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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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   De 30 de dezembro de 2024 a 5 de janeiro de 2025

 

Assinalamos hoje, no termo do ano 2024, o centenário de António Ramos Rosa (1924-2013), um grande poeta que marcou a tradição do Algarve na cultura da língua portuguesa.

 

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No último número dos “Anais do Município de Faro” recordei Nuno Júdice, como companheiro inesquecível. E nada melhor para o fazer do que lembrar o belo poema, que há um ano citei, sobre o silêncio das palavras. “Escuto o silêncio das palavras. O seu silêncio / suspenso dos gestos com que eles desenham / cada objeto, cada pessoa, ou as próprias ideias / que delas dependem. Por vezes, porém, as / palavras são o seu próprio silêncio. Nascem / de uma espera, de um instante de atenção, da / súbita fixidez dos olhos amados, como se / também houvesse coisas que não precisam / de palavras para existir.” (Pedro, Lembrando Inês, 2001). As palavras nascem da espera, da atenção - de realidades e acontecimentos que não precisam de palavras para existir. Sem palavras há coisas que não poderiam ter vida, porque o presente projeta-se no tempo que passou, no tempo atual e no futuro – para lembrarmos a expressão de Santo Agostinho. Melhor do que ninguém, o poeta põe-nos perante o insondável mistério do ser. Na sua ausência, não esquecemos a serena reflexão, que consideramos profética e que nos leva ao centenário de António Ramos Rosa, cujo espírito aqui está bem presente. 

 

LEMBRAR A POESIA 61

Este foi um ano de diversas partidas. Além de Nuno Júdice, deixou-nos Casimiro de Brito, cuja obra merece atenção. Foi uma presença da “Poesia 61” que seguiu Gastão Cruz e Manuel Baptista. E essa experiência continua presente entre nós, já que esses ecos do Sul correspondem não a uma escola, mas à compreensão da Arte e da Cultura como fatores inesgotáveis de criatividade e de inovação. Recordo, por isso, António Ramos Rosa, que não tendo participado na “Poesia 61” foi, podemos dizê-lo, um inspirador e uma referência. E se dúvidas houvesse descobrimos que a atenção à realidade, o não alinhamento e a recusa de uma atitude de grupo foram uma marca seguida pela geração mais nova de Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão, Luíza Neto Jorge, Maria Teresa Horta e Casimiro de Brito. De facto, para António Ramos Rosa “a poesia distingue-se da mística na medida em que constrói um corpo e reconstrói o ser na própria linguagem. A palavra do poeta é comparável à força muscular na sua extrema intensidade. Ela é uma descida iniciática à matéria. Por isso, podemos considerá-la uma espécie de densidade, de música. Não há diferenças entre a criação do sentir poético e o amor da terra. Afinal, no corpo da linguagem encontra-se a luz da terra”. E foi Eduardo Lourenço quem disse: “o coração é a essência da poesia de Ramos Rosa vertiginosamente ocupada pelos mistérios da realidade – de toda, da mais trivial à mais enigmática. Em suma, toda ela não foi mais do que uma conversa sem fim com o poema como esfinge do real”.

 

O GRITO CLARO!

Em homenagem a António Ramos Rosa, o referido número dos “Anais” publicou cinco poemas do livro inédito “A Duração do Gérmen”, escrito nos anos 90. São poemas que nos levam ao encontro do Mar e de uma ilha. A nudez pressupõe a pureza essencial da atenção, em vez dos “volúveis arabescos do desejo”. E assim o poeta privilegia a “obstinada avidez de compreender”. Como ir além da superfície? E só o silêncio pode permitir que se desvende a “inteligência do vento”, capaz de nos levar à necessidade de “separar a presença da ausência”. Com efeito, a alma assemelha-se a uma ilha que é “feita de acolhimento”, mas que também se define pela ausência. E é o silêncio que marca a sua existência, num desejo intenso de ir ao encontro do mistério insondável das diferenças, que nos completam e da palavra essencial que faz nascer o mundo. E oiçamos: “Ilha / uma pedra mais silenciosa do que as pedras / a plenitude de estar perante ti / com a fronte lavada / pelo teu silêncio / que é só o teu silencio nu / através da monotonia de um mar / que não quebra o teu silêncio / que o acentua / /que o prolonga / e o faz respirar / Cessaram as imagens / os volúveis arabescos do desejo / a obstinada avidez de compreender / Estou perante a nudez / e estou nu / Tenho a inteligência do vento e estou presente / sem separar a presença da ausência…”

 

