de Nara para a actual Kyoto. Fê-la o imperador Kammu - que, por sua, mãe descendia da linhagem Yamato, originária de coreanos expulsos da sua península pela dinastia Tang da China - nascido em 737, imperador desde 781 até morrer em 806. Podemos pois considerar este chefe político, militar e religioso, confucionista letrado, um contemporâneo de Carlos Magno que, como sabes, era analfabeto. Por essa altura também, era califa abássida de Bagdad o famoso Harun Al-Rachid. Deste voltarei a falar-te, contando-te a refutação que o historiador e filósofo magrebino-andaluz Ibn Khaldun (1332-1406) faz das anedotas que se contavam tradicionalmente sobre as razões que levaram o califa a condenar à morte, em 802, o seu vizir barmécida Jafar Ibn Yahia. Por agora, seguindo o conselho do hadith (ou dito do profeta Maomé) que manda "procurar a sabedoria, mesmo que seja na China", citarei o sábio muçulmano sobre a questão da linhagem e da legitimidade que, na Bagdad abássida que refiro, era coeva da que se levantou, na distante Nara, relativamente ao imperador Kammu. Neste caso, Kammu sucedeu a seu pai - Konin, ele mesmo de linhagem imperial menos elevada - apesar da humildade relativa da origem coreana de sua mãe. Sobre a "casa" e a nobreza dos clientes e dos protegidos serem as dos seus senhores e em nada dependerem das suas próprias linhagens, escreveu Ibn Khaldun o seguinte (e imagino o teu superior sorriso, minha Princesa...): A nobreza sólida e verdadeira pertence apenas aos clãs poderosos. Quando os membros de um clã poderoso se agregam protegidos vindos de fora da sua linhagem, ou tomam escravos ou clientes com que estabelecem laços estreitos, esses tornam-se, até certo ponto, partes do clã com o qual se identificam como se fosse deles. Pela sua participação no clã, acabam por pertencer, duma certa maneira, à mesma linhagem. Disse o Profeta: "Todo o cliente pertence ao mesmo grupo que os seus senhores, seja ele escravo, protegido ou aliado". E conclui assim: É o que acontece a todos os clientes e servidores das dinastias. A sua nobreza vem-lhes da sua sólida dedicação como clientes e servidores de uma determinada dinastia, e do passado de muitos dos seus antepassados ao serviço desta. Assim os clientes turcos dos Abássidas e, antes deles, os Barmécidas puderam usufruir de uma "casa", e da nobreza, e edificar a glória da sua família, graças à sua sólida dedicação ao serviço da dinastia abássida. Jafar Ibn Yahya constituiu para si uma "casa" e chegou à mais alta nobreza graças à sua posição de cliente de Al-Rachid e sua família, e não graças à sua origem persa. O pior foi quando ele "abusou"... Mas essa história contar-te-ei depois. Hoje fico pelo Japão, na era Heian. Trouxe comigo, em francês, as Notes de l´hiver 1039, nesse ano redigidas por Fujiwara no Sukefusa que, em 1038, foi nomeado, sob o imperador Go Suzaku, Chefe da Chancelaria Privada. No sistema aristocrático-burocrático de governo em Heian-kyo, os altos funcionários costumavam anotar quotidianamente - além das previsões fastas ou nefastas do dia, tal como registadas num almanaque ou preditas por algum adivinho, cartomante ou astrólogo - as diligências, despachos e decisões do exercício governativo, bem como vicissitudes várias da vida da corte. O objetivo assumido de tais diários era facultar aos descendentes e herdeiros a informação necessária a estes poderem, mais tarde, situar-se no complexo sistema burocrático, de modo a posicionarem-se para as melhores oportunidades de colocação. Na verdade, o sistema japonês, ainda que inspirado na organização confucionista da dinastia chinesa Tang, preferia fazer a seleção das nomeações por recomendação, influência familiar ou mera relação de parentesco, do que através de concurso público. As alianças matrimoniais com a linhagem sagrada da família imperial podiam ser alavancas poderosas para a colocação de membros de outras famílias. Assim, a família Fujiwara não só conseguiu colocar 20 membros entre os 25 mais altos funcionários do governo, como atingiu enorme influência sobre imperadores por serem estes seus netos ou bisnetos. Dos 32 imperadores Heian, 14 ascenderam ao trono com menos de 8 anos de idade, sendo o poder efetivo exercido pelo regente ou tutor (Sêshô) que, à maioridade do Tennô (celeste imperador), passava a designar-se por Kampaku. Este foi sendo sempre um Fujiwara que governava a corte e nomeava os governadores das províncias que a alimentavam com arroz e outros produtos. A nobreza da capital entretinha-se com as artes da caligrafia, pintura, prosa e poesia. Até que, por volta de 1185, a família Minamoto, com a força dos seus bushi e a motivação de populações desagradadas com o excesso de sofisticação que não lhes parecia muito útil, se apoderou do poder efetivo e o exerceu a partir de Kamakura, ficando Kyoto como residência da simbólica figura imperial. Assim se iniciou um período novo da história do Império do Sol Nascente, que conduziria ao afrontamento, durante séculos, de vários senhores feudais, até que a introdução de armas de fogo pelos portugueses, no século XVI, facultou as ações militares de pacificação e unificação do Japão. Mas por quatro séculos, o tal conceito de linhagem, família e pertença, levou muitas vezes "casas" inteiras (familiares, servos, clientes e soldados) a serem mortos ou cometerem sepuku (ou harakiri, suicídio ritual) quando o seu senhor era derrotado e executado. Curiosamente, até aos finais do século XIX, quando a restauração Meiji impôs alguns conceitos e normas jurídicas europeias, a ideia de família (e o conceito de ie, "casa"), no Japão, era mais decorrente da necessária perenidade da mesma do que de laços biológicos: a adoção era frequente, os artesãos, artistas e atores que se "criavam" nas famílias profissionais ganhavam e guardavam o nome destas, acabavam por pertencer-lhes... O