Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O pai morrera e ele nunca mais almoçava. O caixão era paupérrimo, uma coisa dickensiana ao lado da qual caminhava a aflita dor da mãe. O futuro Charlot, vinha atrás da urna do pai e do pranto da mãe. Para distrair a fome, ia mimando, caricatural, o sofrimento materno. Tão expressivo que o irmão soltava gargalhadas. Toda a criança é cruel, dir-se-á. O futuro diria que ele era mau como as cobras.
Há outra morte a atravessar-lhe biografia e obra. O primeiro filho de Chaplin nasceu mal-formado e morreu após três dias de angústia. Duas semanas depois, sem indulgência, Chaplin fazia testes a actores para o que seria o filme-querubim a que chamamos “The Kid”. Fê-lo como quem se cura com o próprio veneno.
Ignóbil foi também a inspiração de “The Gold Rush”. O brutal rigor de um Inverno isola um grupo de pesquisadores de ouro. Para sobreviverem comem os cadáveres dos que vão tombando. Depois de ver o que Chaplin fez com esse material, até nem me parece estranho que Cristo em Canaã tivesse transformado a água em vinho. Como se convertem tragédias em comédias, que estranha alquimia transforma a crueldade em angelical inocência? A maldade é, aposto, um ingrediente essencial. Vejamos.
“Mau como as cobras” foi o que disseram quase todas as mulheres de Chaplin. Numa altura em que as ligas puritanas marcavam Hollywood homem a homem, uma menor, Mildred Harris, clamou estar grávida dele. Sem poder arriscar o escândalo, o genial Chaplin casou-se. Estava à espera dela no registo e vendo chegar a juvenil figura não resistiu a um comentário sibilino: “Sinto um bocadinho de pena dela.” Não era caso para menos, em dois anos estavam divorciados e ela acusava-o, provavelmente com inteira verdade, de crueldade mental. Mas sem esses dois anos de tortura de Mildred será que Chaplin teria algum dia criado “City Lights”?
Reincidiu. Lembram-se da Lita Grey do “The Kid”? Tinha 12 anos. Aos 15, Chaplin chamou-a para ser a estrela de “The Gold Rush”. Ainda chegou a filmar, mas Lita descobriu-se, de repente e não por acaso, em estado interessante. Novo casamento urgente e obrigatório, nova tragédia pessoal. Chaplin abandonou-a num palácio dourado, enquanto se locupletava em infidelidades que incluíam a actriz que a substituiu e uma amiga que Lita lhe apresentara. A declaração de Lita no divórcio foi histórica: acusava Chaplin de todas as crueldades e mesmo de uma heterodoxa abordagem à relação sexual que a lei californiana condenava. Era, de frente ou de costas, mau como as cobras.
A desumanidade de Chaplin explica a humanidade da sua obra? O facto é que as tragédias, próprias ou alheias, foram o capital cómico dos seus filmes. O narcisismo, o ressentimento, a perversidade, a mesquinhez, a infidelidade geraram obras-primas. Atrevo-me: só do mal pode vir algum bem.
Vamos lá falar de respeito. Não tenho respeito nenhum por uma comédia que não me faça chorar. E ainda menos por um drama que não me faça rir.
Os cómicos mais lendários eram uns tipos tristes. Nos filmes de Chaplin e Buster Keaton é nos fios melodramáticos que ambos tropeçam, induzindo-nos a uma mansidão sentimental que logo a seguir estilhaçam com um gag. Ou seja, um tipo, quando é bom a fazer rir, ama. Escuso de dizer que quando é mau, odeia? Escuso, mas digo. Um dos problemas da comédia que hoje nos inunda é o ódio. O cómico, agora, não se dissolve na vida e ainda menos nas pessoas. O cómico passou a ser um juiz. Político, sobretudo. O sarcasmo substitui o gag. A altiva assertividade crítica destes novos cómicos amesquinha o objecto do humor. Às vezes não parece que estejam a fazer comédia, mas só a vingarem-se.