A DURAÇÃO DO GÉRMEN

É esse mistério essencial da palavra que faz nascer o mundo que revela a um hóspede silencioso como só a palavra pode abrir horizontes. E se há palavras que têm dificuldade em fazer mover o mundo, há sempre a possibilidade de abrir novas oportunidades para entender melhor o imutável. E a palavra, sempre ela, torna-se a memória do murmúrio, que enche o silêncio do universo, enquanto marca da humanidade. Afinal, perante um poeta, apenas podemos aspirar a compreender-nos melhor. E António Ramos Rosa ajuda-nos a desvendar o mistério insondável das raízes do tempo e das coisas, já que “o ato poético é um ato de concentração, porque o poema se separa do mundo quotidiano, do mundo objetivo, de um mundo que está dividido e, portanto, mutilado. O poema busca uma realidade perdida e a sua integração nas palavras e nos objetos que são sensibilizados pela impulsão poética”. Nesta afirmação feita na entrevista concedida a Francisco Bélard, em 1988, por ocasião da atribuição do Prémio Pessoa está contida uma revelação importante, que permite compreender o coração aberto à terra, que singulariza o poeta. Ao tentar responder quem era verdadeiramente esse poeta, retratado no ocaso da existência, José Tolentino Mendonça aproximou-o dos místicos – “esses que se confundem facilmente com peregrinos, estrangeiros e deslocados ou com mendigos. Não têm dono, não são heraldo de ninguém, não convergem para uma meta precisa. São frugais e leves. São abertos e vigilantes. Preservam a sua humildade com mansidão. A sede de absoluto e a nostalgia dos grandes espaços que preservam é um espelho da imensidão interior que obstinadamente cultivam. Definem-se como errantes, hóspedes habituais da natureza e só eventualmente dos homens, vivem a itinerância como pátria espiritual. Se suprimirmos o que eles não veem, suprimimos também o que veem. Eles sabem que silêncios, solidões e desertos não são necessariamente lugares, mas estados do coração a percorrer sem fim, e tornam-se mestres porque antes se tornaram justos” (Prefácio a Poesia Presente – Antologia, Assírio e Alvim, 2014). É Pascal que regressa com verdadeiro “esprit de finesse”. E razão tem Maria Filipe Ramos Rosa (a quem renovo os agradecimentos pela confiança em permitir a revelação do projeto inédito) quando diz que nos anos 90 o caráter repetitivo do poeta lembra “exercícios diários de sobrevivência”. Mas, mais do que isso, são glosas de temas fundamentais, que encontramos desde o “boi da paciência” ou do “funcionário cansado de um dia exemplar”, sem esquecer as magníficas traduções de Foucault, Éluard ou Mounier.  E ouvimos: “Quem escreve / quer juntar-se / à pedra, / à árvore // E ser através delas /o tranquilo sopro / do inominável” (A Intacta Ferida, 1991).      

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

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   De 27 de março a 2 de abril de 2023

 

Maria de Lourdes Belchior (1923-1998) é uma referência da cultura portuguesa contemporânea, cujo centenário este ano se assinala, merecendo uma atenta recordação.

 

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EXPLICAÇÃO DE PORTUGAL

«Teremos nós consciência de que toda a explicação de Portugal visa à construção do país possível? Para tal, segundo o conselho não amargo de Vitorino Magalhães Godinho, estudemos amorosamente, minuciosamente, lucidamente, cientificamente as nossas coisas; definamos com meridiana clareza os problemas que são de facto os nossos, seguros de que na nossa história do passado há doutrina para o presente. (…) E o país possível – título de um livro de poemas de Ruy Belo – será “O portugal futuro”: “O portugal futuro é um país / onde o puro pássaro é possível». É Maria de Lourdes Belchior quem o afirma, demarcando-se das tentativas de nos vermos ou como os melhores, ou como um país sem remédio. Ora, seguindo Eduardo Lourenço, importaria tirar as sucessivas máscaras que temos afivelado para enfim conhecermos o nosso rosto verdadeiro. Neste ano de 2023, em que celebramos também o centenário de Maria de Lourdes Belchior, importa lembrar o método proposto por quem se empenhou no estudo aprofundado e sistemático sobre momentos cruciais da nossa literatura, permitindo aproximarmo-nos desse rosto, que tanto temos procurado. Não por acaso, os séculos XVI e XVII constituem circunstâncias especiais para essa indagação, uma vez que, com energias aparentemente esgotadas, houve que recuperar forças com apelo à criatividade.

 

INVESTIGAÇÃO E SERVIÇO PÚBLICO 

Merece atenção redobrada o exemplo de Maria de Lourdes Belchior, surpreendente pela capacidade de interpretar a literatura com um novo olhar, inteligência, abertura de espírito e capacidade de compreender a realidade cultural, para além da superfície. Licenciada em Filologia Românica, em 1946, com a dissertação Da Poesia de Frei Agostinho da Cruz - Tentativa de Análise Estilística, viria a ser colega de Sebastião da Gama, na Escola Veiga Beirão, tendo em 1947 assumido funções docentes na sua Faculdade de Letras, onde obteve o doutoramento em 1953, após ter estado no Instituto Católico de Paris (1950-52), com a tese muito celebrada sobre Frei António das Chagas - Um Homem e um Estilo do Século XVII. Profundamente conhecedora da transição setecentista apresentaria, em 1959, o Itinerário Poético de Rodrigues Lobo no concurso para professora extraordinária. Se o tema da espiritualidade no percurso da autora é evidente, o mesmo liga-se à nossa situação em seiscentos, na qual uma Corte de Aldeia ganhava a aspiração de se libertar. Investigadora incansável, partiu para o Brasil em 1963 para desempenhar funções de Conselheira Cultural da Embaixada de Portugal, até 1966, aproveitando esse tempo para melhor compreender o barroquismo e para aprofundar a cooperação científica, pedagógica e cultural entre os dois países.  E é notável na mulher de cultura essa capacidade de ligar a investigação e o serviço público. Concorre a uma vaga de Professora Catedrática da Universidade do Porto, assegurando a lecionação da cadeira de Literatura Portuguesa I (Idade Média), apoiando o Centro Interuniversitário de História da Espiritualidade. Entre 1970 e 1973 preside ao Instituto de Alta Cultura e participa no núcleo fundador da Universidade Nova de Lisboa. Depois da revolução, entre maio e dezembro de 1974, é Secretária de Estado da Cultura e Investigação Científica, numa experiência fugaz, sendo em maio de 1975, como militante católica, cofundadora do Semanário “Nova Terra”, a convite do Cardeal D. António Ribeiro, em cuja direção se destacará pela grande qualidade e pertinência dos seus editoriais num momento decisivo na construção da democracia e de defesa da liberdade.

