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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS PARA A OUTRA MARGEM

Minha Princesa de Além:

 

   Passámos juntos os teus quase seis anos derradeiros, tempos simultaneamente difíceis e estranhamente gratificantes, antes do teu salto para a outra margem. O teu voo final, cuja ocorrência ia parecendo cada vez mais iminente e fatal, era por isso tão previsível como imprevisível, pois o nosso sentimento - essa persistência no ser a que também chamamos alma - sempre fortalece a crença íntima num qualquer milagre. E eu, que fiquei por cá, de pés na terra, esgotado pela luta, desiludido da esperança, não dei logo por mim, quedei-me perplexo, robô talvez, ao qual fosse faltando a bateria. Escrevi recentemente a um amigo um bilhete breve, que quiçá nos ajude a me perceber melhor. Diz assim:

   J'essaye de me refaire une jeunesse... Mas é difícil, sobretudo porque estes últimos anos - e alguns meses mais - mudaram tanto a minha circunstância que o próprio íntimo de mim se tornou um estrangeiro. Nem sei se mudei também ou não - muito, pouco ou nada - mas reconheço-me mal, sinto-me um peregrino deambulatório, sem percurso orientado. Afinal, é facto que as balizas que me guiavam dia após dia já hoje me estão fora do alcance da vista,dos braços que com ansiedade abro e estendo  Invisíveis, insensíveis, desenganam-me o pensarsentir, fogem-me, talvez, do coração cansado...

   Terei de renascer, de ser outro eu em mim.
   E vou tentando.

   Ao fim de quase cinquenta e seis anos de vida comum, mais de meio século de coabitação em partes tão diferentes deste nosso mundo, torna-se impossível pensarsentirmo-nos indivíduos apenas, na medida em que, afinal, a nossa circunstância, por muito que lhe tivessem mudado os tempos e os modos, foi robustecendo, em cada um de nós a fundamental referência a uma comunhão. Muitas vezes te escrevi, Princesa de mim, que a morte de um amigo, de alguém muito próximo é sempre necessariamente, pouco ou muito, a nossa. Assim nos vamos, os que cá continuamos, paulatinamente morrendo. Recordo os desabafos de Michel de Montaigne aquando da morte do seu amigo de La Boétie, ou a revolta do Duque de Gandia pela morte da Imperatriz Isabel de Portugal, revolta que o virou jesuíta e fez santo canonizado (São Francisco Borja): nunca mais darei ao tempo a minha vida, nunca mais servirei senhor que possa morrer, como canta Sophia... E nessa sua versão de uma meditação do Duque de Gandia, a poeta intui o carácter secreto da nossa perplexidade perante a morte: amei-te em verdade e transparência, e já nem sequer me resta a tua ausência... Na verdade, a própria ausência é temporal, e também ela se vá embora com a morte que a leva para o reino da eternidade que ainda não atingimos e nem sequer conseguimos bem imaginar. 

   E é essa ausência da mesma ausência que me leva agora a pensar nessa ressurreição de mim, do meu ser corporal com o seu peso de tanto pensarsentir, ainda sempre tão limitado, como graça estranha ao mundo dos nossos horizontes, mas bênção profética a libertar-nos desse absurdo fatal que seria a ausência da própria ausência do amor possível, negação desse impulso inicial que nos trouxe vida e a alimenta.

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS PARA A OUTRA MARGEM


Minha Princesa de Além:

 

   Ainda muito limitado pela minha dificuldade de locomoção, faço longos passeios interiores e chego até ti na companhia de poetas e músicos, desses amigos que frequentávamos juntos e nunca nos negaram presença amiga. Por estes dias, ocorreu-me a lembrança de que para Basho o tempo seria um viajante e a própria vida uma viagem. Fui logo ler o prefácio que o poeta escreveu para o seu Oku no hosomichi, isto é, a vereda de Oku, região por onde peregrinava. Reza assim: «O tempo é um eterno passageiro. Os anos que passam também são viajeiros...  ...Muitos são também os antigos que morreram em viagem. Até eu tenho, desde não sei quando, levado pelo vento e pelas nuvens, um desejo de partir em viagem sem destino, que me não larga. 


   Andar por aí sem constrangimento nem destino, ao sabor do vento, como significa o termo japonês furari, talvez seja modo privilegiado de me despertar para o maravilhamento com que qualquer instante me pode surpreender. E ajudar-me-á a sentir um haiku, na sua simplicidade breve, com todo o lirismo da minha alma:


Aroma de flores de ameixeira
pela vereda dos montes;
súbito surge o sol!


