Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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As duas imagens que hoje se apresentam correspondem à lembrança da infância de há cinquenta anos… pouco dirá aos nossos jovens, mas conheço alguns que sentem prazer em ouvir dos avós estórias de outros tempos.
Na primeira imagem, a Zé procura com um binóculo avistar o castelo misterioso do cimo da montanha. Eles encontraram-se no Casal de Kirrin, como habitualmente nas férias grandes, e a partir daí desenrolaram-se mil aventuras e mil peripécias. Eles são, além da Zé, a Ana, o Júlio, o David e o inseparável Tim (no original: Georgina, Anne, Julian, Dick e Timmy). Em Portugal eram esses os nomes dos heróis mais célebres de Enid Blyton (1897-1968). Era apaixonante ler cada uma das cerca de 120 páginas da coleção da Editorial Notícias, sendo o primeiro “Os Cinco na Ilha do Tesouro”. Mas havia também o programa semanal da Emissora Um, “Meia Hora de Recreio”, que apresentava capítulos dos Famosos Cinco, sob a direção de Maria Madalena Patacho (1903-1993) e com a inconfundível voz de Ruy Ferrão (1918-2010)…
Nesse tempo, a nossa Mãe preparava-nos o lanche em volta do imponente aparelho de rádio, gigantesco, com um som forte e irrepreensível – café com leite, pão com manteiga, queques e bolos de arroz. E ouvíamos deliciados as descrições das opíparas merendas que a Mãe da Zé preparava para os pequenos: ovos com bacon, compotas variadas, sumos - e juro-vos que o nosso lanche mais corriqueiro sabia exatamente às descrições de Enid Blyton. A sugestão era tudo, e sobretudo havia todo o suspense dessas aventuras fantásticas. Cada geração tem os seus heróis - e a minha, que era a do “Cavaleiro Andante”, era naturalmente irmã dos Cinco… Eu sei que houve os Sete, o Noddy, a Gémeas do Colégio de Santa Clara, mas apenas os Cinco nos interessaram verdadeiramente, como antecâmara das Biografias da Civilização e dos clássicos da Sá da Costa…
A segunda imagem de hoje remete para a coleção dos Dinky Toys, fabricados pela Meccano de boa memória. Importa lembrar que a Meccano (fundada em 1908 por Frank Hornby) começou por produzir peças para montar elevadores, gruas, tratores, automóveis. Uma grua como devia ser demorava mais de um dia a ser produzida, reunindo centenas de peças e muitos parafusos. Era um brinquedo fabuloso. Começámos com a caixa número cinco e acabámos com a número 10, capaz de realizar autênticas obras de alta engenharia… Mas regressemos às miniaturas. A fábrica inglesa da Meccano produziu miniaturas de fundição injetada entre 1935 e 1979. Não esqueço um Connaught Fórmula 1 de cor verde, que foi pilotado por Stirling Moss, que eu vi correr em carne e osso em Monsanto no último ano em que essa marca concorreu, 1959. Depois vieram um Land Rover, um Morris Minor, um Austin, uma camioneta Dodge… Em simultâneo começaram a surgir os Corgi Toys, com molas e com portas e capots a abrir e fechar… Os Dinky e os Corgi associavam-se facilmente pois tinham a mesma escala… Vários dos meus modelos chegaram mesmo a estar expostos no Museu do Brinquedo… A fábrica da Dinky em Binns Road, Liverpool, fecharia em 1979, em virtude da concorrência de produtos feitos no Oriente em série mais baratos mas de menor qualidade, e a Corgi Toys ainda duraria até 1983, mas conheceria o mesmo destino. A Matchbox viria até 2000 a produzir sob a marca Dinky modelos que tinham ganho notoriedade. Hoje a produção de miniaturas mudou radicalmente, prevalecendo os modelos de pequena dimensão ou de escala superior às dos clássicos Dinky e Corgi Toys… Foi um outro tempo – e agora essa nostalgia é responsável por preços astronómicos alcançados em leilões pelos pequenos modelos originais…
Sobre a nostalgia dos brinquedos da infância oiçamos hoje Cecília Meireles:
«O menino quer um burrinho para passear. Um burrinho manso, que não corra nem pule, mas que saiba conversar.
O menino quer um burrinho que saiba dizer o nome dos rios, das montanhas, das flores, – de tudo o que aparecer.