 

«HOMENS E LIVROS»

Quando lemos o primeiro volume de “Os Homens e os Livros”, obra notável publicada em 1971 pela Editorial Verbo, notamos a extraordinária riqueza analítica de uma das mais importantes estudiosas da cultura portuguesa. E recordamos como as suas colegas do liceu Maria Amália, foram premonitórias, quando lhe deram a alcunha de “Carolina Michaëlis”. A reunião de ensaios, é de uma qualidade superlativa, quer pelo rigor e profundidade dos temas, quer pela capacidade evidenciada de uma visão integradora, não apenas no panorama da literatura, mas especialmente na compreensão das tendências da cultura europeia. Foi, assim, pioneira na reflexão estilística, numa perspetiva centrada na dimensão histórica e cultural. Refira-se o caso de Frei António das Chagas, discípulo de Gôngora – exaustivamente analisado como um “homem e um estilo do século XVII”, num estudo considerado pelos especialistas na literatura peninsular como exemplar, por abrangente e compreensivo, envolvendo o poeta que na vida civil se chamou António da Fonseca Soares. Foi essencial a busca que realizou da difícil síntese definidora do barroco e do barroquismo, pela ambiguidade e multiplicidade de fatores contraditórios presentes. Como ficará claro a propósito de Frei Luís de Sousa e da sua biografia do Arcebispo de Braga, Frei Bartolomeu dos Mártires, temos nesse caso “um prosador da época barroca”, que antecipa o Padre Manuel Bernardes, alguma “prosa tranquila” do Padre António Vieira, ou até a escrita do Padre Bartolomeu de Quental. E assim, longe da tentativa de encerrar o conceito de barroco num conjunto de elementos formais, enfatiza a complexidade das influências. E os limites cronológicos do barroco português ficam definidos tendencialmente entre 1580 e 1680, sendo capitais os dois cancioneiros “Fénix Renascida” (1716-1728) e “Postilhão de Apolo” (1761-62). Nas glosas ao Salmo 136 na relação com a saudade portuguesa encontramos a simbiose do tema religioso com a íntima dor que a condição de exilado suscita no poeta, valorizando-se a nostalgia e o desencanto e a tensão entre as dimensões celeste e terrena da Cidade de Deus. Luís de Gôngora, Baltasar Grácian ou Emanuele Tesauro, mas também Ribeiro Chiado, Frei Agostinho da Cruz ou o Padre António de Gouveia (na evangelização da China) correspondem a um fecundo elenco de referências e leituras que permitem a compreensão de um período da nossa história literária que foi significativo pela coexistência de múltiplas influências – num contexto em que a cultura portuguesa atinge a maturidade cultural e recomeça a ganhar influência global, até pela afirmação brasileira. E assim o barroco e o barroquismo foram fatores que acompanharam a afirmação da influência da cultura da língua portuguesa com um novo fulgor, como Maria de Lourdes Belchior demonstrou de modo pioneiro. Além de poeta em “Gramática do Mundo”, foi notável a sua carreira internacional, sendo Professora na Sorbonne, antes de suceder a Jorge de Sena na Universidade de Santa Bárbara, num longo período de cerca de dez anos em boa parte em acumulação com presença semestral em Lisboa, sendo, a partir de 1989, até 1998, Diretora da Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris, sempre com uma brilhante ação de apoio às culturas da língua portuguesa.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

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  De 5 a 11 de julho de 2021

 

«L’Avenir de Terre-Patrie – Cheminer avec Edgar Morin» sob direção de Alfredo Pena-Vega (Actes-Sud, 2021) é publicado para assinalar o centenário de Edgar Morin.

 

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OS PILARES DA EDUCAÇÃO

Quando definimos o perfil dos alunos no final do ensino obrigatório, recorremos aos sete pilares que Edgar Morin considerou essenciais para a Educação, numa cultura de autonomia e responsabilidade: prevenção do conhecimento contra o erro e a ilusão; ensino de métodos que permitam ver o contexto e o conjunto, em lugar do conhecimento fragmentado; o reconhecimento do elo indissolúvel entre unidade e diversidade da condição humana; aprendizagem duma identidade planetária considerando a humanidade como comunidade de destino; exigência de apontar o inesperado e o incerto como marcas do nosso tempo; educação para a compreensão mútua entre as pessoas, de pertenças e culturas diferentes; e desenvolvimento de uma ética do género humano, de acordo com uma cidadania inclusiva. De facto, só poderemos compreender e assumir uma cidadania livre e responsável se ligarmos informação, conhecimento e sabedoria – e entendermos a complexidade. A catástrofe está no horizonte, mas é possível inverter o curso dos acontecimentos. Morin recorda dois exemplos marcantes de tempos muito diferentes. A resistência vitoriosa por duas vezes da pequena cidade de Atenas perante o poder formidável dos persas, cinco séculos antes da nossa era, foi altamente improvável, mas permitiu o nascimento da democracia e da filosofia. Do mesmo modo, foram tão inesperados como improváveis o atraso e o congelamento da ofensiva alemã em Moscovo no Outono de 1941 e depois a contraofensiva vitoriosa de Jukov em 5 de Dezembro, seguida no dia 8 pelo ataque a Pearl Harbour que fez entrar os Estados Unidos na Guerra. A História reserva-nos inúmeros exemplos que nos permitem alimentar esperanças, desde que haja capacidade de autocrítica e mobilização de vontades, em torno de objetivos inteligentes e justos.

 

UM NOVO HUMANISMO

Com Terêncio temos de entender que nada do que é humano nos pode ser estranho. E quando alguém pergunta o que é a identidade europeia, Edgar Morin recorda a sua ideia de uma «comunidade de destino», capaz de congregar a consciência das diferenças e a importância do outro. Prefiro usar a expressão comunidade plural (e democrática) de destinos e valores. A cultura é o que diferencia e a civilização é o que difunde a criatividade humana. A identidade corresponde, assim, à exigência de um caminho comum e partilhado. Impõe-se perceber que, na expressão de Denis de Rougemont ou de Daniel Bell, o Estado atual é grande e pequeno demais para responder aos problemas contemporâneos. Quando surge, por fim, a pergunta sobre o que caracteriza uma ética europeia, na linha de Montaigne, E. Morin responde que o universalismo e a capacidade autocrítica são as características europeias fundamentais. Precisamos, no fundo, de uma Europa criativa que aceita a imperfeição, aberta ao mundo, universalista e cultora da crítica, capaz de incorporar um caminho que possa favorecer a ideia fecunda de metamorfose! Em “La Voie – Pour l’Avenir de l’Humanité” (Fayard, 2011), Morin apresenta um conjunto muito vasto de propostas para ultrapassar a crise que vivemos, mas, mais do que isso, para compreender as raízes do mal que nos atinge globalmente e que exige respostas urgentes, corajosas e determinadas – que ultrapassem a mera lógica do curto prazo. Ernesto Sabato, o grande escritor argentino afirmou que «só há um modo de contribuir para a mudança, é a recusa da resignação». Edgar Morin concorda, preocupado com as fragilidades que estão a destruir os fundamentos de uma humanidade consciente das tarefas fundamentais que tem de assumir num tempo de incerteza e de risco de destruição. Nos tempos em que vivemos, plenos de contradições, em que os erros e as responsabilidades são de todos, apesar da tentação de criar bodes expiatórios, tantas vezes falsos e ilusórios, Morin lança um alerta – que se impõe impedir que persista o fatalismo, segundo o qual nada poderemos fazer para inverter a perigosa situação em que estamos. Estão profundamente enganados os que pensam poder voltar à corrida vertiginosa que confunde economia e ficção. “No sabemos lo que pasa y eso es lo que passa” – Ortega y Gasset disse-o, e hoje sentimos que se trata de uma ilustração do que nos está a acontecer. Edgar Morin fala-nos da cegueira de conhecimento que separa os saberes e desintegra os problemas fundamentais e globais, que necessitam de um conhecimento transdisciplinar. E refere que o ocidental-centrismo apoia-se apenas na racionalidade e dá-nos a ilusão de possuir o universal. E assim não é apenas a nossa ignorância, mas também o nosso conhecimento que nos cegam.

 

CRISE PLANETÁRIA

A crise planetária, com que lidamos mal, resulta da inexistência de autênticos dispositivos de regulação. A crise global não se resume, assim, a um acidente provocado pela hipertrofia do crédito, a qual não se deve apenas ao problema de uma população empobrecida pelo encarecimento dos bens e serviços, obrigada a manter o nível de vida pelo endividamento. Edgar Morin aponta o dedo à especulação do capitalismo financeiro nos mercados internacionais (do petróleo, dos minerais e dos cereais) e ao facto de o sistema financeiro mundial se ter tornado um barco à deriva, desligado da realidade produtiva. E cita Patrick Artus e Marie-Paule Virard, no seu livro anterior ao “crash” do Outono de 2008, intitulado «Globalisation: le pire est à venir» (La Découverte, 2008): «O pior ainda está para vir, em resultado da conjugação de cinco características da globalização: uma máquina inigualitária que mina os tecidos sociais e atiça as tensões protecionistas; um caldeirão que queima os recursos raros, encoraja as políticas de concentração e acelera o reaquecimento do planeta; uma máquina que inunda o mundo de liquidez e que encoraja a irresponsabilidade bancária; um casino onde se exprimem todos os excessos do capitalismo financeiro; uma centrifugadora que pode fazer explodir a Europa». Em suma, as desigualdades afetaram gravemente a eficiência e a equidade, através da fragilização do capital social (como há muito alerta Robert Putnam). A lógica de casino agravou os efeitos de um ciclo especulativo de consequências muito nefastas, como há muito alertara o insuspeito Vilfredo Pareto. A crise é ecológica, pela degradação da biosfera; é demográfica, pela confluência da explosão populacional nos países pobres e da redução nos países ricos, com desenvolvimento de fluxos migratórios gerados pela miséria; é urbana, pelo desenvolvimento de megapolis poluídas e poluentes, com ghettos de ricos ao lado de ghettos de pobres; é da agricultura, pela desertificação rural, concentração urbana e desenvolvimento das monoculturas industrializadas; é ainda crise da política, pela incapacidade de pensar e de afrontar a novidade, perante a crescente complexidade dos problemas; é ainda das religiões, pelo recuo da laicidade, pelo emergir de contradições que as impedem de assumir os seus princípios de fraternidade universal. Numa palavra, «o humanismo universalista – afirma Morin - decompõe-se em benefício das identidades nacionais e religiosas, quando ainda não se tornou um humanismo planetário, respeitando o elo indissolúvel entre a unidade e a diversidade humanas». A ideia fixa do crescimento contínuo e interminável não pode continuar. A evolução das ciências sociais e humanas obriga a entendermos a atual crise como uma via de repensamento – não apenas das circunstâncias económicas e financeiras, mas também das implicações sociais e axiológicas. A persistência nos erros que conduziram à atual situação levará a que os males das ilusões e das aparências se somem à incapacidade de perceber que os recursos escassos e que o meio ambiente estão a ser destruídos irreversivelmente. Tudo tem, afinal, a ver com o facto de o ganho a todo o custo ter substituído na ciência económica a consideração de que é a pessoa humana e a sua dignidade que têm de estar no centro da satisfação das necessidades. 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

