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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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"O VENTO ASSOBIANDO NAS GRUAS"

  


Villa Regina, Fábrica Velha, Bairro dos Espelhos, Valmares e um mistério – eis as referências. Milene estava em casa por volta do meio-dia a ouvir os “Simple Minds” e tocaram à porta dois agentes da Guarda Nacional Republicana a perguntarem se ela sabia onde estava a avó Regina. E então tudo se precipitou. E uma pergunta terrível ficou por responder. Por que razão e como aconteceu tudo aquilo? “Tudo o que tinha a fazer era imaginar que todas essas coisas caladas se conjugavam para encobrir a noite de quinta-feira, de propósito para ela mesma não saber o que dizer aos tios”. A avó Regina morreu e ela estava só. O romance de Lídia Jorge constitui a base para o filme de Jeanne Waltz, no qual nos deparamos com belas imagens do Sotavento algarvio e o cenário da memória de uma antiga fábrica de conservas, num tempo em que tudo mudou intensamente com a chegada de novas pessoas, encontros e desencontros. E tornam-se evidentes dois mundos, à primeira vista irreconciliáveis, mas dentro do mistério que domina o curso dos acontecimentos, há por obra e graça talvez do acaso a presença sempre enigmática da jovem Milene Leandro, que temos de considerar singular na sua distância de tudo, cuja ingenuidade, lentidão e simplicidade de sentimentos e raciocínio vão, ao longo do romance, torná-la a principal protagonista, respondendo às interrogações fundamentais e revelando o essencial quanto ao destino da vida, sendo vítima da perversidade e da violência, mas capaz de ver o mundo com uma lucidez que os outros não vislumbram.


Parecendo não compreender, Milene é quem melhor entende o fio condutor da existência. E se há distância entre o romance e o filme, já que são duas realidades complementares e diferentes, é porque a literatura é mais adequada a revelar o drama e a força de Milene, em cada silêncio ou em cada palavra, que vêm do íntimo de si mesma. E é através das mãos de Milene que o leitor e o espectador entram na complexidade do tema, atualíssimo, do confronto entre nós e os outros, entre o mundo utilitarista e a procura da essência das coisas, entre supostas certezas e diferenças necessárias. E assim estamos perante um filme, executado com rigor e serena parcimónia, com o desenvolvimento de uma boa história, com bons desempenhos, mas que não dispensa a leitura do romance, que, esse sim, constitui a verdadeira chave para a compreensão da mensagem de Lídia Jorge, que é simultaneamente de uma dura análise do género humano, mas também de uma mensagem de abertura e de esperança, não baseada numa visão doce das coisas mas na adequada consideração do drama, sem a qual nos arriscamos a deixar à indiferença a  compreensão de que temos de recusar o medo dos outros e da incerteza. Afinal, o caso perante o qual nos encontramos associa um amor, um crime e um silêncio para sempre selado.


“O Vento assobiando nas Gruas” permite-nos compreender como o encontro de Milene (Rita Cabaço), esquecida pela família Leandro, com Antonino Mata (Milton Lopes), operador da grua, membro do extraordinário clã crioulo, viúvo com três filhos, é pleno de ensinamentos para os tempos de hoje. E, para além da grande representação de Milene, com um desempenho irrepreensível num papel difícil de uma personagem que vamos compreendendo melhor ao longo filme (como acontece no romance), merece referência a presença de Dino d’Santiago com o tema “Filho do Vento”, que bem representa a cultura cabo-verdiana do funaná, das mornas e coladeiras bem evidente na encenação que presenciamos. Milene, nos seus silêncios e repentes inesperados, permite-nos ver a vida, onde coexistem o bem e o mal, tantas vezes confundidos, obrigando-nos a ir ao encontro da forte e rica criação literária de Lídia Jorge, que tem aqui uma referência marcante na sua obra, felizmente tão fecunda. 


GOM

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


158. A ROTINA FELIZ DOS DIAS PERFEITOS


Será que a mesma rotina e o ritual repetitivo do trabalho diário nos fazem felizes, fazendo perfeitos os nossos dias?       


Dependendo a felicidade essencialmente de condições interiores e, em parte, de condições exteriores, pode dizer-se que, em princípio, todas as pessoas que gozam de boa saúde e podem satisfazer as suas necessidades deveriam ser felizes, ter dias perfeitos, não sendo essa a regra. Porquê?   


Em “Dias Perfeitos”, de Wim Wenders, filme japonês de um realizador alemão, há uma tentativa de resposta, através do elogio às coisas simples e repetitivas da vida, em harmonia com a natureza e a sociedade, num estilo de despojamento monástico, feito de silêncios, contemplação, em interação com a poesia, que nos interpela e exige disponibilidade a quem vê.


Eis os dias perfeitos do inesperado protagonista Hirayama: acordar matinalmente com os primeiros raios solares, barbear-se, vestir-se, tratar das plantas, pegar algumas moedas, comprar um café gelado de máquina, conduzir a carrinha da sua ronda diária, ouvir música enquanto conduz, limpar minuciosamente as mais tecnológicas casas de banho de Tóquio, almoçar uma sandes no mesmo banco do jardim, fotografar árvores com a mesma máquina portátil, tomar banho nas mesmas casas de banho públicas, jantar no mesmo restaurante de bairro, ler antes de dormir, deitar-se e acordar de novo, repetindo-se os mesmos locais, movimentos e o gosto pela leitura, música, fotografia e andar de bicicleta.               


Trata-se de um homem de rotinas que sorri, de poucas falas, sem família, de uma rotina austera, metódica e organizada, desempenhando a função com dedicação e profissionalismo, que educadamente se afasta e espera se alguém quer usar os sanitários, que ouve música num leitor de cassetes, faz culto do analógico, não frequenta redes sociais, mantendo-se afastado (em termos pessoais, mas não profissionais) da tecnologia digital.     


O acordar, levantar, higienização pessoal, vestir, pequeno almoço, sair de casa, trabalho, almoçar, regresso ao lar, jantar, dormir, acordar e levantar de novo, sucessiva e repetitivamente, são os dias perfeitos, universais e transversais a todos nós, no nosso dia a dia costumeiro, obrigatório, evasivo, que nos transcende e em que há a consciência do dever cumprido, pois uma vida sem uma permanente solenidade de ritual legal não serve, sendo mais um favor (e não um absurdo) a pretensa condenação que Sísifo recebeu em nossa representação, salvando-nos do vazio, por mais ilógico que nos pareça.       


E há a força e o poder da música, com banda sonora e canções de Lou Reed (Perfect Day, inspiração do título da película), Patti Smith, Van Morrison, Kinks, Otis Reding, Nina Simone. E uma icónica interpretação, em japonês, num restaurante nipónico, da admirável The House of Rising Sun, dos Animals. Presume-se não ser mero acaso que um dos pontos culminantes do filme seja A Casa do Sol Nascente no Império do Sol Nascente. A que acresce a leitura de obras de Faulkner e Patricia Highsmith, visitas a uma livraria que vende livros usados, revelando-nos um homem curioso, culto e sensível, que tem como bênção ou tábua de salvação a cultura, que o ajuda a superar uma solidão existencial, austera e radical na sua simplicidade.   


Todo este mundo, feito de pequenos mundos, em que o máximo de satisfação é feito de prazeres simples, é quebrado pelo aparecimento de familiares, nomeadamente uma irmã, que o confronta com quão desprezível é trabalhar num emprego desprezado socialmente, quando poderia viver melhor.   


O que nos interpela sobre o que são os nossos dias felizes, perfeitos, a felicidade, a beleza, o espiritual, saber ouvir o silêncio, numa sociedade que se orienta em prol da estética, do consumismo, do culto do excesso, do hedonismo e da imagem, ao invés de um equilíbrio voluntário de autossatisfação e de desejável felicidade, numa simbiose de simplicidade e profundidade, aceitando antecipadamente a rotina como parte inevitável e integrante de todos nós, de todos os dias perfeitos, por mais imperfeitos e finitos que sejam.   


