Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
A morte de Bernard Manin (1951-2024), mestre indiscutível da ciência política moderna, com fecunda obra produzida na Europa e nos Estados Unidos e um reconhecimento geral, coincidem com a conjuntura complexa que atravessamos. E pode dizer-se que as suas lições são fundamentais para agora, devendo estar bem presentes para que não continuemos a viver uma perigosa letargia animada pela repetição de estranhos lugares-comuns. Não podemos cruzar os braços perante a erosão da democracia. Por isso, o seu livro Principes du gouvernement représentatif (Calmain-Lévy, 1995) merece releitura atenta. Fala-nos das invenções institucionais experimentadas pelas três revoluções modernas inglesa, norte-americana e francesa e renovou significativamente a compreensão da democracia representativa, centrando-se no consentimento dos cidadãos, diferentemente da democracia ateniense até às repúblicas italianas da Renascença, em que o tirar à sorte correspondia ao método igualitário por excelência. A prevalência da legitimidade do voto concede à decisão popular uma legitimidade aristocrática, a que se juntam os princípios do governo representativo: eleição periódica dos governantes pelos governados, ausência de mandatos imperativos, liberdade da opinião pública e decisão pública depois de confronto e discussão de ideias. É a plasticidade destes princípios que permite a adaptação da democracia às transformações sociais. As investigações de Bernard Manin decorrem de um método muito pertinente: estudar os discursos e as práticas do passado para fazerem luz sobre o presente.
Com a releitura dos pensadores clássicos e a análise das instituições políticas, encontramos as bases para a descoberta de caminhos que visam ultrapassar a atual crise da democracia. Dois são os modelos de limitação do poder de que parte – a limitação pela regra ou pela delimitação de esferas de competência e a limitação pelo equilíbrio de poderes. Estudioso profundo de Montesquieu e da sua atualidade, opôs no plano filosófico o liberalismo monista, na linha de Hayek, e um liberalismo pluralista, na linha de Isaiah Berlin. Assim, pôde ler o autor das Cartas Persas considerando os riscos atuais das autocracias e das novas tendências para a concentração de poderes, sob influência económica e tecnológica. Dir-se-ia que no horizonte se desenham sombras preocupantes de um novo despotismo oriental, sob vestes inesperadas, mas igualmente perturbadoras. Aliás, a última obra, ainda inédita, que nos deixou sobre a quarta feira.Revolução francesa e as origens do Terror, Un Voile sur la Liberté, deverá revelar importantes pistas de reflexão para o tempo atual. É impressionante a atualidade das reflexões que Bernard Manin nos deixou, designadamente quanto ao compromisso social-democrata e sobre a sua perenidade, com Alain Bergounioux – ligando a legitimidade da lei e do voto e a legitimidade do exercício e da justiça e pondo a tónica na ideia de deliberação política. Daí ainda a importância da análise dos dispositivos constitucionais de natureza excecional, comparando a ditadura romana, o estado de sítio, a suspensão do habeas corpus e a lei marcial, no contexto da abolição provisória da ordem constitucional. De facto, a democracia como sistema de valores, centrados na dignidade humana e na salvaguarda da liberdade e dos direitos fundamentais, apenas pode afirmar-se plenamente se o primado da lei for servido pelo compromisso dos cidadãos e pela limitação do poder.
António Cândido Ribeiro da Costa (1850-1922) foi um dos mais brilhantes parlamentares do século XIX, um dos fundadores da moderna Ciência Política em Portugal.
“ÁGUIA DO MARÃO” Amarante recorda neste ano não só Agustina Bessa-Luís, que há duas semanas foi capa da prestigiada “Babelia”, suplemento literário de “El Pais”, mas também lembra a figura do célebre orador parlamentar e orador sagrado, António Cândido Ribeiro da Costa (1850-1922). É essencial referir o nome de família, como costumava lembrar o ensaísta brasileiro António Cândido de Mello e Souza, por causa das trocas bibliográficas pela coincidência de nome próprio. Hoje, invoco a memória do amarantino, que deixou, ao longo da vida, um rasto de prestígio e de exemplaridade. Filho do presbítero na igreja de S. Cristóvão de Candemil, José Joaquim da Costa Pinheiro, que assumiu a paternidade do filho em testamento publicitado depois da sua morte, António Cândido revelou desde muito cedo extraordinárias qualidades intelectuais. Começou por ser destinado, por vontade do pai, aos estudos teológicos, no Seminário Conciliar de S. Pedro em Braga, que completou com brilhantismo (1867-1870). Em consequência, foi ordenado clérigo. Pouco depois da ordenação, em outubro de 1871, matriculou-se no curso de Direito na Universidade de Coimbra, concluindo o bacharelato em 1877 com brilhantismo. De um modo natural, e na sequência da notoriedade alcançada, prestou, no ano seguinte, provas para Doutor, com grande sucesso, sendo nomeado lente-substituto (1881) e, depois, catedrático (1891).
