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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR


O flâneur aceita perder-se no tempo e no espaço de uma cidade.


“Pour le parfait flâneur, pour l'observateur passionné, c'est une immense jouissance que d'élire domicile dans le nombre, dans l'ondoyant, dans le mouvement, dans le fugitif et l'infini. Être hors de chez soi, et pourtant se sentir partout chez soi ; voir le monde, être au centre du monde et rester caché au monde, tels sont quelques‑uns des moindres plaisirs de ces esprits indépendants, passionnés, impartiaux, que la langue ne peut que maladroitement définir.”, Charles Baudelaire, Le Peintre de la vie moderne.


No livro Psychogeography de Merlin Coverley lê-se que o flâneur é um observador solitário que caminha pelas ruas de uma cidade. Ao errar sem destino, ao parar simplesmente para olhar, o flâneur cedo se tornou uma figura ideal e literária do séc. XIX, inseparável da poesia de Charles Baudelaire (1821-1867).


O flâneur deseja para sempre unir-se à multidão, fluir no movimento contínuo da cidade, tornar-se fugitivo e infinito. Ser em toda a parte, ver o mundo e fazer parte de tudo mas manter escondida a sua existência. O flâneur é em simultâneo a imersão e o isolamento, a parte e o todo, o observador e o observado, o perseguidor e o perseguido, o eu e o outro, o passado e o futuro.


Ao dissolver-se na multidão, o flâneur aceita perder-se no tempo e no espaço de uma cidade e deixa-se intoxicar pelo seu movimento que não pára. Mas o flâneur é sempre uma figura nostálgica porque apesar de proclamar admiração pela vida urbana reconhece também a redundância cada vez mais evidente do pedestre desocupado e só e que sobretudo aos olhos da cidade moderna se torna inútil e indolente.


Segundo Coverley, Paris era um livro pronto a ser lido por Baudelaire mas a sua configuração labiríntica destruída por Haussmann impediu a existência real do flâneur. Para Coverley, a vida de Baudelaire espelha a trajetória do flâneur que batalha constantemente contra o advento da modernidade.


A expansão de Paris, no séc. XIX, impediu a cidade de ser compreendida no seu todo. A destruição das antigas ruas e a sua reordenação sufocada com trânsito, domesticou qualquer tipo de intenção exploratória e o desejo do caminhante pelo enigmático, pelo misterioso e pelo oculto tornou-se totalmente obsoleto. O andar ficou assim reduzido a um passeio turístico, o errar ficou limitado ao olhar para as montras. Na cidade moderna o flâneur tem de se adaptar ou então perece. Para Merlin Coverley, o flâneur de Baudelaire é assim o testemunho de um modo de vida prestes a desvanecer para sempre.

 

Ana Ruepp

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   André Velter, diretor da coleção Poésie da editora Gallimard, dizia, em recente entrevista à revista Lire: Baudelaire é aquele que, em momento histórico do seu século, realiza absolutamente o que é o génio da língua nesse instante - isto é, a aliança que se opera entre o som e o sentido, aqui levada a um extremo grau de suavidade, de sensualidade. Soube criar uma poesia metrificada e rimada, que simultaneamente parecesse tão natural e sofisticada quanto possível. Em Baudelaire, não há momento algum em que cheire a suor. É uma poesia que nos dá o sentimento de que o sentido que ele quer exprimir e a música que quer criar vêm naturalmente, com a evidência do surto. Eis uma graça que muito raramente se encontra, mesmo em poetas, e que lhe é absolutamente específica...   ... Com ele, tudo se torna lícito! Eis o que é magnífico em "Les Fleurs du Mal", essa liberdade de colher todas as flores...   ... Baudelaire pensa que a beleza não reside no tema abordado, mas na maneira de o fazer, e que daí, portanto, será necessário procurar por todo o lado. Volto assim, Princesa de mim, cento e sessenta anos depois da primeira edição de Les Fleurs du Mal, a essa embriaguez baudelairiana da língua francesa, que, sem talvez ter traduzido qualquer dos seus poemas, Cesário Verde soube provar e beber em língua portuguesa. Como sabes, sou hipersensível à musicalidade marítima das palavras e, talvez por isso, tanto gostei de L´Homme et la Mer:

 

          Homme libre, toujours tu chériras la mer!

          La mer est ton miroir; tu contemples ton âme

          Dans le déroulement infini de sa lame,

          Et ton esprit n´est pas un gouffre moins amer.

 

          Homem livre, sempre amarás o mar!

          O mar é o teu espelho; contemplas a tua alma

          Na onda que ao desenrolar-se acalma...

          Mas nem por isso deixas de amargar!