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  De 4 a 10 de janeiro de 2021

 

"O Mundo À Minha Procura" de Ruben A. (Assírio e Alvim, 2020) é uma obra-prima da literatura memorialística portuguesa, a merecer uma atenção especial no momento em que o centenário do autor continua a ser celebrado.

 

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O MERECIMENTO INDISCUTÍVEL
Neste ano tão estranho, cheio de medos e motivos tragicómicos, seria suposto termos celebrado com a elevação necessária o centenário de Ruben A.. No caso de Ruben havia a especial razão de se tratar de um autor que merece ser mais e melhor conhecido, apesar de ter sido um audaz cultor da língua e da cultura, como poucos no século que passou. Daí não haver dúvidas sobre que o futuro se encarregará de lhe dar o adequado merecimento. É verdade que tudo sobre a recordação da memória do escritor (reflexões, debates, lembranças) continua a estar previsto para o ano 2021, mas o importante é que fica lembrado – e devendo sobretudo continuar a ser lido. 2021 quase parece um daqueles tempos previstos pelo teatro do absurdo, em que se propõe acertar os relógios, depois de uma suspensão da máquina do tempo, estranhamente desorientada. O certo é que ainda não temos em funcionamento o mítico “Cronoscafo”, previsto nas aventuras de Blake e Mortimer e de algum modo na mente de H. G. Wells, e nada se sabe verdadeiramente sobre o efeito das desventuras do famigerado vírus descontrolado sobre homens e máquinas. Felizmente o tempo não parou e a terra continuou a girar. Por isso, temos na lista dos melhores livros do ano a reedição do genial O Mundo à Minha Procura. Importa dizer que Memórias escritas por quem tinha 46 anos seriam sempre um desafio audacioso. Mas nós, leitores ávidos, só temos a agradecer uma tal decisão extraordinária, uma vez que pudemos contar com uma obra-prima, retrato especial de uma sociedade que evoluía da autarcia para a internacionalização, descrita à luz do percurso multifacetado de um intelectual culto e cosmopolita de mente arejada, com um esmerado gosto. Num só volume, passámos a contar com esta pérola literária (Assírio e Alvim, 2020), que ombreará em linguagem e encenação moderna com as melhores Memórias portuguesas, que Ruben conhecia, aliás, muito bem. E porque conhecia bem, estas são diferentes de quaisquer outras e têm a marca indelével do pós-guerra, com um especial tom anglo-saxónico. “Dos quarenta aos cinquenta, limpa-se a casa. Põem-se as telhas onde faltam, instala-se um novo sistema, e no jardim das delícias, no passeio depois de jantar, nas madrugadas sem Deus ouvimos uma voz que nos buzina que dali para a frente a contagem é outra”. Felizmente, assim pensou Ruben e tal permitiu não termos um repositório de factos e circunstâncias, mas uma procura do tempo. Henry Miller afirmou, assim, que “a Autobiografia é o mais puro romance, porque a ficção está sempre mais próxima da realidade que o facto”. Se dúvidas houvesse, bastaria lermos Ruben A. e propositadamente não faço qualquer comparação com outros autores e outros cultores do género, pois este caso é absolutamente inimitável. “O que me interessa sou eu”. E há o debruçar sobre um poço fundo.

 

COMPREENDER O REALMENTE IMPORTANTE
“Um dia compreendi a importância que teve para mim o Campo Alegre – o sítio, o cheiro, a vista, as árvores. Foi a fragrância quem me recebeu primeiro, facilitando-me no vaivém da ondulação distinguir as plantas e a terra que as recolhe”… E assim o escritor quis-se descobrir, na relação complexa entre o seu próprio lugar e a coexistência com os lugares dos outros, pelas forças e emoções por trás da vida… E assim encontramos um curioso retrato da sociedade portuguesa, onde “há um ciúme indescritível perante a coragem e perante a cultura. Que um dos seus membros se liberte pelo espírito ou pelo seu valor humano é o maior insulto que, eles, atrasados culturais, julgam que se lhes pode fazer. Sentem-se ofendidos, reagem de certo modo com maledicência, uma vez que não tendo nem grandes amores nem grandes ódios oferecem apenas o mesquinho da perseguição, fechando as casas, achando as pessoas uns pesos, ou votando a um ostracismo aqueles três ou quatro – em cada década só há também três ou quatro aves migradoras – bodes expiatórios da purga mental da sociedade, ancorados para toda a vida a um inferno. Esquecem-se da felicidade que irá acolher os eleitos, os que souberam fazer a escolha depois de anos de amadurecida visão, depois de terem estado sós”… Ruben A. pensava nos inúteis, nos cadáveres adiados que procriam, no dinheiro que alimentava o parasitismo, nas flatulências de pequeno efeito, nos ricos que criavam uma moral para si, na sociedade que temia o valor dos que assumem a coragem de procurar ver longe e largo. E ao longo da sua vida, encontrou vezes sem conta esses entraves e bloqueios, nunca tendo renunciado, porém, à independência de pensar pela própria cabeça, de ser inconformista e de ter consciência (desde muito jovem) do contraste entre o mundo absurdo do medo de falhar e a liberdade absoluta, que sentia no Campo Alegre… “Autor libérrimo e libertador” – lhe chamou Eduardo Lourenço. O sentido crítico, em ligação com o rigoroso conhecimento da História mercê de uma simbiose de método entre o rigor e uma rara intuição capaz de entender os grandes movimentos e tendências, permitiu-lhe ser um analista lúcido da realidade portuguesa, não esquecendo a lógica picaresca.