Se assumimos que a maioria das nossas vidas é rotina necessária e consentida, uma sacralização humanista do nosso quotidiano, há que aceitá-la como imprescindível para os nossos dias perfeitos, mesmo que por natureza sejam e sejamos imperfeitos. 


19.01.24
Joaquim M. M. Patrício

UMA SIBILA VOLUNTARIOSA

  


“Germa não reparava no que (Bernardo) dizia. Pensava em Quina. Daquela casa onde nada tinha mudado ou quase nada, onde os tetos mantinham a mesma pintura azul-cinzento de quando, depois do incêndio, fora reedificada, ela ria ficando cada vez mais ausente, pois os mortos só dos vivos se alimentam, e dependem apenas das suas recordações”. Agustina Bessa-Luís retratou em A Sibila com mestria, num cenário minhoto, uma mulher e cem anos da história portuguesa, desde 1850, quando o país encontrou forma de querer modernizar-se e um novo tempo simbolizado na consideração da herança de Quina. Eduardo Brito, dirigiu A Sibila para o cinema e tem razão quando diz que um romance tem muitos filmes lá dentro. Formalmente, trata-se do encerramento das celebrações centenárias de Agustina. Mas, pela riqueza da criação literária, fica pano para mangas, para descobrirmos um extraordinário universo de temas e de personagens, mas também de literatura de primeira água, numa obra que tem neste romance o seu paradigma. O filme respeita por inteiro o lugar sagrado da literatura e faz seguir as personagens como protagonistas vivos, que ajudam a compreender o país histórico, rico de exemplos diferentes e contraditórios, bem ilustrados no germinar das vontades.


Pouco importaria que Bernardo expusesse a sua tese preconceituosa, romântica, banal, contra o burguês. A verdade é que o tempo revelou Quina, a sibila, como um ser raro e apaixonante. Não é por acaso que se é “possuidora de todo o puro enigma do ser humano, vórtice de paixões onde subsiste, oculta, nem sempre declarada, às vezes triunfante, uma aspiração de superação, alento sobre-humano que redime e que transfigura”. Com um pano de fundo de história atribulada, depois de terem assentado as paixões mais violentas das guerras civis, é o país de Camilo que encontramos no que se segue, desde a Patuleia e da Maria da Fonte até ao José do Telhado, José Teixeira da Silva, de estranha aura, companheiro do autor de Memórias do Cárcere, na cadeia da Relação do Porto. Desde a Casa do Freixo até à Vessada, sente-se o Tâmega, Vila Meã e a vitalidade de Amarante. Quina admirava a doce evocação do pai, Francisco Teixeira, com “voz quente e cheia de paciente expressão”, apesar de uma vida pródiga e desinteressada. “Convém obedecer em particular, mas ser rebelde em geral”. E o certo é que “apenas restava a casa, que ele reconstruíra e também arruinara”. Por isso, impelia-a uma tentação “de se arrojar do leito e ir olhar o quinteiro, na madrugada cinzenta, porque sabia que o pai estava lá, aparelhando o carro que devia partir para o mato, enleando a corda nos fueiros e jungindo os bois que tinha descido das cortes, húmidas do vapor das suas respirações”. Contudo as “mulheres viam-se a braços com toda a responsabilidade, o que não era novo para elas”.


“Aos poucos, a casa da Vessada ficou entregue nas mãos de Quina, e ela foi considerada senhora absoluta dentro daquele pequeno reino de campos, moinhos, bandos de galinhas minorcas, cachorros que alguém salvou de morrer afogados nos ribeiros e que ladram, recuando, aos estranhos que têm, pelo meio da quinta, direito de passagem” … Simbolicamente, Germa lê o primeiro volume da obra de Pascoaes – Sempre e Terra Proibida. Com o testamento, ela mesma viria a ser proclamada principal herdeira, enquanto Custódio, provindo da casa da condessa de Monteros, não viu realizada a sua ambição, de ficar com a Vessada, abrindo-se aí uma história muito macabra de puro desvario. Enquanto Quina fora exemplo implacável de energias humanas que se digladiavam e se deram vida, Germa era o relicário atual de um extenuante legado de aspiração humana. “Nas suas veias, estão todos os infinitos estados do passado…”.  E quem é ela, literata, “para ser um pouco mais que Quina e esperar que os tempos novos sejam mais aptos a esclarecer o homem e a trazer-lhe a solução de si próprio?”


GOM

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


No filme ‘Le Genou de Claire’ é exatamente neste sítio, justamente no verão, que se permite o fluir incerto do conhecimento de um eu.


No filme ‘Le Genou de Claire’ (Eric Rohmer, 1970) o espaço exterior físico manipula e influencia a vida das personagens. O espaço exterior é assim entendido como um campo de mútua interação entre a esfera espiritual e a esfera material.


A história deste filme só existe porque se dá naquele determinado lugar e naquele preciso momento. Abre-se numa porção vaga e desocupada do tempo. Jérôme aceita as regras de Aurora para justificar o seu amor fiel e verdadeiro a Lucinde. Na opinião de Carlos F. Heredero e Antonio Santamarina, Aurora, é a verdadeira narradora desta história ao conduzir as cegas acções de Jérôme. É o carácter demiurgo de Aurora que transporta Jérôme para momentos de escolha. É através de Aurora que Jérôme se fragmenta e se transforma em corpo que sente sem restrições. É um momento de prova, de resistência e de decisão para Jérôme de modo a encarnar algo sublime.


Em ‘Le Genou de Claire’, a película foi filmada cronologicamente de modo a proporcionar uma acentuação das verdadeiras e objetivas variações e instabilidades do tempo e do espaço que se refletem nas personagens. As montanhas, o lago, as cerejeiras, o sol, a chuva, as diferentes horas e a distinta luz contribuem para explorar o movimento aleatório que permite o advir da reflexão e da narração. C. G. Crisp, no livro “Eric Rohmer. Realist and Moralist.”, escreve que nos filmes de Rohmer, a moral parece originar-se natural e inevitavelmente de uma observação objectiva do mundo, em vez de ser uma ordem imposta a esse mundo: “the world must seem to generate the ideology, rather than the ideology the world.” (Crisp 1988, 34). 


Deste modo, apesar das tentativas permanentes do narrador em controlar as circunstâncias exteriores, este filme de Rohmer é meteorológico porque parece estar constantemente dispostos à mudança e ao acaso. São os lugares que ajudam a construir as personagens de Rohmer. É precisamente junto do lago Annecy que Jérôme se vai construindo e se marginalizando. O filme faz crer que é exatamente neste sítio, justamente no verão, que se permite o fluir incerto do conhecimento de um eu (lugar de reflexão) através do inesperado confronto com os outros (lugar de relações humanas).


“Rohmer’s Moral Tales should deal with the unstable, the relative - as must any narrative - and that the ‘pre-destined beloved’ should be more or less absent from the films. Love, in this reading, is ’something else’ - or rather ‘somewhere else’ - it is outside time and outside narrative. Only the digression from that state, only the sensual desire with its implication of movement and process, can let itself be told.” (Crisp 1988, 66)


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


No filme Le Signe du Lion, a cidade é usada como metáfora para o caminho de encontro com o destino.


No filme Le Signe du Lion (Eric Rohmer, 1959) a cidade aparece como o último refúgio do ser humano. Revela-se abrigo mas também uma claustrofóbica prisão. Neste filme, a cidade é a condutora para a redenção e para o arrependimento.


