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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


No filme Le Signe du Lion, a cidade é usada como metáfora para o caminho de encontro com o destino.


No filme Le Signe du Lion (Eric Rohmer, 1959) a cidade aparece como o último refúgio do ser humano. Revela-se abrigo mas também uma claustrofóbica prisão. Neste filme, a cidade é a condutora para a redenção e para o arrependimento.


A história de Le Signe du Lion acompanha a transformação de Pierre Wesselrin, um artista fracassado e boémio que vive em Saint-Germain-des-Prés. Pierre ficou sem casa logo após ter sido deserdado. Apesar do seu talento para a música, Pierre sempre dependeu dos seus amigos para viver. É verão e todos estão ausentes. Pierre procura em vão alguém que o salve.


Objetivamente vai-se seguindo, a degradação desta personagem. Ao seguir Pierre pelas ruas de Paris, presencia-se ao que ele está exposto, permite-se a participação da consciência da personagem e a uma visão objetiva de uma sucessão de factos. O espaço físico de Paris é descrito sob um sol tórrido e o andar lento, perdido e abandonado de Pierre. A cidade é assim usada como metáfora para o caminho de encontro com o destino. É uma odisseia de quem anda sem parar, de quem quer encontrar um poiso num espaço duro e cheio de pedra. A cidade descobre-se árida e desolada e a pedra, neste filme, representa a rigidez, a ordem, a opressão e a restrição urbana.


No livro “Eric Rohmer. Realist and Moralist.” de C. G. Crisp lê-se que Rohmer, em Le Signe du Lion abstem-se de inserir no filme alusões explicitas às implicações religiosas da narrativa - é a exploração de um trajeto de uma personagem na sociedade e a sua relação com os outros que aqui importa. Rohmer confia que será através de uma paciente e meticulosa acumulação de observações do mundo real exterior que irão revelar inevitavelmente a evolução da personagem. (Crisp 1988, 26)


Pierre perdeu o seu lugar, o seu território e quer voltar a tê-lo. Mas o desalento e a resignação dominam os passos deste homem.


Rohmer filma Paris meticulosamente, seguindo percursos com precisão topográfica. No livro “Eric Rohmer”, Joël Magny escreve que Rohmer filma o estado de alma de Pierre, indiretamente, através da cidade visível. Por meio da composição, do som, da música repetitiva, da luz, de símbolos e da montagem - o mundo objetivo segue assim como sendo o reflexo do mundo subjetivo de Pierre. Para Magny, Rohmer realiza um cinema que dá a conhecer, que dá a ver através do espaço e do tempo. Na verdade, os trajetos físicos estão ligados a motivos e a aspirações espirituais. Magny explica que cada gesto, cada passo e cada movimento têm um duplo significado físico/material e intelectual/metafísico. Cada percurso é revelador da essência das coisas. Por isso, ao procurar abordar objetivamente o mundo e os indivíduos, Rohmer consegue também aproximar-se do acaso e do inexplicável. O modo de vida de Pierre, em Le Signe du Lion consistia em acreditar simplesmente na sua sorte e não no seu talento e em esperar por um meio de subsistência vindo do exterior (de amigos ou de uma tia com herança).


Crisp escreve que no decorrer da sua degradação física, Pierre, despojado de tudo e preso num labirinto de pedra quente, é forçado a seguir caminhos (urbanos e suburbanos) sob o olhar impiedoso de Deus. Nesse momento a cidade recusa-se a abrir qualquer horizonte. Na opinião de Crisp, a luta contra a pedra das paredes da cidade é uma metáfora que descreve o combate que Pierre tem de travar contra si próprio e contra a sua natureza mundana. Como se de um grande peso se tratasse, Pierre quer libertar-se das pedras assim como deseja aprender a rejeitar o domínio das coisas do mundo.


Para Rohmer, a existência de Deus não é deduzida diretamente através da ordem terrena, é sim, um compromisso total e irracional. Para Crisp, embora seja possível interpretar as experiências de Pierre como uma provação, os vários momentos em que parece não haver intervenção divina afiguram-se arbitrários, ambíguos e até mesmo acidentais (a herança perdida, o óleo derramado, o bilhete de metro caído, os amigos ausentes, o sapato quebrado).


“On peut lire alors cette fable comme une parabole chrétienne: aide-toi, le Ciel t'aidera! C'est lorsque Wesselrin utilise ses dons musicaux (qu'il avait galvaudés jusque-là) pour gagner les quelques piécettes nécessaires à sa subsistance, en jouant du violon à la terrasse des cafés remplis de touristes, que le ciel lui enverra la Grâce. C'est par sa musique que ses amis vont le retrouver.” (Magny 1986, 35)


Só no final, ao tocar violino, no limiar do abismo e da total desintegração, Pierre realiza que as suas pretensões eram vazias e irrelevantes. A salvação de Pierre é assim racionalmente injustificável, é ordem acaso. Magny esclarece que o plano divino, que faz de Pierre de novo um herdeiro, é a expressão do momento em que, quando não há mais perigo de decadência, quando não se pode cair mais fundo, o milagre acontece e o movimento da esperança ressuscita.


