Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
«Deus - A Ciência - As Provas – A Alvorada de Uma Revolução» (D. Quixote, 2024) de Michel-Yves Bolloré e Olivier Bonnassies constitui um documento importante com interrogações que nos permitem compreender que o tempo das conclusões definitivas sobre a ciência, o universo e a vida terminou, dando lugar à abertura de espírito.
UM DESAFIO A PENSAR A obra que acaba de ser publicada em Portugal, dada à estampa em França em 2021, resultou de três anos de labor envolvendo vinte cientistas e especialistas dos temas tratados, correspondendo a um trabalho hercúleo, envolvendo quatro séculos de descobertas científicas, de Copérnico a Freud, passando por Galileu e Darwin. Se as descobertas se acumularam de modo espetacular nesse tempo, a verdade é que, depois do otimismo positivista do início do século XX, sucedeu a oscilação do pêndulo da ciência num sentido da ponderação de novos fatores ditados pela descoberta da teoria da relatividade, da física quântica, da expansão do Universo e da complexidade da vida. Os novos conhecimentos abalaram as certezas consagradas e permitiram considerar a lógica materialista como uma crença como tantas outras, com o risco de se converter num entendimento contrário à razão. Eis por que motivo é importante esta obra, cujos autores apresentam em linguagem acessível e de uma forma aberta e crítica, um panorama rigoroso das provas possíveis da existência de Deus. Longe de uma perspetiva confessional, estamos perante a apresentação de um percurso complexo, que não para e que nos obriga a refletir. O objetivo dos autores é apresentarem os elementos necessários para pensar sobre a questão da existência de um deus criador, que se põe em termos completamente novos. A leitura é de facto apaixonante e pressupõe uma evolução, que se traduz numa “grande inversão” em cinco séculos de descobertas desde o crescimento ao declínio das ideias “materialistas”. Senão vejamos. Há um primeiro ciclo que envolve, desde 1543, o heliocentrismo de Copérnico e Galileu, a gravitação de Newton, a idade da Terra de Buffon, o determinismo de Laplace, a evolução de Lamarck, a seleção natural de Darwin, a dialética de Marx e a psicanálise de Freud. Depois abre-se o segundo ciclo da termodinâmica e da morte térmica do Universo, com Carnot, a mecânica quântica e o princípio da indeterminação de Max Planck, Heisenberg e Bohr, a relatividade, a expansão do Universo e o Big Bang, de Einstein e Friedmann, o teorema da incompletude de Gödel, a descodificação do genoma de Watson e Crick, o descrédito das teorias de Freud e o colapso do bloco soviético, a refutação do Big Crunch e o princípio antrópico do astrofísico Brandon Carter. Como afirma no prefácio Robert W. Wilson, prémio Nobel da Física (1978): “vivemos num desses multiversos que beneficiou de boas constantes para nos engendrar como descreve o princípio antrópico bem conhecido. Na minha opinião, porém, nenhuma destas hipóteses avança uma explicação científica convincente sobre a forma como, afinal, o Universo pode ter começado”. Caminhamos numa via de tentativa e erro, não sabendo o suficiente para ser intolerantes, como nos ensinou Karl Popper. Daí a importância de se explorar a ideia de um espírito ou de um Deus criador, que encontramos nas numerosas religiões.
DOIS GÉNIOS Albert Einstein ajuda-nos a perceber esta obra, afirmando: “Não sou ateu e não creio que possa dizer-me panteísta (…). O que me separa da maioria daqueles a que se chama ateus é o sentimento de uma humildade total perante os segredos inacessíveis da harmonia do cosmos. (…) Os ateus fanáticos são como escravos que continuam a sentir o peso das suas grilhetas que rejeitaram após uma luta encarniçada. São criaturas que, no seu rancor contra a religião tradicional concebida como ‘ópio do povo’, já não conseguem ouvir a música das esferas celestes”. E afirma ainda: “Sentir que, por detrás de tudo o que a experiência consegue apreender se encontra alguma coisa que o nosso espírito não consegue assimilar e cuja beleza e sublime só nos tocam indiretamente sob a forma de um ténue reflexo, isto é a religião. E neste sentido sou religioso”. Por isso, defendia que a religiosidade cósmica seria a mola mais forte e mais nobre da investigação científica. É notável o testemunho de Kurt Gödel, um dos nomes mais importantes no pensamento contemporâneo. Da sua amizade com Einstein em Princeton colhemos este testemunho. “Regresso a casa com Einstein quase todos os dias, e falamos de filosofia, de política e dos Estados Unidos. A religião dele é bem mais abstrata, tal como a de Espinosa ou a da filosofia indiana. A minha é mais próxima da religião da Igreja. O Deus de Espinosa é menos do que uma pessoa, o meu é mais do que uma pessoa, porque Deus não pode ser menos do que uma pessoa. Pode desempenhar o papel de uma pessoa”. Se as religiões estavam cheias de impurezas, haveria que preservar o essencial do fenómeno religioso. E pode dizer-se que Gödel definia assim o seu pensamento: “O mundo não é caótico e arbitrário, mas como mostra a ciência, a maior regularidade e a maior ordem reinam em toda a parte. A ordem é uma forma de racionalidade. A ciência moderna mostra que o nosso tempo, com todas as suas estrelas e planetas, teve um começo e terá provavelmente um fim. Porque haveria, então, de haver este mundo único aqui? Visto que um dia aparecemos neste mundo sem sabermos como, nem de onde, o mesmo pode acontecer de novo num outro mundo da mesma maneira. Se o mundo está organizado de forma racional e tem um significado, então deve haver uma outra vida. Para que serviria produzir uma essência (o ser humano) com tão grande número de possibilidades de desenvolvimentos individuais e de evoluções nas suas relações, mas a quem nunca poderia ser permitido realizar mais do que um milésimo delas? Seria como construir os alicerces de uma casa com grandes dificuldades, e depois deixar tudo ruir”. E assim espírito e matéria são distintos – e esta é a base do teorema da incompletude. “O meu teorema mostra somente que a mecanização das matemáticas, ou seja, a eliminação do espírito e das entidades abstratas, é impossível”. Se há uma conclusão fundamental é a de que, como pretendeu Pascal, qualquer simplificação unilateral é perigosa. Se fossemos testemunhas silenciosas dos diálogos entre Einstein e Gödel em Princeton perceberíamos que a atitude correta é a que nos leva a recusar as opções sem saída. Somos demasiadamente imperfeitos para poder ficar pelas simplificações redutoras. A complexidade reserva-nos inúmeras surpresas e diz-nos que não há uma só motivação para um mesmo acontecimento e que as aparências são profundamente ilusórias.
A Cultura como Enigma procura, num conjunto de crónicas e ensaios, salientar a importância das Humanidades como aprendizagem do ser, do conhecimento, do saber fazer e do viver com os outros, ligando cultura e ciência e visando superar a indiferença e o relativismo que subalternizam a memória, que absolutizam os contextos e os mercados e que põem em causa a dimensão emancipadora e universal da dignidade da pessoa humana e a salvaguarda da liberdade e dos direitos humanos.
UM MOMENTO ESPECIAL Num momento em que o Direito e a Cultura da Paz são menosprezados e desrespeitados, importa recuperar as virtualidades do universalismo humanista, longe da separação e da fragmentação de um formalismo que pode tornar os seres humanos súbditos ou instrumentos de novas idolatrias. O elogio do livro e da leitura significa, assim, a procura de uma emancipação baseada na autonomia, na liberdade e no sentido crítico. O enigma da cultura está, assim, no misterioso diálogo com as gerações que nos antecederam e com os pensadores, artistas, cientistas, criadores, que podemos encontrar na leitura ou no usufruto das mais diversas formas de arte e de conhecimento. É esta a pergunta fundamental da esfinge na porta de Tebas.