   Não tive de me deslocar fisicamente: encontrei o Basho em peregrinação interior. Assim também me vou encontrando contigo, Princesa tão silenciosa no teu Além, sobretudo em companhia do Issa, o poeta de haiku que prefiro:


Vinde a mim
brinquemos juntos,
pardalitos sem pais


A neve derreteu
a aldeia inundou-se 
de crianças!


«Apanha-me
a bela lua!»
pede chorando uma criança


   
O nosso coração enche e dá vida a tudo: aos pardalitos perdidos de um ninho que a tormenta derrubou e deixou sem pais, à praça de uma aldeia que o frio invernal despira de crianças que ora regressam, ao impossível desejo de um menino que, como Calígula, quer para si a lua! Tudo é surpresa, tal como a Primavera que o olor das flores de ameixeira anuncia e o sol vem visitar...


   Jiro Taniguchi, mestre de banda desenhada, no seu Furari (Ao Sabor do Vento), imagina o encontro do protagonista andarilho com o poeta Issa: também este é vagamundo, vai andando sempre sem saber para onde, e ao luar de Agosto dá graças por iluminar a noite e um cantinho do seu coração. Por nos perdermos afinal nos encontramos.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS PARA A OUTRA MARGEM


Minha Princesa de Além:


    A um querido amigo que me confidenciava não conseguir perceber com devida precisão o que será esse islamismo de que por aí muito se fala, respondi eu que tal designação não é unívoca, pois tanto poderá significar o Islão (como cristianismo se chama à religião cristã) como qualquer movimento radical ou pretensamente "fundamentalista", ou mais "ortodoxo" (?), desses vários, e diversos, que sempre foram surgindo do seio da religião muçulmana ou no seu território. Agora, ao pensar na resposta, quero acrescentar que islâmico ou islamista aparece hoje frequentemente expresso em sentimentos e discursos islamófobos, isto é - como a própria etimologia grega no-lo ensina - de medo e concomitante ódio do Islão. Em tal sentido, e sem abuso meu, pode dizer-se que o surto - e o susto - islâmico, na realidade densa dos factos, se encontra sobretudo nos fantasmas que povoam as nossas referências, por vezes tão deliberadamente preparadas pelo poder político que nos governa.


   Não nego, nunca neguei - antes pelo contrário - o acontecimento de atentados bárbaros cometidos em nome de Alá e do Islão. Mas também fui daqueles, aliás com muitos portugueses, e não só, que sempre questionaram e negaram a racionalidade da guerra do Iraque, país dividido entre sunitas e xiitas, então governado por um autocrata que, quiçá, estaria mais próximo de uma transição para um estado secular, a exemplo do que já acontecera noutros países muçulmanos do médio oriente, com exceção do Irão xiita. Nem tampouco esqueço algo que já te tenho dito, a saber, que os movimentos terroristas radicais, ditos islâmicos, são financiados e suportados sobretudo pelas petromonarquias wahabitas árabes, aliadas dos EUA e de Israel. 


   Há ainda que considerar as rivalidades atuais e latentes entre movimentos islâmicos (v.g. al Qaeda/Talibã contra Estado Islâmico). O recente golpe norte-americano - em Cabul, a 27 de agosto - contra pretensa viatura do E.I. que, afinal trazia apenas civis e crianças, em vez de armas, é tendencialmente esquecido ou escamoteado, talvez por ser revelador de leviandade e precipitação por comandos militares de uma grande potência...


   O mundo muçulmano, ou islâmico, sobretudo no médio oriente após a queda do império otomano, tem atravessado um período agitado e difícil de ultrapassar. As suas populações talvez esperem do chamado ocidente mais exemplo e convívio estimulante do que essa constante mania que querer preservar lideranças ou, sobretudo, um sentimento teimoso de superioridade.

 

Camilo Maria 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS PARA A OUTRA MARGEM


Minha Princesa de Além:

 

   Na minha última carta terei deixado claro não ser meu propósito esclarecer (nem tampouco investigar) as circunstâncias, as causas próximas e as propostas de soluções da atual crise afegã, muito embora possa ainda vir a adiantar algumas sugestões de análise e de pistas praticáveis. Por outro lado, continuo a insistir - como ao longo da última década - na fundamental importância de um melhor conhecimento de outros povos, culturas e civilizações para a construção de pontes e entendimentos indispensáveis a uma convivência pacífica e enriquecedora... em vez de continuarmos a ver tudo pela perspetiva do choque de civilizações ou das possíveis hegemonias das grandes potências.