Para Crisp, Pierre personifica toda a humanidade ao ter de ultrapassar sucessivas provas físicas que o levarão da queda à culpa e da graça e à salvação. E a cidade é a testemunha deste prodígio e a possibilitadora desse momento fora do tempo - é espaço onde todas as regras são suspensas, onde a fenda se abre e a ordem sobrenatural se manifesta. É a cidade que faz com que de novo Pierre encontre o seu caminho.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR


Nos filmes de Éric Rohmer a cidade representa o confronto de contradições.


A cidade de Eric Rohmer está sempre viva, porque está sempre em movimento contínuo. É porosa, permeável, isotrópica, transparente e atua em todas as direções. 


Ao longo dos filmes, percebemos que as constantes conexões urbanas (o andar, o movimento, a multidão) tornam possível a existência de relações entre os personagens. Há cidades cheias e ruas vazias, campos a perder de vista, comboios com passageiros e carros a circular.


Nos filmes de Rohmer, a cidade, ou seja, o mundo físico exterior, promove o encontro humano e não há medo em enfrentar o outro, pois entende-se que a existência das cidades depende desse constante aglomerado de pessoas. Depende do movimento para a sua vitalidade - depende da complexidade da rede de cidades, depende do cruzamento permanente de ruas e praças, dos diferentes níveis de velocidade e circulação, das diferentes perspetivas e dos muitos momentos de pausa.


No filme L’amour l’après midi (1972), a cidade representa o confronto de contradições - o profano com o sagrado, a multidão com a solidão, a certeza com o desejo, a imaginação com a salvação. 


Segundo Vittorio Hösle, em ‘Éric Rohmer. Filmmaker and Philosopher’, Rohmer considera que a realidade para Rohmer é mais do que uma conexão entre causas e efeitos. Rohmer vê a realidade física como uma ordem integral, como sendo a perfeita junção entre a natureza e o ser humano, ao estar impregnada de significados e de princípios e ideais. As várias partes da realidade, por isso estão interligadas e os objetos e os espaços físicos são reflexo de um determinado estado mental. 


Hösle também refere que Paris como metrópole representa o dinamismo necessário para que Frédéric viva aberto a diversas possibilidades e para que viva numa nuvem de sonhos e fantasias imparáveis. Frédéric, ao ter escolhido casar com Hélène, conhece já o que desejou ter tido, e por isso agora, é na cidade que se proporcionam diariamente alternativas possíveis e a inevitável desilusão de algumas expectativas desencadeia naturalmente segundas reflexões: “Pourquoi, dans la masse des beautés possibles, ai-je été sensible à sa beauté? C’est ce que je ne sais plus três bien. (…)


Depuis que je suis marié, je trouve toutes les femmes jolies. (…) Que se serait-il passé, si j’avais, il y a trois ans, rencontré cette jeune femme? Aurait-elle frappé mon attention? Aurais-je pu m’éprendre d’elle, désirer un enfant d’elle?” (Rohmer 1998, 211)


Rohmer move-se entre diferentes conceitos nos seus filmes, que parecem transmitir a mesma mensagem, ou seja, que o espaço tem um impacto nos indivíduos e nas suas relações. Este impacto pode ser físico ou emocional e abre a possibilidade do inesperado, que pode atuar contra a vida organizada e planeada - nalguns casos o imprevisto é bem-vindo, noutros é perturbador. 


Assim, o modo de vida urbano é sempre definido através de mudanças e deslocações constantes, condensadas e aceleradas. Para Rohmer, a cidade é, portanto, sinónimo de transformação contínua. Na sua opinião, é o lugar, por distinção, onde estranhos se podem encontrar, e onde as margens podem ser centrais e a vida no centro pode até significar exílio.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


“Cities have become dumping grounds for globally begotten problems.”
(Bauman 2003, 19)


No texto “City of Fears, City of Hope”, Zygmunt Bauman escreve que se vive hoje em permanente estado de revolução. O modo de vida urbano define-se através de uma constante mudança condensada e acelerada. 


Para Bauman, a cidade é, por isso, sinónimo de contínua transformação. Na sua opinião é também o lugar, por excelência, onde estranhos se encontram. 