Cultor dotadíssimo da Oratória, destacou-se logo no ministério canónico, para em seguida se revelar como exemplar no mundo do Direito e na Política. Ainda como orador sagrado destacou-se, aliás, nos discursos proferidos nas solenes exéquias do Duque de Loulé, na Sé de Coimbra (1875) e, sobretudo nas de Alexandre Herculano na Igreja da Lapa, no Porto (13 de novembro de 1877). Anote-se que estes ofícios religiosos do autor de A Voz do Profeta foram rodeados de complexas negociações, em virtude das posições críticas assumidas pelo historiador relativamente à Igreja, apesar de nunca ter escondido a sua religiosidade pessoal. Quando hoje lemos a oração da Igreja da Lapa, compreendemos o elogio exemplar à figura moral de cidadão, mas também ao estudioso que marcou decisivamente a moderna historiografia portuguesa. “Diante dos seus livros erga-se a posteridade, e jugue-os com desassombro; têm, não podiam deixar de ter, a par de grandes verdades e de muitíssimas belezas, erros e imperfeições; mas diante do seu porte austero, da sua honra imaculada, da sua vida honesta e sóbria, da intemerata moralidade dos seus costumes, da genial franqueza da sua alma, da rude mas simpática tempera da sua palavra, quer a dirigisse aos reis a quem servia, quer a endereçasse ao povo de quem mais era, - curvem-se respeitosos os homens de boa vontade E se um dia o nosso país quiser representar nas formas da estatuária a dignidade cívica, modele o vulto de Herculano em bronze”. Desses dotes de palavra vem a alcunha de “Águia do Marão”, que Camilo Castelo Branco popularizou, com evidente aplauso geral. O seu exemplo ombreia com os deputados José Estevão e Almeida Garrett.
CULTOR PIONEIRO DA CIÊNCIA POLÍTICA O seu empenhamento na vida política manifesta-se muito cedo, sendo de destacar a importância fundamental da sua obra-maior Princípios e Questões de Filosofia Política (em dois volumes), onde estão publicados dois notáveis ensaios – “Condições Científicas do Direito do Sufrágio” (dissertação de doutoramento) e “Lista Múltipla e Voto Uninominal” (trabalho apresentado no concurso para lente substituto). Neste texto, de uma importância crucial, o autor defende a universalização do voto, os círculos uninominais e a representação proporcional. Trata-se de um ensaio fundador da Ciência Política em Portugal, que Oliveira Martins considera como um texto referencial na obra Política e Economia Nacional, que constituiu o manifesto do movimento da “Vida Nova”. No campo jurídico, ganhou o respeito e a admiração dos seus pares, em especial nos domínios do Direito Penal e do Direito Administrativo. Contudo, não seguirá o magistério docente, como primeira prioridade da sua vida, preferindo orientar a sua ação essencialmente para o Ministério Público – tendo sido ajudante de Procurador-Geral da Coroa (a partir de 1886 e até 1898) e Procurador-Geral da Coroa e Fazenda (desde 1898), abandonando em 1904 a carreira académica. Foi membro do Instituto de Coimbra, sócio efetivo e Vice-Presidente da Academia das Ciências de Lisboa (1898), tendo sido agraciado com a Grã-Cruz de Santiago de Espada (1900) e com as insígnias da Ordem de Carlos III, de Espanha.
A entrada na política partidária de António Cândido faz-se no Partido Histórico, ainda que só depois do Pacto da Granja e da criação do Partido Progressista (1876) a sua ação passe a ser muito notada. Logo na primeira reunião geral do partido de Braamcamp faz um esplêndido discurso, calorosamente aplaudido. Em 1881 já é membro da Comissão Executiva do Partido e em 1885 torna-se um dos defensores da renovação progressista, aproximando-se do grupo da “Vida Nova”, criado em torno de Oliveira Martins. Foi deputado – em 1879, por Amarante; em 1884, por Coimbra; e em 1887, por Aveiro e ainda Par do Reino (1891), Presidente da Câmara dos Pares (1905), Ministro e Conselheiro de Estado. Foi titular da Pasta do Reino no governo independente de João Crisóstomo de Abreu e Sousa (1890-91), cabendo-lhe a intervenção aquando da revolta do Porto de 31 de janeiro de 1891. Os republicanos acusá-lo-iam da ação repressiva, apesar de alguns dos seus correligionários considerarem brandas as decisões.
CIDADÃO EXEMPLAR Como parlamentar, António Cândido singularizou-se pela solidez da argumentação, pela grande cultura e segurança jurídica, pela elegância do estilo e pela voz pausada e cristalina. São célebres alguns dos seus discursos, como o de 11 de março de 1880 em matéria orçamental e financeira, onde afirma ser “a questão da Fazenda a questão máxima da política portuguesa”. Defendeu o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, em nome da personalização e da justiça distributiva, bem como do combate à evasão tributária. Em janeiro de 1881, salientou a importância da alternância do poder e reclamou um espírito reformista – pois “o melhor meio de conservar as instituições é afeiçoá-las ao tempo, que na sua corrente impetuosa, irresistível, mata sempre o que não pode transformar”. Em 1885, foi muito elogiada a forma determinada como afrontou o Presidente do Conselho, António Maria Fontes Pereira de Melo – o que não o impediu, dois anos depois, de fazer um sentido elogio às qualidades do estadista que acabava de morrer. Em discordância com José Luciano de Castro, afastou-se do Partido Progressista em 1888 – num trajeto semelhante ao dos seus colegas do grupo designado como dos “Vencidos da Vida”, com Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, Carlos Mayer, Carlos Lobo d’Ávila, Conde de Ficalho, Conde de Arnoso, Conde de Sabugosa e Marquês de Soveral, de que foi um dos elementos proeminentes. Viria, no entanto, a reconciliar-se com os Progressistas em 1894. Depois de 1910, com a implantação da República, retirou-se da vida política. Em 1918, ainda chegou a ser sondado durante o consulado de Sidónio Pais para se candidatar a deputado numa lista monárquica, mas declinou o convite. Até ao fim da vida gozou de generalizado apreço e admiração.