A história de Le Signe du Lion acompanha a transformação de Pierre Wesselrin, um artista fracassado e boémio que vive em Saint-Germain-des-Prés. Pierre ficou sem casa logo após ter sido deserdado. Apesar do seu talento para a música, Pierre sempre dependeu dos seus amigos para viver. É verão e todos estão ausentes. Pierre procura em vão alguém que o salve.


Objetivamente vai-se seguindo, a degradação desta personagem. Ao seguir Pierre pelas ruas de Paris, presencia-se ao que ele está exposto, permite-se a participação da consciência da personagem e a uma visão objetiva de uma sucessão de factos. O espaço físico de Paris é descrito sob um sol tórrido e o andar lento, perdido e abandonado de Pierre. A cidade é assim usada como metáfora para o caminho de encontro com o destino. É uma odisseia de quem anda sem parar, de quem quer encontrar um poiso num espaço duro e cheio de pedra. A cidade descobre-se árida e desolada e a pedra, neste filme, representa a rigidez, a ordem, a opressão e a restrição urbana.


No livro “Eric Rohmer. Realist and Moralist.” de C. G. Crisp lê-se que Rohmer, em Le Signe du Lion abstem-se de inserir no filme alusões explicitas às implicações religiosas da narrativa - é a exploração de um trajeto de uma personagem na sociedade e a sua relação com os outros que aqui importa. Rohmer confia que será através de uma paciente e meticulosa acumulação de observações do mundo real exterior que irão revelar inevitavelmente a evolução da personagem. (Crisp 1988, 26)


Pierre perdeu o seu lugar, o seu território e quer voltar a tê-lo. Mas o desalento e a resignação dominam os passos deste homem.


Rohmer filma Paris meticulosamente, seguindo percursos com precisão topográfica. No livro “Eric Rohmer”, Joël Magny escreve que Rohmer filma o estado de alma de Pierre, indiretamente, através da cidade visível. Por meio da composição, do som, da música repetitiva, da luz, de símbolos e da montagem - o mundo objetivo segue assim como sendo o reflexo do mundo subjetivo de Pierre. Para Magny, Rohmer realiza um cinema que dá a conhecer, que dá a ver através do espaço e do tempo. Na verdade, os trajetos físicos estão ligados a motivos e a aspirações espirituais. Magny explica que cada gesto, cada passo e cada movimento têm um duplo significado físico/material e intelectual/metafísico. Cada percurso é revelador da essência das coisas. Por isso, ao procurar abordar objetivamente o mundo e os indivíduos, Rohmer consegue também aproximar-se do acaso e do inexplicável. O modo de vida de Pierre, em Le Signe du Lion consistia em acreditar simplesmente na sua sorte e não no seu talento e em esperar por um meio de subsistência vindo do exterior (de amigos ou de uma tia com herança).


Crisp escreve que no decorrer da sua degradação física, Pierre, despojado de tudo e preso num labirinto de pedra quente, é forçado a seguir caminhos (urbanos e suburbanos) sob o olhar impiedoso de Deus. Nesse momento a cidade recusa-se a abrir qualquer horizonte. Na opinião de Crisp, a luta contra a pedra das paredes da cidade é uma metáfora que descreve o combate que Pierre tem de travar contra si próprio e contra a sua natureza mundana. Como se de um grande peso se tratasse, Pierre quer libertar-se das pedras assim como deseja aprender a rejeitar o domínio das coisas do mundo.


Para Rohmer, a existência de Deus não é deduzida diretamente através da ordem terrena, é sim, um compromisso total e irracional. Para Crisp, embora seja possível interpretar as experiências de Pierre como uma provação, os vários momentos em que parece não haver intervenção divina afiguram-se arbitrários, ambíguos e até mesmo acidentais (a herança perdida, o óleo derramado, o bilhete de metro caído, os amigos ausentes, o sapato quebrado).


“On peut lire alors cette fable comme une parabole chrétienne: aide-toi, le Ciel t'aidera! C'est lorsque Wesselrin utilise ses dons musicaux (qu'il avait galvaudés jusque-là) pour gagner les quelques piécettes nécessaires à sa subsistance, en jouant du violon à la terrasse des cafés remplis de touristes, que le ciel lui enverra la Grâce. C'est par sa musique que ses amis vont le retrouver.” (Magny 1986, 35)


Só no final, ao tocar violino, no limiar do abismo e da total desintegração, Pierre realiza que as suas pretensões eram vazias e irrelevantes. A salvação de Pierre é assim racionalmente injustificável, é ordem acaso. Magny esclarece que o plano divino, que faz de Pierre de novo um herdeiro, é a expressão do momento em que, quando não há mais perigo de decadência, quando não se pode cair mais fundo, o milagre acontece e o movimento da esperança ressuscita.


Para Crisp, Pierre personifica toda a humanidade ao ter de ultrapassar sucessivas provas físicas que o levarão da queda à culpa e da graça e à salvação. E a cidade é a testemunha deste prodígio e a possibilitadora desse momento fora do tempo - é espaço onde todas as regras são suspensas, onde a fenda se abre e a ordem sobrenatural se manifesta. É a cidade que faz com que de novo Pierre encontre o seu caminho.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Em Les Nuits de la Pleine Lune opõe-se espiritualidade e fisicalidade.


O espaço físico reflete o interior de cada ser. A atenção, ao mundo que nos rodeia, recai sempre sobre aquilo que nos dá outra dimensão. Os filmes de Éric Rohmer promovem frequentemente a analogia entre o pensamento e o espaço físico.


No livro “Eric Rohmer. Realist and Moralist.”, C. G. Crisp explica que, no filme Les Nuits de la Pleine Lune (Rohmer, 1984) , a obsessão de Louise em estar sempre no centro, onde acontece tudo, transmite-se nas constantes viagens entre as duas casas que se situam em Marne la Vallée e Paris. Louise tem vontade de estar no lugar de maior artifício, pretensão e movimento e não à margem. Crisp explica que até para Louise as outras personagens servem somente para fornecer olhares de admiração e estabelecer uma infinita rede de conexões.


O provérbio, que aparece no genérico, lembra que quem tem duas casas pode enlouquecer e pôr em perigo a sua alma. Segundo Crisp, o erro de Louise é o de confundir o centro geográfico e social (neste caso Paris) com o centro espiritual (lugar onde que a vida fará sentido). Nos filmes de Rohmer, as verdades essenciais e as relações permanentes só são descobertas na periferia das coisas, na borda, no que está perdido, em instantes fugazes ou em momentos em que a cidade (espaço) se torna enganosa e indiferente. A intensidade da vida metropolitana faz o indivíduo perder-se no anonimato da agitação.


O novo conjunto habitacional de Marne la Vallée (onde Louise habita com Rémi) parece ser sombrio e taciturno e Louise sente-se aí aprisionada. Louise, durante todo o filme, não deseja encontrar-se em Marne la Vallée. Louise anseia sim pelo alvoroço e a inquietação da cidade central para se esvaecer. Crisp escreve que Louise é acima de tudo seduzida pela necessidade de ser completamente livre e de manter todas as possibilidades em aberto.


“Louise: (…) J’ai besoin d’être seule, de temps en temps, vraiment seule. (…)
Octave: La solitude, ce n’est pas marrant du tout.
Louise: Je verrai. Qu’on me laisse au moins voir par moi-même!
Octave: Qui t’empêche?
Louise: Les autres, les gens qui m’aiment, en général. On m’aime trop.” (Rohmer 1999, 13)


Para Crisp, o filme explora motivos já conhecidos na obra de Rohmer, no que diz respeito à oposição e confronto entre espiritualidade e fisicalidade. Na série dos contos morais, a personagem principal conseguia, como que por milagre escapar às fraquezas espirituais. Porém, em Les Nuits de la Pleine Lune, a éterea Louise não é resgatada por nenhuma moral. Mas é no final, sob a lua cheia, que a casa de Paris (o espaço central) passa a ser cativeiro. É a própria Louise, que propõe a Rémi a abertura de outras possibilidades (sem imaginar o desgosto que irá ter).