A cidade vive da diferença e da complexidade. Os estranhos permanecem próximos uns dos outros e interagem (às vezes uma vida inteira) sem deixar de serem estranhos. Bauman explica que a densidade de ocupação do espaço resulta na concentração de problemas, necessidades, oportunidades e desafios, que uma pessoa só consegue entender se viver numa cidade. A constante necessidade de enfrentar problemas e fazer perguntas apresenta-se como o grande desafio urbano e pode assim elevar a inventividade da existência a níveis sem precedentes. (Bauman 2003, 6)


A vida na cidade, inevitavelmente, chama para si recém-chegados ou estranhos. Para Bauman, são os recém-chegados que trazem um novo olhar sobre as coisas e que desenvolvem novas formas de resolver problemas. Para aqueles que acabam de chegar tudo parece bizarro, nada é normal, nem dado como certo. Deste modo, para os enraizados e bem estabelecidos, os estranhos podem representar o desconhecido e a ameaça - são muitas vezes, vistos como os inimigos lógicos que põem em causa a tranquilidade e o orgulho local. Mas, uma cidade sem estranhos é um lugar sem vida. Bauman afirma que uma cidade será mais exuberante, pródiga e abundante, quanto mais os seus modos e os seus meios forem desafiados e questionados.


A cidade vive sempre de tensões e de equilíbrios constantes. A flutuabilidade intrínseca, a criatividade inerente, a proximidade, a densidade e a incerteza permanente da vida urbana, surge exatamente do relacionamento sempre incompleto e em constante agitação entre os vários espaços, organizações e indivíduos.


“Through their modern history cities have been the sites in which the settlement between contradictory interests, ambitions and forces was intermittently fought, negotiated, undermined, broken, revoked, re-fought, re-negotiated, challenged, found and lost, buried and ressurected.” (Bauman 2003, 14)


É verdade que são as forças contraditórias, as incompatibilidades mútuas e as tendências que se contradizem, que dão forma a uma cidade. Porém, segundo Bauman, o mundo atual está dividido entre o poder global e a pessoa local. O ser global está constantemente ligado a uma vasta rede de troca, de mensagens e de experiências privilegiadas e extraterritoriais que abrangem o mundo inteiro. O ser local depende do lugar onde mora, está ligado a uma rede segmentada e limitado à sua identidade (muitas vezes segregada) como garantia de defesa dos seus interesses. 


A imagem, que emerge desta descrição de Bauman, é a de dois mundos de vida segregados e separados, em que um domina o outro. Apenas o ser local é territorialmente circunscrito e a sua existência pode ser compreendida numa rede de noções ortodoxas geográficas, mundanas e realistas. Aqueles que vivem no mundo global não precisam necessariamente de pertencer a um lugar e a fluidez da sua presença desliga os seus interesses e as suas preocupações dos problemas de qualquer cidade. Por isso, para Bauman, o estado da liquidez da modernidade mede-se pelo aumento do intervalo que separa estes dois mundos. E no mundo globalizado atual as ações concretas parecem ser só locais: “Only in ‘local matters’ our action or inaction may ‘make a difference’; as for other, admittedly ‘supra-local’ affairs - there is (or so we are repeatedly told by our political lerdes and all other ‘people in the know’) ‘no alternative’.” (Bauman 2003, 18-19)


Sendo assim, na opinião Bauman, as cidades de hoje são os depósitos dos problemas gerados na escala mundial e infelizmente são as pessoas locais de qualquer cidade que têm a tarefa impossível de encontrar as soluções para todas as contradições globais existentes.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR


O subúrbio era o lugar que permitia ser aquilo que se quer ser.


No livro “A cidade na História. Suas origens, transformação e perspetivas.” (Martins Fontes, 1998) de Lewis Mumford escreve que a formação do subúrbio coincide com o aparecimento da cidade. A sobrevivência da cidade e do subúrbio depende um do outro. A cidade predominava insalubre e compacta. O subúrbio decorria das necessidades e das deficiências da cidade.


O subúrbio desde cedo significava espaço (ar, verde e sol), natureza, saúde e liberdade. Mumford explica que os deleites do suburbanismo eram, desde o princípio reservados às classes superiores: “…de modo que o subúrbio podia ser descrito quase como a forma urbana coletiva da casa de campo (…) o modo de vida suburbano é, em grande parte, um derivado da vida descansada, jovial e consumidora da aristocracia, que se desenvolveu a partir da existência rude, belicosa e árdua da fortaleza feudal.” (Mumford 1998, 523)


Mumford faz notar que já no tratado de construção de Alberti se achava todo o programa suburbano doméstico dos arquitetos do princípio do séc. XX: retiro conveniente perto da cidade, livre de qualquer tipo de constrangimentos e convenções da sociedade urbana; oferta de ar e possibilidade de contemplação; abertura a prados, bosques, regatos, lagos e ao sol.


O subúrbio era assim o lugar que permitia ser aquilo que se quer ser: “…construir a sua própria casa, única, no meio de uma paisagem única; viver uma vida centralizada em si mesma (…) criar um asilo (…) comandado ainda à vontade dos privilégios e benefícios da sociedade urbana.” (Mumford 1998, 525)


O subúrbio antigo representava um esforço da classe média em encontrar um novo modo de vida segregado e menos formalizado e uma solução para a depressão e desordem da metrópole poluída.