Eis o introito desse conjunto de reflexões: «Gosto das casas com livros e da alma que eles alimentam. E falar de livros é lembrar a sua presença a ocupar amigavelmente todos os cantos das casas onde eles existem. Não concebo a hospitalidade de uma casa sem a omnipresença dos livros. E não há prazer maior do que ir à estante e folhear um livro, que já não recordamos, do qual temos uma lembrança vaga ou que julgamos ter bem presente. No fundo, os livros fazem parte dos nossos afetos. No entanto, porque os livros vivem, ou não fossem a projeção permanente dos seus autores nas nossas vidas, é normal que quando os relemos, e julgamos conhecê-los, descubramos novas ideias, novas perspetivas, cambiantes diferentes, com se fossem eternamente novos. As bibliotecas são sempre lugares iniciáticos, misteriosos, labirintos autênticos e inesgotáveis.
ENCRUZILHADAS, BIFURCAÇÕES Os contos de Jorge Luís Borges têm a ver com esses caminhos, encruzilhadas, bifurcações, becos, saídas que nos entusiasmam ou exasperam. As minhas primeiras recordações da biblioteca fantástica de meu avô têm a ver com as Enciclopédias e os Dicionários. Foi por aí que comecei, na tentativa, sei hoje que vã, de procurar as saídas dos labirintos. E lembro-me bem dos sábados, passados até que a luz se desvanecesse, a correr de Herodes para Pilatos nas várias entradas do velho “Dicionário de Portugal”, a descobrir os vultos do nosso oitocentismo, a desvendar uma gigantesca Enciclopédia espanhola ou o “Larousse Illustré”, a folhear os Atlas e os livros imponentes e pesados com as reproduções já um pouco desmaiadas das grandes obras de arte do mundo, nos grandes Museus, desde o Louvre aos Ofícios de Florença, passando pelo misterioso Hermitage…
Eram horas esquecidas, em companhia da multidão de mortos que povoavam essa encruzilhada única que era a livraria de meu Avô (biblioteca e livraria eram sinónimos no vocabulário lá de casa). Penso que o vício dos livros veio no meu código genético. Nunca me senti bem sem eles. E quando há o vício de lidar com livros, tudo o que vem à rede é peixe. E, a pouco e pouco, depois da História, que havia para todos os gostos (o meu Avô era professor de História e Geografia), vinha o território da poesia e dos romances - dos romances, inevitavelmente. Entre duas revoltas e quatro viagens virtuais ou imaginárias (Odisseia, Ilíada, Eneida, Gulliver, Robinson e Júlio Verne) ia à poesia (Camões, Garrett, Antero, Cesário, Pessanha…) e aos romances, às coleções completas de Camilo e de Eça, sem restrições. Lá estavam todos. E rapidamente pude perceber por que razão Tolstoi era o romancista preferido dessa livraria ordenada e silente. Em frente de um antigo Atlas, perante a trajetória audaciosa e suicida do Imperador, jamais esquecerei as descrições épicas de “Guerra e Paz”.
Aos mortos das enciclopédias juntava-se a outra multidão das personagens romanescas: Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, Zé Fernandes, Jacinto, Carlos, Maria Eduarda, Basílio, Luísa… Stendhal confundia-se com Julien Sorel, com Fabrice del Dongo, com Clélia ou Sanseverina. Só Flaubert permitia compreender a ascensão e a queda de Cartago, através de Salammbô… E fica uma enorme saudade dessas aventuras e de quando minha Mãe vinha dizer serenamente que era chegada a hora de voltar».
Para Jean d’Ormesson em «O Mundo é uma Coisa Estranha, Afinal», Guerra e Paz, 2015, a imaginação de qualquer romancista revela-se elementar ao lado dos grandes mistérios do universo. As leis da ciência e da natureza são necessárias e arbitrárias. Eis a justificação de todos os dilemas e paradoxos…
UM MUNDO INESGOTÁVEL Ao falarmos da importância da bioética nos dias de hoje, vem à lembrança o que nos disse Jean d’Ormesson: «O mundo no qual vivemos não é apenas inesgotável. Com a luz, e com o tempo, mistério dos mistérios, e com essa coisa inaudita que é a vida, e essa mais inaudita ainda que é o pensamento, o mundo é também, e sobretudo, inverosímil» («O Mundo é uma Coisa Estranha, Afinal», 2015). A imaginação de qualquer romancista revela-se elementar ao lado dos grandes mistérios do universo. As leis da ciência e da natureza são necessárias e arbitrárias. Eis a justificação de todos os dilemas e paradoxos… E a vida é o mais banal dos milagres. Escapa a qualquer definição. Por isso, as descobertas científicas baseiam-se tantas vezes num ápice intuitivo…. Eis por que razão pessoas como o Padre Luís Archer, S.J. ou Maria de Sousa puderam trilhar simultaneamente os caminhos da ciência, da poesia e da investigação – estando permanentemente disponíveis para se interrogar sobre o mundo misterioso da vida. Charles Darwin limitou-se, afinal, apenas a entreabrir uma pequena fresta no conhecimento em «A Origem das Espécies», e hoje chegamos a um antepassado universal e comum de todos os seres vivos: uma célula batizada LUCA (Last Universal Common Ancestor).
PORQUE HÁ ALGO EM VEZ DE NADA? Einstein segreda-nos: «Aquilo que há de mais incompreensível é o mundo ser compreensível». E inesperadamente Leibniz – o mesmo que pergunta «cur aliquid potius nihil?» («Porque há algo em vez de nada?») – afirma que o mundo é composto por átomos impercetíveis e indestrutíveis – mónadas -, que refletem todo o universo, que está assim presente em cada um dos seus pontos. Assim, Einstein procurou encontrar a conexão entre Universo e pensamento, estabelecida desde o começo… Deste modo, no caminho ao encontro do começo das coisas, encontramos três elementos essenciais: a inteligência humana, capaz de descobrir os segredos do Universo; a luz, que nos permite viver sob o Sol e distinguir os seres e as coisas à nossa volta – apesar de viajarmos lentamente, considerando a imensidão do espaço. «Vemos o Sol tal qual ele era há oito minutos, a galáxia Andrómeda tal como era há dois milhões de anos, o enxame de galáxias Virgem, tal como era há quarenta milhões de anos, os quasares nos confins do Universo como eram há uma dezena de milhões de anos» … E o terceiro elemento é o tempo, sobre que já mostrámos a nossa perplexidade e as suas extraordinárias virtualidades… Um escritor de romances sobre a efemeridade do tempo e das mentalidades, como «Au Plaisir de Dieu», sobre um castelo que conheceu bem durante a infância e sobre os seus fantasmas, põe-se no centro das suas próprias interrogações, entre Espinosa, Pascal, Montaigne e Leibniz – jogando com as perplexidades de Albert Einstein e Max Planck. E refere-nos o golpe de génio do cristianismo, ao assumir o «que o distingue de todas as outras religiões» - a Encarnação e, na expressão de René Girard, a condenação de um inocente. E lembramo-nos dos ensinamentos de Teilhard de Chardin, que seguiu os caminhos da ciência, para fazer luz sobre o conhecimento e a compreensão de Deus, da natureza e da humanidade. Quantas incompreensões! Num tempo em que a bioética assume uma importância indiscutível e cada vez maior, exigindo um diálogo fecundo entre pessoas e saberes, salientamos a importância do trabalho realizado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (1996-2001).