Para Crisp, a angústia de Louise, no final, é um sinal de derrota, mas é principalmente um sinal de conversão tardia a sentimentos profundos. Na opinião de Crisp os jovens deste filme são descrito através de uma existência sombria e sem sentido - incapazes de escolher, ávidos de experiência e de tudo ao mesmo tempo e carentes de princípios (pelo menos inicialmente). Louise não suporta a natureza - a vida no campo provoca-lhe angustia - mas Crisp sublinha que é o seu estilo de vida noturno que a fará redescobrir precisamente o domínio dos seus impulsos através da natureza lunar.


Sendo assim, Crisp termina, esclarecendo que este é um dos filmes que mais efetivamente explora as oposições estruturais que estão presentes na obra de Rohmer. Neste filme, opõe-se liberdade e pertença; multiplicidade e unidade; espiritualidade e fisicalidade. Na busca pela liberdade, Louise toma consciência da sua dependência. Na procura pela sua individualidade, Louise encontra-se apenas solitária. Na vontade em viver no centro de tudo, Louise descobre que é na margem que estão os sentimentos mais profundos e permanentes. Estas e outras ironias servem para demonstrar que, dentro da estrutura fixa, característica dos filmes de Rohmer, existe infinito espaço contentor de contradições, isto porque o espaço físico é mesmo reflexo da dimensão interior.


Ana Ruepp

ANTOLOGIA

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A GUERRA ÀS AVESSAS
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
 
1 - Quanto mais penso nesse filme, mais espantado fico. Na verdade, nem é no filme, relativamente banal e ensosso, mas no fim do filme. Se há, não conheço uma figura semelhante. A raiz quadrada de um número sem raiz quadrada. "Três quartas de cinema" ou "três quartas partes pretas de lã carneira?". Não estou a louvar nada nem a simplificar nada, embora as citações venham do poema de Cesariny, de que me lembrei a páginas tantas por razões que explicarei lá para o fim desta página.
É certo que estou no princípio e por isso convém que me explique antes que se faça ainda mais tarde.
 
2 - O filme, de que vos poupo o título original em russo, chama-se qualquer coisa como "Às Seis Horas da Tarde, Depois da Guerra", a acreditar nas traduções ocidentais, já que, antes deste Janeiro, nunca tinha sido exibido em Portugal. Realizou-o um certo Ivan Pyriev (1901-1968) em 1944, ou seja, há 60 anos. Passou num ciclo que a Cinemateca está a finalizar, dedicado aos gelos e degelos do cinema soviético entre 1926 e 1968. Ou seja, a filmes que ou foram proibidos pela censura estalinista e dos camaradas que se seguiram, ou a filmes que foram mudados de cabo a rabo pelas mesmas censuras (em certos casos, por várias vezes e com cortes diferentes) ou a filmes que, pelo contrário, de tão perto seguiram a linha oficial que o tempo os tornou inacreditáveis e ainda mais reflectores que as obras tesouradas.
Quando se programam ciclos destes há riscos vários. Os mais ingénuos ou os mais distraídos acreditam que vão ver filmes de resistentes, que heroicamente denunciaram Estaline nos anos 30, 40 ou 50, Krustchev nos anos 50 e 60, ou Brejnev nos anos 60. Basta pensar duas vezes para perceber que filmes desses jamais podiam ter existido na União Soviética. Quem pensasse em filmar um plano sequer de crítica explícita ou implícita já estava na Sibéria (na melhor das hipóteses) antes de pegar na câmara. O que foi proibido ou censurado foi-o por razões circunstanciais, na maior parte dos casos difíceis de detectar a esta distância temporal e sabendo-se o que se sabe hoje. Aprende-se mais com os ortodoxos do que com os humilhados e ofendidos. Pyriev era desses ortodoxos. Um labrego segundo os amigos, mas um labrego com talento, que sabia do ofício, o poder prezou e o público - que-tem-sempre-razão - adorou. Vários filmes dele foram sucessos colossais na URSS, com muitos milhões de espectadores, coisa de povoar os sonhos dos gémeos lusos do século XXI. "Às Seis Horas da Tarde, Depois da Guerra" foi um dos maiores. Filmado em 44 - em plena guerra e não depois dela -, conta a história de um bravo soldado russo (no cinema soviético, todos os soldados são bravos) que se apaixona por uma corajosa enfermeira (no cinema soviético, todas as enfermeiras são corajosas). Encontram-se por aqui e por acolá, cantam muito, na boa tradição do musical e, lá para o meio do filme, combinam casório para o fim da guerra. No dia desse fim, marcam encontro numa ponte de Moscovo, às seis da tarde. Mas eis que o soldado fica sem uma perna em combate. Como alma nobre que era, decide que não vai impor um inválido à bela enfermeira. Um amigo que lhe vá explicar que ele morreu, que ela não pense mais nele. Mas os amigos são para as ocasiões. A meio da piedosa mentira, o portador da má nova arrepende-se do que está a mentir. Conta-lhe a verdade e a rapariga corre para o hospital, para lhe jurar que não é perna a mais perna a menos que a aquece ou arrefece. Chegou a tempo. O soldado pensou melhor e achou-se egoísta, individualista e pequeno-burguês. Repetem a jura anterior. Só que, depois, é a rapariga quem apanha com um estilhaço e o espectador é levado a crer que ela morreu. O soldado nada sabe. E, às seis da tarde, no dia do fim da guerra, lá está na ponte, à espera da noiva. Passam as 6, passam as 7 e nem novas nem mandados. Mas filmes destes, a leste como a oeste, fizeram-se para acabar bem. Quando protagonista e espectadores já desesperam, a moça, supõe-se que incólume, aparece-lhe e lá vem o abraço e beijo finais. É evidente (até por este resumo o é, quanto mais pela visão do filme) que Pyriev viu muito cinema americano. Concretamente viu "Love Affair" de McCarey (1939), obra que, mai-lo seu "remake", "An Affair to Remember" do mesmo McCarey, e mai-los "remakes" feitos depois desse, suponho conhecida pela maioria dos meus leitores, Charles Boyer (ou Cary Grant) a combinar encontros no Empire State Building, com Irene Dunne (ou Deborah Kerr) a ser atropelada, a ficar paraplégica e a decidir desaparecer para não estragar a vida ao amado.
"Às Seis Horas da Tarde, Depois da Guerra" é uma variação sobre o mesmo tema, história de azares e de sortes.
 
3 - Mas não é isso que me embasbacou. Não precisei de chegar a esta idade para saber como o longo braço de Hollywood chegou até ao país dos comunistas e como os filmes mais exaltadores da glória do proletariado seguiram receitas capitalistas, disfarçadas com temperos locais. O que é inédito é que, em 1944, quando ainda havia tropas alemãs em território russo e o desfecho embora previsível não fosse ainda de favas contadas, Pyriev não tenha hesitado em figurar o dia V, como se todo consumado fosse.
Eu sei que não faltam na história do cinema (até na história do cinema soviético) representações de futuros longínquos, isso a que se costuma chamar "ficção científica". Eu sei que ficções do real ou com o real foram o pão-nosso de cada dia. Mas nenhum filme ocidental, dos anos da guerra, ousou jamais mostrar o fim, antes de o fim chegar, ou deu dois passos em frente para olhar do futuro vitorioso o passado sangrento. Também nunca houve - nem nos mais delirantes filmes de propaganda anticomunista - representações da queda do Kremlin ou da queda do Muro. Neste caso, Pyriev não hesitou. Em 44, mostrou 45, na guerra mostrou a paz. Há quem diga que o fez para dilatar a crença de que o dia da vitória estava próximo. Afinal de contas, a "Marselhesa" ("le jour de gloire est arrivé") tanto se cantou no início das grandes guerras como no fim delas. E, como Pyriev até nem se enganou muito (a Alemanha rendeu-se um ano depois da estreia do filme), podemos absolvê-lo dessa antecipação pela premonição. Porque é que eu fiquei tão embasbacado?
 