O subúrbio representou, durante algum tempo, pela sua livre utilização do espaço, a antítese da maior parte das cidades históricas do Ocidente. No subúrbio houve uma dispersão da edificação no meio de espaços abertos. As ruas já não formavam corredores fechados. O edifício podia afirmar-se isolado no meio da paisagem. Foi, sobretudo no séc. XIX, que urbanistas e construtores utilizaram o subúrbio como um campo experimental para investigarem novas formas para a cidade de planta aberta com uma nova distribuição de funções.


Mas, Mumford revela que a utopia do subúrbio antigo terminou através do movimento em massa que se deu em direção a essa dispersão e liberdade. Nesse movimento coletivo, visível a partir do séc. XX, produziu-se um novo tipo de desenho suburbano com deficiências evidentes: “…uma multidão de casas uniformes, inidentificáveis, alinhadas de maneira inflexível, a distâncias uniformes, em estradas uniformes, num deserto comunal desprovido de árvores, habitado por pessoas da mesma classe, mesma renda, mesmo grupo de idade, assistindo aos mesmos programas de televisão, comendo os mesmos alimentos pré-fabricados e sem gosto, guardados nas mesmas geladeiras, conformando-se, no aspeto externo como no interno, a uma modelo comum, manufaturado na metrópole central.” (Mumford 1998, 525)


O crescimento em massa sobretudo dos subúrbios norte-americanos, que se deu em meados do séc. XX, levou à atomização, ao isolamento e à fragmentação da vida quotidiana: “…a mudança de dimensões e a difusão de moradias levantou um problema rural mais antigo, o do isolamento; e (…) amplificou a necessidade de transportes por veículos particulares…” (Mumford 1998, 530)


Na opinião de Mumford o subúrbio ao ter sido símbolo de refúgio preservava ilusões. Ali a individualidade podia prosperar sem culpa. Mumford afirma que ainda é a vivência da cidade concentrada que permite naturalmente construir uma consciência social, pelo constante contacto com a diferença e com a complexidade. O subúrbio contemporâneo ao compartimentar só permite o contacto com realidades diversas através da televisão. A televisão, como explica Luísa Sol na tese “A Imagem da cidade e o seu espaço-representado no videoclip da década de oitenta. Interferências norte-americanas na cultura arquitetónica contemporânea dita ocidental.” (Universidade de Lisboa, Faculdade de Arquitetura, 2018) permitiu uma confortável relação com o mundo sem sair do lugar. A partir deste momento, o culto do indivíduo elegeu o ecrã como sendo o novo grande espaço público.


Mumford explica assim que: “…as diferenças operativas entre o subúrbio contemporâneo e a grande cidade tornam-se cada vez mais minúsculas, pois naqueles ambientes aparentemente diferentes, a realidade tem sido gradativamente reduzida àquilo que é filtrado da tela do televisor.” (Mumford 1998, 536)


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  

 

A cidade como ecrã.


«Já nos Estados Unidos a contaminação da cidade pelo cinema e vice-versa não podia ter um aspeto mais prático, positivo e efetivo. O cinema entrou na cidade e a cidade entra no cinema e os dois emprestam-se um ao outro, ampliando e reinventando o território de ambos. Se a cidade do século XIX constituía um proto-ecrã, o ecrã constitui agora uma proto-cidade, a proto-cidade onde muitos querem viver» (Sol 2018, 20)


Na tese “A Imagem da cidade e o seu espaço-representado no videoclip da década de oitenta. Interferências norte-americanas na cultura arquitetónica contemporânea dita ocidental.” (Universidade de Lisboa, Faculdade de Arquitetura, 2018), Luísa Sol escreve que há toda uma nova atmosfera urbana, advinda das alterações impostas no final do séc. XIX, e que antecipou todo o ecrã contemporâneo - através da transformação da noção de espaço público e da emergência de uma nova consciência do individual (Sol 2018, 8). Essa nova consciência surgiu com o advento do capitalismo industrial que destruiu lentamente o domínio público, ao ampliar as expectativas e os interesses privados. O eclodir dos grandes armazéns e o seu sucesso fizeram da vida pública um lugar mais intenso e menos sociável, sublinhando sobretudo o papel da secularização. A secularização leva o ser humano a mistificar a sua própria condição – e a não ter tempo para olhar para qualquer outra coisa que não seja a sua eterna face num reflexo. Sol explica que Baudelaire em O Pintor da vida moderna afirmou que o indivíduo moderno deseja assemelhar-se somente àquilo que pretende ser, sem se deixar tocar pelo incontrolável e pelo incompreensível. E vive, por isso, em grande conflito com o facto de ser outro. O seu reflexo nunca corresponde ao sonhado. O resultado é o culto da personalidade, através do fascínio das roupas e da moda. Haussmann, contribuiu em Paris, para a produção desta sociedade que agrava a visão que cada um tem de si próprio - os grandes boulevards não escondem nada, o importante é aquilo que as pessoas têm para mostrar.