que para ti, europeia, nórdica e católica, aristocrata antiga, talvez seja difícil de entender é que este conceito de família, de "casa", é, de por ele mesmo, simultaneamente fechado e aberto. Fechado enquanto se propõe assegurar a perenidade do nome, da tradição e do património familiar; aberto enquanto acolhe nessa mesma instituição familiar - por adoção, clientelismo ou criadagem - todos os indivíduos necessários à garantia da permanência dessa instituição. Os laços de sangue serão os primeiros fatores, mas não excluem as alternativas que permitam, de acordo com um direito consuetudinário, a continuação da linhagem. Vai longa esta carta, regressarei contigo a Kyoto e outras histórias que mais agradavelmente te contaria ao calor de uma lareira ou durante um passeio pelos nossos parques. Mas ainda insisto em te recordar o que disse numa dessas conferências que fiz sobre o Japão, que tanto tento compreender: Quando, em 1869, o Governo Meiji mandou Mitsukuri Rinsho traduzir os códigos franceses, sugerindo que deles logo se publicasse uma tradução literal intitulada Código Civil Japonês, para que o novo sistema jurídico convencesse as potências ocidentais de que o Japão era também um país civilizado, gerou-se polémica e muita controvérsia acerca da respetiva proposta, redigida, sob a direção de Eto Shimpei e Inoue Kowashi, por um professor da Sorbonne - que veio então residir em Tokyo - Gustave Emile Boissonade de Fontarabie, daí resultando que o tal códigosó em 1898 fosse promulgado. Ponto fulcral de divergências e discórdias foi, precisamente, o direito da família e sucessório. Argumentavam os adversários nipónicos da aplicação, no seu sistema jurídico, dos princípios ocidentais da igualdade dos indivíduos eda liberdade contratual na esfera jurídica da família, que o conceito de "casa" (ie) e os sentimentos por ele engendrados eram intrínsecos à sociedade e aos valores tradicionais japoneses. Em 1891, um deles, Hozumi Yatsuka, publicou esta declaração: " Com a disseminação do cristianismo na Europa, o Pai nosso que estais no céu veio monopolizar o amor e respeito de todos os homens. Talvez por isso os Ocidentais negligenciem a devoção aos antepassados e o caminho da piedade filial. Com a disseminação de doutrinasde liberdade, igualdade, fraternidade, rompem a importância dos costumes étnicos e dos laços de sangue. Talvez por isso já não exista entre eles um sistema de "casa", mas uma sociedade de indivíduos igualitários, apoiada por leis individualistas"... Inquietante pode ser esta nossa humana condição, quando nos confrontamos com sentimentos e juízos uns dos outros... Mas tão motivadora, também, de interrogações e procura! Imagina que li hoje, no Mainichi Shimbun, um artigo de um sociólogo japonês que se interroga sobre a crise universal da família nuclear e ocidentalmente tradicional. E, passando por inúmeras situações inéditas e controversas, finalmente propõe à nossa reflexão, não qualquer ideia afirmativa e exclusiva, mas a demanda - eu diria feita a pensar sentir - de formas de família que sejam acolhedoras e verdadeiramente comunitárias. Reflito. Ou, se quiseres, pensossinto no assunto. Atento a sociólogos, filósofos, analistas e pensadores vários. Mas, sendo um clássico " bota de elástico", guiado pelo coração que se agarra a um princípio: Amor omnia vincit.
Muitas das pessoas a quem facultaste a leitura da minha última carta, me telefonaram ou escreveram para me dizer que achavam lindo o texto, mas muito triste...
Quanto à lindeza, sempre disse que os gostos não se discutem. E, no tocante à tristeza, tampouco irei discuti-la, mas nele não pus, nem depois senti, tristeza alguma. Antes, pelo contrário, nele tenho respirado uma muito íntima e profunda alegria, como se me tomasse um canto de amor...
Afinal, subjacente às histórias ali contadas ou tão somente sugeridas e deixadas à adivinha, está sempre uma presença amorosa, fiel, ora comovida ora saudosa, sustentada pela sua própria fortaleza, na perseverança do seu ser, que a projeta como tal, na vida e na morte, na eternidade ou no tempo, na materialidade ou imaterialidade do espaço, em quaisquer circunstâncias, reais ou simplesmente imaginárias.
Já não importa qualquer lembrança nem a falta dela, a memória do amor não pode ser efémera porque nenhum amor é efeméride, o amor é ontologicamente busca de nós em encontro, nunca, nunca jamais em solidão. Ninguém se imagina em amor sozinho.
Reparei, sem surpresa, aliás, em dito colhido na entrevista a uma jovem socióloga norte americana que, singelamente, afirmava que um dos riscos dos tempos que correm é a ausência de vocações. Não estava a fazer campanha clerical de arregimentação de "vidas consagradas", apenas falava de "callings" (chamadas) e de respostas a desafios autênticos da vida. Falava de amor ou, melhor, do amor num mundo que, por tão ensurdecedor, vai ficando surdo. Cada vez escutamos menos, ou ouvimos pior, os apelos que também nos são dirigidos. E todavia talvez a disponibilidade para os ouvir - e a diligência de os escutar - nos pudesse mudar os apertados horizontes do mundo em que vivemos.
Para além das românticas fantasias que, quais mantos diáfanos, envolvem as suas apresentações "mediáticas", o amor é essencialmente, a perseverança de um cuidado atento numa peregrinação partilhada. Transpõe momentos de cansaço e irritação, ultrapassa tentações de desistência ou renúncia, atura fielmente os outros e assim também nos ensina a aturar-nos a nós mesmos... Sobretudo, vai-nos pedagogicamente demonstrando como a paciência e a persistência necessariamente decorrem da nossa condição de imperfeitos. As virtudes todas, a nossa própria fortaleza, cultivam-se na imperfeição constitutiva da nossa condição humana. Tampouco os falhanços são derrotas, mas antes apelos e incitamentos a que nos superemos.