 

   Esta tradução é minha. Maria Gabriela Llansol tem outro génio, e verte assim:

 

          Homem livre,

          Ser-te-á sempre querido o mar, ele te reflete

          E tu te contemplas no infinito oscilar da sua rebentação,

          Sua planura não é menos cruel que teu abismo __

 

   Nas leituras que tenho feito de Baudelaire, nunca se desperta em mim qualquer desejo de tradução, de tal modo sinto que as palavras usadas pelo poeta, e a sua arrumação, são música escrita na língua que as anima e lhes dá novo significado. Explico mal, Princesa, o que te quero dizer; talvez percebas melhor este meu pensarsentir se procurares entender como, afinal, encontro, na língua portuguesa, mais Baudelaire em Cesário Verde, que não o traduz, mas profundamente o respira: Na parte que abateu no terremoto, / Muram-me as construções retas, iguais, crescidas; / Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas, / E os sinos dum tanger monástico e devoto. // Mas, num recinto público e vulgar, / Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras, / Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras, / Um épico doutrora ascende, num pilar! // E eu sonho o Cólera, imagino a Febre, / Nesta acumulação de corpos enfezados; / Sombrios e espectrais recolhem os soldados; / Inflama-se um palácio em face de um casebre. // Partem patrulhas de cavalaria / Dos arcos dos quartéis que foram já conventos; / Idade Média ! A pé, outras, a passos lentos, / Derramam-se por toda a capital, que esfria. Neste "spleen" de Lisboa, O Sentimento dum Ocidental ecoa Le Spleen de Paris, ambas as cidades são doentes e fechadas, abafam o poeta dum tédio que se chama "spleen", palavra cujo étimo grego significa a bílis negra do baço. Mas desse e nesse mal estar nascem flores, flores do mal a que a consciência e a graça das palavras poéticas trazem consolação e beleza. Assim Baudelaire canta em Le Soleil:

 

          Le long du vieux faubourg, où pendent aux masures 

          Les persiennes, abris des secrètes luxures,

          Quand le soleil cruel frappe à traits redoublés

          Sur la ville et les champs, sur les toits et les blés,

          Je vais m´exercer seul à ma fantasque escrime,

          Flairant dans tous les coins les hasards de la rime,

          Trébuchant sur les mots comme sur les pavês,

          Heurtant parfois des vers depuis longtemps rêvés.

 

          [...] Quand, ainsi qu´un poète, il descend dans les villes,

          Il ennoblit le sort des choses les plus viles,

          Et s´introduit en roi, sans bruits et sans valets,

          Dans tous les hôpitaux et dans tous les palais.

 

   Fantástica esgrima, essa procura da rima, esse tropeçar nas palavras, aos encontrões a versos há muito sonhados! Quando o poeta desce à cidade transforma em nobreza a vileza das coisas, torna-se rei, sem alarido nem lacaios, entrando em todos os hospitais e em todos os palácios. A consciência do mal pode também ser o seu exorcismo e, pela revelação da beleza ignota, a poesia deletéria torna-se edificante. Escreveu Santa Teresinha:

 

          Seigneur, la souffrance

          Devient jouissance

          Quand l´âme s´élance

          Vers toi sans retour.

 

   A alma humana é um mistério que ninguém vê e todos sentimos. Assim a poesia como real absoluto, no dizer de Novalis.

 

Camilo Maria         

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Perceberás adiante, nesta ou noutra carta, por que pergunto se o antónimo ou antinómico de edificante é deletério. Ocorreu-me tal interrogação ao cair-me nas mãos - no decurso desta atarefada arrumação de milhares de livros em que a mudança de casa me meteu - uma edição bilingue (Relógio d´Água, Lisboa, 2003) de Les Fleurs du Mal (1857) de Charles Baudelaire, com versão portuguesa de Maria Gabriela Llansol. Já tinha, e ainda conservo, duas edições francesas da obra, quando adquiri esta, num período em que apreciava cotejar originais e suas traduções por "nomes conhecidos" das letras portuguesas, como, entre outros amigos, Pedro Tamen, Vasco Graça Moura, etc...

 

   Sobre esta versão de As Flores do Mal, teimo em sentir que deparo com dois estilos distintos, a tal ponto que só posso afirmar que um poema é tradução de outro pela coincidência dos temas e a genealogia das inspirações, por vezes ainda porque uns e outros versos tocam as mesmas notas. A edição bilingue sublinha trechos do seu posfácio, que reproduz a Introduction que Paul Valéry escreveu para a edição francesa de 1926. Escolho um, assaz claro, de acordo com a editora portuguesa que, sabiamente, o destacou, quiçá para chamar a atenção para a tentação do original e o desafio da tradução:

 

   Há nos melhores versos de Baudelaire uma combinação de carne e de espírito, uma mistura de solenidade, de calor e de amargura, de eternidade e de intimidade, uma raríssima aliança da vontade com a harmonia, que os distingue nitidamente dos versos românticos, como os distingue nitidamente dos versos parnasianos...   ... Vemos hoje que a ressonância, passados mais de sessenta anos [este escrito de Valéry, não esqueças, Princesa, data de 1926], da obra única e muito pouco volumosa de Baudelaire preenche ainda toda a esfera poética, está presente nos espíritos, é impossível de ignorar, reforçado por um número notável de obras que dela derivam, que não são imitações, mas consequências, e que seria pois necessário, para ser equitativo, juntar à delicada recolha das "Flores do Mal" diversas obras de primeira ordem, e um conjunto de investigações mais profundas e mais subtis como nunca a poesia empreendeu. [Tradução de Manuel Alberto]