A metrópole da era industrial e o cinema surgiram num contexto muito próximo: «A cidade moderna, do comércio, dos boulevards, das vitrines e das arcadas sintetiza um modelo expositivo que determinaria a importância da imagem, estática ou em movimento, da visibilidade do indivíduo e da mercadoria, da sua circulação e transações.» (Sol 2018, 12)


A cidade e também a arquitetura, para Sol, funciona assim como o ecrã da modernidade e, gera, a necessidade do cinema. A cidade moderna trouxe a constante vontade das pessoas verem e serem vistas. A nova velocidade, as multidões de olhos e as largas avenidas esboçaram o ato de filmar e a permanente exposição dos percursos no espaço. Por isso, a arquitetura da cidade é a superfície ideal para se projetar tudo aquilo que as pessoas têm para exibir.


Luísa Sol revela ainda que os situacionistas já avisavam que a sociedade moderna estava contaminada e dominada por imagens. A imagem do mundo torna-se assim mais importante que o próprio mundo. Essas imagens são uma produtificação da vida quotidiana. E vai ser cada vez mais difícil separar a realidade da ficção. (Sol 2018, 20)


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  

 

Espaço é um instrumento hegemónico poderoso.


“(Social) space is a (social) product.” (Lefebvre 1991, 26)


No livro The Production of Space, Lefebvre avança com a ideia de que ao mudar-se a vida e a sociedade, deve inevitavelmente revolucionar-se o espaço. Lefebvre acredita que a pessoa humana comum é um ser social capaz de produzir a sua própria vida, a sua própria consciência e o por isso também produz o seu próprio espaço: “...each living body is space and has its space: it produces itself in space and it also produces that space.” (Lefebvre 2008, 170)


Lefebvre explica que a cidade é a materialização de dois circuitos de capital. O circuito primário diz respeito ao investimento de capital em mão de obra, em materiais e em máquinas de maneira a produzir produtos que possam ser vendidos no mercado e de modo a gerarem lucro que de novo poderá ser aplicado em novos investimentos. O circuito secundário diz respeito aos bens imóveis, ao capital investido em propriedade e no seu lucro. É através destes dois circuitos que se avalia a estabilidade, o rejuvenescimento e o declínio de uma cidade moderna.


Na cidade, na opinião de Lefebvre, o capital é hegemónico. Por isso é o capital que produz o espaço da cidade. O espaço ao ser produto de uma sociedade é necessariamente uma rede de relações sociais - é um produto social. Cada sociedade produz um espaço único, adaptado às suas necessidades e condições.


Na sociedade, os seres humanos produzem espaços sociais. As relações sociais, que são abstrações concretas, não têm existência real, mas existem e concretizam-se através do espaço. O espaço é assim, um produto e um meio de produção. O espaço é tão importante ao produzir o ambiente em que vivemos, porque somos constantemente moldados e influenciados pelo espaço que nos rodeia. O papel do governo é vital na determinação e conceção espacial de uma cidade - ao ter a capacidade para atrair investidores, ao possuir grande parte da propriedade e ao ter a competência legal para impor condições e sanções.


O espaço urbano é assim propriedade daqueles que têm dinheiro e poder. É pensado e concebido por um determinado conjunto de pessoas com determinadas necessidades e vontades mas é de facto vivido e experienciado por outro conjunto de pessoas (o indivíduo comum) que tem de se adaptar e obedecer a regras pré-estabelecidas. Para Lefebvre, o espaço real e vivido é um resultado do concebido e do percecionado. E as ideias dos proprietários e gestores de um determinado espaço nem sempre coincidem com as ideias do indivíduo comum que experiência e que utiliza esse espaço. Existe, por isso, naturalmente uma tensão entre o indivíduo comum e o capitalista. Na opinião de Lefebvre, essa tensão, materializa uma forma de repressão e esmagamento do indivíduo comum pelas classes dominantes.


Espaço é e sempre foi um instrumento hegemónico poderoso. Sobretudo se é a concretização do domínio, da manipulação, da exploração e da influência extrema de um conjunto de pessoas em relação a outro. Apesar de ser criado pelo ser humano, é um produto do poder e o indivíduo comum não tem nunca hipótese de criar o seu próprio espaço. A sociedade moderna só produz assim o espaço requerido e pensado pelo capital e pelo investidor.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


A cidade como teatro e o ser como atividade estética.


Richard Sennett em The Fall of Public Man acredita que o mundo é ainda uma peça de teatro (theatrum mundi). A cidade é um palco. A existência é uma atuação contínua. A tradição cristã, por exemplo, acredita que Deus é o único espectador que nos observa sempre.


A ideia de que o ser humano adota ininterruptamente diferentes papéis para conseguir viver, concebe pois a vida social como uma experiência estética contínua.


Para Sennett muito mais importante do que cultivar a auto-expressão deve-se sim desenvolver a capacidade de atuar, de modo a garantir a existência de uma cultura com vida pública.


Esta ideia de que o mundo é uma peça de teatro considera que todo o ser humano é um ser criador por excelência, é um ser capaz de representar, de se adaptar, e de se recriar constantemente.