A experiência de situações-limite como a de quotidianamente convivermos com entes queridos que presencialmente vemos esfumarem-se, mais do que perplexidade, causa-nos sofrimento e dor. E, todavia, a perseverança do nosso compromisso com aquela vida - para além dos momentos de cansaço e, quiçá, irritação - paulatinamente, e em luminoso segredo, vai construindo uma bola que, não de neve, mas de ternura mansa, nos encherá de serena alegria.
Apesar de contraditório - ou talvez por isso mesmo - o ser humano é um percurso de surpresas.
Ando a viver todos os dias com um fantasma. Não me assusta nem faz por isso, tampouco emite sons lúgubres, ou se ri de mim à socapa. Nem sequer se esvanece e desvanece, é quase silencioso, não se faz notar, nem se esconde. Só um cego olhar ausente, desatento a tudo, nos deixa adivinhar que tão ensimesmada peregrinação entre a gente é o vagar vadio de quem já se nos não prende. Anda alhures, talvez não saiba por onde, como não sabe que é por aqui que me aparece. Acontece-lhe esquecer o meu nome, como o de muitas coisas deste mundo que, cada vez mais, sente como detestados invasores do labiríntico universo interior em que arreganhadamente tenta resguardar-se - pois no seu sonho sente sempre salva a vida. A demência é uma forma de sobrevivência que imagina fantasmas. Mas que sobreviverá, em si mesmo, do próprio fantasma que esta manhã acordou no quarto que lhe tem sido familiar, sem saber onde estava? Desde então só se passeia pela casa que sempre lhe pareceu grande, e hoje lhe é enorme, dizendo a cada passo: «Não me lembro de nada, não me lembro de nada...» Será tão somente uma nebulosa consciência de que non memoro, ergo sum («Não me lembro, logo sou»)?
No Japão, o teatro nô traz à ribalta os espíritos das coisas e os atores desconhecidos de antigas histórias fantásticas. A obra literária de Ueda Akinari (1734-1809), designadamente a intitulada Ugetsu monogatari (Contos de Chuva e Lua)inspira-se muito no nô, desde logo no próprio título: Ugetsu (chuva e lua) é um termo carregado de sentido para um japonês: acaba de chover e a lua está semi escondida na bruma, tempo ideal para aparições. Aparições que são criações ou artifícios da memória ou da falta dela, ou ainda, como se canta no nosso hino nacional, vozes que se sentem entre as brumas da memória... Quando lembramos um ente querido que já se morreu, reinventamo-lo - por isso abraçamos a persona revivida mais do que, na verdade, a pessoa que saiu da cena desta vida e dela está agora ausente. Quando "convivemos" com o ser vago e vagabundo que se passeia ainda pelos caminhos desta nossa vida, é conscientemente que atingimos uma pessoa aparentemente presente, mas já dramaticamente ausente da comunicação possível em tempo próprio.
O conto A Casa nos caniçais, de Akinari, que a seguir resumo, ilustra bem o que acima tento dizer. Os trechos em itálico são traduções de textos autênticos do autor japonês:
O carácter indolente de Katsushiro, nascido numa família de abastados proprietários rurais, leva-o, em tempos de guerras feudais, à beira da miséria. Para se restaurar, busca mudança em circunstância de mudanças e, graças ao apoio de antiga relação, torna-se negociante em sedas de Ashikaga, o que o leva a ausentar-se de casa e a separar-se provisoriamente de Miyagi, sua bela e fiel mulher. A turbulência bélica e social da época vai-se alastrando e acaba por afastar os tão unidos e amantes cônjuges, obrigando-os a um isolamento mútuo, sem convívio nem notícias. Até que, movido pela solidão e pela saudade, Katsushiro se decide a enfrentar os riscos inerentes à circunstância em que vivem: põe-se a caminho de casa, em esperançosa busca da mulher amada. Mesmo supondo que esta se tivesse tornado numa habitante das regiões subterrâneas, e já não fosse deste mundo, impunha-se encontrar-lhe o rasto e erigir-lhe, pelo menos, um memorial funerário...
Àquela hora, já o sol se tinha submergido no ocidente. Sob as nuvens de chuva prestes a cair, reinava a sombra, mas disse para consigo que não poderia perder-se, pois estava numa aldeia que muito tempo habitara; continuava a andar, afastando as ervas de verão. A velha ponte desmoronara-se no leito do rio e os cascos dos potros já ali não ressoavam. Os campos, desleixados, voltaram a ser baldios e já não se distinguiam as sendas de antanho. As moradias dos que lá tinham vivido já não existiam. Aqui e além, algumas raras casas que subsistiam pareciam habitadas, mas já não se assemelhavam ao que tinham sido. Assim se quedava ele, perplexo, perguntando-se em qual daquelas casas teria morado, quando, a mais ou menos vinte passos, descobriu, à luz das estrelas que as nuvens filtravam, um pinheiro rasgado por um raio, que dominava ao redor. Era certamente aquele que marcava a sua casa e, em espontâneo movimento de alegria, avançou: a casa nada sofrera. Parecia que alguém a habitava, pelas frinchas da velha porta cintilava a luz de uma lâmpada: estaria ali um estrangeiro? E se, por acaso, fosse Ela que ali estivesse? Ao pensá-lo, sentiu o coração bater com mais força, aproximou-se do portão e tossiu para se anunciar. Lá dentro, alguém sentiu a sua presença e perguntou desconfiadamente: «Quem está aí?» Apesar de envelhecida, era certamente a voz de sua mulher... Estaria ele a sonhar? Com o coração em angústia, respondeu: «Sou eu! Eis-me de volta! Tal como dantes, continuais a habitar, sozinha, esta terra coberta de caniços... É admirável! Reconhecendo-lhe a voz, logo ela lhe abriu a porta: toda de negro e coberta de sujidade, de olhos cavos e cabelos entrançados a cair-lhe pelas costas, não lhe pareceu que estivesse ali a mulher de outrora. Esta, ao ver o marido, nada disse, desfez-se em lágrimas...