UM DIÁLOGO APAIXONANTE O diálogo entre a ciência e a cultura é apaixonante. É verdade que muitas vezes se torna difícil e pleno de perplexidades, mas revela-se fecundo, sobretudo quando estamos perante espíritos livres e abertos, disponíveis para usar a razão como chave para aprofundar as descobertas do espírito. Lembramo-nos de Pascal, personalidade única e fascinante, para quem fé e ciência eram naturalmente complementares, salvaguardadas as diferenças no domínio da ação. Hoje quando lemos ou relemos o autor de «Pensamentos» sentimos um espacial apelo ao sentido crítico e à permanente interrogação sobre os limites. Ficamos, afinal, prevenidos contra as tentações de um positivismo fechado e constrangedor, que apenas nos torna mais ignorantes, perante a tremenda confusão entre certezas e ilusões. Perante tantas contradições e paradoxos, entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, entre o passado e o futuro, apenas nos resta a exigência de não baixar os braços e de manter os olhos bem abertos, para podermos ver e tentar perceber para além da ignorância. E podemos dar o exemplo de Leibniz, para quem a criação é sempre complexa, envolvendo a natureza, a humanidade e a transcendência. E o Padre Joaquim Carreira das Neves, quando lia Stephen Hawking, fazia-o com rigor e serenidade, sem pôr em causa os conhecimentos do cientista e o seu caminho fundamental, mas interrogando os limites. Entender os limites do conhecimento – eis o grande desafio do conhecimento. Que é a inteligência senão a capacidade de compreender as limitações, a fim de que os problemas sejam respondidos com a modéstia própria do saber de experiências feito?... Nunca saberemos o suficiente para ser intolerantes, como afirmou Karl Popper. Daí a necessidade de usar as nossas capacidades para melhor conhecer e compreender. A maravilha da criação apenas pode ser entendida se pudermos ligar a atenção ao que nos cerca ao cuidado dos outros. Cabe-nos ter acesso a uma pequenina parte da verdade científica e o grande desafio é o de nos dispormos a continuar a dar passos para ir para diante. A sociedade contemporânea avança a um ritmo alucinante. No mundo da ciência e da técnica os progressos ocorrem com cada vez maior intensidade. As comunicações atingiram um nível de desenvolvimento rápido, alucinante e inesperado. Em especial, no domínio da medicina, os avanços permitiram combater e pôr fim a doenças mortais anteriormente incuráveis e encontrar em poucos meses a vacina para uma pandemia. Tudo isso significa progresso e maior esperança de vida para a humanidade. Mas todo este progresso é para o bem ou para o mal? Surge, assim, uma preocupação ética e moral que se traduz nos grandes debates acerca da eutanásia, do aborto, da pena de morte, da bioética, da ecologia e da pobreza. Estas controvérsias provocam uma divisão entre partidários e detratores, com repercussões na opinião pública e nos movimentos sociais. A dimensão ética é imprescindível, porque o ser humano rege-se por critérios que lhe servem de orientação, dando coerência e pleno sentido a tudo o que faz.
“Quando procurávamos um título, pensei que ‘revolucionário’ lhe ficava bem, em muitos domínios diferentes. Por isso, achámos que plural era mais forte” – afirma Mâkhi Xenakis, filha do poliédrico artista cujo centenário assinalamos – Iannis Xenakis, músico e pensador… E a palavra Revoluções surge num sentido próprio, como encontramos na matemática, na astronomia, na sociedade e na essência da Arte. Xenakis procurou durante toda a vida algo de novo, que permitisse conhecer melhor a vida – daí a paixão pelo elo fecundo entre Arte e Ciência. Deste modo, encontramos na Exposição que se encontra na Fundação Gulbenkian o inventor, o investigador, o músico, o engenheiro, o arquiteto e o pesquisador informático avant la lettre. No início da vida, há a forte presença da mãe, pianista dotada, e a música ficou na criança como memória e ânsia de perfeição. Depois, Iannis vai estudar para Spetses, ilha do mar Egeu, numa escola politécnica, pelo gosto da física e da matemática e o desejo de ser arquiteto e engenheiro. Em 1940, no início da guerra, participa nos levantamentos populares em Atenas e junta-se à Frente de Libertação Nacional. Depois da vitória dos aliados, participa na guerra civil, no movimento estudantil comunista. É desse tempo a explosão de que é vítima e que marcará o seu rosto para a vida inteira. Em 1947 forma-se em Engenharia Civil, mas dedica-se sobretudo ao estudo das relações entre os domínios científico e artístico. Será perseguido e condenado à morte na Grécia, exilando-se em Paris durante 27 anos, até 1974. No ateliê de Le Corbusier procura contribuir com a sua experiência de engenheiro, nos cálculos de resistências, mas sobretudo toma consciência da multiplicidade de fatores presentes, como no projeto do Convento de La Tourette, em Lyon ou no Pavilhão Philips na Exposição Universal de Bruxelas de 1958.
A inovação corresponde a um processo semelhante para o cientista e o artista: cerebral, neuronal e sináptico (como ensinou Rita Levi-Montalcini). O conceito de “massas sonoras” envolve o meio, como o som das balas, os gritos, os silêncios e a guerra. Arte e vida são inseparáveis na compreensão da complexidade. Os interesses múltiplos correspondem à necessidade de atenção e cuidado. E a filosofia da antiguidade clássica, com os seus ensinamentos, está sempre presente na busca da compreensão do mundo e da natureza. “A música sempre foi, e continua a ser, simultaneamente som e número, acústica e matemática e é nisso que se baseia a sua universalidade”.
Madalena Perdigão foi uma entusiasta de Iannis Xenakis, confirmando o extraordinário papel que teve na abertura de horizontes na criação artística e na cultura, graças à sua rara sensibilidade. Em 1967, Claude Samuel pede apoio para Xenakis para a participação no Festival Internacional de Royan. Madalena concordou e iniciou-se uma longa ligação entre a Gulbenkian e Xenakis, no serviço de música, no CAM e no ACARTE. Em conversas com José de Azeredo Perdigão e sua mulher, Messiaen nunca escondera a admiração profunda por Xenakis, pelo seu talento e pelo entendimento de uma nova visão das Humanidades, na interceção entre o conhecimento científico e técnico, a música, o pensamento e a poesia. A originalidade de Xenakis chega à escrita da música e à sua apresentação. As massas sonoras motivam-no e mobilizam-no: a chuva, o granizo, as cigarras, as aves. Há uma globalidade em movimento – música visual, arquitetura sonora. “Pôr o som no espaço e pensar arquitetura e música como irmãs”. E agora, Mâkhi Xenakis e Thierry Maniguet conceberam uma extraordinária surpresa sonora e visual para os visitantes da exposição, criada e pensada a partir dos politopos (vários lugares). São minutos de movimento e êxtase e compreendemos a essência da obra como novo modo de cultivar a Arte como verdadeiro diálogo criador com a natureza, a humanidade, a ciência e a técnica.
4. Continuando a reflexão sobre a interligação de tudo e de todos, perguntamos: E para onde vamos? Sobretudo: Para onde queremos ir? Que futuro?
Face ao futuro, é essencial pensar. E voltamos à escola, que vem do grego scholê, que significa ócio, não o ócio da preguiça, mas tempo livre para homens e mulheres livres pensarem e governarem a pólis, (daí vem política): a Cidade, isto é, a Casa comum da Humanidade. Hoje o que mais falta é precisamente este ócio. Ora, sem ele, tudo se torna negócio (do latim nec-otium). A própria política tornou-se sobretudo negócio(s). Assim, sob o império da técnica e do(s) negócio(s), não se pensa, calcula-se: o filósofo M. Heidegger chamou a atenção para isso: a técnica não pensa, calcula, o mesmo valendo para os negócios.
