CRÓNICAS PLURICULTURAIS
149. INTERDEPENDÊNCIAS DAS VÁRIAS VERTENTES DO CONHECIMENTO
Sobressai a ideia de haver uma interação virtuosa de todas as vertentes do conhecimento, baseada num novo paradigma científico, que inclui tanto as ditas “ciências duras” (aplicadas ou exatas), como as chamadas “ciências puras” (ciências humanas e sociais), por oposição à ideia segundo a qual as artes, humanidades e ciências sociais são subsídio-dependentes, enviesadas de subjetividade e, em última análise, “inúteis”.
Contrariando uma versão restrita e simplista, que tem o cerne da “funcionalidade” e “utilidade” de todas as ciências no ganho económico imediato e a curto prazo no mercado, tem-se vindo a alargar a valorização da criatividade e da intuição no núcleo duro do pensamento científico, como elementos essenciais de inovação, em que, por exemplo, recentes progressos da neurociência demonstram que as circunvalações cerebrais ligadas à perceção auditiva não são estáveis, reconfigurando-se caso a caso pelos vários padrões que condicionam essa experiência, em que o hardware cerebral é, impreterivelmente, reformatado pelo software da experiência artística, havendo uma interdependência dinâmica da ciência e da cultura.
Retornando às neurociências e à distribuição dos processos cognitivos entre os dois hemisférios cerebrais, conclui-se que o pensamento linear, a sequenciação lógica, a formulação de modelos simétricos e a aquisição e gestão sistemáticas de informação estão no hemisfério esquerdo, enquanto a criatividade, a descoberta, a invenção, a surpresa e a associação instintiva se localizam no hemisfério direito, provando a interpenetração entre ambos os hemisférios e, concomitantemente, entre as ciências aplicadas e “duras” e as humanas e sociais, sendo erróneo maximizar as funções cerebrais do lado esquerdo face às do lado direito.
A própria lei da oferta e da procura e o valor de mercado de cada novo produto não depende apenas da sua estrita funcionalidade e utilidade, mas também de um conjunto de fatores relacionados com a criatividade, mais-valia e valor acrescentado gerados por várias dimensões contextuais e simbólicas, como a história, os costumes e a tradição renovados, a estética, a empatia, o design, o cromatismo, o jogo, a mensagem, o significado.
Nas sociedades mais desenvolvidas e inovadoras, é cada vez mais notório que não há ciências “duras” sem Ciências “puras”, havendo uma permanente interação entre ambas, não havendo indústrias culturais dinâmicas sem anterior experimentação estética de topo, patentes comerciais sem prévia investigação que as viabilize.
Muitos, se não mesmo a maioria, dos mais prestigiados protagonistas do mundo da ciência e da tecnologia caraterizam-se por terem tido, em paralelo com a sua atividade e saber estritamente científico, uma grande curiosidade, estima e dedicação pela criação artística e literária, pelas humanidades e artes em geral, incluindo o social, desde Leonardo de Vinci, Copérnico, Galileu, Kepler, Morse, Einstein (entre nós, por exemplo, Pedro Nunes e Damião de Góis, alargando e modificando o conhecimento, com o espírito e consequências científicas dos descobrimentos), tendo-se o pensamento criativo e crítico como transversal a toda a ciência e cultura.
“Um homem apenas médico, não é médico”, eis uma afirmação do médico, professor e investigador Abel Salazar, que sintetiza bem a interação das diversas facetas do conhecimento.
08.09.23
Joaquim M. M. Patrício