Entrecortada de choros e suspiros, foi longa a conversa da saudade e do reencontro, da alegria e da dor, da humanidade e do sonho. Até que, para lhe acariciar um soluço, ele lhe disse: «É sempre breve a noite»... e deitaram-se lado a lado. Narrando o decurso da noite, Ueda Akinari dá o passo do sono para o despertar, do sonhado para o experimentado, do real subjetivo para o real objetivo, ou seja, do que se vê por dentro apenas para o que se julga estar a observar. Muito cansado da jornada, Katsushiro dormiu profundamente, e só de manhã, quando a chuva vem refrescar-lhe o rosto e a luz de alva lhe vai abrindo os olhos, perceberá que não está deitado em casa alguma, que não há qualquer porta de entrada ou saída nem, pior ainda, está a seu lado a mulher que ele julgara ali deitada... Estava ou era invisível...
Ou nem uma coisa nem outra. Talvez apenas fosse a solidão feita pessoa e fantasma, ou persona e máscara de uma peça de Nô. Como se o espírito simultaneamente habitasse e viajasse entre dois mundos.
Vários leitores me contactaram para saber um pouco mais da Galla Placídia falada na minha última CARTA. Pareceu-me interessante o que acerca dela já te escrevera, anos atrás e aqui reproduzo...
INTERVALO
Galla Placídia Augusta tem, na história da gente real, uma grandeza tão mítica como a de Dido, rainha de Cartago, que Eneias desprezou para ir fundar Roma... Ou talvez maior, precisamente por ter sido real, no tempo e no modo, o seu sonho, o seu esforço, a sua coragem e devoção. Filha de Teodósio Magno, será por essa linhagem imperial - que sempre estimou acima de tratações, sucessos e desaires - filha e irmã, mulher de imperadores... e afinal mãe, só por essa linha de fidelidade, do último imperador do Império Romano do Ocidente, Valentiniano III, morto assassinado em 455. Digo-o último, sim, porque todos os outros que se foram registando depois, até Rómulo Augusto, destituído em 476, data "oficial" do fim de tal Império, foram surgindo de manobras, crimes e intrigas, sucessivas tentativas vãs de aguentar uma aparência de estado, já sem soberana linhagem nem a Virtus romana... Galla tinha duas forças: a do carácter teimoso e resoluto, e a da sua profunda fé e devoção cristã. Esta tê-la-á ajudado a aceitar casar-se com o visigodo Ataulfo e o romano Constâncio, e ainda a tratar e contratar com rivalidades romanas e ameaças bárbaras. A pertinácia, o faro político, ou sentido de Estado e permanência, lhe terão ditado o raciocínio e as decisões. O que, sempre, sempre, mais me tocou nessa história, eivada de intrigas e banalidades políticas, foi a possivelmente única vitória final de Galla Augusta: ela já não assistiu ao fim atroz do imperador seu filho, e fora antes finalmente inumada em Roma (junto a seu pai, é certo e significativo), em vez de repousar no mausoléu que para si mandara edificar (e ainda hoje existe) em Ravena (na altura capital do Império). Mas, ainda que a título póstumo, viu a vitória do dogma da hipóstase das duas naturezas de Cristo, divina e humana, reunidas numa só pessoa, defendido pelo seu amigo, o papa Leão Magno ( que salvou Roma de Átila), no concílio de Calcedónia, em 451, um ano após a sua morte. Refiro este episódio da história teológica, porque Galla Augusta viveu com a obsessão da compatibilidade do divino e do humano, e vendo na pessoa de Jesus Cristo o sinal de Deus para o devir do Império Romano, a união da cidade dos homens com a cidade de Deus... Foi essa também a obsessão de Jerónimo Savonarola. Nenhum deles, com mil anos de distância, teria, penso eu, visões teocráticas da sociedade política. Tinham, isso sim, uma entranhada fidelidade, muito íntima, ao sentido da legitimidade. Para Galla Placídia, Roma deveria acolher, tratar, federar-se até, com os bárbaros que a cercavam e penetravam, desde e para que mantivesse a unidade que a linhagem imperial garantia, e que a fé nova do império, o cristianismo que o papa representava, necessariamente consagrava. Para frei Jerónimo, não havia outra linhagem que não a vontade democrática (que afrontava e tinha expulso de Florença a tirania dos Medici, e questionava os usos, abusos e costumes do papa Borgia, Alexandro VI), cabendo aos profetas lembrar ao povo a justiça que Deus de todos nós espera e reclama. Entre a princesa romano-bizantina de sangue e o frade mendicante nascido numa família de Ferrara, da qual pouco ou nada se sabe, tudo será diferença: a época e a circunstância, a categoria social, a inspiração das ideias e desejos, a motivação dos atos. E, todavia, passa por eles o mesmo sopro. Que lhes segredou que, se não houver fidelidade e abertura, retidão e justiça, muito se poderá perder e talvez tudo, ou quase, esteja errado. A princesa morreu sem violência, só previu o que iria acontecer ao seu império, ao seu sonho e dinastia. O dominicano foi finalmente enforcado e queimado em praça pública. E, para que o povo não guardasse relíquias do profeta, lançaram ao rio Arno as suas cinzas. Menos de um século depois, Lutero proclamava, em revolta e oposição a Roma e a muitos príncipes, a reforma protestante que, profeticamente, Savonarola, pressentira crescendo no coração dos povos, mas ignorada por quem, como dever primeiro, deveria escutar os outros... Há quem teime em servir Quem (e cá me lembro do Quem do "Ano da morte de Ricardo Reis") não possa morrer, como disse Sophia na sua "Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal": Nunca mais a tua face será pura, limpa e viva, nem o teu andar se poderá nos passos do tempo tecer. E nunca mais darei ao tempo a minha vida, nunca mais servirei senhor que possa morrer... Cito de cor - da memória do coração - ocorreu-me esse poema lindíssimo ao pensar em Carlos V. Creio que este imperador, mais ainda do que o Duque de Gandia, que o servia, e à imperatriz, poderia ter assim sentido a morte de Isabel de Portugal. Quiçá dois desastres íntimos - daqueles que põem à prova qualquer fé - terão abalado Carlos de Habsburgo, e levá-lo a abdicar, para se retirar no mosteiro dos jerónimos de Yuste: a morte da mulher tão admirada e profundamente amada, e a incapacidade de consolidar uma aliança política e de fé, numa Europa que as desavenças entre católicos e protestantes dividiam, e o cerco otomano ameaçava... É certo que derrotou e fez prisioneiro Francisco I de França - o tal que, contra ele, tentou alianças com forças da Reforma e com os muçulmanos - mas o sonho que da cidade de Deus tinha era mais largo e magnânimo, para que todos vivessem em paz uns com os outros e com o Senhor de todos. Era hispano-austríaco, amorosamente casado com uma portuguesa, mas nascera na Flandres, percebia as razões dos movimentos da Reforma e as contra-razões de Roma... Talvez tenha começado a morrer à morte de Isabel, quando se sentiu tão só com o seu cansaço. Os sonetos nº. 3, 4 e 5, de amor mordido, são convívios com estas personagens.