4 - Precisamente, como já disse, por essa sequência final. Séculos de cinema (passe o exagero) habituaram-nos a ver, documental ou ficcionada mente, o dia da Vitória como um dia de multidões transbordantes, enchendo as ruas, com soldados e paisanos abraçando-se furiosamente, num 25 de Abril em tamanho sobrenatural. A tamanha festa e a tamanha alegria. Tudo o que simbolicamente foi captado na lendária fotografia que deu volta ao mundo do marinheiro e da rapariga em abraço tremendo. Pyriev, em 44, não tinha milhares de figurantes nem podia filmar nas ruas de Moscovo. Que fez ele? Construiu uns "décors" com a ponte tão citada no filme, ao fundo da qual uma transparência dava a sugestão do Kremlin, iluminado por holofotes. Agarrou em duas dezenas de figurantes, de ambos os sexos, e pô-los a passear de braço dado pela dita ponte. Casais jovens, casais de meia-idade, como domingueiros, como se andassem por ali a ver as vistas. Em primeiro plano, o herói da perna de pau, muito sozinho e muito ansioso. Nalguns cantos, outros vultos solitários, ora de mulher, ora de homem. À vez, vinham chegando os pares esperados pelos ditos cujos. Abraços e beijos e lá iam a passear, juntando-se aos outros. Até que só ficava sozinho o protagonista. Caía a noite e os casais iam para a noite deles, sempre vagarosos e emburguesados, com passos de um coro de ópera convencional, mais se assemelhando a espectros do que a humanos. E, quando por fim chegava a enfermeira, o abraço era tão púdico e tão desengraçado como só o cinema soviético filmou abraços e beijos. Mas tratava-se da girândola final. Pyriev não o esqueceu e, para a sublinha, guardou para esse momento uma largada de fogo-de-artifício digna da festa da Senhora dos Remédios em Forno de Algodres, sem desprimor para a Senhora e para o forno. Na banda sonora, muitos bum-bum-bum. Até encadear com a palavra fim. E é essa sequência que não deixa de me perseguir desde o dia 7 de Janeiro. No país do "socialismo", na "pátria do povo", na terra dos sovietes, o fim da guerra foi celebrado por antecipação, sem povo, sem operários, sem camponeses, sem massas, sem qualquer desordem, sem qualquer alegria, a não ser a alegria breve de uns casais de namorados. Moscovo é uma cidade fantasmagórica, inexistente para aquém e para além da ponte sombria e soturna. Ou seja, Pyriev imaginou tudo menos uma real festa popular. É totalmente surrealista, no sentido pejorativo da palavra. Fez frio e medo. Muito frio e muito medo. Mas, pensando bem, talvez esteja certo. Para voltar a Cesariny e ao surrealismo, na verdadeira acepção da palavra: "Porque é que a enfermeira compra do Alves Redol quando está a pensar nas pernas e no peito do louro galã?" E nem sequer nisso pode mostrar que pensa. Na URSS, qualquer festa espontânea era espontaneamente inimaginável.

16 de Dezembro 2004 Público
 
 

A VIDA DOS LIVROS

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   De 14 a 20 de agosto de 2023

 

Recordamos o testemunho de Rita Azevedo Gomes no texto que escreveu na revista “Electra” (Ausência Imperfeita – Agustina - nº 20, Primavera de 2023).

 

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UMA ESTRANHA ESCOLHA

 

Conta-se que um dia, em 1995, a Cinemateca pediu a Agustina uma sugestão de filme para apresentar na iniciativa “Terças-Feiras Clássicas”. Então sugeriu o filme As You Like de Paul Czinner, de 1936, raríssimo, e que nunca fora exibido naquelas sessões cinéfilas. Era uma opção misteriosa, que causou surpresa entre gente muito habituada a este género de escolhas. Moveram-se céus e terra, e lá apareceu a cópia. Quando houve oportunidade, perguntaram qual o motivo de tão inusitada escolha. E a resposta veio para espanto de todos. Não se tratava de qualquer memória de algo que a escritora tivesse visto alguma vez, nem se tratava de lembrar a primeira interpretação de Sir Laurence Olivier de Shakespeare. Não, Agustina nunca tinha visto o filme e tinha curiosidade em vê-lo pela primeira vez. Interessava-lhe ver o desempenho de Elisabeth Bergner, de quem ouvira falar, quando teria oito ou nove anos, como uma grande atriz, superior à Garbo, e desejava confirmar com os próprios olhos e ouvidos o que ouvira aos amigos de seu Pai, no tempo em que este a levava às matinées do Passos Manuel no Porto. Era assim Agustina, sempre desarmante na enorme capacidade de surpreender.

 

O testemunho de Rita Azevedo Gomes no texto que escreveu na revista “Electra” (Ausência Imperfeita – Agustina - nº 20, Primavera de 2023), confirma que Agustina Bessa-Luís é um caso especial. “Lembro a Helena e o Alberto Vaz da Silva, o Manuel Lucena e o João Bénard da Costa, que não parava de falar do prodígio da inadjetivável escrita da autora d’A Sibila”. Jorge Alves da Silva, João Botelho e Manuela Viegas juntavam-se a tal grupo de admiradores. “Descíamos juntos a Rua da Misericórdia, ao Chiado, pelo passeio da Guimarães na expectativa de ver exposto na vitrine o último romance de Bessa-Luís”. E havia histórias contadas por Joaquim Manuel Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge, do tempo em que visitavam a escritora na sua casa no Porto. E temos de lembrar, na continuação deste preito de homenagem, o outro caso de uma relação contrastada que tem a ver com Manoel de Oliveira. Tratou-se de Francisca. Sem entrarmos nas clássicas discussões sobre as soluções de títulos e de enredos, Agustina teria gostado mais que tivesse sido assumido o título do romance original, Fanny Owen, mas Oliveira preferiu a proximidade, até para que o ambiente romântico ficasse mais evidente. Para o cineasta haveria que garantir a fidelidade aos textos e à palavra, mas igualmente o recurso à magia da representação. Mais do que na representação do teatro, teríamos a fixação das imagens em movimento, suscetíveis de ser repetidas, como se o tempo pudesse ser revisto e a reflexão tivesse uma nova oportunidade. A cena recordada é a dos momentos finais da protagonista no suspiro derradeiro: “Não há por aí um homem que ame?”. Paulo Rocha estava investido no papel de médico e Agustina, fora do plano de cena, assistia ao desenrolar da cena. Rita Azevedo Gomes ocupava-se em ver o desenrolar da filmagem – “a voz ondulada do Paulo Rocha; o riso menineiro e sagaz de Agustina”. E depois importaria que o cerimonial do passamento fosse adequado e sentido: “Os pés nus têm de ficar descobertos”.

 

LEMBRAR “FRANCISCA”

 

Teresa Menezes, no papel de Francisca, deveria aparecer como alguém que assumia em pleno o drama representado. E não poderia esquecer a ligação entre as palavras escritas e a vida vivida e mortal. “A alma não é uma cadeira que se oferece a uma visita. A alma é um vício”. De facto, falar de Agustina é assumir um paradoxo, uma aposta, a capacidade de ver o avesso e o direito das coisas. Por isso mesmo, ela se lembrou de Elisabeth Bergner em As You Like, preferindo falar não de algo que pudesse conhecer realmente, mas de uma impressão original, apreendida sem preconceitos. Por certo que teria ouvido falar das lendas de Bergner (até nos misteriosos ecos no celebrado All About Eve de J. Mankiewicz), mas o que lhe interessava verdadeiramente era cultivar a surpresa em diferentes registos – para si própria e para os seus interlocutores. Frederico Lourenço, não por acaso, fala de «um percurso, afinal de contas, demasiado desconcertante na sua mescla de arrojo e de convenção para poder almejar esse estatuto incolor, outorgado aos pouquíssimos escritores que têm o azar de ser aclamados por todos os críticos, que é o de serem ‘pardamente consensuais’».