   Na primeira das suas Cartas de Inglaterra, Eça de Queirós escreve sobre duas invasões do Afeganistão pelo poderoso e pesadamente armado exército britânico: a de 1847 e a de 1880. Destaco um trecho: Numa manhã avista-se Candaar ou Gasnat; - e num momento é aniquilado, disperso no pó da planície o pobre exército afegão, com as suas cimitarras de melodrama e as suas colubrinas, do modelo das que outrora fizeram fogo em Diu. Gasnat está livre! Candaar está livre! Hurra! - Faz-se imediatamente disto uma canção patriótica; e a façanha é por toda a Inglaterra popularizada numa estampa, em que se vê o general libertador e o general sitiado apertando-se a mão com veemência, no primeiro plano, entre cavalos empinados e granadeiros belos como Apolos, que expiram em atitude nobre! Foi assim em 1847; há-de ser assim em 1880.

   No entanto, em desfiladeiro e monte, milhares de homens que, ou defendiam a pátria ou morriam pela "fronteira científica", lá ficam, pasto de corvos - o que não é, no Afeganistão, uma respeitável imagem retórica: aí, são os corvos que fazem a limpeza das ruas - comendo as imundícies, e em campos de batalha purificam o ar, devorando os restos das derrotas. 

   E de tanto sangue, tanta agonia, tanto luto, que resta por fim? Uma canção patriótica, uma estampa idiota nas salas de jantar, mais tarde uma linha de prosa numa página de crónica... Consoladora filosofia das guerras!

   No entanto a Inglaterra goza por algum tempo a «grande vitória do Afeganistão» - com a certeza de ter de recomeçar, daqui a dez anos ou quinze anos...

   O que mais me faz refletir nesta história é o sentimento de superioridade e força que facilmente se apodera das grandes potências, levando-as a ignorar os outros povos e suas culturas, posto que estes vão sempre sendo considerados passivos ou instrumentos disponíveis e utilizáveis, ou, obsessivamente, inimigos, obstáculos ou nocividades a eliminar... No caso do Afeganistão, por exemplo, depois de russos e ingleses, vieram mais russos e soviéticos, norte americanos e NATO, al Qaeda e talibã... Mas neste caso, como em vários outros - apesar de algumas analogias com eventos já passados, e da essencial megalomania dos potentados-- mais preocupante será a opaca ignorância dos outros e suas culturas, bem como a cegueira da própria consciência de si, com a alienação das verdadeiras causas dos seus próprios atos e consequências. Explico...  

  Hoje mesmo, percorrendo jornais e revistas respeitáveis e influentes, sobretudo no universo anglo-americano, deparo com essa jeremíada interrogação sobre se a aparente derrota no Afeganistão será verdadeiramente o canto do cisne do poderio americano como polícia do mundo. Repara, minha Princesa do além de mim, que falo de derrota aparente, e também me interrogo sobre o que será um poder e o seu respetivo desastre. Afinal, e humildemente, porque não sei; ou antes será por não me parecer interessante a pergunta, nem a resposta. Aflige-me a endémica mania das grandes potências se servirem de, ou subsidiarem, mais pequenos, frágeis ou iludíveis, para custearem a prossecução dos seus interesses próximos. Se repararmos bem, os EUA apoiaram, militar e financeiramente os talibã contra os soviéticos, em tempos de guerra fria, tal com são garantes da aliança israelo-saudita, no jogo das potências regionais do médio oriente, ao ponto de parecerem ter esquecido que a Al Qaeda, autora dos atentados de 11 de Setembro de 2001 - cujo 20º aniversário agora decorre - é de raíz wahabita e saudita, e por essa facção islâmica - e o reino que a aconchega - sustentada.

   Não seria mais avisado, sobretudo em tempos de renovação energética, ir-se abandonando a extrema dependência petrolífera do médio oriente arábico, e conduzir uma política de encontros entre culturas e religiões? Hipótese que, aliás, ganha nova força se pensarmos que, por um lado, a maioria dos estados muçulmanos são hoje repúblicas laicas e seculares, e que a renovação do pensamento religioso, ou teológico, islâmico conta, em todo o mundo, com um número crescente de escolas e seguidores? Ainda muito recentemente, o sociólogo do Islão Reda Benkirane defendia que o apregoado regresso da religião muçulmana é, na realidade, uma saída do Islão da política, mantendo-se a sua invocação apenas como instrumento de legitimação do poder, de forma a produzir a ilusão da transcendência deste...