5. Olhando para o futuro, o que nos vincula é a esperança. Mas, mais uma vez, não há esperança autêntica sem pensamento. Quando olhamos para o futuro, encontramos evidentemente, motivos para imensa satisfação — voltando à pandemia, não temos de agradecer à ciência, pois, para dar um exemplo, nunca se tinha conseguido tão rapidamente uma vacina, e foi por causa das novas tecnologias que pudemos continuar, apesar de tudo, com mais ligação nos diversos niveis e facetas da vida? —, mas é preciso tomar consciência também das ameaças e dos perigos, que são gigantescos e globais. Há problemas de tremenda complexidade, já presentes e que se agravarão. Apenas exemplos: a guerra nuclear; a ecologia e as alterações climáticas; guerras digitais; as NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, ciências cognitivas, neurociências) na sua ambiguidade, pois há novas possibilidades mas também perigos: frente às possibilidades do transhumanismo e do pós-humanismo, é preciso reflectir sobre o que verdadeiramente queremos; úteros artificiais e seus problemas; bebés transgénicos, experiências com híbridos; questões relacionadas com o inverno da natalidade, nomeadamente na Europa (em Portugal, será uma catástrofe), os mercados globais, a injustiça estrutrutural global, as migrações forçadas e anárquicas, as lutas tecno-económico-políticas pela supremacia global, o trabalho, as drogas, a paz, os direitos humanos… Vivemos num mundo global, estes problemas são globais e a questão é que a política é nacional, quando muito regional, com Governos que governam a curto prazo para ganhar eleições, mas estes problemas são globais e exigem uma solução a longo prazo… Não precisamos, portanto, de erguer uma Governança global? Não digo Governo mundial, mas Governança global, já que os problemas enunciados só com decisões ético-jurídico-políticas globais poderão encontrar solução.
Neste contexto, é necessário contar com o apoio da Igreja. A Igreja Católica é a única instituição verdadeiramente mundial, presente em todo o mundo e em todos os estratos sociais. Com a renovação em curso, segundo o Evangelho de Jesus, que implica também uma reforma radical da Cúria, e com uma orgânica nova de governo, a sinodal, pode-se e deve-se pensar e contar com o seu contributo decisivo enquanto voz político-moral tanto localmente como ao nível regional e global. Evidentemente, por si mesma e também em ligação com as outras Igrejas cristãs e com as diferentes religiões mundiais, com as quais continuará a empenhar-se num diálogo vivo e lúcido, segundo as exigências que o diálogo autêntico exige e que não pode ser unidireccional.
E qual é o Sentido último de todos e de tudo? Problema maior hoje: há hoje uma espécie de cansaço vital. Porque não há Sentido ultimo. Daí, nem é no desespero que se vive, mas na inesperança. Só com Deus enquanto o “Futuro Absoluto”, na expressão célbre do teólogo Karl Ranher, talvez o maior teólogo católico do século XX, se pode erguer um futuro autenticamente humano, com Sentido final, pois Deus é o Futuro de todos os passados, o Futuro de todos os presentes, o Futuro de todos os futuros.
6. No fim, voltamos ao princípio, por outras palavras, é imprescindível voltar a cada um, a cada uma, começar por si próprio, por si própria. E aí está a relação de cada um, de cada uma consigo mesmo, consigo mesma. A Humanidade é constituída por pessoas, em ligação com tudo e com todos, mas únicas.
Cada um precisa de ter uma relação boa consigo, portanto, com o seu passado. Afinal, o presente já foi, no passado, um sonho de futuro(s): é sempre no presente que vivemos, mas relacionados com o passado. Olhando para o passado, talvez não fiquemos satisfeitos, pois houve erros, disparates, sei lá!, e então é preciso é reconciliar-se com ele para que não continue a envenenar-nos — nisto, o crente sabe que deve contar com Deus: Ele entende e perdoa. No presente, é preciso pensar no futuro, já que o presente é inevitavelmente voltado para as possibilidades futuras: que futuro projectamos, que queremos para o futuro, sabendo concretamente que, pensando nele, inevitavelmente deparamos com a morte? Colocando-me na perspeciva do fim — também a história individual só a partir do fim se pode ler toda —, que quero, no fim, ter feito de mim, em ligação com os outros? De tal modo que possa esperar, sem ilusões, que a morte não tem a última palavra. Como disse I. Kant de forma lapidar: “A praxis tem de ser tal que não se possa pensar que não existe um Além”.
P.S.: Uma arreliadora gralha no texto da semana passada fez aparecer o Big Bang há 3.700 milhões de anos em vez de há 13.700 milhões de anos. Peço desculpa.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 29 MAIO 2021
A “Conferência Europeia das Humanidades 2021” constituiu oportunidade para debater a necessidade de dar ao conhecimento lugar central na sociedade contemporânea.
COMPREENDER O FUTURO
A realização, na Fundação Gulbenkian, da Conferência Europeia das Humanidades, organizada pela UNESCO, FCT e Conselho Internacional para a Filosofia e as Ciências Humanas (CIPSH), no âmbito da Presidência Portuguesa do Conselho da UE, permitiu um debate aprofundado sobre um tema complexo que não pode ser abordado de forma simplificada, como se tratasse de um mero dilema entre duas culturas – literária e científica. A verdade é que, como salientou durante os trabalhos António Damásio, a compreensão da complexidade obriga-nos a não cair no velho erro de Descartes e a garantir a complementaridade efetiva entre razão e sentimento. O programa, ao propor como tema geral “Humanidades Europeias e Além”, deu especial ênfase à ligação entre reflexão e espírito científico, já que, como o Presidente da República notou, na abertura da Conferência “nenhuma sociedade tem futuro sem conhecimento e sem colocar esse conhecimento como fundamento das suas decisões sociais e económicas”, sobretudo quando nos encontramos numa circunstância de tempos críticos muito desafiantes, já que os dilemas que se nos têm colocado, designadamente com a pandemia, têm obrigado a uma articulação efetiva entre pensamento e ação, coesão social e estratégias científicas. Com efeito, os problemas complexos e multidisciplinares em causa exigem abordagens que devem combinar várias perspetivas e disciplinas, de modo a compreendermos que a medicina e a ciência política, a saúde pública e a economia têm de andar permanentemente a par, de modo que a evolução da sociedade se faça num equilíbrio permanente entre as diferentes áreas de Investigação e Desenvolvimento. Nesse sentido, a diretora-geral adjunta da UNESCO, Gabriela Ramos recordou o livro de 1722, "Diário do Ano da Peste", de Daniel Deföe, onde se retrata a sociedade de Londres durante a Grande Peste de 1665 e mostra como os fenómenos são cíclicos e as atitudes se repetem: "Para entender uma pandemia temos de compreender as relações entre diferentes realidades, desde o clima, à geografia e à história. Temos de aprender com o passado para preparar o futuro e as humanidades são os guardiães desse conhecimento". De facto, como salientou ainda, “não vale a pena ter avanços e soluções científicas se a sociedade os não compreende”. As pessoas aceitam as decisões desde que tomadas por autoridades em quem confiem e desde que disponham de informação fiável, designadamente no domínio digital. Contudo, essa relação de confiança só é possível estabelecer se houver uma presença segura das Humanidades, como fatores de diálogo e de qualidade.