Esta visão do theatrum mundi, para Sennett, contém uma verdade fundamental: a capacidade de atuar só é possível se houver na infância condições, espaço e tempo para brincar.


Sennett explica que ao longo do séc. XIX assistiu-se a uma descrença gradual na capacidade expressiva de cada indivíduo. Por isso, elevou-se a figura do artista, como sendo o único capaz de fazer manifestamente e livremente, aquilo que as pessoas comuns não conseguiam fazer no dia a dia.


Porém, é através do ato de brincar, durante infância, que se prepara uma pessoa para a futura experiência estética social. Segundo Sennett, o ato de brincar prepara-nos para vivermos uns com os outros em civilidade. Prepara-nos para os diferentes papéis que futuramente teremos de adotar, leva-nos a considerar e a testar certas condutas e ensina-nos a olhar para as convenções como um conjunto de regras de comportamento que nos permitem a aproximação ao outro. Através do ato de brincar e ao tornar um conjunto de certas convenções como credível, a criança está a desenvolver a capacidade de explorar, mudar, questionar e redefinir a qualidade dessas mesmas convenções.


“…people can playact with each other for purposes of immediate sociability but the terms on which they do so are still of contriving expression at the distance from the self; not expressing themselves, but rather, being expressive. It was the intrusion of questions of personality into social relations which set in motion a force making it more and more difficult for people to utilize the strengths of play.” (Sennett 2017, 331)


Ora, para Sennett a intromissão da personalidade nas relações sociais põe em causa a necessidade do ato de brincar. Desde o séc. XIX, que esta intrusão sobrecarrega o gesto expressivo com uma dúvida autoconsciente e repetida: será que o que estou a mostrar aos outros é realmente aquilo que sou?


Através do ato teatral o contacto social pode dar-se de imediato. O indivíduo ao ser puramente expressão/representação, distancia-se do eu. Sennet explica que sempre que o eu se apresenta em situações impessoais transforma-se num peso e dificulta a atuação na vida pública.


A sociedade moderna fragmentada, pessoal e íntima faz acreditar que o domínio público deixou de existir, que é impossível criar uma distância entre o ser social e o eu e que é inimaginável actuar em qualquer situação da vida: “An intimate society encourages uncivilized behaviour between people and discourages a sense of play…” (Sennett 2017, 332)

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR


O flâneur aceita perder-se no tempo e no espaço de uma cidade.


“Pour le parfait flâneur, pour l'observateur passionné, c'est une immense jouissance que d'élire domicile dans le nombre, dans l'ondoyant, dans le mouvement, dans le fugitif et l'infini. Être hors de chez soi, et pourtant se sentir partout chez soi ; voir le monde, être au centre du monde et rester caché au monde, tels sont quelques‑uns des moindres plaisirs de ces esprits indépendants, passionnés, impartiaux, que la langue ne peut que maladroitement définir.”, Charles Baudelaire, Le Peintre de la vie moderne.


No livro Psychogeography de Merlin Coverley lê-se que o flâneur é um observador solitário que caminha pelas ruas de uma cidade. Ao errar sem destino, ao parar simplesmente para olhar, o flâneur cedo se tornou uma figura ideal e literária do séc. XIX, inseparável da poesia de Charles Baudelaire (1821-1867).


O flâneur deseja para sempre unir-se à multidão, fluir no movimento contínuo da cidade, tornar-se fugitivo e infinito. Ser em toda a parte, ver o mundo e fazer parte de tudo mas manter escondida a sua existência. O flâneur é em simultâneo a imersão e o isolamento, a parte e o todo, o observador e o observado, o perseguidor e o perseguido, o eu e o outro, o passado e o futuro.


Ao dissolver-se na multidão, o flâneur aceita perder-se no tempo e no espaço de uma cidade e deixa-se intoxicar pelo seu movimento que não pára. Mas o flâneur é sempre uma figura nostálgica porque apesar de proclamar admiração pela vida urbana reconhece também a redundância cada vez mais evidente do pedestre desocupado e só e que sobretudo aos olhos da cidade moderna se torna inútil e indolente.


Segundo Coverley, Paris era um livro pronto a ser lido por Baudelaire mas a sua configuração labiríntica destruída por Haussmann impediu a existência real do flâneur. Para Coverley, a vida de Baudelaire espelha a trajetória do flâneur que batalha constantemente contra o advento da modernidade.