Amigo meu referiu-me hoje uma frase lida, salvo erro, na revista Marianne. Tal dito recordava que, muito depois de Descartes ter afirmado Cogito, ergo sum, agora - pelo menos aparentemente - temos mais tendência a acreditar em Sou visto, logo existo.
É hoje prática corrente e universal, que políticos e outras figuras públicas multipliquem périplos e aparições para "ganharem maior visibilidade", pois se julga que à aparência corresponde essencialmente o reconhecimento... Donde resulta ser a política, por exemplo, cada vez mais uma disciplina do "marketing".
Ocorreu-me entretanto, por inopinada inspiração, um passo da narrativa de Max Gallo, historiador francês, intitulada La Chute de l´Empire Romain (XO Éditions, Paris 2014), que passo a traduzir:
No primeiro de janeiro de 417, o imperador Honório decide partilhar, pela segunda vez, o cargo de cônsul com o general Constâncio e, ao remeter-lhe as insígnias dessa função - e a de patrício, que coloca Constâncio em pé de igualdade com a família imperial - torna Galla Placídia noiva do general.
Galla Placídia deixa o imperador Honório pegar-lhe na mão e pô-la na de Constâncio.
Assim, ela própria quis que Honório surgisse como mestre de obra daquela união.
Aprendera, durante os seis anos que fora obrigada viver no meio dos bárbaros godos, que de modo algum são as aparências que contam, mas sim o que elas escondem.
E era ela filha do imperador Teodósio o Grande, o tal que dividiu o império romano em dois, deixando um a cada um dos filhos: o império do ocidente ficou para Honório, a quem sucederia o sobrinho Plácido Valentiniano (419-455), filho de Galla Placídia e do general Constâncio e, por desígnio de sua mãe, último imperador de Roma. Um parágrafo desta narrativa de Max Gallo vai resumir as núpcias de Galla e Constâncio de modo muito especial:
Na Primavera do ano de 417, celebram-se as bodas. O general Constâncio pavoneia-se, o imperador Honório triunfa. Galla Placídia está de mármore.
E agora me ocorre um comentário mais íntimo, que fui buscar ao Memorial do Convento, do Saramago:
...mas isto é certamente defeito dos olhos que usamos, porque aí vem justamente uma mulher, e onde nós víamos um homem velho, vê ela um homem novo, o soldado a quem perguntou um dia, Que nome é o seu, ou nem sequer a esse vê, apenas a este homem que desce, sujo, canoso e maneta, Sete-Sóis de alcunha, se a merece tanta canseira, mas é um constante sol para esta mulher, não por sempre brilhar, mas por existir tanto, escondido de nuvens, tapado de eclipses, mas vivo, Santo Deus, e abre-lhe os braços, quem, abre-os ele a ela, abre-os ela a ele, ambos, são o escândalo da vila de Mafra, agarrarem-se assim um ao outro na praça pública, e com idade de sobra, talvez seja porque nunca tiveram filhos, talvez porque se vejam mais novos do que são, pobres cegos, ou porventura serão estes os únicos seres humanos que como são se vêem, é esse o modo mais difícil de ver, agora que eles estão juntos até os nossos olhos foram capazes de perceber que se tornaram belos.
Fecho os meus olhos, Princesa de mim, vou dormir, talvez sonhar à sombra de um sorriso que agora me ilumina e humaniza. O vero, o bom, o belo, o essencial é, consoladoramente, invisível à vista.
Tumular me surge a manhã deste Sábado Santo. Acordo e levanto-me num dia cinzento, silencioso e quieto. Da varanda larga do meu quarto, avisto os campos inumados numa atmosfera incolor até ao horizonte. Não bole uma folha nas árvores dos pomares que acompanham a encosta até à estrada deserta de carros e pessoas. Desço ao meu gabinete, ponho-me à escuta das Lamentações de Jeremias, em composições de vários autores, de Alexandre Agricola a Orlando di Lasso, passando por Cristobal de Morales e Jacob Arcadelt, interpretadas pelo Egidius Kwartet, em julho de 2007 na Laurentius Kerk Mijnsheerenland, na Holanda. Cada Lamento é rematado pela conhecida exortação: Jerusalemconvertere ad Dominum Deum tuum... Abro os olhos e, cá em baixo, já vejo, no quadro desta janela, a minha sakura florida e viçosa, a lembrar-me lição sage da natureza onde a permanência se descobre na humildade da constante mutação das coisas. No pensarsentir humano, chamamos-lhe conversão ou metanoia. Associamos-lhe, em regra, a ideia de arrependimento e penitência, ou renúncia (para melhor troca?). Mas nesta manhã cinzenta de Sábado Santo, quando o nosso silêncio ecoa o do Senhor Jesus, envolto em panos no segredo do seu sepulcro, e ainda o sofrimento e morte que vai ferindo tantos humanos por esse mundo fora, a flor da cerejeira que trouxe do Japão sorridente me acena com a promessa da alegria maior que encontrarei na simples contemplação do amor redentor de Deus, se assim o quiser também seguir a fidelidade do meu pensarsentir. Medito em como o próprio transitório pode, em silêncio, revelar-nos, num só vislumbre que seja, a inesgotável permanência... E ocorre-me essa resposta de Higuchi Ichiyo (1872-1896), jovem escritora (e autor clássico das letras japonesas, morta tuberculosa com apenas 24 anos) à pergunta sobre o que a faz mais feliz: Desde logo, não são roupas de brocado. O que me faz feliz é a natureza. Há uma verdade, uma honestidade na natureza que por vezes me traz o sentimento de comunicar com as flores silenciosas e a lua tranquila. Esqueço então completamente o mundo flutuante (ukiyo). É como se dançasse no centro de uma esplêndida flor, a propósito criada para aquele instante. Eis como são os meus momentos de felicidade.
