Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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A cidade moderna opõe a vida íntima à vida pública.
“The self no longer concerns man as an actor or man as a maker; it is a self composed of intentions and possibilities… now what matters os not what you have done but how you feel about it.” (Sennett 2017, 326)
De acordo com Richard Sennett, em The Fall of Public Man, no tempo atual o indivíduo vive dividido entre a vida pública e a vida íntima. As pessoas na sociedade atual concebem uma comunidade numa escala muito restrita. O próprio indivíduo está limitado e pronto a excluir todos aqueles que são diferentes. Para Sennett, vivemos num mundo que organiza a família, a escola e a vizinhança através de motivações e localismos (convém não esquecer que os regimes totalitários favorecem os localismos pela desconfiança constante, pelo medo do diferente e por isso como forma eficaz de controlo em escala limitada de modo a manter uma sociedade limpa e pura).
Lê-se também em The Fall of Public Man que foram os sociologistas, que ao longo do séc. XX, desenvolveram a ideia de que a vida em sociedade é um conjunto de tarefas separadas, instrumentais e mecânicas - à luz destas ideias a escola e o trabalho são vistos como uma obrigação, são vistos como veículos inapropriados para sentimentos mais verdadeiros e próximos.
A este mundo meramente instrumental, os sociologistas contrastam experiências afetivas, holísticas e integrativas. Ficou assente então que as pessoas só realmente sentem, só realmente vivem inteiramente o momento presente e só realmente se revelam em ambientes íntimos - entre a família, os vizinhos e os amigos. Para os sociólogos, o mundo alargado significa sobrevivência, obrigação e luta.
Porém, Sennett argumenta que a sociedade que apresenta a vida íntima como a vida verdadeira faz do indivíduo um ser autómato, um ator que não se pode exprimir nunca. Sennett revela que é ao incentivar-se a expressão criativa e mais especificamente ao dar-se espaço e abertura para que se desenvolva o ato de brincar, de jogar, de fazer de conta, poderá levar o indivíduo a ter uma vida mais significativa. A aproximação entre a esfera privada e pública só é possível através do uso de uma máscara.
A máscara, para Sennett, é civilidade. Sennett explica que civilidade e cidade, tem a mesma origem etimológica (Civis, Civitas): “Civility is treating other as though they were strangers and forging a social bond upon that social distance. The city is that human settlement in which strangers are most likely to meet. The public geography of a city is civility institutionalized.” (Sennett 2017, 328)
Para Sennett, as máscaras por isso ser criadas através do desejo em viver com os outros. As máscaras permitem criar a distância necessária para que a pura sociabilidade se manifeste. A máscara não representa o eu que manipula e que se impõe, afirma sim que todas as condições do mundo são plásticas e por isso a máscara é capaz de conduzir à construção de uma dimensão que para vai além do desejo e da identidade. Na sociedade atual, Sennett explica que as motivações do eu bloqueiam as pessoas de se sentirem livres para se exprimirem criativamente. E esta habilidade para se ser expressivo é posta em causa porque o indivíduo moderno deseja constantemente que a sua aparência transpareça aquilo que verdadeiramente é: “… everything returns to motive - Is this what I really feel? Do I really mean it? Am I being genuine? (…) Expression is made contigent upon authentic feeling, but one is always plunged into the narcissistic problem of never being able to crystallize what is authentic in one’s feelings.” (Sennett 2017, 331-2)
No livro The Fall of Public Man, de Richard Sennett, lê-se que uma comunidade, na cidade moderna, actuará sempre como se fosse o único conjunto de indivíduos capaz de ser verdadeiramente humano (à luz desta ideia todas as outras comunidades serão vistas como menos humanas). Numa sociedade cujos espaços se encontram fragmentados, as pessoas vivem sempre com medo de perder o contacto próximo social. Impulso e intenção são as únicas substâncias disponíveis para que as pessoas se possam relacionar na cultura moderna - todas as emoções experienciadas numa comunidade determinam que tipo de pessoas formam aquele grupo.
Para Sennett, a construção de uma comunidade local proposta por urbanistas pode ser extremamente perigosa para a vivência de uma cidade - muito mais importante será a tentativa de reativar o verdadeiro sentido do espaço público e da vida pública na cidade e no seu todo.
A solidariedade que existe dentro de uma comunidade tem uma função perversamente, estabilizadora em relação às mais alargadas estruturas da sociedade, porque segundo Sennett, quanto mais envolvidas estão as pessoas em problemas e desentendimentos de pequena escala, mais intocável permanece a atual ordem social. (Sennett 2017, 382)
“Most so-called progressive town planning has aimed at a very peculiar kind of decentralization. Local units, garden suburbs, town or neighborhood councils are formed; the aim is formal local powers of control, but there is no real power that these localities in fact have. In a highly interdependent economy, local economy, local decision about local matters is an illusion.” (Sennett 2017, 383)
Uma sociedade que receia impersonalidade encoraja fantasias relacionadas com a constituição de vida coletiva e comunitária de carácter íntimo, local, reduzido, segregado e fechado. A concretização de quem somos - a nossa identidade - é feita através de diversos atos seletivos da nossa imaginação: família, trabalho e vizinhos. Para Sennett, na sociedade moderna torna-se cada vez mais difícil o relacionamento e a identificação com aqueles que não conhecemos - pessoas que nos são estranhas mas que até poderiam partilhar interesses culturais, étnicos e religiosos comuns. Porém as ligações impessoais ainda que étnicas ou de classe não são fortes o suficiente e para criar vínculos duradouros entre pessoas que não se conhecem. Quanto maior a imaginação local maior se torna o número ilusório de interesses em comum - quanto mais reduzido é o sentido do eu, menos riscos pessoais serão tomados. A recusa em lidar, absorver e explorar realidades fora da escala íntima é aparentemente uma característica humana universal, porque está relacionada simplesmente com o intrínseco medo do desconhecido.
Para Sennett, qualquer comunidade está assim construída sobre uma fantasia, é produto de um engano e da projeção de um ideal: “What is distinctive about the modern gemeinschaftcommunity is that the fantasy people share is that they have the same impulse life, the same motivational structure.”
Comunidade é então, como já foi escrito no início, a união entre semelhantes impulsos e motivações, sentidos com grande intensidade local. Se dentro de uma comunidade novos impulsos emergem esses terão de ser imediatamente destruídos ou reprimidos - porque aquele alguém que muda ou substitui os seus motivos estará a trair a comunidade. Para Sennett, qualquer desvio individual ameaça a força do fragmento - por isso, todo o indivíduo que pertence a um grupo fechado será sempre posto em prova e estará sob constante vigilância. Suspeição e solidariedade formam então, a comunidade moderna.
Mesmo pertencendo a uma comunidade o ser humano experiencia sentimentos de afastamento, de desentendimento e de indiferença em relação ao mundo exterior. O mundo mais alargado em relação a uma comunidade moderna, é visto como algo menos autêntico e menos real - é um mundo que não tem espaço para emoções individuais. Ao não se deixar manipular ou influenciar por desejos emocionais, o mundo exterior não é um desafio, mas um vazio. O indivíduo moderno procura por contacto social íntimo, somente junto daqueles que o entendem e desliga-se do mundo mais alargado: “This is the peculiar sectarianism of a secular society. It is the result of converting the immediate experience of sharing with others into a social principle.”
Num contexto mais alargado, as únicas ações que uma comunidade pode tomar estão relacionadas com a coordenação e controlo de emoções e a constante distinção entre aqueles que lhe pertencem ou não: “The community cannot take in, absorb, and enlarge itself from the outside because then it will become impure.Thus a collective personality comes to be set against the very essence of sociability - exchange - and a psychological community becomes at war with societal complexity.”(Sennett 2017, 385)
Sennett escreve ainda que foram os urbanistas mais conservadores que fizeram acreditar que uma pessoa só é sociável se se sentir segura, protegida e num ambiente estreito e controlado. Segundo os mais conservadores, o ser humano é destrutivo, violento e perigoso por natureza se não tiver barreiras, fronteiras e distâncias mínimas. Este pensamento urbanista conservador, para Sennett, é um erro mas o autor admite ser o resultado de uma cultura gerada pelo capitalismo e pelo secularismo moderno que transforma o conflito entre irmãos lógico sempre que se usam as relações íntimas como base para as relações sociais. (Sennett 2017, 385)
Sennett pensa que os seres humanos têm uma verdadeira capacidade para a vida em grupo em condições de superlotação (de seres e de coisas) - a arte de criar praças numa cidade tem sido praticada com grande sucesso desde há séculos e geralmente sem arquitetos formalmente treinados. Sempre que o urbanista procura melhorar a qualidade de vida comunitária tornando-a mais íntima está a contribuir para uma irreversível esterilidade e por conseguinte a contribuir ativamente para a morte da vida e do espaço público na sociedade moderna. Sendo assim, se tomarmos tudo isto em conta, a ideia de uma comunidade local forçada pode ser em casos extremos perversamente utilizada como um meio eficaz de controlo e pode por isso opor-se a qualquer ideal democrático.
“Historically, the dead public life and perverted community life which afflicts Western bourgeois society is something of an anomaly.” (Sennett 2017, 385)