FONTE DE CRIATIVIDADE E DE INOVAÇÃO
De facto, as Humanidades são uma fonte de criatividade e inovação. E, como afirmou o crítico de arte e escritor inglês, John Ruskin (1819-1900): "As grandes nações escrevem a sua autobiografia em três manuscritos: o livro dos seus feitos e acontecimentos, o livro das palavras e o livro das artes". Contudo, "nenhum destes livros pode ser entendido se não tivermos em consideração os outros dois". Factos, palavras e artes constituem a base estrutural para entendermos a evolução histórica – daí que a pedagogia e a escola tenham de assentar a aprendizagem na permanente ligação entre os diferentes domínios do pensamento. Assim, falar de Humanidades não pode reduzir-se à literatura ou à reflexão, como realidades separadas, devendo, sim, participar como estímulo permanente à Ciência como Cultura. Daí a necessidade de não subalternizar a Filosofia. Não é demais lembrar que as sete Artes Liberais, o trivium (lógica, gramática e retórica) e o quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia), associavam naturalmente as Humanidades aos diversos ramos do saber. Lembremo-nos dos exemplos de Leonardo da Vinci e de Leibniz, ou de portugueses como Pedro Nunes, Garcia de Orta e D. João de Castro. Fácil é de notar como, para eles, as Humanidades ligavam todas as áreas do conhecimento, não de modo autossuficiente, mas como fatores de coordenação e exigência. A crise financeira de 2008 ou a crise pandémica de 2020-21 demonstraram como a lógica positivista da cultura científica falhou rotundamente, incapaz de distinguir realidade e ilusão, verdade e aparência. O racional e o razoável têm de se articular. E hoje a questão das alterações climáticas e o estado de emergência em que nos encontramos no domínio ambiental – deixaram de ser (com a pandemia) temas longínquos, já que as questões de sobrevivência da humanidade passaram a ser bem atuais e próximas de nós. Não há desenvolvimento sem aprendizagem de qualidade e sem a prioridade dada à educação, à ciência e à cultura. Por isso, o património cultural é cada vez mais fonte de criatividade e inovação, uma vez que nos permite entender o tempo nas sua diferentes dimensões, já que o passado projeta o futuro e as raízes são chaves para a compreensão sobre de onde vimos, quem somos e o que nos distingue dos outros… Numa sociedade de informação, devemos estar aptos a transformar informação em conhecimento e o conhecimento em sabedoria. T. S. Eliot disse “Where is the wisdom we have lost in knowledge? Where is the knowledge we have lost in information?” – Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”.
A IMPORTÂNCIA DA COMPLEXIDADE
A reflexão sobre a complexidade de Edgar Morin (que se aproxima de completar cem anos) leva-nos a entender a célebre afirmação de Pascal: «considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, mas tenho por não menos impossível a possibilidade de conhecer o todo sem conhecer singularmente as partes». Há, assim, um vai-e-vem em que se funda a diligência de conhecer. E é esta preocupação que nos permite articular o uno e o múltiplo, o próximo e o distante, a teoria e a experiência… De facto, a complexidade está no coração da relação entre o simples e o complexo porque uma tal relação é a um tempo antagónico e complementar. A ciência funda-se não só no consenso como no conflito. Ao mesmo tempo, evolui a partir de quatro colunas fundamentais: a racionalidade, o empirismo, a imaginação e a verificação. Sabemos que há um diferendo permanente entre o racionalismo e o empirismo. As novas descobertas empíricas e o experimentalismo foram pondo em causa, de diversas maneiras, as construções racionais – que permanentemente se reconstituem e reconstroem constantemente a partir de novos elementos e fatores. Ao salientarmos a importância das Humanidades, entendemos que a complexidade não é uma receita, mas um apelo à civilização das ideias. De facto, «a gigantesca crise planetária é a crise da humanidade que não consegue aceder à humanidade». Duas barbáries coexistem e agem sem contemplações: a que vem da noite dos tempos e usa a violência; e a barbárie moderna e fria da hegemonia do quantitativo, da técnica e do lucro. E ambas levam-nos ao abismo. Importa, pois, entender o que Hölderlin nos ensinou: «onde cresce o perigo, cresce também o que salva».
Três cientistas, dois homens e uma mulher, foram laureados com o prémio Nobel da Física de 2020, por provarem que os buracos negros existem.
Um buraco negro é tido como uma estrela morta, pode resultar do colapso de uma estrela maior que o sol, formando no espaço uma região tão compacta, que um corpo, lá caído, não tem modo de escapar do seu interior.
É uma superfície fechada aprisionada, sem retorno e sem luz, onde o espaço e o tempo ficam deformados, em que o tempo, como o conhecemos, para, não sendo suficientemente explicável pela teoria geral da relatividade de Einstein.
Para um observador, observando-o do exterior, um buraco é visto como negro porque nenhuma luz emite, nem a luz (a havê-la) consegue fugir do seu interior.
Há, por um lado, a sua singularidade interior desconhecida e, por outro, a sua observação exterior.
Se tem peso e ocupa espaço, é matéria, mas se nele o tempo cessa e não emite luz, provou-se que provoca efeitos, concluindo-se que no centro da Via Láctea há um buraco negro supermaciço, de quatro milhões de sóis, totalmente escuro e compacto, causa de incertezas: á volta do qual orbitam estrelas? Alimentando-as e produzindo matéria para produzir outros planetas, estrelas e galáxias? Transformando-as numa necrópole de estrelas mortas? Estrelas que morrem e não vão conseguir dar matéria para originarem outras estrelas, planetas e galáxias, gerando a morte fria do universo?
Presume-se que todas as galáxias têm um buraco negro no meio, girando tudo à volta do centro, como um carrossel cósmico.
A natureza está cheia de segredos escondidos, que escapam ao nosso modelo-padrão, à quantidade restrita de elementos que descrevemos e percecionamos.
Sabe-se que a colisão entre dois buracos negros maciços gerou a primeira prova de ondas gravitacionais, hoje tido como um fenómeno normal do universo.
Não podermos ter o prejulgamento ou a arrogância de que já conhecemos a história toda. De que apenas precisamos de confirmar a nossa, esta ou aquela teoria. Há tantas teorias que eram tidas como brilhantes, mas não confirmadas factualmente. Há que mudar de atitude, tendo presente que há um longo percurso entre o conhecimento e a experiência, entre a probabilidade de grandes descobertas e a garantia de que estejam garantidas.
A ciência pode investigar a natureza, mas é impossível tentar tornar compreensível o infinito.
Porque somos finitos e o infinito, por natureza, nos escapa.
Aceitando a incompletude, é assumir a incerteza que nos rodeia e a imperfeição que somos, sabendo antecipadamente que é humanamente utópico aceder a um saber completo quando olhamos para a terra e o céu.
Sabemos que o buraco e a sua matéria negra existem, que são necessários, mas desconhecemos a sua composição, inexistindo no modelo-padrão qualquer partícula que os possa descrever.
O QUADRADO NEGRO DE MALEVITCH
Em O Quadrado Negro sobre Fundo Branco (1913), de Malevitch, o branco e o negro, como cores, personificam a Terra no Universo, falando da vida e da morte, da luz e das trevas, esvoaçando o quadrado negro no espaço, não sujeito à força da gravidade, sinal de um cosmos ordenado ou de um buraco negro para o interior do qual foi sugada toda a matéria. E se é do branco que nascem as formas, o negro é um nada que representa o mundo inteiro, sendo do nada libertado, que vão nascer coisas. Também a linguagem artística, como expressão metafórica, quer ir mais além e ultrapassar toda a arte conhecida, num gradual avanço e permanente incerteza (ver texto nosso, neste blogue, As Artes e o Processo Criativo, VI - O Quadrado Negro de Malevitch).