Acontece-me recordar palavras de Jesus, ao dar comigo em busca de comunhão e paz: Não quero sacrifício, mas misericórdia. A ideia de sacrifício, aliás, traduz sobretudo, vezes demais, a do pagamento duma obrigação ou dívida para com a divindade, como se cumprir um dever ou uma renúncia fosse, em si e por si, ato sacralizante e sempre meritório, transformador do profano em sagrado. Menos vezes entendemos que a misericórdia não é um ato individual, nem qualquer renúncia à espera de compensação. Misericórdia é partilha de coração, com tristezas e alegrias, vida e afetos, êxitos e fracassos, na comunhão do amor. Isto é, anima-se, vive por todos, com todos e em todos. Ninguém pode amar sozinho. Nem sequer perdoar é solitário, o perdão é sempre recíproco: assim leio a parábola do filho pródigo, em que vejo como o pai, ao perdoar o filho, procura também perdão para si. A misericórdia é, necessariamente, uma relação indissociável. O ofertório maior do sacrifício do próprio Filho de Deus só tem sentido no vínculo indestrutível ao Verbo redentor. No seu sepulcro, Jesus inumou consigo a humanidade inteira, para dali ela surgir nova. Qual flor que desabrocha, a meditação sobre o Santo Sepulcro é também momento de alegria. Faz-me feliz pensar que todos podemos comungar na esperança que só o amor partilhado traz.
Este Domingo de Páscoa surge-me solar, caloroso, criador. É certo que ninguém assistiu à Ressurreição, apenas alguns poucos viram o túmulo vazio, só Maria Madalena viu e falou com o Mestre que, aliás, primeiro confundiu com um jardineiro... Interpelando este, confessou que buscava o seu Senhor, e é essa procura que veicula e realiza o primeiro encontro. Contudo, não pode tocar-lhe: Jesus já não é uma presença física, torna-se naquele que, em comunhão eucarística, os seus seguidores deverão, ao longo da história, reconhecer e anunciar através da partilha do pão. O "sagrado" cristão viverá pela fraternidade humana: as bem aventuranças são bênção do Cristo glorioso descendo sobre quem der de comer ao faminto, de beber ao sedento, praticar a justiça e construir a paz. O beneficiário dessa solidariedade é o próprio Jesus, que, com cada um de nós, vive no coração do Pai. Na celebração eucarística e comungante da Páscoa, mesmo quando solitária, mais do que muitos, estamos todos unidos na alegria da libertação da morte pela comunhão fraterna. A Boa Nova não veio para nos ensimesmar. Veio para nos anunciar a vida que é essa alegria de nos amarmos uns aos outros. Efetivamente, na busca e construção da justiça e da paz.
Assim este teu amigo, Princesa de mim, foi refletindo na celebração confinada desta Páscoa cristã.
Nitobe Inazo nasceu em 1862, pelo que a queda do shogunato Tokugawa o pôs em plena restauração Meiji e a duração da sua vida lhe permitiu ainda viver, além da Meiji, as eras Taisho e parte da Showa. Tendo morrido em 1933, foi poupado à loucura e à derrota do Japão na Segunda Grande Guerra. Foi claramente um homem do renascimento japonês do seu tempo, tendo vivido na Alemanha, Reino Unido e, sobretudo, nos EUA, sem todavia jamais deixar de refletir sobre as questões que um processo de modernização coloca ao bom governo e educação de uma sociedade em vias de aculturação. Converteu-se ao cristianismo, casou com uma americana quaker, traduziu abundantemente do alemão e do inglês, chegando ainda a escrever, em ambas essas línguas, obras de sua autoria, mas manteve-se sempre ao serviço da sua pátria, quer como universitário e professor, quer como diplomata (esteve na conferência de Versailles, em 1918, e representou o Japão na Sociedade das Nações). Feita a apresentação, apenas o recordo aqui para citar, em tradução minha, um breve trecho do seu Bushido, l0âme du Japon (versão francesa da Budo Éditions, Noisy-sur-École, 2000):
A erudição é um legume malcheiroso que é preciso ferver e voltar a ferver antes de se poder consumir.
Parece-me, minha Princesa de mim, que sendo nós um povo cuja cultura se compraz no amanho de algum exibicionismo e, designadamente nos meios ditos intelectuais, de um alarde de erudição que mais recorda excessos decorativos de um gosto "kitsch" do que, propriamente, a busca e partilha de referências pertinentes, será certamente salutar refletirmos sobre o saber cozinhar e digerir muito daquilo que, por aí, se afixa ou proclama como "bagagem cultural". Por vezes, aliás, o artifício é tão artificial - como, desta tão enfática forma, me ocorre observar - que torna insuportavelmente vistosa a vaidade irreprimível de um autor ou orador: assim o despropósito de umas citações rebuscadas em discursos cujo pensarsentir deveria ser bem distinto... Até por respeito pelos ouvintes... Mas passa-se como se alguém, inspirado pelo filme Zorro, the Gay Blade, surgisse de sopetão perante a assistência e as câmaras gritando, em jeito de Coucou me voilà! «eis-me aqui, que sou tão "culto"!» Mas deixarei para outra carta, Princesa de mim, mais observações sobre este e outros aspetos da pitoresca construção mediática de fulanismos míticos em Portugal... Por hoje, regresso ao Japão.