O menino quer um burrinho que saiba inventar histórias bonitas com pessoas e bichos e com barquinhos no mar.
E os dois sairão pelo mundo que é como um jardim apenas mais largo e talvez mais comprido e que não tenha fim.
(Quem souber de um burrinho desses, pode escrever para a Ruas das Casas, Número das Portas, ao Menino Azul que não sabe ler.)»
A Árvore de Jacarandá, ficção de memórias (?) da minha querida amiga Maria de Lourdes Lopes Dias, já no próprio título nos recorda um país mítico, paraíso terrestre, harmonia adivinhada, anseio de florescência que os acidentes das vidas e as brutalidades das circunstâncias podem matar e quase sempre vão adiando. O nome da árvore de flores lilases surge no linguajar português já no último quartel do século XVI, não sei quem o escreveu primeiro, mas foi certamente transcrição de nome indígena, registado pelo padre Fernão Cardim, em 1584, no seu Do Clima & Terra do Brasil. Para Maria de Lourdes, todavia, isso pouco importa, escolhe outra origem para o nome e a árvore: tal angiospérmica nasceu e cresceu no Reino de Jacarandá, lugar longínquo algures na galáxia, próximo contudo em corações que o sentem. As flores violáceas da árvore são bandeira e promessa do reino onomástico, ao qual sempre regressamos em cada primavera, quando ruas do Monte Estoril se cobrem de lilás, ou ainda, como acontece com Joana, a heroína da novela, só quando a Desejada, a Primavera do amor ansiado e tantas vezes quase desesperado, finalmente nos amarra e nos tira daquele Desapego de que um dia falou Cecília Meireles:
A vida vai depressa e devagar.
Mas a todo momento
penso que posso acabar.
Porque o bem da vida seria ter
mesmo no sofrimento
gosto de prazer.
Já nem tenho vontade de falar
senão com árvores, vento,
estrelas e as águas do mar.
E isso pela certeza de saber
que nem ouvem meu lamento
nem me podem responder.
Num universo semeado de amores e desamores, sucessos e insucessos - de que a novela nos dá notícias e alguns juízos - a floração do Reino de Jacarandá traz a cor da paixão, que é um sofrer em companhia, que engana a morte e gera um nascimento novo, um novo apego à vida, como tão bem diz Gabriel Garcia Márquez no seu El amor en los tiempos del cólera:
El capitán miró a Fermina Daza y vio en sus pestañas los primeiros destellos de una escarcha invernal. Luego miró a Florentino Ariza, su dominio invencible, su amor impávido, y lo asustó la sospecha tardia de que es la vida, más que la muerte, la que no tiene límites.
- Y hasta cuándo cree usted que podemos seguir en este ir y venir del carajo? - le preguntó.
Florentino Ariza tenía la respuesta preparada desde hacía cincuenta y três años, siete meses y once días com sus noches.
- Toda la vida - dijo.
Eis o fim-princípio da história do amor de Fermiza Daza e Florentino Ariza, iniciada e interrompida muitas décadas antes, por artes do mundo e malefícios das contingências. Eis agora um amor reencontrado, quando os corpos têm mais desejos da alma do que explosões físicas, eis, sim, um amor recuperado, redescoberto, renovado, ressuscitado, como o de Abraão e Sara, quando esta, na sua adiantada velhice, concebe Isaac. Também Fermina e Florentino, decrépitos e impotentes, conversam deitados, para entreter o tempo. Hablaron de ellos, de sus vidas distintas, de la casualidad inverosímil de estar desnudos en el camarote oscuro de un buque varado, quando lo justo era pensar que ya no es tiempo sino para esperar a la muerte. Ella no habia oído nunca decir que él tuviera una mujer, ni una siquiera, en una ciudad donde todo se sabia inclusive antes de que fuera cierto. Se lo dijo de un modo casual, y él le replicó de inmediato sin un tremblor en la voz:
- Es que me he conservado virgen para ti.