Qualquer coisa imanente da natureza, da realidade, surge na representação figurativa deste Quadrado Negro sobre Fundo Branco, em paralelo com o/s buraco/s negro/s, numa antecipação metafórica da arte das descobertas atuais.
Se a incerteza e a imperfeição são claramente elementos da nossa substância, também o é a nossa debilidade, como o exemplifica a covid 19, um vírus que pode destruir qualquer pessoa na sua vida plena.
E se nós, humanos, somos frágeis e mortais, numa escala temporal de 80 a 90 ou 100 anos, planetas, estrelas, galáxias e buracos negros aparentam-se frágeis e podem desaparecer numa escala de milhares ou milhões de anos, indiciando-se partilharmos a mesma substância e mortalidade.
Têm outro horizonte de compreensão e, por isso, podem ajudar-nos no discernimento da presente hecatombe. Ambos muito conhecidos. Um é astrofísico, o outro é filósofo. Do alto do seu saber e da sabedoria que a idade, 88 e 98 anos, respectivamente, também dá, vale a pena ouvi-los. Foi o que fiz, pela intermediação de entrevistas que deram, a partir do seu confinamento.
1. O astrofísico é Hubert Reeves, que conversou com Luciana Leiderfarb para o Expresso. E que disse?
Constatou o facto: em casa, confinados, por causa de um vírus invisível. “A única coisa que não é clara para mim é se a poluição e a degradação do planeta a que estamos a assistir e a que chamamos a ‘sexta extinção’ estão ou não relacionadas com este vírus.” Embora não seja especialista na matéria, pensa que “está perto da verdade: a pandemia não foi causada directamente pela sexta extinção, mas indirectamente, facilitando as condições para o coronavírus se expandir tão depressa.”
De qualquer modo, somos muito maus a fazer antecipações: “Ninguém sabe do futuro. É a imprevisibilidade da realidade que quero destacar. A realidade é difícil de prever, e somos muito maus a fazê-lo.” Mas temos hoje excesso de poder que nem sempre queremos ou somos capazes de controlar, e aí está o perigo: “Temos duas formas de nos autodestruirmos: através de uma guerra nuclear ou da sexta extinção. Ambas podem eliminar-nos e dependem do nosso autocontrolo.”
A Natureza foi construindo estruturas. “E uma das suas obras-primas é a espécie humana. Somos provavelmente o nível mais alto de complexidade que conhecemos, a estrutura mais complexa do Universo.” A Humanidade trouxe ao mundo a cultura — Mozart, Van Gogh, um tipo de criatividade que desapareceria completamente se o ser humano fosse extinto —, a ciência — nenhuma outra espécie animal teria chegado à teoria da relatividade de Einstein —, e a compaixão — temos pulsões destrutivas, mas também temos compaixão, sofremos quando vemos pessoas a sofrer. “A Humanidade merece ser preservada.” Adverte, porém, que o ser humano é tremendamente poderoso, o mais poderoso, mas também o mais complicado e tanto somos capazes do melhor como do pior: tanto podemos fazer uma sinfonia de Beethoven ou construir a teoria da relatividade como uma bomba atómica ou a II Guerra Mundial. “Hoje sabe-se que a probabilidade de a actividade humana ser a principal causa do aquecimento global é de 99%” (Aqui, acrescento eu: por causa do confinamento, é um facto que, com a diminuição da intervenção antropogénica, se constata uma forte melhoria do meio ambiente). Também “sabemos que, se não nos adaptarmos ao ecossistema, em vez de continuarmos a forçá-lo a adaptar-se a nós, vamos desaparecer.” A nossa presença na Terra está ameaçada. Portanto, “a nossa responsabilidade agora é não destruirmos de vez a complexidade do planeta. Garantir que com o nosso comportamento não eliminamos a Humanidade.”
O aparecimento da vida e, concretamente do ser humano, na gigantesca história da evolução, continua envolto em mistério. Quais as condições presentes desde o início para que se desse esta aparição? “Vivemos ainda num grande mistério, sem conhecimento do que se passou entre o início e agora e sem fazermos ideia sobre se houve um antes e se haverá um depois.” Uma questão muito debatida entre os cientistas, mas “aqueles que possuem uma crença religiosa não têm qualquer problema em relação a isso, porque a resposta é Deus.” Perguntado sobre se acredita em Deus, responde: “Tenho muitas perguntas sobre Deus. Mas não sei o que Deus é. Para mim, é um assunto importante, mas relativamente ao qual não cheguei a nenhuma certeza.” Aqui, digo eu: também o crente não tem certeza, tem fé, com razões, e é razoável acreditar. Sobre se é possível conciliar ciência e religião, Reeves reconhece que “são duas actividades diferentes da mente”, que tem dois domínios, sendo um o conhecimento — “aprender, saber como as coisas são, como funciona o mundo” — e o outro o do valor. Dá um exemplo: a ciência diz como fazer a bomba atómica, mas não pode dizer se devemos ou não fazê-la, pois isso já é do domínio do valor, no qual se inclui a filosofia e a religião. ”Enquanto a ciência pergunta: ‘o que é, como funciona?’, a religião questiona: ‘é bom ou mau?’. Este é um assunto na ordem do dia, na medida em que, cada vez mais se coloca a questão da aplicabilidade da ciência e das suas fronteiras éticas.”
À pergunta da jornalista: “O que é que ainda o surpreende? O que é que o emociona?”, responde: “A amizade, o amor, a música. Ouço música o dia todo. Não há nada mais elevado. As salas de concerto são as minhas igrejas. É o lugar onde sinto que existe algo maior do que eu.”
Envolvido pelo espanto, pelo maravilhamento perante o Universo e a sua história, sabe que a sua vida roça “o seu limite perigoso” e, por isso, não se deita antes da uma ou duas da madrugada. “Tenho esta ideia de, até onde a saúde mo permitir, não querer desperdiçar o tempo a dormir.”
2. Edgar Morin é filósofo e sociólogo e continua a surpreender-me, agora confinado, com mais uma entrevista concedida ao jornalista Francis Lecompte para o sítio Cnrs. Le journal, que colocou como título para a conversa que teve: “Edgar Morin: Temos de viver com a incerteza”.
Uma mensagem principal desta pandemia é que derrubou a nossa sensação de omnipotência e pôs em causa a relação com a ciência, que se pretendia omnisciente. Diz Edgar Morin: “O que me impressiona é que grande parte do público via a ciência como o repertório de verdades absolutas, afirmações irrefutáveis.” Afinal, observámos que os cientistas convocados pelo poder político “defendiam pontos de vista muito diferentes e, às vezes, contraditórios, e isso nas medidas a ser adoptadas, nos possíveis novos remédios para responder à emergência, na validade deste ou daquele medicamento, na duração dos ensaios clínicos a realizar.” Parece que mesmo entre os cientistas poucos leram, por exemplo, Karl Popper, que estabeleceu que uma teoria só é científica se for refutável, portanto, o critério de cientificidade de uma teoria é a sua refutabilidade, ou Gaston Bachelard, ao colocar o problema da complexidade do conhecimento, ou Thomas Kuhn, ao estabelecer, com a sua teoria dos paradigmas, que “a história das ciências é um processo descontínuo”.
