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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


149. INTERDEPENDÊNCIAS DAS VÁRIAS VERTENTES DO CONHECIMENTO


Sobressai a ideia de haver uma interação virtuosa de todas as vertentes do conhecimento, baseada num novo paradigma científico, que inclui tanto as ditas “ciências duras” (aplicadas ou exatas), como as chamadas “ciências puras” (ciências humanas e sociais), por oposição à ideia segundo a qual as artes, humanidades e ciências sociais são subsídio-dependentes, enviesadas de subjetividade e, em última análise, “inúteis”.    

Contrariando uma versão restrita e simplista, que tem o cerne da “funcionalidade” e “utilidade” de todas as ciências no ganho económico imediato e a curto prazo no mercado, tem-se vindo a alargar a valorização da criatividade e da intuição no núcleo duro do pensamento científico, como elementos essenciais de inovação, em que, por exemplo, recentes progressos da neurociência demonstram que as circunvalações cerebrais ligadas à perceção auditiva não são estáveis, reconfigurando-se caso a caso pelos vários padrões que condicionam essa experiência, em que o hardware cerebral é, impreterivelmente, reformatado pelo software da experiência artística, havendo uma interdependência dinâmica da ciência e da cultura.

Retornando às neurociências e à distribuição dos processos cognitivos entre os dois hemisférios cerebrais, conclui-se que o pensamento linear, a sequenciação lógica, a formulação de modelos simétricos e a aquisição e gestão sistemáticas de informação estão no hemisfério esquerdo, enquanto a criatividade, a descoberta, a invenção, a surpresa e a associação instintiva se localizam no hemisfério direito, provando a interpenetração entre ambos os hemisférios e, concomitantemente, entre as ciências aplicadas e “duras” e as humanas e sociais, sendo erróneo maximizar as funções cerebrais do lado esquerdo face às do lado direito.

A própria lei da oferta e da procura e o valor de mercado de cada novo produto não depende apenas da sua estrita funcionalidade e utilidade, mas também de um conjunto de fatores relacionados com a criatividade, mais-valia e valor acrescentado gerados por várias dimensões contextuais e simbólicas, como a história, os costumes e a tradição renovados, a estética, a empatia, o design, o cromatismo, o jogo, a mensagem, o significado.  

Nas sociedades mais desenvolvidas e inovadoras, é cada vez mais notório que não há ciências “duras” sem Ciências “puras”, havendo uma permanente interação entre ambas, não havendo indústrias culturais dinâmicas sem anterior experimentação estética de topo, patentes comerciais sem prévia investigação que as viabilize. 

Muitos, se não mesmo a maioria, dos mais prestigiados protagonistas do mundo da ciência e da tecnologia caraterizam-se por terem tido, em paralelo com a sua atividade e saber estritamente científico, uma grande curiosidade, estima e dedicação pela criação artística e literária, pelas humanidades e artes em geral, incluindo o social, desde Leonardo de Vinci, Copérnico, Galileu, Kepler, Morse, Einstein (entre nós, por exemplo, Pedro Nunes e Damião de Góis, alargando e modificando o conhecimento, com o espírito e consequências científicas dos descobrimentos), tendo-se o pensamento criativo e crítico como transversal a toda a ciência e cultura.

“Um homem apenas médico, não é médico”, eis uma afirmação do médico, professor e investigador Abel Salazar, que sintetiza bem a interação das diversas facetas do conhecimento.


08.09.23
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

Stanley Fish - Flickr_Cardozo School of Law.jpg

 

148.   A CRISE DAS CIÊNCIAS HUMANAS

 

Aquando de uma recente estadia em Lisboa, para participar numa conferência na Faculdade de Letras, o académico e teórico norte-americano Stanley Fish, em entrevista ao Público, manifestou a sua descrença nas ciências humanas, nos seguintes termos:

“Pergunta:  - Outro dos temas acerca dos quais tem escrito bastante é sobre a crise das ciências humanas. Acha que é possível, depois de tudo o que temos assistido, recuperar de alguma forma a confiança nas humanidades?

Resposta: - Não me parece. Antes, pensava-se que aqueles que desejavam ser bem-sucedidos no mundo dos negócios, no mundo jurídico, que queriam ser líderes ou ter uma participação forte em qualquer dessas conversas teriam de saber reconhecer uma citação de Shakespeare ou Sartre. Para serem reconhecidos, tinham de frequentar o mesmo tipo de escolas e divertirem-se nos mesmos tipos de jantares. A chamada língua franca dessa elite era a partilha de um quadro de referências culturais. Isso desapareceu. Não se ganham pontos fora da academia por se citar um poeta ou uma figura mitológica, por se remontar a algo dito por Platão, por Sócrates ou por Aristóteles. Quem esperar isso vai ser olhado como um lunático. (…)

Pergunta: - O que veio substituir isso?

Resposta: - A competência tecnológica, a capacidade de efetuar operações difíceis no mundo da estatística e dos computadores. Aquilo a que nos EUA se chama “tech savvy” substituiu o valor cultural de estar profundamente enraizado nas velhas transições de aprendizagem e não vejo, de momento, como inverter isso, e com todo o discurso à volta da inteligência artificial acho que vai simplesmente ficar fortalecido.”

Este discurso pessimista, consciente ou não - mesmo não o referindo em termos explícitos - tem a utilidade económica imediata e a empregabilidade potencial como critério preferencial do que é útil ou inútil, indo de encontro aos que têm tais ciências   como antiguidades, tempos idos perdidos que não voltam, atividades de mera autocontemplação e gratificação, elitistas e subsídio-dependentes, desprovidas de valor social e não geradoras de patentes potencialmente lucrativas.

Pretende-se reimplantar a ancestral hierarquia dos saberes a partir de raciocínios fundados numa pretensa utilidade económica, priorizando essencialmente ou apenas as ciências aplicadas, com prejuízo estrutural e sistemático das ciências humanas ou “puras” tidas, por definição, nesta perspetiva, um fim em si mesmas e, como tal, economicamente improdutivas.

Devem privilegiar-se as “indústrias culturais” de impacto público, geradoras de dividendos económicos e mais-valias e não as vanguardas artísticas experimentais?

Será que as ciências, no seu todo, incluindo as aplicadas, humanas (sem excluir as sociais), “puras” e “duras”, não são transversais à reflexão, criatividade e interação?

 

(Continua …)

01.09.23
Joaquim M. M. Patrício