 

Rita Azevedo Gomes lembra o seu filme A Portuguesa, baseado num texto de Robert Musil. Sobre esse conto, Agustina disse em 1966: “como quem atinge um segredo através do anódino, ele aflorou como ninguém essa sombra melodiosa e fria”. Mas que fique esclarecido: não é infiel a portuguesa; contudo é mais do que isso. “A fidelidade da portuguesa é o que aniquila o marido; é uma fidelidade que não tem nada a ver com a mesura da virtude nem com o reflexo do tédio. “É um estado de graça, algo blasfemo talvez e não se sabe desafiador”. Para quem lê o conto e vê o filme encontra imbrincados dois caminhos paradoxais – a virtude e a sua recusa. Musil terá ido buscar esta portuguesa ruiva ao extraordinário quadro póstumo de Ticiano, feito por encomenda de Carlos V, da muito bela Imperatriz Isabel de Portugal, sentada “como quem espera a confirmação de uma notícia importante, sem ansiedade e também sem abandono”. E, com base nesse conto, emerge um diálogo misterioso escrito por Agustina, a pedido da realizadora. Musil dá-nos o enigma e a romancista encarrega-se de o completar com outra interrogação perturbadora: “Dizem que tenho amor pelos gatos que têm um pacto com o demónio. Os gatos têm uma alma de filósofo. É só isso. O diabo não é filósofo porque inveja Deus e a criação do mundo”. Tudo, afinal, se liga. Agustina era portentosa na definição emblemática dos temas. O lançamento das narrativas envolvia um surpreendente jogo de ideias e de palavras. Por isso, o testemunho de Rita Azevedo Gomes permite compreender encontros e desencontros na representação das palavras. É o princípio da incerteza que funciona, há o ganhar e o perder e os dois eram fascinantes para Agustina. “Portugal é tímido e ama a sua rotina: preza uma felicidade que tem de pagar pelo preço das suas submissões” (As Fúrias). Tinha, ao invés, o prazer da audácia. E volto a Frederico Lourenço: “À cigarra compete apenas concentrar-se no seu próprio canto, independentemente da zurraria dos burros que criticam (cito aqui os termos bem conhecidos do poeta helenístico Calímaco). Lição em que Agustina foi exemplar».     

 

Guilherme d'Oliveira Martins

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
O FANTASMA APAIXONADO


1. Em 1979, organizei, na Gulbenkian, um ciclo sobre cinema americano dos anos 40. Desse, como doutros ciclos dos anos 70 e 80, a fada-madrinha foi uma das pessoas mais enigmáticas e fascinantes que jamais conheci. Não sei o nome dela e não sei de ninguém que o saiba. Dizia que se chamava e chamavam-na Mary, mas, não sendo ela inglesa, americana ou mesmo remotamente anglo-saxónica, é duvidoso que a tenham batizado com esse nome. Usava o apelido Meerson, pois teria sido casada com Lazare Meerson (1900-1938), famoso decorador francês de origem russa. Mas é bem possível que tivesse sido tão casada com Meerson como o foi com Henri Langlois (1914-1977), o lendário fundador da Cinemateca Francesa. Muitas vezes a ouvi autodesignar-se como Mme. Langlois, mas, se viveu com Langlois entre 1939 e 1977, não consta que se tenham casado. Sem razão aparente (mas porque é que querem sempre razões para tudo?) guardou toda a vida absoluto segredo sobre as suas origens. Diziam-na russa, diziam-na búlgara, diziam-na finlandesa, diziam-na de um dos países do Báltico. Ela nunca nada revelou e, quando alguns biógrafos de Langlois começaram a querer vasculhar-lhe o passado, enfureceu-se terrivelmente e Deus e algumas pessoas sabem como as fúrias dela eram terríveis. Morreu em 1993, diz-se (quem pode estar certo?) que nonagenária, mas bilhete de identidade, passaporte ou qualquer outro documento de registo civil nunca se lhe conheceu. A mim, essa mulher que me explicou que os russos só invadiram o Afeganistão para descobrir segredos sobre ciências ocultas, sempre me disse que não morreria. "Um jour, je m"envolerais..." Da morte de Langlois até ter voado de mim (estou, pois, a falar de uma pessoa com setenta e muitos anos, ou oitenta) desenvolvemos uma relação que me é impossível qualificar. Telefonava-me vezes sem conta, altas horas da noite, quase sempre para casa, pois que, para ela, telefones de trabalho (Gulbenkian ou Cinemateca) eram telefones sob escuta dos nossos muitos ignotos e invisíveis inimigos. Se, quando a conheci, era gordíssima e imponentíssima, disseram-me que em nova fora belíssima. "J"etais plus belle que toi", teria dito um dia a Marlene e tê-lo-ia sido ao tempo em que a lenda pretendia que se passeava por Paris nua, sob um fabuloso casaco de renard argenté. Nesses telefonemas noturnos, transparecia o "coquettismo" das mulheres que são ou foram muito bonitas e se habituaram a seduzir homens. Tinha uns olhos extraordinários, como só o têm os quase cegos que vêem o que mais ninguém vê (quase cega sempre a conheci). Tinha uma voz de baixo profundo, que facilmente se confundia com a de um homem e dominava, na perfeição, o inglês, o alemão, o francês, o italiano, o russo e muitas mais línguas que nem eu sei (num jantar, uma vez, espantou toda a gente recitando poemas em arménio e os arménios presentes juraram-me que ela o dominava fluentemente).


Por que razão ela me tomou sob sua proteção nunca saberei bem. O nome Gulbenkian (ela teria conhecido Calouste Gulbenkian quando foi marchande d"art) contribuiu fortemente, mas não explicou ou explica tudo. Lia através de mim ou em corpo ou em voz. E em várias alturas, mais complicadas, sem que alguma vez eu lhe tenha feito confidências, dizia-me o que eu precisava de ouvir como se fosse uma Xerazade ou um Tomás de Kempis telecomandados. Uma vez disse-lho. Limitou-se a responder-me: "Je sais. Mary sait tout." Soubesse-o ou não (e eu, hoje, acho que, se ela não sabia tudo, sabia muito), o que é certo é que, graças a ela, eu fiz o meu nome como programador. Filme que lhe pedisse (mesmo que a Cinemateca Francesa o não tivesse ou o poder efectivo dela na Cinemateca Francesa já fosse diminuto) era filme que ela me encontrava. No fim do mundo, ou ao virar da esquina. Há uma expressão que eu acho deliciosa e aprendi há pouco tempo com as minhas netas mais velhas, com a Sofia e com a Mariana: "amizades coloridas". Se não sabem perguntem, que eu não estou aqui para explicar. Mas acho que a minha relação com Mary Meerson foi uma "amizade colorida" avant-la lettre. Après la lettre, vejo-lhe o olhar renascendo em muitas vidas, ou de dantes ou de depois.


2. É estranho. Eu não vinha para falar de Mary Mersoon, sobre a qual escrevi uma crónica quando ela morreu e co-organizei um catálogo a que chamei O Cinema como Magia.