 

PORTUGAL HETEROGÉNEO E INDEFINÍVEL
É um Portugal heterogéneo e indefinível que encontramos nas memórias de Ruben A., situado entre a tradição e a vertigem da modernidade, entre as raízes antigas da família e o fascinante mundo vulgar que a rodeava, ora visto da janela sobranceira de um Daimler familiar, ora considerado na leitura dos clássicos, que se impõe muito gradualmente no aproveitamento irregular do estudante  (Garrett das Viagens na Minha Terra, Júlio Dinis da Morgadinha dos Canaviais e Camilo). “Camilo entendia-me. Depois de Júlio Dinis era ele quem me aproximava de um dia a dia verídico, cheio de suco, romance da vida, razão de ser no jogo de palavras cruzadas…” E se a literatura o entusiasma de um modo prospetivo, usando as potencialidades da língua com um misto de originalidade e de compreensão do carácter vivo e mutante da identidade, a natureza e o património cultural são fatores vivos de valorização humana: “Olho para tudo tendo como pano de fundo a intensidade colorida pela maior realidade de Portugal: o céu. O nosso céu é pessoal, claro, transparentem, grandioso, sonhador de terras longínquas – é um céu aberto”. E a defesa do património histórico: “É uma obrigação moral, nacional. Impõe-se no imediato que as vilas históricas, as cidades mais ricas do passado não sejam avassaladas por estranhos, que sabem deitar abaixo e nada fazer de arte no local da demolição”… E a ilustração desta preocupação a um tempo crítica e alegre projeta-se no genial romance A Torre da Barbela, recentemente reeditado, na expressão de José-Augusto França: um grande romance, dos mais importantes do século XX (Livros do Brasil, 2020). “Ao fim da tarde, antes do crepúsculo cantar as suas loas e sem se descortinar a realidade, apoderava-se da Barbela um sentido incógnito da existência. “Forte como as nacionalidades e rija como a têmpera da lâmina do Xasco, o maior escanhoador da Ribeira Lima, a Torre preparava-se para o banho noctívago na sua vida de séculos. Existissem ou não estrelas, fosse breu ou luar a jorros pelos campos marginais, o mundo abria-se então dividindo o tempo. (…) De noite ressuscitavam e, de companhia, traziam os amores e os ódios de outras eras e de outras sensibilidades. (…) Aquele ressuscitar transfigurava a Torre”. E assim se desenrola uma História portuguesa, através de fantasmas, com glórias e contratempos, mas sem ilusões que pudessem fazer esquecer vontade e a liberdade…    

Guilherme d’Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

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   De 5 a 11 de outubro de 2020

 

Nos cem anos da publicação da “Clepsidra” de Camilo Pessanha (1867-1926) votamos a recordá-lo no confronto que teve com Camões, de admiração, respeito e elogio supremos da cultura universal da língua portuguesa.

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UM GÉNIO NA DISTÂNCIA

Camilo Pessanha, na célebre invocação de Camões na gruta de Macau, no dia 10 de junho de 1924, começa por lembrar a tradição de que o épico esteve em Macau e aí escreveu a sua obra-prima. “Tem-se debatido desde há anos a questão de se Camões residiu ou não em Macau, se esteve ou não preso no tronco da cidade, se aqui desempenhou ou pôde ter desempenhado as apagadas funções de provedor dos defuntos e ausentes. A polémica há de certo renascer mais animada algum dia; e provável é que o problema venha a decidir-se finalmente pela negativa”. É normal que se contestem as tradições – como se de plantas vivas se tratasse, constituindo o sentimento popular a seiva que as mantém. A tradição é, assim, um símbolo vivo e por isso a sua conferência não punha em causa a verdade dos factos sobre Camões, mas enaltecia a grandeza da figura recordada, adequando quanto se dizia à importância dessa memória. Para Camilo Pessanha não estava em causa a grandeza da figura de Camões e da sua obra, mas sim o relacionamento de uma tradição significativa com a realidade de Macau. E o poeta usa dois argumentos: o território de Macau é o mais remoto a que chegaram e se estabeleceram os portugueses. O longínquo território onde se fala português tem a ver com a essência do poema camoniano – que canta a epopeia marítima do povo – enquanto a inspiração poética é o melhor modo de interpretar o mais fundo de um sentimento cultural e étnico. E a inspiração é emotividade modulada pela educação. O que faz a inspiração para Pessanha é a experiência coletiva sedimentada num espaço e enquadramento natural, que corresponde à metáfora do mundo vegetal e da seiva que se perpetua. E assim o texto assume uma imagem, que nos conduz ao húmus da terra natal. A natureza relevante para a poesia tem a ver, assim, com a forma de vida bucólica.

 

REMINISCÊNCIA DO TORRÃO NATAL

Se toda a poesia se alimenta da vivência natural das origens de cada um, a inspiração poética portuguesa vincula-se à reminiscência do torrão natal. E em Macau “fácil é a imaginação exaltada pela nostalgia, em alguma nesga de pinhal menos frequentada pela população chinesa, abstrair da visão dos prédios chineses, dos pagodes chineses, das sepulturas chinesas, das misteriosas inscrições chinesas (…), das águas amarelas do rio e da rada, onde deslizam as lentas embarcações chinesas de forma extravagante (…), e criar-se, em certas épocas do ano e a certas horas do dia, a ilusão da terra portuguesa”. E aqui encontraríamos uma primeira razão para a inspiração de Camões neste lugar distante, sentindo-o como fonte de inspiração poética portuguesa. Mesmo em condições difíceis de um exílio da pátria, Camões pôde manter viva, em si, a pátria distante, mantendo ativa a sua inspiração. E assim, o génio de Camões teria tido “pujança bastante para triunfar dos meios mais adversos, para resistir aos mais implacáveis fatores de perversão e de atrofia”. E Pessanha encontra em Camões o símbolo da energia da nação no seu apogeu. E daí a necessidade de colocar a questão da continuidade. E o afastamento da origem ameaça a permanência da inspiração poética. Comparando o passado e o presente, o poeta é levado a invocar as distâncias, entre o zénite e o ocaso. E sente-se pigmeu, se comparado com a geração do épico. Não havia nesse seu tempo decadente uma geração pródiga de energias e por isso o poeta talvez não fosse capaz de prover-se de uma suficiente reserva de lembranças e memórias que lhe permitissem manter a vitalidade criadora quando afastado do ambiente das origens portuguesas, ao contrário de Camões… Trinta anos antes desta incursão literária que, por ser rara e significativa, tem sido muito analisada, há uma carta para Alberto Osório de Castro, de 30 de abril de 1894, na qual fala da passagem do tempo e da deslocação para longe da sua terra-natal. Camilo Pessanha está deslumbrado com a diversidade do Oriente, mas não esconde o desafio da adaptação às novas circunstâncias. “Ai, meu pobre amigo, eu bem sei o quanto aí terá sofrido. Havemos de morrer assim: o Alberto Osório por uma espécie de cobiça, eu por uma espécie de avareza”. E essa avareza, como metáfora, corresponde à exigência de não perder o efeito vegetal da seiva fecunda trazida da terra-natal e de lutar contra os efeitos do afastamento – o que no caso de «Os Lusíadas» o poeta considera ser marca da genialidade camoniana o facto de manter a permanência da inspiração poética.

 

UMA GRUTA REFERENCIAL

“É a gruta de Camões, com o seu cenário irremediavelmente mesquinho – mas suscetível, apesar disso, de correção em muitos dos seus defeitos -, esse lugar sobre todos prestigioso, dedicado ao culto de Camões, que é também o culto da pátria. Culto e prestígio que não podem extinguir-se enquanto houver portugueses, e enquanto não se extinguem, há de ser verdade intuitiva, superior a todas as investigações históricas, que o maior génio da raça lusitana sofreu, amou, meditou, em Macau, aqui tendo composto, em grande parte, o seu poema imortal, e que o local predileto aos seus devaneios do seu espírito solitário era essa colina, então erma, sobre o porto interior, junto das penhas com aparência de dólmen em cujo vão foi colocado há anos o seu busto, de proporções reduzidas, fundido nem bronze”. Em suma, mais importante do que a demonstração história da presença efetiva do poeta em Macau, o que importa é que o épico esteja presente naquele território – como referência, como verosimilhança e como marca da permanência da língua portuguesa no mundo… Como ficou claro há uns anos quando em nome do CNC, com Fernando Pinto do Amaral, homenageamos Camões na gruta: Camilo Pessanha disse, que Camões está ali mesmo por direito próprio, de uma vez para sempre, porque ali estão o seu espírito, o seu talento e a sua influência.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

UMA VISÃO DOS 100 ANOS DO TEATRO SÃO JOÃO

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Em artigos anteriores, fizemos referências aos 100 anos da fundação do atual Teatro São João do Porto, salientando então que a sala de espetáculos atual é a terceira com a mesma designação, ou quase: no século XVIII inaugura-se um Teatro que alternaria o nome entre Real Teatro, Teatro São João e Teatro Dom João.

Sousa Bastos, no hoje clássico “Diccionário do Theatro Portuguez”, publicado em 1908 e que aqui temos citado, descreve em pormenor o desaparecimento deste primeiro Teatro. Segundo refere, “na noite de 11 para 12 de Abril de 1908, um pavoroso incêndio, de que não se sabe a causa, destruiu em poucas horas o teatro de S. João”. E segue-se uma detalhadíssima informação acerca desse primitivo Teatro, da atividade cultural e do desastre que o destruiu.    