Ora bolas para a teoria. Vamos mas é ao cinema. Leo McCarey, um daqueles americanos irlandeses e católicos que fizeram a glória de Hollywood, foi o primeiro cineasta a ganhar o Oscar com uma comédia. Não é dessa, “Awful Truth”, com Cary Grant, que falo. A minha favorita, pelo que já me fez rir e chorar, é “Ruggles of Red Gap”. Um aristocrata inglês perde ao jogo o seu mordomo (Charles Laughton) para um milionário americano adoravelmente provinciano. Ruggles, o mordomo, é mais rígido do que um pau de vassoura: rígido na etiqueta que venera; rígido no respeito à estratificação social em que foi educado. Ao chegar a Red Gap, o saloiíssimo rincão onde vive o despretensioso milionário, Ruggles tem o choque da vida dele. O milionário é um poço de espontaneidade, os habitantes da small town uns gigantes de candura e generosidade.
De que é que nos rimos, no filme? Da humanização do mordomo. Uma a uma diluem-se as regras do espartilho que faziam Charles Laughton parecer um atávico armário com pernas. O mordomo desengoma-se, primeiro um braço, depois os lábios que aprendem a sorrir.
Acontece então uma das cenas mais políticas e mais comoventes do cinema americano. No saloon, os cámones todos a beber, alguém invoca o “discurso de Gettysburg”, dito por Lincoln, em plena Guerra Civil, no campo de batalha onde morreram 7500 homens. Um discurso que qualquer americano sabe de cor. Só que, no saloon – que vergonha – já ninguém se lembra. Até se ouvir um débil murmúrio. Voltam-se as cabeças e um grande plano mostra-nos os lábios de Laughton a dizer, como Lincoln, que “esta nação verá renascer a liberdade” e que “o governo do povo, pelo povo, para o povo jamais perecerá da face da terra.” O que vemos, nesse plano, é o rosto de um homem, um mordomo, que acaba de conquistar a plena humanidade. E a olharmos para esse homem igual aos outros homens, não sabemos, é verdade, se havemos de rir, se havemos de chorar. Fazemos, é bom de ver, as duas coisas.
Teus olhos perscrutantes são meus olhos vagabundos. Tua irmã sou, se me aceitares
E como disseste “Cada segundo é tempo para mudar tudo para sempre” e só se conhecem céus, conhecendo as noites fundas do ódio, do poder cego, do desprezo e da clemência do amar que exprimiste mudo com a extrema dignidade de um cavalheiro. Na tua cartola, na tua bengala de bambu, no teu fraque, nos teus sapatos imensos e desgastados, não foste grande, foste gigante e nunca foste o fim de uma era, ou não tivesses partido deste mundo que encheste de significado durante a gentileza do teu dormir.
Em 1977 ano da tua morte, juntamo-nos um grupo de amigos para falar de ti para homenagear algumas das tuas frases. Tudo o resto, pois que o teu resto é mundo todo, já sabíamos que se vai fatiando deitando laço à idade que nos chega
e num espírito sem clausura, tu
“Se matamos uma pessoa somos assassinos. Se matamos milhões de homens, celebram-nos como heróis”;
“Amo o público, mas não o admiro. Como indivíduos, sim. Mas, como multidão, não passa de um monstro sem cabeça”;
“A beleza é a única coisa preciosa na vida. É difícil encontrá-la - mas quem consegue descobre tudo”;
Enfim o que pode extrair a nossa imaginação dos teus filmes expressa bem o quanto neles o que importa não é a realidade.
Sempre o meu choro ao vê-los foi meu aplauso total. Sempre senti uma dor brilhante naquela mímica. Deixava-me a pensar nos corações de estopa lacrimosos a expor as suas contradanças e repudiava o que ainda hoje repudio: refiro-me ao eterno jardim sempre prostituído por malabaristas de estudadas esgrimas.
Agora, de manhã, quando te escrevo, é tudo grato…mas Chaplin ao meio dia já muito é duro, a noite é amarga, e, ao amanhecer, contigo também aprendi que do vagabundo despertam aos poucos as ânsias de caminhar e assim a andar nos pomos.
Grata te sou pois julgo ter entendido de ti um jeito de conhecer o indizível do morrer, da perda dele ao largar o mundo já que me deixaste a hipótese de encontrar no negrume o que resta da luz.
PS
A vida é maravilhosa se não se tem medo dela, sim é certo Chaplin, e é um texto irreversível no qual para irmos a jogo haveria que inventar outra comédia humana, outra trave mestra que fosse um outro dia, de repente.