A Joana dos jacarandás também melhor recordará não ter cedido ao desejo insistente de seu primo João, companheiro da adolescência, quando ambos, "de mão dada e olhar enamorado", passeavam o seu mistério telúrico pela floração lilás do Monte Estoril, do que a insatisfação, sentimental e sexual, dum breve amor sueco. Afinal, pouco importa o que tivesse sucedido: o que ela desvenda ao reencontrar Alexandre é a fortaleza da frágil semente do amor, aquela que se enterra e permanece até desabrochar e dar fruto. Na história que Maria de Lourdes conta, casaram e tiveram três filhos. Nos tempos da cólera, Fermina e Florentino já não farão filhos, nem por milagre de Deus, como Abraão e Sara. Mas encontram finalmente aquele que nunca os tinha deixado e sempre tinha andado a saltar de um para o outro, durante cinquenta e três anos, sete meses e onze dias com suas noites. Como na Turandot do Puccini, o seu nome é Amor.
Neste fim de inverno, agora ventoso e chuvoso, vejo pela janela do meu gabinete a "minha" cerejeira do Japão, que de lá até cá veio para me lembrar que a Flor da Primavera é universal, parece ser repetição mas existe sempre igual em toda a parte. Está ainda despida e silenciosa, sem brilho nem promessa visível. Dir-se-ia velha, mas para mim é sempre magnífica. A beleza é interior, não está na aparência que seduz, existe na escuridão de uma intimidade que ilumina. Quando percebemos essa fé, também entendemos a esperança e conhecemos o amor. A sua alegria já vive nesta árvore nua que nos oferecerá flores, a lembrar-nos de como, afinal, o efémero é uma promessa que não cansa.
E porque falo de cerejeiras do Japão, não resisto a trazer aqui um trecho do Caminhos da Terra Florida de Armando Martins Janeiro: Para mim, a mais grata recordação desse dia, e das mais belas de muitos anos, será a de uma velhinha a caminhar por uma rua de aldeia, ao longo da qual os ramos das cerejeiras faziam um túnel de flores. Trazia à cabeça uma pequena trouxa e o peito descoberto, como ainda é costume aqui no campo, com os longos seios secos caídos. Fiquei-me de propósito sentado, à espera de ver o que ela faria, se taparia os seios, se desceria os olhos ao chão, de pudor, ao passar em frente de mim. Não, sorriu-me apenas. Sorriu-me com um sorriso simples e natural, sazonado, de quem deu leite a filhos e muitas lágrimas a netos, - mas um sorriso de tanta bondade e tão puro, que me pareceu que em todas as flores de Abril, em toda a natureza, não há nada que iguale a pureza de um sorriso humano verdadeiro.
Tampouco murcham as flores verdadeiras. Quando o vento as leva, desfazem-se, para nos lembrar de que será só nossa a esperança que deixaram. A fé no amor é a mesma nos romances continuados, nos interrompidos, nos interrogados, nos imaginados. Tal como nas histórias de um sapo que o beijo da princesa torna príncipe, ou da borralheira a quem o príncipe calça o sapato mágico, o final sonhado desenha-se também para Joana de Jacarandá: casaram-se, viveram felizes e tiveram muitos filhos. O sentimento do amor, todavia, pode morrer quando a traição ou o abandono o mata, porque mesmo a morte o metamorfoseia em saudade. O amor morto por ter sido matado é como filho do desespero. Assim acontecerá, com a irmã de Joana, Alice, que se suicida, destruída por marido malévolo.
Ocorre-me - por me revoltar essa ou qualquer história de desespero - como, na perspetiva existencialista de Sartre, não podemos escapar à liberdade, por muito que ela nos aflija, porque, pura e simplesmente, é liberdade que somos. Vira-se assim do avesso a máxima cartesiana Penso, logo existo que, no seu original francês, diz: Je pense, donc je suis. Mas Sartre dirá Je ne suis rien, donc je suis libre (L´Être et le Néant, Paris, 1943). E recorro a Sarah Bakewell (At the Existentialist Café, Chatto & Windus, Londres, 2016), para explicar melhor a minha tentação sartriana, ao ler o relato do suicídio de Ana: Não nos espante que essa liberdade radical torne inquietas as pessoas. Se já é difícil pensarmo-nos livres, Sartre vai mais longe ainda: não sou literalmente nada além do que decido ser. Medir a extensão da minha liberdade é mergulhar no que, ambos, Heidegger e Kierkegaard, chamaram angústia (Angst). Não é o medo de algo em particular, mas uma angústia penetrante relativamente a nós e à nossa existência. Sartre vai buscar a imagem kierkegaardiana da vertigem: se olhar à beira de uma falésia e sentir vertigem, esta tenderá a tornar-se na sensação/náusea de que poderei, de maneira compulsiva e inexplicável, atirar-me para o abismo. E penso agora, lembrado de tantas histórias tristíssimas de desistência de nós, como é verdade que só em liberdade existimos, e como todos os atos e situações que nos amarram e prendem, mais do que tolher-nos, nos afogam e matam. Assim, em qualquer amor humano, ecoa aquela palavra de Deus numa das narrativas míticas da Criação (Gen. 2, 18 e 22-25): Deus disse: «Não é bom que o homem esteja sozinho. Tenho de lhe fazer uma ajuda que se lhe assemelhe»... ... Da costela que tinha tirado ao homem, Deus modelou uma mulher e levou-a ao homem. Então, este exclamou: «Ora bem, é o osso do meu osso e a carne da minha carne! Chamar-se-á mulher, porque foi tirada do homem!» Por isso o homem deixará pai e mãe e se juntará à mulher e serão uma só carne. Ora, ambos estavam nus, o homem e a mulher, e não sentiam vergonha um do outro. A solidão do abandono ou da traição, a humilhação da prepotência da soberba ou da sevícia, condenam quem as sofre à perplexidade debruçada sobre um abismo.