O atual São João, tal como já  escrevemos, data de 1920, projeto do arquiteto José Marques da Silva, mas esteve encerrado largos anos, até ser adquirido em 1992 pelo Governo, recuperado e  classificado como Teatro Nacional. Entretanto, também projetou filmes a partir de 1932.

Precisamente em 1992, na sequência da aquisição pelo Governo, procedeu-se a obras de restauro, dirigidas pelo arquiteto João Carreira. 

 Referimos ainda que foi agora apresentado um programa de atividade cultural, a desenvolver durante um ano, para a temporada que se inicia no próximo mês de março.

Nuno Cardoso é hoje diretor artístico. A reabertura ao público ocorre em 7 de março, com uma reposição da montagem de textos pessoanos.

E anunciaram-se entretanto diversas programações de cariz eminentemente cultural, que aqui enunciamos a partir de referências diversas: textos de Shakespeare, de Molière , “A Castro” de António Ferreira, mas também peças de Jean Genet.

 E mais autores clássicos portugueses e estrangeiros, em parte apresentados por companhias nacionais ou vindas do exterior, designadamente Alemanha, Itália, Inglaterra e Espanha, segundo fontes diversas que aliás ainda não confirmamos, pois será de certo modo prematura a programação definitiva e isto sem qualquer intenção ou sentido “culpabilizador”: todos bem sabemos a instabilidade do meio teatral!...

E acrescente-se que ao longo do ano estão programadas exposições e publicações, designadamente de livros sobre a produção dramática que envolve em detalhe a própria atividade do Teatro São João, e que nos propomos aqui e agora acompanhar.

DUARTE IVO CRUZ

NO BRASIL, COLÓQUIO SOBRE TEATRO PORTUGUÊS

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Referimos hoje a celebração, na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro - URFJ, de um colóquio sobre o centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner Andersen e de Jorge de Sena, ambos como bem sabemos escritores e dramaturgos de grande prestígio. Intitulado justamente “Sena & Sophia: Centenários”, o colóquio é uma oportuna iniciativa do Real Gabinete Português de Leitura e precisamente da Cátedra Jorge de Sena da referida Universidade: e é interessante referir esta dualidade temática, Sophia e Sena, a partir insista-se, do centenário do nascimento de ambos os escritores, sendo certo que Sena falece em 1978, e Sophia em 2004.

Já aqui evocamos o teatro de Sophia, em três artigos recentes, onde analisamos a dramaturgia desta extraordinária escritora que tanto prestigiou a criatividade poética, literária e dramatúrgica da literatura de língua portuguesa. Para esses artigos remetemos, salientando, entretanto, uma vez mais, a relevância e projeção que o colóquio representa, tendo em vista o âmbito prestigiado e prestigiante da UFRJ.

Mas veja-se agora que é interessante e prestigiante para as entidades organizadoras e também obviamente para a cultura portuguesa em geral, esta evocação da obra e da personalidade de Jorge de Sena. E então, merece o maior destaque a circunstância de que a iniciava se deve à precisamente designada Cátedra Jorge de Sena, da Faculdade de Letras da UFRJ, o que demostra a relevância do escritor.

E dado que esta rubrica se constitui precisamente num conjunto de análises a partir da arte cénica, referiremos então sobretudo a dramaturgia de Jorge de Sena, sem esquecer, note-se, a heterogeneidade e qualidade da sua obra geral, que noutra ocasião poderemos analisar.

Efetivamente, Jorge de Sena, apara além de um ato breve inicial de expressão mais realista, “Luto” (1938), inicia em 1945 uma renovação das expressões do teatro-texto, através algo paradoxalmente de reestruturação do teatro de temário histórico, com “O Indesejado - António Rei” (1945). E logo aí ressalta a modernização/inquirição dos temas e do estilo dominante do teatro: trata-se efetivamente de uma tragédia anti sebastianista, digamos assim, que como tal rompe com uma tradição clássica secular no teatro português...

E mais escreveu para a cena Jorge de Sena, perdoe-se a quase redundância, através de uma série de textos dramáticos que vão buscar a temas por vezes de evocação histórica como que uma análise crítica da realidade do seu tempo: assim temos “Amparo de Mãe” (1948), “Ulisseia Adúltera” (1948), “A Morte do Papa” (1964), “O Império do Oriente” (1964), “O Banquete de Dionísios” (1969), “Prometeu ou o Homem que Pensava demais” (1971).

Mas não ficou por aqui a intervenção do Jorge de Sena no teatro. Na verdade, colaborou com António Pedro e nos relevantes - na época pela renovação e culturalmente ainda hoje - Companheiros do Pátio das Comédias e Teatro Experimental do Porto. E mais: de junho a setembro de 1948, Jorge de Sena adaptou para a rádio nada menos do que 13 romances policiais emitidos no então importante Radio Clube Português num programa produzido por António Pedro, com quem aliás colaborou no Teatro Experimental do Porto.

Tal como como escreveu Luis Francisco Rebello, parte das peças de Jorge de Sena “direta ou indiretamente se reconduzem á estética e à ética do surrealismo”. (in “O Jogo dos Homens” 1971). E tal como eu próprio escrevi, e seja-me permitida as auto citações, “Jorge de Sena representa a mais acabada continuidade e complementaridade entre o Surrealismo e o Classicismo”, no contexto de “uma visão muito ácida e crítica da sociedade portuguesa…” (in História do Teatro Português” ed. Verbo 2001 e “Teatro em Portugal” ed. CTT 2012).

 

DUARTE IVO CRUZ