“O facto de hoje estarmos a falar do coronavírus era completamente desconhecido há um ano”, afirma Reeves. E Edgar Morin confirma: nesta crise do coronavírus, o impressionante é que “não temos ainda nenhuma certeza sobre a própria origem desse vírus nem sobre as suas diferentes formas, as populações que ataca, os seus graus de nocividade. Nós estamos igualmente a passar por uma grande incerteza sobre todas as consequências da epidemia em todos os domínios, sociais, económicas, etc.”. Aqui, acrescento eu: A China portou-se da pior maneira ao não alertar atempadamente o mundo e continua a manifestar má consciência ao impedir estudos e investigações internacionais independentes sobre precisamente a origem da pandemia.
O paradoxo é este: por um lado, estamos todos à espera de que a ciência, através de medicamentos, através de uma vacina, nos liberte do pesadelo; por outro, não sabemos e temos de conviver com a incerteza. Edgar Morin espera que a presente crise sirva para “revelar como a ciência é uma coisa mais complexa do que se quer crer. É uma realidade humana que, como a democracia, assenta sobre os debates de ideias, embora os seus modos de verificação sejam mais rigorosos.” Temos de aceitar as incertezas e viver com elas, “quando a nossa civilização nos inculcou a necessidade de certezas cada vez mais numerosas sobre o futuro, muitas vezes ilusórias, por vezes frívolas. A chegada deste vírus deve lembrar-nos que a incerteza permanece um elemento inexpugnável da condição humana. Nenhum seguro social que possamos fazer será capaz de nos garantir que não vamos adoecer ou que seremos felizes. Tentamos cercar-nos com o máximo de certezas, mas viver é navegar num mar de incertezas, através de ilhotas e arquipélagos de certezas nos quais nos reabastecemos.”
O jornalista: “É a sua própria regra de vida?” Edgar Morin: “É sobretudo o resultado da minha experiência. Assisti a tantos e tantos acontecimentos imprevistos na minha vida que isso faz parte da minha maneira de ser. Não vivo na angústia permanente, mas estou à espera de que surjam acontecimentos mais ou menos catastróficos. Não digo que previ a epidemia actual, mas digo, por exemplo, que há vários anos que, atendendo à degradação da nossa bioesfera, nos devíamos preparar para catástrofes. Isso faz parte da minha filosofia: ‘Espera o inesperado’.” Aliás, desde que na década de 60 li Martin Heidegger, apercebi-me de que vivemos na era planetária e a globalização é um processo que poderia trazer benefícios e também danos. “Também observo que o desencadeamento descontrolado do desenvolvimento tecno-económico, animado por uma sede ilimitada de lucro e favorecido por uma política neoliberal generalizada, se tornou prejudicial e provoca crises de todos os tipos. A partir desse momento, estou intelectualmente preparado para enfrentar o inesperado, para enfrentar as convulsões.”
Edgar Morin confessa satisfação porque, desde o seu primeiro discurso sobre a crise, o Presidente Macron até mencionou a possibilidade de mudar o modelo de desenvolvimento. Significa que caminhamos para uma mudança económica? Resposta: “O nosso sistema baseado na competitividade e na rentabilidade tem muitas vezes graves consequências nas condições de trabalho. A prática massiva do teletrabalho por causa do confinamento das empresas pode contribuir para mudar o funcionamento das empresas ainda muito hierárquicas ou autoritárias. A crise actual pode acelerar também o regresso à produção local e o abandono de toda a indústria do descartável, dando assim trabalho aos artesãos e ao comércio de proximidade.”
E vamos passar também para uma mudança política, na qual “as relações entre o indivíduo e o colectivo se transformam?”
Resposta: “O interesse individual dominava tudo, mas agora as solidariedades estão a despertar”, e dá o exemplo do mundo hospitalar. Infelizmente, não podemos falar de um despertar da solidariedade humana ou planetária. No entanto, já éramos seres humanos de todos os países, confrontados com os mesmos problemas no que se refere à degradação do meio ambiente ou ao cinismo económico. Mas, hoje, da Nigéria à Nova Zelândia, encontramo-nos todos confinados e deveríamos tomar consciência de que os nossos destinos estão ligados, queiramos ou não. Seria, portanto, o momento para refrescar o nosso humanismo, pois, enquanto não virmos a Humanidade como uma comunidade de destino, não poderemos pressionar os governos a agir num sentido inovador.”
O jornalista: E agora, passando longos períodos de confinamento, o que é que a Filosofia nos poderia ensinar?
Edgar Morin: “É verdade que para muitos de nós que vivemos uma grande parte da nossa vida fora de casa este confinamento brusco pode representar um incómodo terrível. Mas penso que pode ser uma ocasião para reflectir, perguntar o que, na nossa vida, é frívolo ou inútil. Não digo que a sabedoria é permanecer toda a vida num quarto, mas, para dar um exemplo: pensando apenas no nosso modo de consumo e de alimentação, é talvez o momento de nos desfazermos de toda esta cultura industrial, cujos vícios conhecemos, o momento para nos desintoxicarmos. É também a ocasião para tomarmos consciência de modo duradouro dessas verdades humanas, que todos conhecemos, mas que estão recalcadas no nosso subconsciente: o amor, a amizade, a comunhão, a solidariedade, que fazem a qualidade da vida.”
3. Fica uma pergunta imensa, mas essencial: Quando terminar a hecatombe, teremos ao menos aprendido onde está o essencial? Ou voltaremos à vertigem do ter, esquecendo o ser?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 10 MAI 2020
Poucos dias antes de nos deixar, Maria de Sousa (1939-2020) escreveu o poema “Carta de Amor numa Pandemia Vírica”, que aqui reproduzimos integralmente na invocação de uma cientista que amava as artes, a poesia, a literatura, a filosofia, a música e a cultura.
A CIÊNCIA E A CULTURA DE MÃOS DADAS Maria de Sousa foi uma médica, bióloga e mulher de cultura e de ciência de exceção, que nos deixou vítima do terrível vírus que nos assola. Lembramo-nos do seu livro “Meu Dito, Meu Escrito” (Gradiva, 2014), onde se encontra a força e a alegria da sua personalidade única. Era Professora Emérita da Universidade do Porto e fez um brilhante percurso internacional no Reino Unido (onde foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian) e nos Estados Unidos. Encontrei sempre em Maria de Sousa, que conheci em 1985, o genuíno entusiasmo de quem procura em cada momento o modo de chegar à dignidade humana pela vida, pelas ideias, pelo entendimento da complexidade, pela compreensão de que a descoberta corresponde ao sentido crítico e ao permanente inconformismo. Daí dar tanta importância ao desassossego, que nos leva ao exemplo, à aprendizagem e à experiência. Em 1966 tornou-se notada ao publicar no “Journal of Experimental Medicine” e na “Nature” dois artigos relatando descobertas fundamentais em imunologia na sequência de estudos realizados nos laboratórios do “Experimental Biology do Imperial Cancer Research Fund” em Mill Hill (Londres). Numa notável entrevista a Anabela Mota Ribeiro, explicou, com uma grande simplicidade, o que fez nesse tempo: «Creio que todos saberão que temos linfócitos a circular. O que muitos não saberão é que os linfócitos não são uma população homogénea, com a mesma pátria. Uns nasceram no timo e saíram para a circulação no período a seguir à nascença, outros fora do timo, na medula óssea. Essa distinção não era clara em 1964. Ainda se pensava que talvez viessem todos do timo. O meu trabalho consistiu na observação de lâminas de cortes de órgãos linfáticos periféricos de ratinhos que tinham tido o timo removido no período neonatal. As minhas observações demonstravam que esses animais timectomizados à nascença ainda tinham linfócitos. E mais, os espaços vazios de linfócitos eram distintos dos espaços onde havia linfócitos, o que significava que as células pareciam saber para onde ir. Isso foi posteriormente demonstrado como uma técnica importante, a autoradiografia, que permitia seguir células marcadas. As do timo iam para o território a que chamámos área dependente do timo (tda) e que hoje é conhecida por Área T. E achei esse fenómeno de as células saberem para onde vão tão importante que lhe dei (em 1971) um nome: Ecotaxis».