A expansão de Paris, no séc. XIX, impediu a cidade de ser compreendida no seu todo. A destruição das antigas ruas e a sua reordenação sufocada com trânsito, domesticou qualquer tipo de intenção exploratória e o desejo do caminhante pelo enigmático, pelo misterioso e pelo oculto tornou-se totalmente obsoleto. O andar ficou assim reduzido a um passeio turístico, o errar ficou limitado ao olhar para as montras. Na cidade moderna o flâneur tem de se adaptar ou então perece. Para Merlin Coverley, o flâneur de Baudelaire é assim o testemunho de um modo de vida prestes a desvanecer para sempre.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR


Aldo Rossi à luz da história interpreta a cidade
. (Parte II)


Artefactos Urbanos

Rossi sonha desenhar a nova cidade através do conhecimento de regras que possam prevalecer. Rossi procura pelos artefactos urbanos – pela sua intemporalidade, singularidade, individualidade, particularidade e regularidade. É sobre os artefactos urbanos que constrói o seu método de análise da cidade. Rossi entende por artefactos todos os elementos construídos pelo Homem e que contém, em si os traços do tempo. É através deles que se transmitem símbolos, ideias e se interpreta a história – um povo está satisfeito com um artefacto sempre que se consegue rever na sua forma. Artefactos são os elementos da cidade que conseguem manter os valores originais – são elementos que trazem à cidade estrutura, singularidade, lugar, memória.


A memória que permanece nas cidades depende do tempo, da cultura e da circunstância. É capaz de se atualizar constantemente e de receber diferentes interpretações. É referência para o Homem que o faz situar num momento específico, na realidade do presente. A sua forma e aspirações correspondem a um padrão reconhecido por toda uma comunidade.


O artefacto é criado para servir uma função de uma maneira dinâmica – a sua estrutura é imutável. A definição de um artefacto urbano só a partir de uma função específica não faz sentido para Rossi, porque a função muda com o tempo e com as necessidades de uma comunidade e de um lugar.


Sendo assim, o artefacto é um momento típico ou tipo da cidade. O tipo desenvolve-se de acordo com as necessidades e aspirações de uma comunidade. Formaliza um modelo e uma maneira de viver constante, variando de sociedade para sociedade. Rossi interpreta a cidade através do valor tipológico do passado.


Morfologia e Tipologia

Para Rossi Morfologia e Tipologia apresentam-se como conceitos complementares. Por um lado, morfologia associa-se à forma da cidade, é espaço não construído, é estrutura que evidencia os elementos construídos. Tipologia associa-se ao espaço construído, à forma do seu uso.


Em ‘L’architettura della città’ Rossi descreve e analisa a cidade através de regras limitadas morfológicas e tipológicas. Permite voltar a fazer entender a cidade como lugar de complexidade e de memória urbana. Aldo Rossi pretende a recuperação da tradição, a insistência na permanência das formas, a recriação das convenções (como reinterpretação do passado à luz do presente). A cidade constitui-se por valores construtivos (que servem de regra ou modelo e que conformam a cidade) e memória (monumento, que serve de símbolo).


Rossi parte de uma vontade antivanguardista de reconstruir a ligação entre a arquitetura e a coletividade. Rossi insiste na tipologia como estrutura, fundadora da imagem da realidade arquitetónica e emocional. Rossi recorre ao mecanismo da analogia.


A analogia que permite associar à cidade a memória e a história, o individual e o coletivo, a objetividade e a subjetividade, o Homem e o lugar. O Homem procura por uma cidade ordenada e consistente intimamente referenciada a um tempo. A expressão da analogia referencia-se a elementos formais preexistentes e que pertencem a uma determinada realidade. Rossi vê os programas modernos como veículos inadequados para a arquitetura e por isso procura por uma arquitetura analógica, extraída do vernáculo e da memória. Rossi volta aos programas tipológicos propostos na cidade do séc. XIX.


Rossi ao explorar a imagem da cidade através do tipo, modelo ou regra, dá um novo sentido à arquitetura. Os tipos transformam a cidade através de ideais intemporais geométricos. Para Rossi os elementos construídos de uma cidade podem, assim tomar a forma de um cubo, cone, cilindro, prismas octogonais e retangulares. Cada forma está associada a uma determinada função. Rossi trabalha a partir de formas facilmente reconhecíveis e identificáveis para uma determinada comunidade – a habitação, a escola, o hospital, a prisão, o edifício religioso e civil. Por exemplo Aldo Rossi em Constructing the City Project, em 1978, define o cubo como espaço de encontro público; a torre octogonal como o centro cívico ou município; o cilindro como a escola, o teatro e a biblioteca; o cone como o monumento que permite a referenciar a cidade ao seu lugar; o paralelepípedo suspenso sobre pilares como habitação coletiva; as formas vernáculas italianas como habitação unifamiliar.  Rossi descobre, assim na tipologia a possibilidade de invenção de formas que evoluem no tempo.


O historiador interpreta os factos reais do passado à luz da sua existência e do seu presente. A forma da realidade descrita pelo historiador passa pela sua perspetiva existencial e pela sua interpretação. Aldo Rossi à luz da história interpreta a cidade. Rossi entende o valor da história como memória coletiva. É a memória que permite a permanência de estruturas do passado e a formação novos elementos na cidade. Rossi ao determinar a arquitetura da cidade define elementos estruturalmente permanentes, os artefactos urbanos ou os tipos, que absorvem as diversas interpretações ao longo do tempo. A tipologia, ao ser uma constante da cidade, forma arquitetura ao utilizar mecanismos que ultrapassam o mero funcionalismo moderno. Ora, Rossi trabalha a partir do processo da analogia retomando temas do vernáculo, valores e necessidades intemporais que busca no passado. Rossi dá, assim a possibilidade ao Homem de interpretar continuamente o seu tempo e o seu lugar através de permanências que estruturam a cidade.

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Aldo Rossi à luz da história interpreta a cidade. (Parte I)

 

O historiador interpreta factos reais do passado à luz da sua existência e do seu presente.
Aldo Rossi à luz da história interpreta a cidade. Pretende uma arquitetura, que pertença a um lugar, a uma geografia, a uma história. A história é o seu motor de busca para novas formas estruturais. Rossi interpreta elementos edificados (tipológicos) e não edificados (morfológicos) do passado e constitui o vocabulário da cidade do seu tempo presente.


O que se mantém numa cidade, ao longo do tempo?
De entre os fatores que desenham a forma da cidade, a memória coletiva, a presença da História e a sua interpretação ao longo do tempo é determinante.
O espaço urbano é forma. Na cidade, apercebemo-nos de que não há uma só forma, mas uma possibilidade de forma, que corresponde a possibilidades de vida dos seus ocupantes. Contrastam momentos materiais e não materiais. Os momentos materiais têm um carácter mais restrito, são o edificado. Os momentos não materiais evidenciam o edificado, permitindo a sua relação, ligação, perceção e encontro com o exterior.
O espaço urbano é determinado por uma estrutura dependente de usos e experiências – essa estrutura torna-se flexível, é suscetível de receber várias interpretações e pode ser influenciada, até mesmo transformada. A base estrutural do espaço soma situações diferentes, oferece continuamente novas oportunidades para novas utilizações. A flexibilidade é suficiente, para que no espaço urbano, se desempenhem funções diferentes sob circunstâncias variadas – concretiza-se, portanto, uma separação entre forma e função.
A forma do espaço urbano resulta de fatores diversos, tais como: a vontade e criação humana; as demonstrações de poder; o acaso; as sujeições locais ao meio físico e as preocupações sociais. O espaço urbano pode afirmar-se como um conjunto de diversas partes planimetricamente esquemáticas – reflexo de sucessivas adaptações ao meio físico e histórico. Não é a lógica da história, mas a sucessão de acontecimentos no tempo, que se reflete na realidade urbana. A flexibilidade que a caracteriza fá-la frágil. A cidade está sujeita a excessivas individualizações na organização do seu espaço. A capacidade recetiva da cidade permite convivência entre a regra e a exceção, entre sistema e forma, entre morfologia e tipologia. O tempo e as suas sucessivas interpretações são fatores de mutação da forma da cidade. Cabe a certos elementos da cidade resistir ou absorver as mutações constantes. Aldo Rossi ao determinar a arquitetura da cidade define os elementos que absorvem as mutações da cidade como sendo artefactos urbanos – os tipos.


Como é a cidade de Aldo Rossi?
‘Because the city will be seen comparatively, I lay particular emphasis on the importance of the historical method…’, Aldo Rossi
A cidade é o repositório da história. Ao acumular a imaginação do Homem, a cidade sintetiza uma série de valores coletivos. Aldo Rossi evoca a cidade de acordo com a memória coletiva, porque a sua construção é feita sobre o tempo e num lugar. A história documenta a estrutura urbana na sua descontinuidade, individualidade e forma. A história permite que a ideia de passado constitua as estruturas dos artefactos urbanos, do tempo presente – o Homem aceita perenidade nos artefactos urbanos sempre que sente necessidade de se expressar nas suas formas. Rossi analisa a cidade através dos seus artefactos, das suas permanências morfológicas e tipológicas. Ao atuar sobre a cidade, Rossi aciona o mecanismo da analogia.
Com a publicação de ‘L’architettura della città’, por Aldo Rossi em 1966, iniciou-se em Itália o Neo-Racionalismo Italiano ou Tendenza. A Tendenza afirma a importância dos diversos tipos de edifícios na determinação da estrutura morfológica urbana à medida que ela se desenvolve com o passar do tempo. Rossi define o artefacto urbano como sendo o único programa capaz de encarnar os valores históricos da arquitetura, cujos referenciais racionais devem advir analogicamente do vernáculo, das necessidades do quotidiano e assim construir o local através de formas estruturais.
Defende-se a ideia de ‘continuidade do movimento’ num contexto urbano – isto é, cada novo projeto deve articular-se coerentemente, de acordo com a morfologia da cidade e de acordo com os valores tipológicos do lugar. A teoria da tipologia e da morfologia não conseguiu prevalecer ao confrontar-se com o infindável património das cidades históricas italianas. A Tendenza realizou muito pouco em Itália, mas exerceu um importante impacto sobre a preservação histórica dos centros urbanos italianos – excluindo qualquer presença de arquitetura contemporânea.

 

Ana Ruepp