Se a invoquei, e ao tal ciclo de 79, foi para contar uma história bizarra das muitas entre nós sucedidas. Além de filmes, pedi-lhe cartazes para uma exposição paralela ou coisa que o valha. Ela enviou-me os originais de The Grapes of Wrath de John Ford e de The Ghost and Mrs Muir de Joseph L. Mankiewickz. São cartazes enormes e vinham montados em diversos rolos, para depois se colarem e se pendurarem nas fachadas do cinema, como nos anos 40 se usava. Mandei-os para o serviço de exposições da Gulbenkian que, pouco habituado àquele género de materiais, os montou, sim, mas os colou em enormes e pesadíssimos contraplacados de madeira. Quando assim os vi, caiu-me a alma aos pés. Como é que eu ia devolver aqueles "monstros"? Descolar os cartazes nem pensar, que ficavam em fanicos. Reenviá-los para Paris só em camião especial e por uma fortuna. Telefonei-lhe a contar do sucedido e ela respondeu-me com a maior naturalidade do mundo: "Guarde-os. Pode ser que lhe sejam úteis." Assim fiz. De 79 a 91, os cartazes estiveram nas paredes do meu gabinete da Gulbenkian. Em frente de mim (porquê?) já estava o do Ghost, filme que em Portugal se chamou O Fantasma Apaixonado.


Não é tão bonito como o das Vinhas da Ira, com desenho original desse mestre dos nossos neo-realistas que se chamou Benton. Mas nunca resisti ao sorriso de Gene Tierney, tão segura, tão insegura, precisamente por isso. Curiosamente, uma Gene Tierney tingida de louro, quando nunca houve mulher mais morena e mais branca em Hollywood. High-Cheek Bone Beauty. Há tanto de triste e algo de insuspeitado nesse leve sorriso e nesses imensos, insondáveis olhos. Mulher-patchuli. Em 91, trouxe os cartazes para a Cinemateca. Hoje, o das Vinhas da Ira anda por lá. No meu gabinete, em frente à minha mesa, só o do Fantasma. Vinte e seis anos (79-05) a viver com ele e com a Mrs. Muir dele é muito tempo. Mais do que umas bodas de prata. Mas a profecia de Mary Meerson cumpriu-se. Também foi para isso que ela mo mandou.


3. Esta vida é de facto estranha. Quando eu vi O Fantasma Apaixonado pela primeira vez tinha 12 anos. E foi no Tivoli dos veludos da Fox. Quem fosse o realizador - Joseph L. Mankiewickz, depois, também, meu cineasta de cabeceira - ignorava completamente. Só me interessava Gene Tierney e, depois de visto o filme, passou-me a interessar Rex Harrison, com quem vivi pela primeira vez. Gostei. Gostei muito. Mas quão longe estava de adivinhar o que esse filme iria significar para mim, passados os 40 anos, quando o revi no tal ciclo da Gulbenkian e, depois, quando o revi e revi e revi em dezasseis passagens na Cinemateca e mais não sei quantos visionamentos. Já contei mil vezes, mas, como estou morto por contar, conto outra vez. Mrs. Muir (Lucy Muir = Gene Tierney) enviuvara há pouco tempo de um Mr. Muir que nunca vemos, mas não era de molde a deixar grandes saudades. Sogra e cunhada em Londres, princípio do século XX, vigiavam a virtude da jovem viúva e da filha dela, de dois anos. O filme começava quando a situação se começava a tornar insuportável e Mrs. Muir, doce mas firmemente, anunciava que ia sair de vez daquela casa para ir para o pé do mar, para o pé do mar. Nem rogos nem ameaças a demoveram. Procurou casa junto ao Mar do Norte como Mar do Norte nunca vi, mas nenhuma casa a convenceu. Até que viu a que queria ver, mas ninguém lhe queria mostrar. A casa estava assombrada pelo fantasma do Capitão Gregg que nela se suicidara. Só que os fantasmas não assustam Mrs. Muir. Um fantasma é o medo que a gente tem dele.


Mrs. Muir instala-se na casa com a filha e com a criada. E logo o fantasma começa a visitá-la. "I know you are here", diz ela. As luzes todas se apagam, começam as trovoadas e os relâmpagos. Mas começa também, poucochíssimo depois, a história de amor entre o fantasma mais malcriado do mundo e a mulher mais mar do mundo. Debalde o fantasma lhe diz: "I"m here because you believe I"m here." Não vou contar o filme todo. Há sempre uma hora em que se acorda dos sonhos. Os fantasmas não são para toda a vida. Quando o percebe, Rex Harrison, pois é dele que se trata, sempre de negro vestido, vem despedir-se dela que dorme. "What you have missed by being born too late to travel the seven seas with me! And what I"ve been missed too? What we both have missed!" Antes recitara Keats, depois dá-lhe um quase beijo. Mrs. Muir descobrirá depois que o real é bem mais frágil. Fica na casa, pensando sempre que o que aconteceu nunca aconteceu, que nunca houve fantasma algum. Mas o que houve deu sentido a tudo, por ser feito de tão nada.


Depois o tempo passou. Passa sempre. Depois, um dia, o coração de Mrs. Muir deixou de bater. Quando a criada lhe vem trazer o chá cruza-se com o fantasma e com Mrs. Muir, que avançam devagarinho nas brumas. Como é que diz Keats que o fantasma recita: "I have been half in love with easeful Death... Was it a vision or a waking dream?" Porque é que as pessoas se apaixonam por fantasmas? Porque é que os fantasmas se apaixonam por pessoas? Perguntá-lo é perguntar "como pode usar amor de entendimento". Sempre que vejo, no meu cartaz, Rex Harrison mais azul do que negro sumir-se no fundo do colo de Gene Tierney, pergunto-me qual dos dois foi fantasma e como o Andrea Francorum de Stendhal "inter quos possit esse amor". Lembram-se do que ele respondia a quem se embaraçava com a obscuridade de discursos destes? É melhor não se lembrarem.


por João Bénard da Costa
12 de junho 2005 PÚBLICO

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
DE JOHN MOHUNE A JON WHITELEY
OU DE FRITZ LANG A AUGUSTE-DOMINIQUE INGRES


1. Julgo que é o título mais comprido desta série de crónicas, quer as das antigas e românticas sextas-feiras, quer as dos novos e frustres domingos onde ainda não conseguiram arranjar lugar para me sentar. Quando se escolhe um título longo, é, normalmente, para ser mais explicativo, como é o caso, por exemplo do Everything You always Wanted to Know About Sex, but Were Afraid to Ask. Não é o caso deste meu, de hoje. Dou um doce a quem, mesmo muito sabido, perceber que relação existe entre John Mohune e Ingres, ou mesmo entre o pintor e Fritz Lang. Essa relação construiu-se, para mim, nos últimos três anos e só há três dias se concretizou. Apetece-lhes ouvir a história? A mim, apetece-me contá-la.


2. John Mohune é o nome do jovem herói do romance de John Meade Falkner Moonfleet, publicado em 1898. Um desses romances de aventuras escritos para pré-adolescentes do sexo masculino, que descende de Stevenson ou, mais remotamente, de Dickens ou de Kipling, e que foi muito popular na Grã-Bretanha, dos alvores aos meados do século que passou. A ação situa-se no século XVIII. John Mohune é o filho de Olivia e a família é tão importante naquela parte da Escócia que o próprio nome da povoação que dá título ao romance provém dela. Moonfleet é contração de Mohune e Fleet. Não eram senhores muito amados os Mohune. John, órfão aos nove anos, é informado pouco depois (pouco depois da morte da mãe, que o pai é outra história) que o nome não é propriamente um nome benquisto na aldeia de contrabandistas e piratas onde se situa quase toda a ação.