 

   Confesso - a ti, Princesa de mim, depositária de meus inauditos segredos - que não sei se prefiro a tradução que a Maria Gabriela Llansol fez de Un Cantique d´Amour (com o título, em português, de O Alto Voo da Cotovia - Relógio d´Água, Lisboa, 1999), de Therèse Martin, aliás, Santa Teresinha do Menino Jesus, à sua versão de Les Fleurs du Mal. Não confronto o pensadossentimento com que a escritora portuguesa verteu, para a sua língua, qualquer dessas obras tão diferentes. Tampouco me atrevo a pretender que uma ou outra se coaduna melhor com o pensarsentir o mundo, a alma e a vida de Gabriela. Só ela, ela e ninguém mais, poderia ter consciência disso. E mesmo esta não teria, ao calhar, a mesma densidade. Mas, por estranho que te possa parecer, vejo uma essência comum a ambas as versões, de obras aparentemente tão diversas e contrárias como flores do mal e lírios de castidade. Talvez lhe chame misericórdia, esse mistério de entreajuda universal, o primeiro dos nossos deveres e o eminente direito de cada um de nós. Caio aqui em pensarsentir a misericórdia como o poder gratuito de revelar e edificar a beleza escondida, de renovar o ser. Estranhamente, poucos entenderão que é precisamente essa gratuidade que Deus quer dar e que seja dada. Como nesse lema medievo: Deus la deu, Deus la há dado.

 

   Escreve, sobre Teresa de Lisieux, Gabriela Llansol: Perguntam-me se é escritora. Respondo-lhes que, em escassos quatro anos, a poesia foi servida como mandam os manuais. Mas vou responder-lhe de outro modo. A Teresa entrou, de facto, no armazém dos sinais da literatura. Noto que foi buscar imagens e ritmos a Musset, a Chateaubriand e a Lamartine. Que entrou, se serviu como entendeu, e fez poemas. Também foi buscar pensamentos e palavras aos Evangelhos, a São João da Cruz, à mística carmelita. As freiras, suas irmãs, apreciaram. Tudo rimava, apesar de quase nada respirar. As ideias pareciam ortodoxas, as sonoridades não chocavam, a mobilidade rítmica introduzia movimento, algum drama, as imagens vinham quase todas da natureza e da vida familiar, os versos eram fáceis de cantar. Sim, porque os poemas eram para ser cantados. Não é inconveniente ver freiras cantar versos que não são os do Ofício. Não é sequer inconveniente que as melodias sejam profanas...   ... Como não nos desviarmos, sem discordar? Sim "dis-cordar" é separar os corações. O teu   escondeste-o nos poemas e nas palavras estranhas que utilizas. Escreves Deus e não sabes o que é. Escreves vale de lágrimas / céu / divino-pai / paraíso / carmelo / coro celeste / pecadores / felicidade / eleitos / anjos / divino / e nenhuma dessas palavras dizem o que parecem. São estranhos de passagem. Como os Musset, Chateaubriand e outros Lamartine não disseram o que te ia na alma. Nem por instantes acreditariam no que os teus olhos viam. Nunca o teu jesus seria para eles o encontro arriscado de uma vida.  E para as tuas irmãs? / Imaginaram-no vindo do sagrado / quando / ele veio para ti vindo do fulgor, / «misericórdia», / como lhe chamaste.

 

   E na misericórdia se encontram as flores do mal e essas que Santa Teresinha canta no seu JÉSUS, MON BIEN AIMÉ, RAPELLE-TOI !... Rapelle-toi qu´au soir de l´agonie / Avec ton sang se mélêrent tes pleurs / Rosée d´amour, sa valeur infinie / a fait germer de virginales fleurs... A escrita francesa de Teresa vai crescendo num ritmo e num balanço sonoro que a versão de Gabriela não pretende imitar. Basta-lhe, magnificamente, colher o coração do poema e, adiante, traduzi-lo assim:

 

          Eis o mistério __ Esse orvalho fecundo,

          Tal um sémen __ virginizou as corolas floridas __

          Flores de um ventre invisível __ onde germinam

          E crescem __ inumeráveis corações maternos.

 

          Meu corpo cresceu nesse mistério __ Sou virgem __ Virginizada

          Por ti __ um corpo materno de corações sem fim

 

          Flores virginais que libertam os homens

          Da ilimitada tristeza

          De viver.

 

          Foste um condenado __ forçado ao extremo

          Sofrimento humano __ que se mirou no azur __ aflito,

          E exclamo __ «Mais um pouco e ver-me-eis

          Surgir glorioso __ na extrema mudez do Pai».

 

   Não, Princesa de mim, não me esqueci de Charles Baudelaire nem de Les Fleurs du Mal;  tampouco, ou ainda menos, olvidarei esta conversa em que se me aproximaram um poeta maldito e uma santa de altar (da qual, lembras-te?, ainda guardo uma relíquia que herdei da minha Avó Teresa...). Espera pela próxima carta.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira