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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

 

 

13. AS FORMIGAS E O GAFANHOTO E A CIGARRA E A FORMIGA

 

 

No tempo em que os animais falavam, passou o gafanhoto todo o verão compondo e tocando música, enquanto uma família de formigas trabalhava. Quase a chegar o inverno, e com ele o frio, o faminto gafanhoto abeirou-se delas, com um violino debaixo do braço, pedindo comida, ao que aquelas, com desconfiança, perguntaram o que fez durante o verão, respondendo que fez música, ao que as formigas retorquiram: “Todo o tempo a fazer música? Muito bem, agora dança!” 

 

Esta fábula do grego Esopo, foi readaptada e recontada pelo francês Jean de La Fontaine, em a Cigarra e a Formiga, contando a história de uma cigarra que cantou durante o verão, enquanto a formiga trabalhava. Chegado o inverno, a cigarra, não tendo que comer, pediu à formiga que lhe emprestasse comida, com a promessa de lhe pagar com juros antes de agosto. A formiga, tida por ser poupada e não emprestar nada a ninguém indagou, desconfiada, o que fez a cigarra no verão. Respondeu esta que cantava noite e dia, ao que a formiga replicou: “Cantavas? Pois dança agora!” 

 

Se a lição dominante destas fábulas é a de que há tempo para o trabalho e para a diversão, que devemos ser previdentes e poupados, que para os cultores da preguiça há sempre lazer, também podem ser reinterpretadas no sentido de que há nelas uma exaltação extrema ao trabalhar por trabalhar, à acumulação de capital, riqueza e bens materiais, à avareza usurária e desumana da formiga, à descredibilização e marginalização dos cantores, músicos e poetas, injustamente equiparados a pessoas absentistas e preguiçosas.

 

Estas fábulas, na sua multiplicidade de interpretações e leituras, também são adaptadas, em termos culturais, à invocada diferença de atitude mental e cultural entre povos e países, por exemplo, entre os do norte e do sul da Europa.

 

É usual dizer-se que se perguntarem aos portugueses, espanhóis, italianos e gregos, entre outros povos mediterrânicos e do sul da Europa, se as formigas devem ajudar o gafanhoto e a cigarra ou deixá-los por sua conta e risco, que eles, em unanimidade, defendem que as formigas os devem ajudar, coitadinhos, enquanto os alemães, holandeses, dinamarqueses, finlandeses e outros povos nórdicos entendem, em uníssono, que devem morrer de frio e fome, sem compaixão, tendo o que merecem, dada a sua malandrice.

 

Uns acreditam que o gafanhoto e a cigarra aprenderam a lição e no próximo verão não voltarão a reincidir, outros que prevaricaram e devem ser punidos. 

 

Só assim se fará justiça, tomando como referência o exemplo da formiga, a ser seguido por todos os animais, incluindo o ser humano. 

 

Sucede que compor e tocar música, escrever poemas ou letras para canções, cantar e dançar é um trabalho digno, exigente e gratificante para quem o faz e dele vive, à semelhança de qualquer outro, que compensa e gratifica a vida de todos nós, sendo redutor e simplista associá-lo a mera diversão.

 

O que não significa que os gafanhotos e cigarras absentistas não tenham de começar a trabalhar, ou a trabalhar mais e melhor, e que as formigas, na sua arrogante superioridade, não necessitem de gafanhotos e cigarras, evitando o seu desaparecimento e inevitáveis consequências, humanizando-se e tendo sempre presente a nossa precariedade mundana, que o que aparenta ser superior hoje pode não o ser ou não o é em permanência, em conjugação com  a inviabilidade universal de poder haver só excessos orçamentais, para todos, sem défices, para ninguém, e a necessidade humana de saber viver entre o prevenir amealhando e a compensação cultural e espiritual, mesmo que a título de lazer, sob pena de “dançarmos” todos!  

 

24.07.2018
Joaquim Miguel de Morgado Patrício