Urabe Kenko, o autor medieval de Tsurezuregusa (Horas de Lazer), de que já falámos, tem, na mesma obra, esta curiosa observação acerca dos valores cultivados pela aristocracia da corte imperial: A verdade encontra-se no estudo sistemático das letras clássicas, na arte da composição chinesa e da poesia japonesa, na prática da arte musical ; mais ainda, no conhecimento das regras da corte imperial e das cerimónias tradicionais... ...ou em possuir mão hábil para a escrita ágil [não te esqueças, Princesa, de que esta é caligrafia, a pincel e tinta da China], ou em poder exibir uma bela voz, marcando o compasso...
Pierre-François Souyri, no seu Les Guerriers dans la Rizière - La Grande Épopée des Samouraïs (Paris, Flammarion, 2017), contrapõe aquela nota a outra, constante do Soga Monogatari (Contos dos Soga), realçando assim a oposição histórica da cultura guerreira (bushido ou via do guerreiro) à da aristocracia da corte:
O canto e a poesia, os instrumentos de cordas, o jogo de bola no pé, o tiro ao arco pequeno, eis alguns divertimentos que se praticam na corte ou em casa do imperador reformado, mas nós cá somos guerreiros, fazemos a guerra a cavalo, combatemos a pé, medimos a nossa força pelo braço de ferro, sabemos galopar os nossos cavalos saltando obstáculos. Estamos hoje aqui reunidos, vindos de toda a parte... ...Organizemos, pois, um torneio de sumo [combate sem armas] entre nós!
Não tenciono alargar por aqui este tema da cultura bushido, ultimamente tão debatida, como nos diz o próprio título de um livro de Olivier Ansart, Paraître et prétendre: l´imposture du bushido dans le Japon pré-moderne (Paris, Les Belles Lettres, 2020), autor que, tal como Pierre-François Souyri, foi diretor da Maison Franco-Japonaiseem Tokyo (cuja fundação, aliás, muito deve a Paul Claudel, embaixador de França no Império do Sol Nascente, nos anos 20 do século passado). Mas voltarei ao quaker japonês Nitobe, logo depois desta citação da Crónica Militar de Nitta Yoshisada (morto em 1338): Desde a Antiguidade até aos nossos dias, existe essa divisão entre as armas e a cultura literária. As respetivas virtudes são como o céu e a terra. Se qualquer delas faltar, deixa de ser possível governar o mundo. Assim, os nobres da corte privilegiam a cultura literária, que são as artes dos poemas e da música. Mas no bushido (via dos guerreiros), as armas são o princípio: eis a via do arco e setas, e das batalhas.
Mas a tal via dos guerreiros, afinal, vai tendo, no decurso da história, várias faces moldadas pelas variáveis circunstâncias do tempo e do modo... Bushi se pretenderam e proclamaram sucessivas gerações de guerreiros, com estatutos e condições sociais e morais que iam de bandos de bandidos e salteadores de estradas e aldeias, a funcionários imperiais, vassalos feudais, vinculados por juramentos de fidelidade e serviço que, todavia, nem sempre escaparam a tentações de traição ou mudança de partido, sobretudo quando se apresentavam alternativas mais favoráveis a promoções e enriquecimento próprios... Mas tinham em comum algo a que chamarei "vocação mitológica", quiçá soprada pela contemplação de valores profundamente enraizados na alma ou cultura nipónica: rasgo e resistência, solidariedade, transitoriedade e permanência do efémero.
O mito (ou mitos) do bushido, curiosamente, foi inicialmente popularizado no Ocidente pelo livro - escrito originalmente em inglês por um filho de samurai - Bushido, the Soul of Japan (1900). O autor é já nosso conhecido Nitobe Inazo, diplomata e professor universitário, convertido ao cristianismo quaker e casado com uma americana, como acima contei. A imagem exemplar que transmite da via dos guerreiros inspira-se certamente na educação que, enquanto descendente duma família de samurai, Nitobe recebeu e, também, na preocupação e desejo de nobilitar, perante estrangeiros, as gentes japonesas. Por outro lado, sabemos que o autor era cristão, casado em terra estranha com uma estrangeira... Mais ainda: Nitobe Inazo era pacifista e nunca se sentiu bem com a propensão ao autoritarismo e belicismo nacionalista que, pelos anos 20-30 ia desenhando as opções políticas do Império do Sol Nascente, conduzindo-o, finalmente, à guerra.
Com o devido pudor, não irei, Princesa de mim, emitir juízos nem sobre o drama interior de Nitobe - e tantos outros lúcidos apoiantes da restauração Meiji, entendida como abertura do Japão ao mundo novamente imposto, oferecido e descoberto - nem sobre a conversão ou teatralização de tradições que, mais ou menos verdadeiras, se tentou que encarnassem a tal "Japanese soul"... Por hoje, apenas quero deixar-te um apontamento que ilumina uma relação com a fidelidade e a morte que, tão japonesa no seu sentido, me parece aqui merecedora de atenção. Trata-se de um episódio da saga da queda final, nos anos 30 do século XIV, do shogunato Hojo, com sede em Kamakura. Conta-nos Pierre-François Souyri:
Vencido por Ashikaga Takauji, o general Hojo Nakatoki fugiu com alguns dos seus vassalos, mas logo se viu cercado por bandos armados de milhares de homens: «Nã vejo saída nem refúgio possível... Terei pois de abrir o ventre, como é dever de qualquer homem de honra».
