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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

"CHIQUINHO"

  


Dedico a crónica de hoje a uma jovem estudante do 8º ano do ensino básico que encontrei acidentalmente na Biblioteca Municipal Sophia de Mello Breyner Andresen, de Loulé, a renovar requisições de livros. Vi nela um tal entusiasmo que não posso deixar de lembrar aqui com grande alegria. E o tema que hoje trago prende-se com a reedição de uma obra-prima da língua portuguesa, Chiquinho, de Baltasar Lopes (Caminho, 2024), referência essencial da literatura de Cabo Verde, que não pode continuar a ser uma espécie rara nas nossas livrarias. E não há verdadeiro incentivo à leitura sem termos acesso às obras fundamentais da língua e da literatura. Este romance de cariz biográfico é pioneiro numa encruzilhada de referências culturais, dando ao crioulo um especial protagonismo, através de uma riqueza vocabular única, emblemática para a geração da revista “Claridade”, numa espécie de placa giratória, envolvendo diferentes manifestações da língua comum.


Baltasar Lopes (1907-1989) nasceu em S. Nicolau, formou-se em Direito e Filologia Românica em Lisboa, foi professor e reitor do Liceu Gil Eanes, na cidade do Mindelo (S. Vicente), tendo tido um papel muito relevante na vida cívica, cultural e literária, em especial no movimento claridoso, com Manuel Lopes e Jorge Barbosa, sob o lema “com os pés fincados na terra”. Em 1947 sai a lume o romance Chiquinho, marcante para a afirmação da “caboverdianidade”, dedicado a José Leite de Vasconcelos. Três partes compõem a narrativa: Infância, São Vicente e “As águas”.  Papai partira para a América em busca do sustento que faltava. A gramática portuguesa de Bento José Oliveira, o Código Civil e o Lunário Perpétuo eram os livros pelos quais tinha grande estima. E as noites de família eram a oportunidade mágica para o desfiar das memórias. “A nossa imaginação vivia apaixonadamente no mundo variado que as histórias criavam”.


O gosto pela narrativa veio da avó, Mamãe-Velha, que “além de ser pessoa antiga e ter corpo queixoso, levantava-se logo assim que os galos davam a última pousa, no alvor nascente da ante-manhã”. Nha Rosa Calita era incansável e “vinham no fim os contos do Lobo e do Chibinho, em que a contadeira pitorescamente opunha a estupidez lorpa daquele à esperteza deste”. “Mamãe entretinha-se na sua renda de duas agulhas, cuja perfeição de acabado era muito gabada pelas menininhas luxentas da Vila”. Nhô Chic’Ana, de cachimbo sempre aceso, o melhor trabalhador da horta, perdia-se nas recordações dos tempos antigos com Mamãe-Velha. “Quando caíam as chuvas, acabava-se para nós a vida boa de malandrear pelo Caleijão depois das horas de aula. (…) Gozávamos largamente a nossa liberdade no tempo seco, porque já sabíamos que nas as-águas o dia todo era para as hortas”. O tio Joca ensinava Virgílio na Praia-Branca e Chiquinho citava Tio Lívio. Era o fundo crioulo do humanismo universalista. E o Sr. Euclides Varanda procurava a tradição poética dos alexandrinos. Já em S. Vicente, com Andrezinho, Nonó, Humberto e Alcides, funda o Grémio Cultural Cabo-Verdiano, com a presença amorosa de Nuninha. Mas, terminado o Liceu, Chiquinho volta a S. Nicolau, onde as ténues esperanças e as ilusões se desvanecem, colocado numa escola em lugar “onde Nossenhor se esqueceu de passar”. A morte de nhô Chic’Ana é a marca terrível da fome. E o destino de Papai, renova-se: “Com rumo de nor-noroeste, a proa era a América”.


GOM