   Num mundo que consideramos crescentemente global, insisto, o conhecimento e respeito mútuo das culturas e religiões, das diferentes comunidades humanas é o passo pioneiro no longo caminho para uma paz consciente. Em futuras cartas, minha sempre princesa do Além, falaremos dos movimentos ecuménicos que foram despertando - e até dando frutos - ao longo da nossa atribulada história, bem como das místicas que os sustentaram. Por hoje, quero tão somente transcrever um trecho da biografia de frei Sérgio de Laugier de Beaurecueil, escrita pelo seu confrade dominicano frei Jean-Jacques Pérennès (Passion Kaboul, Le Cerf, Paris, 2014):

   Único padre católico - ou quase - no Afeganistão, ele vive com a questão do «mistério do Islão», tal como Jorge Anawati [este, dominicano egípcio, co-fundador, com Beaurecueil, do Instituto Dominicano de Estudos Orientais do Cairo]. Ambos não escondiam a sua admiração pelo franciscano marroquino Jean-Mohamed Abd el-Jalil, cuja conversão ao cristianismo não tinha alterado a estima pela religião dos seus pais. No seu belíssimo livro «Aspects Intérieurs de l´Islam», Abd el-Jalil esforça-se por apresentar o interior da religião em que nascera, a fim de lhe revelar a profundidade espiritual. Religioso cristão completamente imerso no mundo muçulmano, Serge de Beaurecueil era, ele também, sensível ao caminho espiritual percorrido por vários muçulmanos com que lhe era dado encontrar-se.  

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS PARA A OUTRA MARGEM


Silente Princesa de mim:


   Em muitas das cartas que te fui escrevendo à vista de todos, te falei na inesgotável questão do espírito crítico: como se alcança e educa, como se preserva para benefício social e cultural da liberdade responsável. A livre responsabilidade é esteio fulcral de qualquer cultura que se preze, condição sine qua non da democracia social. Por isso mesmo deve estar no centro da nossa reflexão sobre a educação (ou construção da cultura) numa sociedade livre, e assim ser objeto de fraterno cuidado. Ora, no tempo presente, modos vários (e suas modas) parecem conluir-se para aquilo a que já o saudoso Bernanos chamava robotização dos humanos. E vamos perdendo discernimento, serenidade de análise e alvedrio, na exata medida da nossa embriaguês "noticiosa" e das galopantes ondas de "opiniões" e comentários que nos assaltam.   


   E porque até nos cabe na palma da mão um desses aparelhos que, em poucos segundos (aliás, convém não esquecer que a velocidade das comunicações já se tornou em argumento fundamental da publicidade comercial desses aparelhos), nos trazem novidades e comentários às mesmas, além de assertivos conhecimentos históricos e científicos, todos nos vamos tomando por estudiosos e sábios, prontos a discutir qualquer assunto ou matéria... E se acontecer que alguém calma e seguramente nos contradiga e explique, logo retorquimos que cada qual pensa o que quer e cada um tem sempre direito a ter a sua opinião...


   Assim se vai matando o diálogo e destruindo as oportunidades de educação e enriquecimento mental mútuo. E, lamentavelmente, vamos substituindo o gostoso esforço da ponderação e da investigação pela leviana apropriação fácil de conceitos e termos que nos eram e são alheios, até porque nem nos exercitamos ao seu entendimento. Sinal ubíquo de tal infeliz realidade é o número crescente de neologismos desnecessários que vão surgindo por aí, ao acaso das nossas falas e escritas quotidianas. Pior ainda: já nem procuramos as palavras portuguesas que, na nossa própria linguagem, dizem bem e precisamente - e com melhor entendimento por todos - aquilo que traduzimos mal, e até desvirtuando-lhe o sentido.


Veja-se, por exemplo, este texto da Universidade Católica Portuguesa (e, aliás, a talho de fouce, não deixemos de estranhar o facto de como, ainda que através de um departamento designado em inglês, uma universidade católica se entretém a ministrar cursos sobre gestão do luxo...). A notícia aqui transcrita foi originalmente publicada pelo jornal Sete Margens, no passado dia 7 de agosto:


   A 14ª edição do programa "Gestão do Luxo" da Católica Lisbon Business & Economics (o nome da faculdade é em inglês) inicia-se no dia 24 de setembro. Os interessados podem escolher entre "assistir presencialmente ou por transmissão live virtual".