REGRESSADA A PORTUGAL Quando regressou a Portugal, desempenhou um papel fundamental na Universidade do Porto, no Instituto Abel Salazar, mas também, ao lado de José Mariano Gago no lançamento da política científica nacional. Como afirmou Manuel Valsassina Heitor: «Foi com a Maria de Sousa, com Fernando Lopes da Silva, que aprendemos a ser sujeitos em Portugal a avaliação científica independente, quando José Mariano Gago era presidente da JNICT no final dos anos 1980. Inicialmente testada para as ciências da vida sob a liderança da Maria, esta prática que hoje nos parece tão óbvia, só viria a ser alargada a todas as outras áreas científicas há 25 anos, com a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia». Não por acaso, Maria de Sousa citava muitas vezes o grande Garcia de Orta: «O que sabemos é a mais pequena parte do que ignoramos». E entendamos que se trata de um verdadeiro programa de vida e de conhecimento. Só essa atitude nos permite compreender como o espírito científico é uma busca permanente, de insatisfação, de persistência, de tentativa e erro, de regresso constante ao que podemos saber mais. Quando morreu o nosso comum amigo José Mariano, a Maria de Sousa, grande leitora e amante de poesia e de arte, escreveu: «Há os que passam e os que ficam / Há os que ficam onde os seus restos mortais ficarem ou cinzas forem dispersas / Há os que ficam nos que lhes são mais próximos: amores, filhos, mãe, amigos, mulher, etc. / Há os que ficam em muitos outros desconhecidos / Há em geral espaços em que todos ficamos mortos / Mas no tempo, na transformação do tempo / Só um ou outro raro e belíssimos no fazer e no fazer-se / Ficará. / Como este assim / Que será sempre encontrado no tempo todo / Na história da ciência na Europa / E neste nosso país / Transformando o nosso tempo/ Transformando-nos pelo seu Fazer / No Seu Fazer-se». E podemos dizer que nestas belíssimas palavras, encontramos facilmente também a sua autora, uma vez que, de facto, entendeu “o tempo todo”, compreendendo que nos transformamos pelo que fez no sentido do que fazemos.
SABIA MUITO E EXPLICAVA BEM Francisco Pinto Balsemão recordou, aliás, no “Expresso”, as extraordinárias qualidades de quem “sabia e sabia muito e explicava bem” e sobretudo que não havia domínio da cultura que lhe fosse estranho. Sou testemunha pessoal disso mesmo. E se era uma pessoa de esperança, era-o de fino humor, mas sobretudo de querer e de esperança, como fica bem evidente no último poema que escreveu:
«Carta de amor numa pandemia vírica.
Gaitas-de-fole tocadas na Escócia / Tenores cantam das varandas em Itália / Os mortos não os ouvirão / E os vivos querem chorar os seus mortos em silêncio / Quem pretendem animar? / As crianças? / Mas as crianças também estão a morrer / Na minha circunstância / Posso morrer / Perguntando-me se vos irei ver de novo / Mas antes de morrer / Quero que saibam / O quanto gosto de vós / O quanto me preocupo convosco / O quanto recordo os momentos partilhados e queridos/ Momentos então / Eternidades agora / Poesia / Riso / O sol-pôr / no mar / A pena que a gaivota levou à nossa mesa / Pequeno-almoço / Botões de punho de oiro / A magnólia / O hospital / Meias pijamas e outras coisas acauteladas / Tudo momentos então / Eternidades agora / Porque posso morrer e vós tereis de viver / Na vossa vida a esperança da minha duração.
3 de abril de 2020».
Onze dias depois, apenas, deixou-nos, recordando a plena vitalidade e o apego à vida que se comunica em permanência. E assim a sua memória está bem viva, como exemplo e como apelo a que a educação e a ciência de mãos dadas possam criar vias de esperança, sobretudo neste momento de incerteza e perplexidade. Como disse Sófocles: “Inúmeras são no mundo as maravilhas, mas nenhuma que ao homem se compare. É o ser dos recursos infindáveis”.
46. UMA CONCEÇÃO HUMANISTA E INTERNACIONAL DE CIÊNCIA
Se a ciência do Renascimento tinha como caraterísticas dominantes a observação, a experiência e o método experimental, também a do século XIX e XX se baseia na convicção de que o ser humano está sujeito às mesmas leis físicas que regem o universo e de que o método experimental é aplicável aos vários ramos da ciência e do pensamento humano.
A ciência era e é tida como obra da humanidade, com benefícios extensivos a todos, sem nacionalismos nem disputas pessoais.
Testemunho presente desta conceção humanista e internacional da ciência, é o testamento do sueco Alfredo Nobel que, em 1896, deixou a sua fortuna a uma instituição incumbida de distribuir todos os anos cinco prémios às cinco pessoas que no decurso do ano prestassem maiores serviços à humanidade.
Pessoas a premiar: “a quem no domínio da física tenha feito a descoberta ou invento mais importante”, “a quem na química tenha feito a descoberta mais importante ou chegado a maior aperfeiçoamento”, “ao autor da mais importante descoberta no domínio da fisiologia ou da medicina”, “ao que tenha produzido a obra literária mais notável no sentido do idealismo” e ao “que tenha feito mais ou melhor para a obra da fraternidade dos povos, para a supressão dos armamentos, assim como para a formação ou propagação dos congressos da paz”.
Químico inventor da dinamite, Nobel morreu magoado com o uso dos seus inventos para fins belicistas, ordenando que, após a sua morte, fosse feita a entrega de cinco prémios em física, química, medicina, literatura e para quem contribuísse de modo decisivo para a paz mundial (o prémio na área da economia foi criado, em 1969, em sua memória).
É o exemplo de mais um cientista para quem o seu trabalho não foi só felicidade pelo facto de a ciência ser progressiva, poderosa e inquestionável para si e os leigos em geral, acabando por colocar no mesmo patamar, e em pé de igualdade, ciências exatas, humanas e sociais.
Alfredo Nobel apercebeu-se, por experiência própria, que enquanto a ciência evoluía, dominando a natureza e vencendo obstáculos, a inteligência humana procurava novas técnicas para se destruir, com o aparecimento de novas armas de destruição e um agudizar da guerra e conflitos bélicos.
Curioso, nesta sequência, que premiasse a medicina, a literatura e a paz como contributos que podem humanizar o poder destruidor da ciência e da tecnologia, não desvalorizando ou vaticinando a hecatombe das humanidades, ao invés de quem elogia e diviniza as ciências exatas.
É uma conceção de um cientista para quem o pesadelo de George Orwell, de uma ditadura tecnológica, com um controlo total da vida das pessoas, num mundo de cidadãos convertidos em autómatos, é de evitar através do não desaparecimento da cultura como questionamento permanente da realidade, agudizado se houver uma degradação das humanidades e do seu espírito crítico.
Reduzir a ciência apenas a uma sua parte, desprezando ou ignorando o estudo das múltiplas ciências que estudam toda a complexidade humana, é não só uma forma de incultura, mas também um modo de fugirmos da realidade e vivermos num mundo virtual.