O general Nakatoki dirigiu-se então aos seus homens, convencido de que um bom senhor deve saber recompensar os seus servidores pelos serviços prestados. Ora, não estando em condições de o fazer, só lhe restava morrer: «Não encontro palavras que falem aos vossos corações leais, a vós que tão fielmente me servistes até ao dia de hoje. Lembro-me do sentido da honra que nos ensina a Via do arco e das setas e não me esqueço da vossa solidariedade já tão antiga. Sabeis todavia que a sorte das armas nos não foi favorável, e que o clã Hojo sucumbiria. E como é profunda a minha gratidão! Gostaria, com todo o meu coração, poder recompensar-vos pelo vosso mérito, mas o funesto destino do meu clã não permite que o faça. Vou, portanto, suicidar-me aqui, para saldar a dívida que para convosco contraí» O seu vassalo mais próximo, Kasuya Muneaki, logo se suicidou também, «para poder guiar o seu senhor no mundo das trevas». Mas não foi o único: os quatrocentos e trinta dois samurais presentes abriram simultaneamente os ventres. «O sangue corria-hes dos corpos, como caudal do rio Amarelo, e os corpos cobriam o chão como carne num talho».
Creio, Princesa de mim, que nos ajudará a melhor entender este episódio que Souyri foi buscar ao Taiheiki, recordar aqui a origem da palavra samurai: deriva do verbo antigo saburafu, que significa servir. O samurai é, portanto, inicialmente, um servidor, mas especial: armado, pertencente a uma escolta, uma espécie de guarda-costas. Lado a lado com o termo samurai aparecem muitas vezes outros, tais como bushi, cuja etímolo chinês se refere às artes marciais ou budo, a via das armas, sendo esse bu frequentemente oposto a bun, ou letras. Shi significa alguém de qualidade e, assim, um bunshi é um letrado e um bushi um guerreiro. Com o andar dos tempos, bushi e samurai tornaram-se sinónimos.
Verifico, com surpresa, talvez mágoa, não sei, que as notícias e comentários de órgãos de comunicação católicos portugueses se referem à recente visita do papa Francisco ao Iraque enaltecendo sobretudo a coragem, a resposta ao desafio dos riscos, a "loucura" que apelidam de profética, etc., sem se lembrarem de que aquela peregrinação foi a de um homem de fé, que nos trouxe a contemplação essencial desta virtude teologal e das outras duas: esperança e amor. O espírito cristão parece, assim, quase ausente do nosso sentimento da aventura quotidiana... ou será que preferimos, a uma visão íntima, mística, da vida e da história, a emoção proporcionada por feitos humanos, à nossa medida?
Por outro lado, surpreendeu-me também um boletim do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, órgão da Conferência Episcopal Portuguesa, em que se destacava um suplemento do Jornal de Notícias sobre o cardeal José Tolentino Mendonça, um dos fundadores do tal boletim, seu diretor durante anos e que tem sido, em tempos recentes, assunto de artigos bastante encomiásticos, pelo mesmo publicados.
Na verdade, de Tolentino ou outra pessoa qualquer um de nós pensará, por bem, o que lhe parecer, e o Jornal de Notícias está no seu direito de publicar o que melhor entender. Os eventuais leitores, por seu lado, farão sobre o que lerem um juízo conforme ao exercício do espírito crítico de cada um. Pessoalmente, é-me indiferente que Maria João Avillez escreva que aquele clérigo é a única pessoa que consegue trazer o sagrado para perto dela, ou que "o investigador" Luís Mah o considere único e veja nele o próximo papa. Já me escandaliza que um boletim do episcopado que ele fundou e dirigiu reúna todo esse material numa espécie de panfleto propagandístico, com um título que retoma o dito da jornalista Avillez: «Ninguém como ele nos traz o sagrado para tão próximo de nós».
Aliás, também me parece assaz incorreta a afirmação da mesma jornalista, ali reproduzida: «O Papa Francisco sabia bem o que fazia quando foi pescar este padre ainda jovem no nosso mar português». Cheira-me a tentativa de ligar umbilicalmente à figura extraordinária do papa atual o perfil de José Tolentino. Sabemos que a carreira vaticana do atual cardeal português se iniciou ainda no pontificado de Bento XVI, embora já sob o patrocínio do cardeal Gianfranco Ravasi, padrinho de um dos mais conhecidos grupos de pressão da Cúria Romana. Foi em 2011 que foi nomeado, pelo papa Ratzinger, consultor do Conselho Pontifício para a Cultura, presidido pelo cardeal italiano.
Sabes bem, minha Princesa de mim, quanto me repugna falar dos outros, precisamente pelas mesmas razões que me levam a aborrecer (no sentido antigo, etimológico, de ter horror a) as campanhas malévolas ad hominem ou as mitoconstrutoras pro homine, umas e outras claramente fulanistas. As pessoas podem discutir gostos e ideias, não têm, nem devem, discutir-se umas às outras enquanto tais. E é por isso que te recito agora um poema de frei José Augusto Mourão, o.p., que foi professor de semiótica de José Tolentino que, aliás escreveu o prefácio ao seu livro de poesia reunida (O Nome e a Forma, Pedra Angular, 2009), donde os versos seguintes são retirados, com os meus votos de que Tolentino consiga vir ainda a partilhar da respiração mística que anima o sopro poético daquele seu falecido mestre:
introito
não somos a fonte nem o rio mas a sede, o desejo do permanecer e do louvor corre em nós como o rio e a fonte nunca passaremos do átrio o santo dos santos sobre que se detêm os nossos pés é a vida misteriosa de Deus
a hora é para suspirar, para louvar, para pedir a água eu irrigava o Templo e no batismo nos introduziu no mistério de sermos hoje o templo do Espírito
II
Nós somos o corpo que o Amor reúne nós procuramos todos um colo onde repousar dos trabalhos e dos dias, do desamor e das trevas que também nos assaltam e nos tolhem
nós procuramos a paz e o perdão sem disfarces nem armas
que a misericórdia de Deus nos cubra neste momento de graça e de perdão
Creio mesmo, Princesa de mim, que estes versos do frei José Augusto, já falecido, são todos os dias repetidos pelo papa Francisco e por todos aqueles que, sem ambições nem narcisismos, vão procurando achegar-se a essa presença do amor misericordioso, bem maior do que algo a que se possa chamar sagrado, pois é o próprio Deus em comunhão connosco.