   O anúncio indica que "o programa de ´Gestão do Luxo´ propõe uma visão abrangente do universo do luxo e é dirigido a todos os profissionais que pretendam incorporar mais valor às marcas e projetos que dirigem" [sic]. O programa "propõe ainda o estudo dos principais setores de atividade que compõem este heterogéneo mercado, revelando as suas estratégias, ilustradas e enriquecidas com case studies e best practices" [em inglês no original].
[...]


   Os "profissionais que trabalham no mercado do luxo e que pretendem consolidar ou alargar os seus conhecimentos" e os "que pretendem vir a trabalhar no mercado do luxo ou que queiram adquirir conhecimentos e competências que lhes permitem acrescentar valor aos produtos e serviços que gerem" são os destinatários do programa que disponibiliza um "fim de semana residencial que pretende dar a conhecer os bastidores do luxo e onde se promovem momentos de networking [sic] e convívio". O programa, dirigido por Mónica Seabra-Mendes, "é suportado [sic] por um grupo de professores de renome nacional e internacional."


   Prefiro, silenciosa Princesa de mim, deixar-te a notícia tal qual a colhi no jornal digital Sete Margens, pois não quero que alguém pense que a inventei. Os meus seguintes reparos, dela arrancam sugestões, mas a ela não se limitam: respigo, por exemplo, a expressão "é suportado" que, tanto quanto entendo do seu contexto e sentido, quer ali dizer "apoiado"… Mas quem a escreveu, verteu sem critério a expressão inglesa "is supported" que, em português de gema se diz "é apoiado". Na verdade, por muito que certas expressões tenham as mesmas raízes etimológicas, a sua evolução semântica, o uso que os povos vão fazendo delas, podem conduzi-las - e têm-nas conduzido - a diferentes significações. Neste caso, em português, suportar tem o significado original de suster, mas sem a qualidade de ser por vontade própria, quiçá entusiasta, certamente livre, do mesmo ato no vocabulário inglês. Antes será interpretado como "aturar" ou "aguentar" algo que não nos agrada. Está, portanto, longe de querer dizer que é apoiado, ou sustentado, ou que se fundamenta e tem a concordância de... Quanto aos case studies, best practices, networking, e transmissão live - tudo isso tem facílima tradução para português.


   Afinal, talvez soframos a generalizada influência da "cultura futebolística" sobre a formatura do nosso discorrer quotidiano. Mesmo desde essa outra margem onde estás deves poder observar as inúmeras vezes que "pensadores", comentadores, gente da "cultura" e da "política", recorrem, em declarações e discursos públicos, a exemplos, metáforas, lições várias colhidas no universo e na terminologia ludopédica... O futebol é hoje a primeira escola de luso pensamento. Já dizia o nosso Eça que tudo nos chega pelo paquete. Acrescento-lhe, hoje em dia, "ou nos é dado pela cultura futebolística".


   Por outro lado, co nosso ideal democrático vai-se orientando pelo culto da liberdade individual como direito próprio, com confrangedora ausência do sentido consciencioso da responsabilidade comunitária. Cada um terá direito a ter opinião e a emiti-la socialmente, sem qualquer obrigação moral de a acarear, ponderar e, eventualmente, corrigir. Guiados por simpatias e antipatias, por emoções e preferências, até chegamos a ser ou parecer pretensiosos justiceiros que, na praça pública, vão proferindo sentenças em processos cujo conteúdo e circunstâncias desconhecemos. Em tão alta estima, pessoal e social, nos tomamos - e aos nossos alvitres (dicas ou bocas em linguagem plebeia e ignara) - que vamos inventando uma língua nova, com a nossa falta de filologia e extrema facilidade de anglicismos: já não digo experimentei mas sim experienciei; não percebi, percecionei; não esperamos, antes expectamos; tão pouco acedo, posto que acesso; talvez por isso seja difícil encontrar um acesso, mas fácil encontrar uma acessibilidade...


   Oxalá se consiga pôr (hoje diz-se meter) grupos de trabalho à obra em rede e cooperação (ou seja, task forces networking), para que tantos e tão sábios falantes hodiernos venham também a entender o que até aqui foi revelado aos pequeninos.

 

Camilo Maria

    

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS PARA A OUTRA MARGEM


Secreta Princesa de mim:


  A certo passo de A Ilustre Casa de Ramires, o protagonista, Gonçalo Mendes Ramires, confessa: «Gosto, gosto muito de crianças, até de criancinhas de mama. As crianças são os únicos seres divinos que a nossa pobre humanidade conhece... Os outros anjos, os de asas, nunca aparecem. Os santos, depois de santos, ficam na Bem-Aventurança a preguiçar, ninguém mais os enxerga. E, para concebermos uma ideia das coisas do Céu, só temos realmente as criancinhas... Tal trecho algo me diz sobre a sensibilidade do seu autor, a tentar sempre uma sublimação das realidades factuais que nos rodeiam pelo apreço sincero daquelas que lhe tocam uma secreta corda do coração...


   Pensossinto que Eça de Queiroz, além e apesar de tudo, é muito portuguesmente um emotivo ou - se assim preferires, minha silenciosa Princesa - um muito grande sentimental. Aliás, quase no termo da sua Ilustre Casa de Ramires, põe na boca de um dos amigos de Gonçalo, o Administrador João Gouveia, esta sentença: «Talvez se riam, mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade que notou o Sr. Padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos que acabam logo em fumo, e simultaneamente muita persistência, muito afeto, quando se fila à sua ideia... A generosidade, o desleixo... [...]...Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?


   - Quem?
   - Portugal.


   
Cito assim, porque o amor às crianças, pela sua espontânea ternura, corre sempre o risco de ser como fogacho que logo acaba em fumo, fumo esse que, ainda por cima, contribui para o nosso esquecimento da realidade pungente de centenas de milhares, quiçá milhões, de pequeninos por esse mundo fora. Acende-se muitas vezes em mim a imagem de carinhas aflitas de fome e outros sofrimentos, recordadas em fotos da imprensa ou reportagens das televisões. Magoam-me e doem até às lágrimas aqueles olhos suplicantes que dão aos rostos meninos a expressão trágica das vidas esquecidas e abandonadas, mas já sem queixas e ainda não sabendo o que é raiva e revolta, nem sequer acusação outra para além daquele silêncio com que a própria morte nos interpela.


   Quedo-me perplexo, sabendo a inutilidade do meu desgosto, a fraqueza da minha compaixão. Poderei contribuir para auxílios de inúmeras organizações de socorro, nacionais e internacionais, confessionais ou anónimas, públicas e privadas; tal como poderei publicar alertas, análises e textos críticos; e não me esquecerei de rezar, levando até Deus (mistério que nos contempla e contemplamos) a cena dolorosa da confrontação, em humanidade, de egoísmos na abundância de bens com carências em tão grande desespero de meios...


   Mas apenas sei que, sem a mobilização coletiva de vontades políticas humanitárias, e consequente transformação ou conversão de um sistema cujo próprio funcionamento vota fatalmente ao ostracismo milhões de vidas - às quais negamos a dignidade e a justiça que são seus próprios direitos inalienáveis - nada poderá obter aquela verdade densa que dá existência ao próprio bem. Lembra S. Paulo na sua primeira epístola aos coríntios:


   Se nas línguas dos humanos e dos anjos eu falar, mas amor não tenho, bronze ecoante ou címbalo ruidoso me tornei.


   O amor do próximo, ou caridade, é edificação do Reino de Deus já na nossa vida presente, antes de seguirmos - como tu já atravessaste, Princesa de mim - para a outra margem.


   
Como e quando aprenderei eu a caridade? Não só na ocasião e dimensão do meu quotidiano tangível, mas no empenho e na partilha social e política, que procure abrir novos horizontes e transformar os sistemas instalados e os aparelhos que nos encerram num egoísmo cego... Vocação a que é hoje tanto mais difícil corresponder, quanto a cultura contemporânea das sociedades ocidentais de raiz cristã se converteu aos "encantos" do apelo de um individualismo materialista alheio ao sentido  da busca do outro que, afinal, somos sempre nós também. Será que calha mantermo-nos no barulho dos címbalos importunos (ou sedutores?)  que nos circundam, e baixarmos os braços como calistos azarentos, ou será ainda possível ir convertendo a cultura e os sistemas com seus aparelhos? Saberás tu responder-me, Princesa, da margem de lá, onde já chegaste?

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira