Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ANTOLOGIA

  
    Raul Solnado no Centro Nacional de Cultura em 2002


ATORES, ENCENADORES (XX)
BREVE EVOCAÇÃO DE RAUL SOLNADO NO TEATRO, NO CINEMA, NA ÓPERA
por Duarte Ivo Cruz


Evocamos aqui Raul Solnado na perspetiva e na circunstância do cinquentenário do Teatro Villaret, por ele fundado em 1964 e onde estreou em 1965, há exatos 50 anos, com “O Impostor Geral”, adaptação do clássico “Inspetor Geral” de Gogol, “transformado” num espetáculo musical de excelente qualidade. O registo cómico que dominou grande parte da carreira de Solnado não excluiu obviamente a dramaticidade direta ou implícita de uma longa atividade de ator - encenador, e ainda menos, a expressão direta da excecional comunicabilidade com o público em papéis cómicos como em papéis trágicos, no teatro de revista como no teatro declamado, na rádio, no cinema e na televisão.

E vem a propósito evocar também o programa ZIP ZIP, realizado semanalmente no Teatro Villaret a partir de 1969 para a RTP, numa produção conjunta com Fialho Gouveia e Carlos Cruz. Foi de facto um grande momento do espetáculo em Portugal, na simbiose de produção artística direta e de jornalismo televisivo.  

E já referi o desdobramento que o Teatro Villaret efetuou, precisamente em 1965, com a companhia do Teatro do Nosso Tempo, dirigida por Jacinto Ramos, com Maria Barroso na protagonista da “Antígona” de Jean Annouil.

Ora bem: no conjunto de uma carreira de dezenas de anos, repartida em Portugal e no Brasil, pela revista, pelo teatro musicado e declamado – e não só comédia, longe disso – e pela televisão, só poderemos aqui descrever alguns momentos de especificidade, todos eles marcados pela excecional qualidade das interpretações de Solnado, fosse ou não protagonista – e acabava sempre por o ser, independentemente da estrutura das peças e dos personagens desempenhados…

E começo por referir os monólogos, originais ou adaptados, que interpretou numa expressão cénica de contacto direto com o público. Cito designadamente “A História da Ida à Guerra de 1908” de Miguel Gila, devidamente adaptado, na revista “Bate o Pé”, em cena no Teatro Maria Vitória (1961/62). E outros se seguiram.

Há que citar intervenções destacadas num repertório heterogéneo que aliás veio das primeiras colaborações cénicas, designadamente mas não só na Sociedade Guilherme Cossoul - Gil Vicente, “O Fidalgo Aprendiz” de D. Francisco Manoel de Melo (no TMDMII), “O Avarento” de Molière, Tchekcov, Eduardo Schewalbach, o “Baton” de Alfredo Cortez, a “Maria Emília” de Alves Redol, o “Schewik na Segunda Guerra Mundial” de Brecht, muitos autores contemporâneos traduzidos  e também  a revelação de peças portuguesas contemporâneas  como “As Fúrias” de Agustina Bessa-Luis  ou  “O Magnifico Reitor” de Diogo Freitas do Amaral (no Teatro da Trindade). Isto é, uma clara transposição da vivência e problemática da sociedade e da política portuguesa e internacional.

Raul Solnado participou, a partir de 1956/1957 (“Ar Água e Luz” de Ricardo Malheiro, “O Noivo das Caldas” de Artur Duarte, “Perdeu-se um Marido” de Henrique de Campos e “Sangue Toureiro” de Augusto Fraga), em mais de uma dúzia de filmes em Portugal e no Brasil, com destaque para “As Pupilas de Senhor Reitor” (1961) de Perdigão Queiroga, “Dom Roberto” (1962) de José Ernesto de Sousa, este premiado no Festival de Cannes, aquele premiado em Portugal, e ainda, entre outros mais, em “A Balada da Praia dos Cães” de José Fonseca e Costa a partir do romance de José Cardoso Pires.

E finalmente: teve uma intervenção em 1992 na ópera de Johann Strauss “O Morcego”, no Teatro Nacional de São Carlos.

Esta versatilidade em muito ultrapassa o registo, aliás notável em si mesmo, de ator cómico. Raul Solnado era de facto um artista global.


DUARTE IVO CRUZ


Obs: Reposição de texto publicado em 22.04.15 neste blogue.

ANTOLOGIA

  
     Manoel de Oliveira na Mostra de Cinema de Veneza, em 1991


ATORES, ENCENADORES (XVIII)
EVOCAÇÃO DE MANOEL DE OLIVEIRA
por Duarte Ivo Cruz


Faremos aqui referência a Manoel de Oliveira na sua ligação ao mundo do teatro através designadamente da sequência brilhante de filmes que realizou a partir de peças teatrais. Mas também, como ator, destacando precisamente a   marcante interpretação, no clássico “A Canção de Lisboa” (1933) de Cottinelli Telmo.

Manoel de Oliveira surge entretanto em alguns filmes de sua autoria, por vezes “aparições” perfeitamente secundárias ou ocasionais: faz lembrar um pouco, nesse aspeto, o próprio Hitchcock, na figuração instantânea que introduzia sistematicamente nos seus filmes, como uma imagem de marca ou um atestado de autoria.

Não assim, note-se, com Manoel de Oliveira, pois em dois filmes relevantes, um deles, aliás referencial da história do cinema português, desempenhou papéis, não propriamente de protagonista, mas de projeção: na já citada “Canção de Lisboa” e também em “Fátima Milagrosa” (1927) de Rino Lupo, realizador romeno que aliás seria autor, em Portugal, de êxitos meritórios do cinema mudo, como designadamente “Os Lobos”.

Felix Ribeiro considera entretanto que “Fátima Milagrosa” é um filme de pouca qualidade inclusive porque “da parte de muitos interpretes se observava um amadorismo e uma insuficiência dificilmente tolerável”… (in “Filmes, Figuras e Factos do Cinema Português” ed. Cinemateca Portuguesa 1983 pág.225). Ora, dessa deficiência não pode ser acusado Manoel de oliveira, que se limitou, neste filme, a mera figuração, aliás ilustrada no livro citado com uma fotografia.

E esse destaque é testemunho da projeção que viria a atingir Manoel de Oliveira no historial do cinema português. De tal forma que a sua outra participação como “ator profissional” já se revestiu de uma importância destacada. É como se referiu na “Canção de Lisboa” - e nem Cottinelli Telmo seria capaz de confiar a um ator “menor” um papel de relevo neste excelente filme, o primeiro   sonoro totalmente produzido e realizado em Portugal.

Basta ver o elenco: Vasco Santana, António Silva, a jovem Beatriz Costa, e, diz-nos agora Luis de Pina, “a presença jovem de Manoel de Oliveira num belo carro de desporto, já consagrado pelo prestígio de «Douro Faina Fluvial». (in “A Aventura do Cinema Português” -  Veja ed. pág. 39) E é de notar que nomes como Chianca de Garcia, José Gomes Ferreira ou Fernando Fragoso, mesmo alguns deles não referidos no genérico, estiveram ligados à produção.

É altura pois de referir que a longuíssima filmografia de Manoel de Oliveira reflete, em numerosos títulos, uma espécie de evolução da dramaturgia portuguesa, sobretudo a partir de peças, adaptações mais ou menos contemporâneas – e todas elas, contemporâneas do realizador, dada a sua extraordinária longevidade. E é notável que ao longo de dezenas de anos, teve sempre uma noção e visão evidentemente moderna, mas em cada fase, contemporânea das peças e de autores, com a exceção cronológica mas não de espetáculo, do “Acto da Primavera” (1963) representação popular a partir de um texto clássico de Francisco Vaz Guimarães (século XVI).

Mas com essa exceção – e mesmo assim, o espetáculo era na época pelo menos, realizado anualmente -, pode-se dizer que a filmografia de Manoel de Oliveira, no que se refere ao teatro, concentra-se em autores dos nossos tempos... Ora vejamos (as datas referem a produção dos filmes):

1972 - “O Passado e o Presente” de Vicente Sanches; 1974 – “Benilde ou a Virgem Mãea” de José Régio; 1981 – “Visita ou Memórias e Confissões” – diálogos de Agustina Bessa Luis e Manoel de Oliveira; 1981 – “Le Soulier de Satan” de Paul Claudel; 1986 – “O Meu Caso” de José Régio; 1987 - “Os Canibais” ópera de Alvaro Carvalhal sobre libreto de João Paes;  1994 -“A Caixa”  de Prista Monteiro; 1996- “Party” com diálogos de Agustina Bessa Luis; 1998 – “Inquietude” de Prista Monteiro; 2012- “O Gebo e a Sombra” de Raul Brandão.

É por vezes uma cinematografia difícil? Será: mas retomo aqui o comentário de um crítico francês, Jacques Parsi, no livro que dedicou a Manoel de Oliveira (“Manoel de Oliveira – Cineaste Portugais” ed. Centre Culturel Calouste Gulbenkian 2002 pág. 1612):

“Esta forma de escrever o cinema destabiliza alguns espetadores, a ausência do espetacular afasta muitos outros. A dificuldade decorre, no caso, de que é necessário limpar o olhar, desembaraça-lo dos seus reflexos condicionados. Só por aí se pode falar de dificuldade para abordar o cinema de Manoel de Oliveira. Ora paradoxalmente, as pessoas ficam muitas vezes nesta abordagem superficial, sem ver que o que é obscuro, complexo, por vezes insondável, é a vida que é mostrada”.

E no final:

“Os filmes de Oliveira só são simples ou claros na sua linguagem. Ora a simplicidade não é incompatível com o maior refinamento, é o que se chama pureza“.

No blogue acima citado, Guilherme Oliveira Martins refere-se especificamente à “relação muito curiosa e difícil com Agustina bessa-Luis. Dir-se-ia que duas grandes personalidades faziam coexistir a complementaridade e a tensão. Admiravam-se sem renunciar ao sentido crítico”.

Na morte de Manoel de Oliveira, aos 106 anos, fica esta homenagem e esta memória.


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 08.04.15 neste blogue.

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

LEAL SOUVENIR


1.  Por que é que se volta repetidamente a certos lugares que, de viso próprio, nunca escolheríamos? Por que é que se malogram sucessivamente visitas a outros certos lugares, tanto e há tanto tempo desejadas? São duas perguntas sem resposta ou com a mesma resposta que não obtemos quando nos perguntamos o que nos leva a encontrar sucessivamente quem não buscámos nem buscamos ou a desencontrar, com a mesma irregularidade, aquela ou aquele que procurávamos e procuramos. Os acasos têm as costas largas e eu sou daqueles que nunca acreditou na dimensão delas. O que tem que ser tem muita força e raramente se acha força que a contrarie. Lembrei-me disso, em Rimini. Como julgo que já expliquei aqui uma vez (com a idade, a gente repete-se) Rimini nunca foi cidade que eu buscasse. Ora (cf. Público, 8 de novembro de 2002, "Fellini de Rimini") por duas vezes em dois anos seguidos me achei nessa cidade, por obra e graça do mesmo Fellini, cuja obra nunca foi da minha graça. Basta o Templo Malatestiano para obrigar alguém como eu a visitar essa cidade? Basta. O elefante e a rosa. Alberti e Piero. O galgo branco e o galgo negro. A imaculada conceição do Renascimento, necessitas, commoditas, voluptas. Mas não eram coisas minhas, antes de as ver, e eu raramente vejo o que antes não era já meu. Só agora sei que um dia seria. E só agora sei que quando "voei" de Alberti para Bramante e do Templo de Sigismondo para as cúpulas de Santa Maria delle Grazie (é mesmo Grazie, caríssimo Manoel de Oliveira) fiz o "raccord" mais perfeito que se pode fazer entre os cumes do renascimento arquitetónico italiano. Mas não é do Tempietto que hoje vou falar, pois que até a repetição tem limites. Desta vez, embora tenha ganho muito do meu tempo entre o galgo negro de Piero e os rabinhos redondos dos mil "putti" de Isotta degli Atti, os meus passos levaram-me para o museuzinho da cidade, onde eu sabia que podia ver um Bellini que antes muito vira (uma Pietá com anjo cor de rosa). E eis que, de súbito, nessa sala, se me atravessa uma estátua de Santa Catarina (a de Alexandria, não a de Sena) datada de 1410 e atribuída ao "Mestre da Anunciação Dreicer" que não sei quem foi, mas, me soube a Dreyer. É uma estátua de pedra branca com vestígios de policromia. Não é muito alta (1 metro e 30) mas, como a colocaram em cima de um plínio de 40 cm, a cabeça dela ficou quase à altura da minha. Veste um longo manto de pregas que a cobre inteiramente do pescoço aos pés (nenhuma carne visível) e usa uma cabeleira de anjo muito encaracolada. Mas o que me hipnotizou foi o sorriso, um sorriso inenarrável, sossegadissimamente meigo e sossegadissimamente desafiante. Tão desafiante era que, aproveitando o facto de estar sozinho na sala, me aproximei para lá de todos os critérios aconselhados pela mais benevolente segurança. Os olhos da estátua são daqueles que olham frontalmente quem frontalmente os olha a eles. Um dos olhos é cego ou ficou cego de tanto ver. O outro, pelo contrário, olha todo, olha tudo. Assim, quase "cheek-to-cheek", fiquei colado a ela. Ninguém nos interrompeu. Numa vasta sala, solitária e gelada, o meu vulto e o vulto dela, ficaram de corpo-aberto, benzedeiros e videntes, como se diz dos corpos onde entrou um espírito, que dentro dele fala. Como Quinto Fábio Pictor quando foi a Delfos consultar o oráculo e inquirir dos meios mais adequados para alcançar favores divinos. Hawthorne, que como ninguém sabia destas coisas (ele me deu ou dará o título "Proféticas Imagens") falou de experiência semelhante em "The Marble Faun". Sinais de alma que, no mundo, só algumas mulheres têm. E algumas estátuas e alguns quadros. Como a minha - a de Bronzino - Lucrezia Panciatichi, que há seis décadas me vela e me desvela, "Amour Dure-Dure Amour", Madonna do Futuro, Madonna do Passado, como, antes de mim, para Henry James já fora. Como Milly Theale reencontrada.

 

2.  A fotografia, desde os tempos imemoriais em que eu brincava com retratos avoengos de Mniz Martinez, com moradas na Rua de Serpa Pinto n.º 66 e no Largo da Abegoria 4 ou da Helios Photos, com moradas na Avenida da Liberdade 158 ou na Rua de S. José 209 A; a pintura, desde os tempos mais memorizáveis em que abri as Janelas Verdes; tinham-me dado visões semelhantes. A pedra ou o mármore, jamais. A tal ponto que essa estátua dreyeriana (não é gralha) se me sobrepôs à "morbidezza e diligenza" (Vasari o disse, que raramente se enganou) dos vários Malatesta que estão aos pés de S. Vincenzo Ferreri, na pala com o nome do Santo, que é a obra máxima exposta no museu. Ghirlandajo a pintou em 1493, quase cem anos depois de esculpida a Catarina, e, muito mais impressivos do que os Santos adorados (além do "protagonista", os inseparáveis São Sebastião e São Roque) são os adoradores: Pandolfo IV Malatesta, que foi o último senhor de Rimini (tão fraco guerreiro como bom negociante, pois que por duas vezes vendeu a cidade que não conseguiu defender) a mãe, Elisabetta Aldobrandini, a mulher, Violante Bentivoglio e o irmão Carlo. Todos eles, luxuosissimamente vestidos e com a raça imaginável pelos apelidos, não sendo retratos autónomos (figurantes ajoelhados da cena supostamente sacra), em pouco espaço, se volvem para a expressão ideal a que só a "alta immaginazione" pode aceder. Ninguém olha ninguém. Ou seja, não se olham uns aos outros nem olham os santos. Mas é da perna, fugazmente nua, do pestífero São Roque, que desce a carne que os torna tão palpáveis e frementes. Pensei na implausibilidade (para não dizer impossibilidade) de um nariz como o de Pandolfo, a começar quase no meio da testa e a seguir retilíneo quase até à boca, um nariz quase tão soberbo como o do Medicis de Botticelli ou o do Montefeltro de Piero. Na noite desse mesmo dia, jantei com uma italiana que tinha um nariz quase igual. Em Itália nunca se sabe se é a natureza que copia a arte ou se é a arte que copia a natureza. Provavelmente, nem uma nem outra coisa. Os retratos são a mais imaginosa das nossas memórias, ou as mais perduráveis imaginações nossas.

 

3.  Não estou a dizer nada que não tenha sido dito e redito. Só que nos esquecemos de o lembrar. "Nothing, in the whole circle of human vanities, takes stronger hold of the imagination than this affair of having a portrait painted. Yet why should it be so? The looking glass, the polished globes of the andirons, the mirror-like water, and all others reflecting surfaces, continually present us with portraits, or rather ghosts of ourselves, which we glance at, and straightway forget them. But we forget them only because they vanish. It is the idea of duration - of earthy immortality - that gives such a mysterious interest to our own portraits" ("Dentre todas as mundanais vaidades, nada tem mais forte poder sobre a imaginação do que esta coisa de possuir um retrato pintado. Porquê? Porque é que isso acontece? Os espelhos, as vítreas placas das salamandras, a água e todas as superfícies refletoras continuamente nos oferecem retratos, ou, melhor dito, espectros de nós próprios que olhamos de relance e imediatamente esquecemos. Mas só os esquecemos porque desaparecem. É a ideia da permanência - da imortalidade terrena - que confere tão misterioso interesse aos nossos próprios retratos"). Perdi tempo e espaço a citar o texto de Hawthorne (outra vez Hawthorne) no original inglês e na aproximativa tradução portuguesa? Não, não perdi. Ganhei-o. Porque a repetição - como a permanência - estimula a memória e com ela a imaginação. Aprende-se isso no cinema ou com o cinema. Um dos primeiros teóricos dele - Giambattista della Porta - escreveu em 1602 (quase trezentos anos antes dos comboios de Lumière) que "a memória mais não é do que uma pintura inteira, guardada nessa mesa animada a que chamamos cérebro". Ars riminiscendi. Não julgo preciso explicar-vos quem nos ensinou que tudo o que fazemos não é mais do que lembrarmo-nos. E lembro-me do nariz de Pandolfo, do "azul profundo, quase noturno" de Bellini, da cor maléfica "do sumo de papoula" da Lucrezia de Bronzino, do galgo negro nascido das costas do galgo branco de Piero. E lembro-me mais e mais do sorriso evanescente e do olhar húmido da Santa Catarina, única imagem que aqui vos deixo, sabendo que não a vereis como eu a vi, "tremendo com todo o corpo" como Plutarco disse que Cassandro tremeu ao ver a imagem de Alexandre, tempo depois de Alexandre morto. 
Uma última imagem? No retrato de Van Eyck, dito de Timoteos, que hoje está na National Gallery em Londres, lê-se a inscrição "Leal Souvenir". Penso que tudo quanto disse sobre a imagem, a memória e a imaginação, pode caber nessa expressão. E penso - parecendo que não - que tudo quanto vos confiei foram recordações leais. Não mais, não menos.


João Bénard da Costa
in Público, 21 de novembro de 2003

O SAL DA DEMOCRACIA

  


António-Pedro Vasconcelos pode ser tema de muitas crónicas, tal a riqueza da sua personalidade e o carácter apaixonado dos seus combates. Segui, antes de nos conhecermos, com atenção o seu percurso de vida, que se projetou na sua filmografia, e admirei sempre a capacidade única que tinha de compreender que na literatura, no cinema ou em qualquer manifestação da arte e da cultura a narrativa constitui o melhor modo de nos fazermos entender. Ele sabia contar uma história, e sabia que essa era a chave da arte de comunicar. O domínio da escrita e a compreensão dos acontecimentos eram o seu terreno de eleição. Era um grande escritor. Stendhal era o seu confessado mestre no culto da magia das paisagens, da vertigem dos sentimentos e do encantamento do coração e do espírito. E o respeito pela importância da palavra obriga-nos a reconhecer que em António-Pedro está sempre presente o exigente realizador e diretor de cena, que sabia como ninguém ligar o desenrolar de uma história e o ritmo dos respetivos diálogos. Os espectadores mais fiéis do excecional encenador reconhecem os compassos de espera, as aparentes hesitações, já que a linguagem do cinema obriga a pensar a dramaturgia de uma maneira especial. Dir-se-ia que A Cartuxa de Parma era o seu modelo narrativo, enquanto luz sempre presente na condução da trama, dos atores e das cenas, por parte de quem sabia bem que só na tensão e no drama se pode compreender o carácter do género humano. Por isso, perguntava em Perdido por Cem (1972): “quando digo que foi isto que me aconteceu, o eu que o diz e o eu a quem tudo isto aconteceu seremos a mesma pessoa? E porquê esta necessidade de me lembrar?”


Essa mestria na ligação entre a representação e a palavra, como essência do cinema foi relatada por APV a propósito de um episódio passado na épica campanha de Mário Soares em 1986, onde melhor nos conhecemos. Na gravação de um tempo de antena sobre a importância da cultura, o encenador sugeriu ao candidato que terminasse a intervenção dizendo: “porque a cultura é o sal da democracia”. Soares resistiu primeiro, porque nunca usara essa expressão, mas com a inteligência fina que tinha depressa compreendeu que deveria dizê-lo para assim chegar ao coração dos espectadores. Hoje, voltamos a ouvir esse testemunho, e vemos como ele resulta poderoso, direto e verdadeiro. E assim compreendemos como a direção de atores e a capacidade inventiva do criador se revelam fundamentais. Percorrendo a obra de APV, ligando-a à sua coerente e determinada intervenção cívica e política e à defesa do Cinema Novo português, desde o Centro Português de Cinema, com o apoio da Fundação Gulbenkian, até à defesa da criação europeia e à persistente tentativa de atrair o grande público, encontramos bons exemplos de uma sensibilidade cosmopolita e democrática, que constitui uma referência que não pode ser esquecida. Oxalá (1981) é uma reflexão de inconformismo e esperança; O Lugar do Morto (1984) é um caso de sucesso de bilheteira, que tocou o público, pela capacidade de chegar a ele; Aqui d’El Rei! (1992) constitui uma reconstituição histórica que o tempo reconhecerá na sua grande qualidade. Sem desistir, porque foi sempre um homem determinado, continuou a demonstrar uma irrepreensível qualidade na leitura dos acontecimentos, como em Jaime (1999), Os Imortais (2003), Call Girl (2007), Os Gatos Não Têm Vertigens (2014) e Parque Mayer (2018), mantendo ativa a responsabilidade de fazer do cinema expressão de uma sociedade viva, em confronto com outras manifestações da criação cultural. A sociedade, a memória, a reflexão sobre os nossos erros, a mobilização das consciências para a liberdade, os sinais necessários contra o fatalismo e a idolatria – eis o que mantinha desperto e presente o espírito livre de António-Pedro Vasconcelos, afinal, porque a cultura é mesmo o sal da democracia.     


GOM

"O VENTO ASSOBIANDO NAS GRUAS"

  


Villa Regina, Fábrica Velha, Bairro dos Espelhos, Valmares e um mistério – eis as referências. Milene estava em casa por volta do meio-dia a ouvir os “Simple Minds” e tocaram à porta dois agentes da Guarda Nacional Republicana a perguntarem se ela sabia onde estava a avó Regina. E então tudo se precipitou. E uma pergunta terrível ficou por responder. Por que razão e como aconteceu tudo aquilo? “Tudo o que tinha a fazer era imaginar que todas essas coisas caladas se conjugavam para encobrir a noite de quinta-feira, de propósito para ela mesma não saber o que dizer aos tios”. A avó Regina morreu e ela estava só. O romance de Lídia Jorge constitui a base para o filme de Jeanne Waltz, no qual nos deparamos com belas imagens do Sotavento algarvio e o cenário da memória de uma antiga fábrica de conservas, num tempo em que tudo mudou intensamente com a chegada de novas pessoas, encontros e desencontros. E tornam-se evidentes dois mundos, à primeira vista irreconciliáveis, mas dentro do mistério que domina o curso dos acontecimentos, há por obra e graça talvez do acaso a presença sempre enigmática da jovem Milene Leandro, que temos de considerar singular na sua distância de tudo, cuja ingenuidade, lentidão e simplicidade de sentimentos e raciocínio vão, ao longo do romance, torná-la a principal protagonista, respondendo às interrogações fundamentais e revelando o essencial quanto ao destino da vida, sendo vítima da perversidade e da violência, mas capaz de ver o mundo com uma lucidez que os outros não vislumbram.


Parecendo não compreender, Milene é quem melhor entende o fio condutor da existência. E se há distância entre o romance e o filme, já que são duas realidades complementares e diferentes, é porque a literatura é mais adequada a revelar o drama e a força de Milene, em cada silêncio ou em cada palavra, que vêm do íntimo de si mesma. E é através das mãos de Milene que o leitor e o espectador entram na complexidade do tema, atualíssimo, do confronto entre nós e os outros, entre o mundo utilitarista e a procura da essência das coisas, entre supostas certezas e diferenças necessárias. E assim estamos perante um filme, executado com rigor e serena parcimónia, com o desenvolvimento de uma boa história, com bons desempenhos, mas que não dispensa a leitura do romance, que, esse sim, constitui a verdadeira chave para a compreensão da mensagem de Lídia Jorge, que é simultaneamente de uma dura análise do género humano, mas também de uma mensagem de abertura e de esperança, não baseada numa visão doce das coisas mas na adequada consideração do drama, sem a qual nos arriscamos a deixar à indiferença a  compreensão de que temos de recusar o medo dos outros e da incerteza. Afinal, o caso perante o qual nos encontramos associa um amor, um crime e um silêncio para sempre selado.


“O Vento assobiando nas Gruas” permite-nos compreender como o encontro de Milene (Rita Cabaço), esquecida pela família Leandro, com Antonino Mata (Milton Lopes), operador da grua, membro do extraordinário clã crioulo, viúvo com três filhos, é pleno de ensinamentos para os tempos de hoje. E, para além da grande representação de Milene, com um desempenho irrepreensível num papel difícil de uma personagem que vamos compreendendo melhor ao longo filme (como acontece no romance), merece referência a presença de Dino d’Santiago com o tema “Filho do Vento”, que bem representa a cultura cabo-verdiana do funaná, das mornas e coladeiras bem evidente na encenação que presenciamos. Milene, nos seus silêncios e repentes inesperados, permite-nos ver a vida, onde coexistem o bem e o mal, tantas vezes confundidos, obrigando-nos a ir ao encontro da forte e rica criação literária de Lídia Jorge, que tem aqui uma referência marcante na sua obra, felizmente tão fecunda. 


GOM

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


158. A ROTINA FELIZ DOS DIAS PERFEITOS


Será que a mesma rotina e o ritual repetitivo do trabalho diário nos fazem felizes, fazendo perfeitos os nossos dias?       


Dependendo a felicidade essencialmente de condições interiores e, em parte, de condições exteriores, pode dizer-se que, em princípio, todas as pessoas que gozam de boa saúde e podem satisfazer as suas necessidades deveriam ser felizes, ter dias perfeitos, não sendo essa a regra. Porquê?   


Em “Dias Perfeitos”, de Wim Wenders, filme japonês de um realizador alemão, há uma tentativa de resposta, através do elogio às coisas simples e repetitivas da vida, em harmonia com a natureza e a sociedade, num estilo de despojamento monástico, feito de silêncios, contemplação, em interação com a poesia, que nos interpela e exige disponibilidade a quem vê.


Eis os dias perfeitos do inesperado protagonista Hirayama: acordar matinalmente com os primeiros raios solares, barbear-se, vestir-se, tratar das plantas, pegar algumas moedas, comprar um café gelado de máquina, conduzir a carrinha da sua ronda diária, ouvir música enquanto conduz, limpar minuciosamente as mais tecnológicas casas de banho de Tóquio, almoçar uma sandes no mesmo banco do jardim, fotografar árvores com a mesma máquina portátil, tomar banho nas mesmas casas de banho públicas, jantar no mesmo restaurante de bairro, ler antes de dormir, deitar-se e acordar de novo, repetindo-se os mesmos locais, movimentos e o gosto pela leitura, música, fotografia e andar de bicicleta.               


Trata-se de um homem de rotinas que sorri, de poucas falas, sem família, de uma rotina austera, metódica e organizada, desempenhando a função com dedicação e profissionalismo, que educadamente se afasta e espera se alguém quer usar os sanitários, que ouve música num leitor de cassetes, faz culto do analógico, não frequenta redes sociais, mantendo-se afastado (em termos pessoais, mas não profissionais) da tecnologia digital.     


O acordar, levantar, higienização pessoal, vestir, pequeno almoço, sair de casa, trabalho, almoçar, regresso ao lar, jantar, dormir, acordar e levantar de novo, sucessiva e repetitivamente, são os dias perfeitos, universais e transversais a todos nós, no nosso dia a dia costumeiro, obrigatório, evasivo, que nos transcende e em que há a consciência do dever cumprido, pois uma vida sem uma permanente solenidade de ritual legal não serve, sendo mais um favor (e não um absurdo) a pretensa condenação que Sísifo recebeu em nossa representação, salvando-nos do vazio, por mais ilógico que nos pareça.       


E há a força e o poder da música, com banda sonora e canções de Lou Reed (Perfect Day, inspiração do título da película), Patti Smith, Van Morrison, Kinks, Otis Reding, Nina Simone. E uma icónica interpretação, em japonês, num restaurante nipónico, da admirável The House of Rising Sun, dos Animals. Presume-se não ser mero acaso que um dos pontos culminantes do filme seja A Casa do Sol Nascente no Império do Sol Nascente. A que acresce a leitura de obras de Faulkner e Patricia Highsmith, visitas a uma livraria que vende livros usados, revelando-nos um homem curioso, culto e sensível, que tem como bênção ou tábua de salvação a cultura, que o ajuda a superar uma solidão existencial, austera e radical na sua simplicidade.   


Todo este mundo, feito de pequenos mundos, em que o máximo de satisfação é feito de prazeres simples, é quebrado pelo aparecimento de familiares, nomeadamente uma irmã, que o confronta com quão desprezível é trabalhar num emprego desprezado socialmente, quando poderia viver melhor.   


O que nos interpela sobre o que são os nossos dias felizes, perfeitos, a felicidade, a beleza, o espiritual, saber ouvir o silêncio, numa sociedade que se orienta em prol da estética, do consumismo, do culto do excesso, do hedonismo e da imagem, ao invés de um equilíbrio voluntário de autossatisfação e de desejável felicidade, numa simbiose de simplicidade e profundidade, aceitando antecipadamente a rotina como parte inevitável e integrante de todos nós, de todos os dias perfeitos, por mais imperfeitos e finitos que sejam.   


Se assumimos que a maioria das nossas vidas é rotina necessária e consentida, uma sacralização humanista do nosso quotidiano, há que aceitá-la como imprescindível para os nossos dias perfeitos, mesmo que por natureza sejam e sejamos imperfeitos. 


19.01.24
Joaquim M. M. Patrício

UMA SIBILA VOLUNTARIOSA

  


“Germa não reparava no que (Bernardo) dizia. Pensava em Quina. Daquela casa onde nada tinha mudado ou quase nada, onde os tetos mantinham a mesma pintura azul-cinzento de quando, depois do incêndio, fora reedificada, ela ria ficando cada vez mais ausente, pois os mortos só dos vivos se alimentam, e dependem apenas das suas recordações”. Agustina Bessa-Luís retratou em A Sibila com mestria, num cenário minhoto, uma mulher e cem anos da história portuguesa, desde 1850, quando o país encontrou forma de querer modernizar-se e um novo tempo simbolizado na consideração da herança de Quina. Eduardo Brito, dirigiu A Sibila para o cinema e tem razão quando diz que um romance tem muitos filmes lá dentro. Formalmente, trata-se do encerramento das celebrações centenárias de Agustina. Mas, pela riqueza da criação literária, fica pano para mangas, para descobrirmos um extraordinário universo de temas e de personagens, mas também de literatura de primeira água, numa obra que tem neste romance o seu paradigma. O filme respeita por inteiro o lugar sagrado da literatura e faz seguir as personagens como protagonistas vivos, que ajudam a compreender o país histórico, rico de exemplos diferentes e contraditórios, bem ilustrados no germinar das vontades.


Pouco importaria que Bernardo expusesse a sua tese preconceituosa, romântica, banal, contra o burguês. A verdade é que o tempo revelou Quina, a sibila, como um ser raro e apaixonante. Não é por acaso que se é “possuidora de todo o puro enigma do ser humano, vórtice de paixões onde subsiste, oculta, nem sempre declarada, às vezes triunfante, uma aspiração de superação, alento sobre-humano que redime e que transfigura”. Com um pano de fundo de história atribulada, depois de terem assentado as paixões mais violentas das guerras civis, é o país de Camilo que encontramos no que se segue, desde a Patuleia e da Maria da Fonte até ao José do Telhado, José Teixeira da Silva, de estranha aura, companheiro do autor de Memórias do Cárcere, na cadeia da Relação do Porto. Desde a Casa do Freixo até à Vessada, sente-se o Tâmega, Vila Meã e a vitalidade de Amarante. Quina admirava a doce evocação do pai, Francisco Teixeira, com “voz quente e cheia de paciente expressão”, apesar de uma vida pródiga e desinteressada. “Convém obedecer em particular, mas ser rebelde em geral”. E o certo é que “apenas restava a casa, que ele reconstruíra e também arruinara”. Por isso, impelia-a uma tentação “de se arrojar do leito e ir olhar o quinteiro, na madrugada cinzenta, porque sabia que o pai estava lá, aparelhando o carro que devia partir para o mato, enleando a corda nos fueiros e jungindo os bois que tinha descido das cortes, húmidas do vapor das suas respirações”. Contudo as “mulheres viam-se a braços com toda a responsabilidade, o que não era novo para elas”.


“Aos poucos, a casa da Vessada ficou entregue nas mãos de Quina, e ela foi considerada senhora absoluta dentro daquele pequeno reino de campos, moinhos, bandos de galinhas minorcas, cachorros que alguém salvou de morrer afogados nos ribeiros e que ladram, recuando, aos estranhos que têm, pelo meio da quinta, direito de passagem” … Simbolicamente, Germa lê o primeiro volume da obra de Pascoaes – Sempre e Terra Proibida. Com o testamento, ela mesma viria a ser proclamada principal herdeira, enquanto Custódio, provindo da casa da condessa de Monteros, não viu realizada a sua ambição, de ficar com a Vessada, abrindo-se aí uma história muito macabra de puro desvario. Enquanto Quina fora exemplo implacável de energias humanas que se digladiavam e se deram vida, Germa era o relicário atual de um extenuante legado de aspiração humana. “Nas suas veias, estão todos os infinitos estados do passado…”.  E quem é ela, literata, “para ser um pouco mais que Quina e esperar que os tempos novos sejam mais aptos a esclarecer o homem e a trazer-lhe a solução de si próprio?”


GOM

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


No filme ‘Le Genou de Claire’ é exatamente neste sítio, justamente no verão, que se permite o fluir incerto do conhecimento de um eu.


No filme ‘Le Genou de Claire’ (Eric Rohmer, 1970) o espaço exterior físico manipula e influencia a vida das personagens. O espaço exterior é assim entendido como um campo de mútua interação entre a esfera espiritual e a esfera material.


A história deste filme só existe porque se dá naquele determinado lugar e naquele preciso momento. Abre-se numa porção vaga e desocupada do tempo. Jérôme aceita as regras de Aurora para justificar o seu amor fiel e verdadeiro a Lucinde. Na opinião de Carlos F. Heredero e Antonio Santamarina, Aurora, é a verdadeira narradora desta história ao conduzir as cegas acções de Jérôme. É o carácter demiurgo de Aurora que transporta Jérôme para momentos de escolha. É através de Aurora que Jérôme se fragmenta e se transforma em corpo que sente sem restrições. É um momento de prova, de resistência e de decisão para Jérôme de modo a encarnar algo sublime.


Em ‘Le Genou de Claire’, a película foi filmada cronologicamente de modo a proporcionar uma acentuação das verdadeiras e objetivas variações e instabilidades do tempo e do espaço que se refletem nas personagens. As montanhas, o lago, as cerejeiras, o sol, a chuva, as diferentes horas e a distinta luz contribuem para explorar o movimento aleatório que permite o advir da reflexão e da narração. C. G. Crisp, no livro “Eric Rohmer. Realist and Moralist.”, escreve que nos filmes de Rohmer, a moral parece originar-se natural e inevitavelmente de uma observação objectiva do mundo, em vez de ser uma ordem imposta a esse mundo: “the world must seem to generate the ideology, rather than the ideology the world.” (Crisp 1988, 34). 


Deste modo, apesar das tentativas permanentes do narrador em controlar as circunstâncias exteriores, este filme de Rohmer é meteorológico porque parece estar constantemente dispostos à mudança e ao acaso. São os lugares que ajudam a construir as personagens de Rohmer. É precisamente junto do lago Annecy que Jérôme se vai construindo e se marginalizando. O filme faz crer que é exatamente neste sítio, justamente no verão, que se permite o fluir incerto do conhecimento de um eu (lugar de reflexão) através do inesperado confronto com os outros (lugar de relações humanas).


“Rohmer’s Moral Tales should deal with the unstable, the relative - as must any narrative - and that the ‘pre-destined beloved’ should be more or less absent from the films. Love, in this reading, is ’something else’ - or rather ‘somewhere else’ - it is outside time and outside narrative. Only the digression from that state, only the sensual desire with its implication of movement and process, can let itself be told.” (Crisp 1988, 66)


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


No filme Le Signe du Lion, a cidade é usada como metáfora para o caminho de encontro com o destino.


No filme Le Signe du Lion (Eric Rohmer, 1959) a cidade aparece como o último refúgio do ser humano. Revela-se abrigo mas também uma claustrofóbica prisão. Neste filme, a cidade é a condutora para a redenção e para o arrependimento.


A história de Le Signe du Lion acompanha a transformação de Pierre Wesselrin, um artista fracassado e boémio que vive em Saint-Germain-des-Prés. Pierre ficou sem casa logo após ter sido deserdado. Apesar do seu talento para a música, Pierre sempre dependeu dos seus amigos para viver. É verão e todos estão ausentes. Pierre procura em vão alguém que o salve.


Objetivamente vai-se seguindo, a degradação desta personagem. Ao seguir Pierre pelas ruas de Paris, presencia-se ao que ele está exposto, permite-se a participação da consciência da personagem e a uma visão objetiva de uma sucessão de factos. O espaço físico de Paris é descrito sob um sol tórrido e o andar lento, perdido e abandonado de Pierre. A cidade é assim usada como metáfora para o caminho de encontro com o destino. É uma odisseia de quem anda sem parar, de quem quer encontrar um poiso num espaço duro e cheio de pedra. A cidade descobre-se árida e desolada e a pedra, neste filme, representa a rigidez, a ordem, a opressão e a restrição urbana.


No livro “Eric Rohmer. Realist and Moralist.” de C. G. Crisp lê-se que Rohmer, em Le Signe du Lion abstem-se de inserir no filme alusões explicitas às implicações religiosas da narrativa - é a exploração de um trajeto de uma personagem na sociedade e a sua relação com os outros que aqui importa. Rohmer confia que será através de uma paciente e meticulosa acumulação de observações do mundo real exterior que irão revelar inevitavelmente a evolução da personagem. (Crisp 1988, 26)


Pierre perdeu o seu lugar, o seu território e quer voltar a tê-lo. Mas o desalento e a resignação dominam os passos deste homem.


Rohmer filma Paris meticulosamente, seguindo percursos com precisão topográfica. No livro “Eric Rohmer”, Joël Magny escreve que Rohmer filma o estado de alma de Pierre, indiretamente, através da cidade visível. Por meio da composição, do som, da música repetitiva, da luz, de símbolos e da montagem - o mundo objetivo segue assim como sendo o reflexo do mundo subjetivo de Pierre. Para Magny, Rohmer realiza um cinema que dá a conhecer, que dá a ver através do espaço e do tempo. Na verdade, os trajetos físicos estão ligados a motivos e a aspirações espirituais. Magny explica que cada gesto, cada passo e cada movimento têm um duplo significado físico/material e intelectual/metafísico. Cada percurso é revelador da essência das coisas. Por isso, ao procurar abordar objetivamente o mundo e os indivíduos, Rohmer consegue também aproximar-se do acaso e do inexplicável. O modo de vida de Pierre, em Le Signe du Lion consistia em acreditar simplesmente na sua sorte e não no seu talento e em esperar por um meio de subsistência vindo do exterior (de amigos ou de uma tia com herança).


Crisp escreve que no decorrer da sua degradação física, Pierre, despojado de tudo e preso num labirinto de pedra quente, é forçado a seguir caminhos (urbanos e suburbanos) sob o olhar impiedoso de Deus. Nesse momento a cidade recusa-se a abrir qualquer horizonte. Na opinião de Crisp, a luta contra a pedra das paredes da cidade é uma metáfora que descreve o combate que Pierre tem de travar contra si próprio e contra a sua natureza mundana. Como se de um grande peso se tratasse, Pierre quer libertar-se das pedras assim como deseja aprender a rejeitar o domínio das coisas do mundo.


Para Rohmer, a existência de Deus não é deduzida diretamente através da ordem terrena, é sim, um compromisso total e irracional. Para Crisp, embora seja possível interpretar as experiências de Pierre como uma provação, os vários momentos em que parece não haver intervenção divina afiguram-se arbitrários, ambíguos e até mesmo acidentais (a herança perdida, o óleo derramado, o bilhete de metro caído, os amigos ausentes, o sapato quebrado).


“On peut lire alors cette fable comme une parabole chrétienne: aide-toi, le Ciel t'aidera! C'est lorsque Wesselrin utilise ses dons musicaux (qu'il avait galvaudés jusque-là) pour gagner les quelques piécettes nécessaires à sa subsistance, en jouant du violon à la terrasse des cafés remplis de touristes, que le ciel lui enverra la Grâce. C'est par sa musique que ses amis vont le retrouver.” (Magny 1986, 35)


Só no final, ao tocar violino, no limiar do abismo e da total desintegração, Pierre realiza que as suas pretensões eram vazias e irrelevantes. A salvação de Pierre é assim racionalmente injustificável, é ordem acaso. Magny esclarece que o plano divino, que faz de Pierre de novo um herdeiro, é a expressão do momento em que, quando não há mais perigo de decadência, quando não se pode cair mais fundo, o milagre acontece e o movimento da esperança ressuscita.


Para Crisp, Pierre personifica toda a humanidade ao ter de ultrapassar sucessivas provas físicas que o levarão da queda à culpa e da graça e à salvação. E a cidade é a testemunha deste prodígio e a possibilitadora desse momento fora do tempo - é espaço onde todas as regras são suspensas, onde a fenda se abre e a ordem sobrenatural se manifesta. É a cidade que faz com que de novo Pierre encontre o seu caminho.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Em Les Nuits de la Pleine Lune opõe-se espiritualidade e fisicalidade.


O espaço físico reflete o interior de cada ser. A atenção, ao mundo que nos rodeia, recai sempre sobre aquilo que nos dá outra dimensão. Os filmes de Éric Rohmer promovem frequentemente a analogia entre o pensamento e o espaço físico.


No livro “Eric Rohmer. Realist and Moralist.”, C. G. Crisp explica que, no filme Les Nuits de la Pleine Lune (Rohmer, 1984) , a obsessão de Louise em estar sempre no centro, onde acontece tudo, transmite-se nas constantes viagens entre as duas casas que se situam em Marne la Vallée e Paris. Louise tem vontade de estar no lugar de maior artifício, pretensão e movimento e não à margem. Crisp explica que até para Louise as outras personagens servem somente para fornecer olhares de admiração e estabelecer uma infinita rede de conexões.


O provérbio, que aparece no genérico, lembra que quem tem duas casas pode enlouquecer e pôr em perigo a sua alma. Segundo Crisp, o erro de Louise é o de confundir o centro geográfico e social (neste caso Paris) com o centro espiritual (lugar onde que a vida fará sentido). Nos filmes de Rohmer, as verdades essenciais e as relações permanentes só são descobertas na periferia das coisas, na borda, no que está perdido, em instantes fugazes ou em momentos em que a cidade (espaço) se torna enganosa e indiferente. A intensidade da vida metropolitana faz o indivíduo perder-se no anonimato da agitação.


O novo conjunto habitacional de Marne la Vallée (onde Louise habita com Rémi) parece ser sombrio e taciturno e Louise sente-se aí aprisionada. Louise, durante todo o filme, não deseja encontrar-se em Marne la Vallée. Louise anseia sim pelo alvoroço e a inquietação da cidade central para se esvaecer. Crisp escreve que Louise é acima de tudo seduzida pela necessidade de ser completamente livre e de manter todas as possibilidades em aberto.


“Louise: (…) J’ai besoin d’être seule, de temps en temps, vraiment seule. (…)
Octave: La solitude, ce n’est pas marrant du tout.
Louise: Je verrai. Qu’on me laisse au moins voir par moi-même!
Octave: Qui t’empêche?
Louise: Les autres, les gens qui m’aiment, en général. On m’aime trop.” (Rohmer 1999, 13)


Para Crisp, o filme explora motivos já conhecidos na obra de Rohmer, no que diz respeito à oposição e confronto entre espiritualidade e fisicalidade. Na série dos contos morais, a personagem principal conseguia, como que por milagre escapar às fraquezas espirituais. Porém, em Les Nuits de la Pleine Lune, a éterea Louise não é resgatada por nenhuma moral. Mas é no final, sob a lua cheia, que a casa de Paris (o espaço central) passa a ser cativeiro. É a própria Louise, que propõe a Rémi a abertura de outras possibilidades (sem imaginar o desgosto que irá ter).


Para Crisp, a angústia de Louise, no final, é um sinal de derrota, mas é principalmente um sinal de conversão tardia a sentimentos profundos. Na opinião de Crisp os jovens deste filme são descrito através de uma existência sombria e sem sentido - incapazes de escolher, ávidos de experiência e de tudo ao mesmo tempo e carentes de princípios (pelo menos inicialmente). Louise não suporta a natureza - a vida no campo provoca-lhe angustia - mas Crisp sublinha que é o seu estilo de vida noturno que a fará redescobrir precisamente o domínio dos seus impulsos através da natureza lunar.


Sendo assim, Crisp termina, esclarecendo que este é um dos filmes que mais efetivamente explora as oposições estruturais que estão presentes na obra de Rohmer. Neste filme, opõe-se liberdade e pertença; multiplicidade e unidade; espiritualidade e fisicalidade. Na busca pela liberdade, Louise toma consciência da sua dependência. Na procura pela sua individualidade, Louise encontra-se apenas solitária. Na vontade em viver no centro de tudo, Louise descobre que é na margem que estão os sentimentos mais profundos e permanentes. Estas e outras ironias servem para demonstrar que, dentro da estrutura fixa, característica dos filmes de Rohmer, existe infinito espaço contentor de contradições, isto porque o espaço físico é mesmo reflexo da dimensão interior.


Ana Ruepp