A primeira vez que o vi foi no filme homónimo de Fritz Lang, estreado em 1955. Tinha os mesmos nove anos, era muito ruivo e de cabelo encaracolado, a cara cheia de sardas, olhos azuis determinados. Por uma noite sem lua, com um céu coberto de nuvens púrpuras ou amarelas, caminhou à procura de um homem que julga ser seu amigo. A certa altura pára, para tirar um seixo de um dos buracos das solas das botas. De repente, aparece-lhe - é o termo - um anjo enorme de olhar vazio e expressão inquietante. Será estátua? Será gente? Uma mão que se vê em cima de um muro parece apontar para a segunda hipótese. John Mohune tenta fugir, tropeça e desmaia. Quando acorda, está no fundo de um poço e é do fundo desse poço que nós, com ele, vemos em contra-plongée vertical uma série de caras patibulares. O miúdo caiu às mãos de 40 ladrões. Mas recupera depressa a coragem e insiste que o levem à presença de Jeremy Fox, para quem traz uma carta. Carta da mãe, que, ao morrer, o confiou aos cuidados desse homem. Quando lhe somos apresentados (a Jeremy Fox), o aspeto e as maneiras do personagem (o ator é Stewart Granger) não prometem nada de bom. Nem dele, nem dos companheiros dele (onde avulta, para mim, a voz incomparável de Joan Greenwood), nem da dançarina que dança para ele. Só muito pouco a pouco percebemos algumas coisas e nem todas são esclarecidas. Jeremy Fox tem as costas marcadas por dentes de cães que os Mohune lhe atiçaram. Plebeu, estava na companhia de senhora, senhora que só podia ser uma Mohune, para a família se enfurecer de tal modo. Se ela, ao morrer, confiou o filho ao homem que fora pasto da matilha, as probabilidades são muitas de John Mohune ser filho de Jeremy Fox, embora no filme nunca tal se diga e o miúdo nunca o suspeite. No livro? No livro nem sequer há nenhum Jeremy Fox, tal era, nesses bons tempos, a fidelidade dos estúdios aos textos originais. Mas se John Mohune nunca suspeita que Jeremy Fox é seu pai, também nunca duvida que ele seja o amigo que a mãe lhe disse que era. Contra todas as evidências, porque Jeremy Fox passa o filme a enxotá-lo. Mrs. Minton, uma das amantes dele, pergunta a Jeremy: "Que vais fazer dele? Corrompê-lo e destruí-lo, como fazes a toda a gente?" "Há um perigo bem maior", responde Jeremy, "é ser ele a destruir-me." No final do filme todos morrem, menos John Mohune, que tem finalmente toda a razão para dizer: "It’s good to have a friend".


Para interpretar John Mohune, a Metro-Goldwyn Mayer, em 1955, chamou Jon Whiteley, um miúdo escocês que se estreara nas telas aos 6 anos, em 1951, e aos oito ganhara um Óscar especial da Academia pela sua interpretação em The Kidnappers de Philip Leacock. Em 1956, aos 11 anos, desapareceu das telas. Os pais acharam que cinco anos de filmes e estúdios, entre Londres e a Califórnia, já chegavam. Mandaram-no estudar.


Mas quem ama Moonfleet como eu amo - e estou cada vez mais acompanhado - nunca mais conseguiu ver John Mohune sem ver Jon Whiteley seguindo com um cão o seu amigo e roubando para ele o tesouro do Barba Ruiva. Cinemascope, mar, o obsessivo decote de Joan Greenwood, a voz de Joan Greenwood. E, evidentemente, Jon Whiteley. Cemitérios, lousas quebradas, poentes castanhos, rochas escarpadas. A fotografia de Robert Planck e a música de Miklos Rozsa. E, evidentemente, Jon Whiteley.


3. Mas se era evidente, era tão evidente que nunca me lembrei de perguntar por ele. Nem eu, nem (aparentemente) mais ninguém. Todas as celebridades do filme disseram da sua graça, e a maior das vezes da sua desgraça. Fritz Lang só no fim da vida se reconciliou com um filme em que passou as passas do Algarve. John Houseman, o produtor (que não era nada imbecil), dizia que só os franceses é que achavam que o filme era uma obra-prima. Por "perversidade ou por lealdade para com Fritz Lang". Mas Jon Whiteley nunca foi tido nem achado, apesar de se dizer que Lang, "ditatorial e déspota", tratara com especial e teutónico sadismo o seu jovem intérprete.


Provavelmente, o assunto teria morrido por aí (e hoje não me estavam a ler), se, em finais de 2001, por ocasião de um seminário sobre cinema e pintura no Convento da Arrábida, Henri Zerner não me tivesse perguntado: "Você sabe que Jon Whiteley é meu colega e professor de História de Arte em Oxford?" Não fazia a mais pequena ideia. Mas como cinema, pintura, Moonfleet fazem trindade indissociável, pensei em convidá-lo quando saísse o livro em que esse seminário desembocou. Convidá-lo para vir a Lisboa e apresentar Moonfleet. Ao princípio correu mal: de Oxford disseram-me que o prof. Whiteley (hoje com 60 anos) estava em ano sabático algures nos Estados Unidos. Mas havia mails. Há sempre.


Já com poucas esperanças, mailei. E, na volta, tive a resposta mais simpática do mundo. Que adorava voltar a Portugal, que conhecia como turista e que adorava apresentar Moonfleet, que (e agora sublinho bem) nunca ninguém o tinha convidado a apresentar.


Em janeiro, Jon e Linda Whiteley desembarcaram em Lisboa e eu vi subitamente na minha frente, aos 60 anos, o miúdo de 9, de 1955. Mesmos cabelos ruivos, mesmos olhos azuis, mesmas sardas. E, na fantástica apresentação do filme, o mesmo medo e a mesma coragem para defender Fritz Lang, acabar com a lenda das malfeitorias e falar da conspiração de produtores e atores contra aquele velho barrigudo e monocular que ousara pular para cima de uma mesa e explicar à famosa bailarina Liliana Montevecchi como é que se devia dançar a dança que ele queria que ela dançasse para endoidar os homens e empalidecer as mulheres. Fritz Lang, o realizador que "composed scenes in the manner of a painter and treated actors like a puppet-master". "This perhaps annoyed his actors but it did not trouble me." Depois falou-me de Ingres, seu pintor favorito, e prometeu-me o livro que sobre ela tinha escrito e há muito se esgotou.


4. A fama dessa palestra de Lisboa chegou a várias partes. Este e aquele começaram-me a pedir o Whiteley de Lisboa. Até que, postos os feriados de junho e os dias de montanha russa entre Guimarães e Salamanca, Salamanca e Belmonte, recebi, com data de 8 de junho, uma carta dele e o livro sobre Ingres. Na carta dizia-me que "as a result of your invitation to Lisbon and the showing of Moonfleet" recebera um convite para comentar o filme num festival em Procida. Sabia que a cópia a ser projetada era a nossa (a melhor cópia de Moonfleet que por aí anda e não é para me gabar). "Any chance of seeing you? I hope so very much." Não, não vou rever em Procida o meu John Mohune feito Jon Whiteley, criatura de Lang e criatura de Ingres, igual aos 9 e aos 60 anos, na sua busca pela amizade e na certeza dela. Mas ganhei o livro azul, com o retrato da viscondessa de Haussonville que está na Frick Collection. E nele recordei que a duquesa de Guermantes, depois de o ter execrado como o pior dos académicos, descobriu, no fim da vida, que ele fora o genial precursor do Art Nouveau. "Como os arquitetos do barroco, Ingres ultrapassou o domínio da arte clássica para inventar uma linguagem expressiva de regras quebradas, através das quais deu forma exterior aos doces, nostálgicos, ambiciosos, sensuais e vingativos desejos que sempre possuíram a sua imaginação." Ingres, certamente. Mas também Fritz Lang. "A deeply sensuous nature." John Mohune começou na encruzilhada de Moonfleet. Mas lembrou-se que estavam por ali senhoras. Foi nos banhos turcos de Ingres.


por João Bénard da Costa
19 de junho 2005 PÚBLICO