Mas será inevitável a aniquilação de si? No prefácio à edição americana do seu Le Mythe de Sisyphe, Albert Camus escreve: no próprio interior do niilismo é possível encontrar algo com que ultrapassar o niilismo. Para ele, todas as grandes ações e todos os grandes pensamentos têm um começo irrisório. As grandes obras nascem muitas vezes na curva de uma rua ou na porta rolante dum restaurante. E assim é com a absurdidade. O mundo absurdo, mais do que outro, vai buscar a sua nobreza a esse nascimento miserável... O vazio da repetição, dia após dia, de gestos e comportamentos quotidianos torna-se eloquente... eis que será o primeiro sinal da absurdidade... ... Certo dia, o «porquê» levanta-se e tudo começa, na lassidão pintada de espanto. ... No fim do despertar, chega, com o tempo, a consequência: suicídio ou restabelecimento. Na história mítica, como sabemos, Sísifo - o rei que desafiara os deuses que, para seu castigo, decidiram condená-lo a levar, rolando-o, um pedregulho até ao cume de um monte, donde a mesma rocha voltaria a rolar encosta abaixo, obrigando-o a novo esforço para arriba - lá irá subindo-descendo-subindo sem parar, como quem se resigna ao absurdo. E Camus escreve (traduzo): Toda a silenciosa alegria de Sísifo está aí. O seu destino pertence-lhe. A sua rocha é a sua coisa. Assim também, o homem absurdo, quando contempla o seu tormento, cala todos os ídolos. E termina o livro: A própria luta em direção aos cimos basta para encher um coração de homem. Temos de imaginar Sísifo feliz.
Assim se adivinha o suicídio como irreconhecimento de si: não sou quem nem como penso ser, ninguém me ama para que eu exista. E o restabelecimento, como lhe chama Camus, como uma conformação com a frustração, a aceitação do absurdo como dado de facto. Não há, então, recuperação possível, reconversão à vida? Bastará a sempre recorrente "luta em direção aos cimos, para encher um coração de homem?" Teremos mesmo "de imaginar Sísifo feliz", porque, condenado ao absurdo, aceita e "contempla o seu silêncio"? Mas, afinal, não poderá ele sentir-se mais feliz ainda, se o rolar da rocha for sentido como chegada-e-partida-e-chegada das flores da Árvore de Jacarandá como promessa?
Na tragédia de Alice, já a esperança é mais difícil, quiçá impossível: eis o irreconhecimento de si como desaparecimento de quem se sente aniquilado. O grande Mal do Amor é a sua negação: o amor traído, humilhado, desprezado, espancado, odiado ou detestado, aniquila-se. Quem se deu deixa então de existir, pois que a dádiva de si era a sua própria vida, que outrem recebeu para desfazer. Morrer de amor é uma expressão poética, ninguém morre de amor, menos ainda os que morrem por amor. Mas muitos morremos por negação dele. Eis a extrema ignomínia, que tantos sofrem e tantos infligem. Por isso gosto de pensarsentir a vida imaginando que a própria consciência de mim se sustenta em "caminhos da terra florida" e "árvores de jacarandá": precisamente por ser efémera, a Primavera é promessa. E a promessa faz bater os corações dos homens. Chamam-lhe, então, esperança.