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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Ma Nuit chez Maud
entre a luz e a escuridão.


“I was concerned above all with exploiting the contrast between black and white, between light and shadow. It’s a film in colour in a way, except that the colours are black and white. There’s a sheet which is white, it's not colourless, it's white in the same way the snow is white, white in the positive way, whereas if I had shot it in colour it wouldn't have been white any more, it would have been smudged, and I wanted it really white.”,  Rohmer, 1971 (Handyside 2013, 8-9)


Os Contos Morais, de Éric Rohmer, é uma série de seis filmes que explora o interesse em descrever o que se passa dentro do pensamento de uma pessoa. A preocupação maior relaciona-se com a narração de estados de espírito, de ideias e de sentimentos. Determinadas emoções, impressões, perceções e sensibilidades são investigadas através de um só ponto de vista - o ponto de vista de um narrador. 


Rohmer explica que esta série de filmes não é o que se espera. O desenrolar da ação destes filmes vai até contra os desejos do próprio narrador e são uma concretização de um conflito. O narrador, omnipresente, cria um mundo para si mesmo, cujo centro é ele próprio. Tudo é perfeitamente lógico, dentro desses princípios em que o narrador é criador e manipulador. Tudo parece muito simples, o narrador é obcecado com uma lógica e toda a sua vida pode ser explicada segundo esse sistema e método por ele construído. 


Em Ma Nuit chez Maud (1969, quarto filme dos Contos Morais) o narrador Jean-Louis vive isolado dentro do tempo e do espaço de Clermont-Ferrand. Ma Nuit chez Maud foi filmado propositadamente a preto e branco, de modo a fornecer uma base e a dar unidade. Segundo Rohmer, a cor não teria acrescentado nada à atmosfera do filme, pelo contrário, poderia até ter introduzido elementos de distorção. Na verdade, Rohmer revela que não havia cores no que foi filmado - as casas da cidade Clermont-Ferrand eram já cinzentas e também não havia cores na igreja. 


“… when the film is in black-and-white you get less of a feeling of the different moments of the day, and there is less of what you might call a tactile impression about it.”, Rohmer, 1971 (Handyside 2013, 10) 


O inverno rigoroso e a neve revelam assim um contraste acentuado entre a luz e a escuridão e determinam a opressão de determinadas ideias e sistemas, num espaço hermético e fechado. Heredero e Santamarina, no livro Éric Rohmer (Cátedra, 1991), escrevem que a neve tem, dentro do filme, um papel fundamental como instrumento de oportunidade e de azar que move as personagens e que propícia encontros e separações: “De hecho, si una nevada es el pretexto para que el ingeniero pase la noche en casa de Maud (la mujer-2), otra nevada le permitirá acompañar a Françoise (la mujer-1) a su domicilio en las afueras de la ciudad.”(Heredero e Santamarina 1991, 140)


Estamos perante um filme espacial. Jean-Louis deseja controlar todos os espaços por onde passa (Rohmer filma a geografia do lugar com precisão e todas as trajetórias são respeitadas). A igreja, a cidade, a neve são elementos impregnados, encerrados e cercados pela perceção do narrador. Jean-Louis persegue Françoise (a rapariga da igreja e da bicicleta) e através do seu ponto de vista apercebemo-nos de que o seu desejo e a sua obsessão é o de controlar o destino de ambos, de modo a assemelhar-se a um acaso - como se de uma graça divina se tratasse. Jean-Louis quer ver sem ser visto, quer ter posse sem se apoderar. O pensamento racional e a coerência interna de Jean-Louis anseiam dominar todos os sentidos e todas as circunstâncias exteriores que o rodeiam. 


Todos os pensamentos, palavras, movimentos e ações de Jean-Louis vêm, deste modo, dessa aspiração de controlo total, desse estado de permanente vigilância e da vontade de ser coerente com os seus princípios. Para evitar a angústia da escolha, Jean-Louis agarra-se a um amor construído. A eleição de Françoise para sua mulher, manifesta por isso a ambição rígida e perseverante, de Jean-Louis, em dominar a direção da sua vida por meio de ideias abstratas - mesmo que isso implique considerar a ideia do acaso apenas para reforçar uma missão moral do destino.


Porém, é, aquilo que está sujeito ao azar, neste caso à meteorologia, que neste filme, funciona como verdadeiro destino, como incontrolável e como indeterminado. Aqui, o imprevisto e o obscuro, tal como em muitos outros filmes de Rohmer, está associado a fenómenos naturais. É por isso, que a casa de Maud está fora da influência premeditada de Jean-Louis. E é precisamente nesses momentos desconhecidos e oferecidos que o narrador entra em conflito consigo próprio e a coerência da sua lógica é derrubada. O final do filme expõe, sobretudo, as fragilidades de um sistema e a desconstrução de uma ilusão.


“Consider the opening shot in which we see Trintignant’s dark silhouette take possession of the landscape by the intensity alone of his gaze (as if he were the reincarnation of Murnau’s great predators, Nosferatu or Mephisto). Or consider all the sequences filmed inside a car, from the point of view of a man who is avidly scouring the city’s streets, seeking - and knowing - someone to devour. At such moments, it is a kind of guilty ambition that Rohmer is staging: the ambition to imprison the real by keeping an eye on all its external signs. The very ambition that he put to work while filming My Night at Maud’s.” (Baecque e Herpe 2014, 232)

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Os subúrbios nos filmes de Eric Rohmer são centrais e não marginais.


“His female characters are fulfilled not in the alienating city centre, where they feel absolutely alone (in exile…), but in the interstices - at the beach (Le Rayon Vert) or in the suburbs (L’Ami de mon Amie).” (Handyside 2009, 217)


No texto “The Margins Don’t Have to Be Marginal: The banlieue in the Films of Éric Rohmer.”, Fiona Handyside explica que, na série Comédias e Provérbios de Eric Rohmer, a periferia pode ser lida como sendo a representação máxima da fluidez da modernidade, da auto-referência, da transição constante e do movimento que não pára. 


Segundo Handyside, Blanche no filme L’Ami de mon Amie nunca encontrará permanência nem solidez em Cergy-Pontoise, porque esta cidade satélite foi pensada, precisamente, para estar ao serviço de uma sociedade que depende constantemente da rapidez, da mudança e do derivar contínuo. Para Handyside, Cergy simboliza, não a cidade utópica ou ideal, mas a cidade real e periférica concebida para uma sociedade pronta a deslocar-se para onde for, sempre que é preciso. 


Porém, Cergy-Pontoise, no filme de Rohmer, é também metáfora para ser lugar de liberdade, de relações temporárias, de emancipação e de tempos livres. Em L’Ami de mon Amie, aparece como sendo um lugar de veraneio para pessoas reais. Rohmer documenta neste filme, as classes trabalhadoras parisienses, a aproveitar as oportunidades de lazer oferecidas por este subúrbio. Handyside explica que a maioria das imagens mediáticas dos subúrbios descrevem lugares horríveis e tristes, por isso não é de estranhar que Blanche se surpreenda ao encontrar famílias inteiras à beira do rio, tal qual como numa pintura de Seurat, a aproveitar o sol e o exterior. 


Para Handyside, aos olhos de Rohmer, Cergy-Pontoise é a verdadeira reunião da cidade e do campo: “Cergy-Pontoise is posited by Rohmer not as a place of absolute difference from the city or the country, but as somewhere that has absorbed and incorporated elements of both.” (Handyside 2009, 218)


Nos filmes de Rohmer a margem é central e a vida no centro pode significar o exílio. Na opinião de Handyside, em vez de ser um grande fracasso social, os subúrbios em Rohmer, são centrais e não marginais ao funcionamento da sociedade, porque são entendidos como uma resposta dos cidadãos ao mundo da modernidade tardia - fragmentado e cheio de identidades e culturas concorrentes e contrastantes. As personagens dos filmes de Rohmer, têm personalidades ambíguas, reflexivas e múltiplas e escolhem viver nos subúrbios (ou melhor fora do centro de Paris) não por necessidade mas por vontade: “Cergy-Pontoise provides its citizens with bright, clean apartments, a variety of leisure activities, well-paid and interesting work, the opportunities to meet people and make friends…” (Handyside 2009, 219)


Deste modo, esta imagem de privilégio paradoxal da margem, representado no cinema de Rohmer, tem uma repercussão e um efeito revigorante nas diferentes experiências e ideias que se tem do espaço urbano e tem, acima de tudo, o poder de deslocar a noção de que apenas no centro da cidade se pode encontrar a felicidade.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


É o ‘espirito do cinema’ que inunda e alimenta todos os outros ecrãs.


‘The obscenity of our culture resides in the confusion of desire and its equivalent materialized in the image (…) It is this promiscuity and the ubiquity of images, the viral contamination of things by images, which are the fatal characteristics of our culture.’ (Koolhaas 1995, 787)


No livro L’Écran global. Du cinéma au smartphone., Gilles Lipovetsky e Jean Serroy lê-se que são os filmes e os ecrãs que constituem e mudam o mundo de hoje. Vive-se dentro do ecrã - os espaços de encontro da cidade foram substituídos pelas redes sociais e pelas compras online personalizadas. Há uma angústia de não se estar ligado, há uma necessidade em preencher o vazio do isolamento. O individualismo hipermoderno é assim acompanhado por um paradoxo: quanto mais livre e independente é o individuo, mais freneticamente subordinado e sujeito está em relação às ligações imparáveis com os outros. O desassossego surge assim que se está desconectado: ‘Il y a eu une distanciation individualiste, il y a maintenant une interconnection hyperindividualiste. Le ‘je suis’ ne s’affirme plus dans la revendication d’une intériorité authentique et souveraine, mais dans la multiplication des liens virtuels de soi avec les autres au travers de réseaux de socialisation toujours plus larges dans lesquels le sujet est tout à la fois acteur et consommateur.’ (Lipovetsky et Serroy 2007)


A cultura da transparência expõe online o imediatismo de uma experiência sem segredos, sem recuos e em contínuo. É uma cultura que procura a existência (truncada, desenquadrada, descontextualizada, volátil e incoerente) sob o constante olhar e aprovação dos outros. O autoretrato do individuo hipermoderno constrói-se através da comunicação compulsiva da vida privada e da constante necessidade de publicidade do eu singular. Lipovetsky e Serroy explicam que foram os filmes e sobretudo o cinema que muito contribuíram para esta vivência que se partilha através do ecrã, sem parar. 


‘… le cinéma est celui qui a changé le premier l’imaginaire des hommes et leur rapport au monde, et qui a imposé ce changement en pénétrant tous les autres écrans tout au long du XXe siècle.’  (Lipovetsky et Serroy 2007)


O mundo contemporâneo ao ser um mundo urbano é naturalmente visual, porque queremos ver e ser vistos. Em vez de contemplar, o ser urbano anseia por sensações vertiginosas, excesso, imediatismo, simultaneidade e gratificação instantânea. É através das imagens que se satisfazem todos os desejos de conhecimento, de entretenimento, de socialização e de relacionamento. Para Lipovetsky e Serroy, vivemos no tempo do ecrã total - na tecnologia, no fluxo financeiro, na vigilância, na informação, na arte, na música, no entretenimento, no desporto, na publicidade, no diálogo, no saber… Toda a vida e todas as relações com aquilo e com aqueles que nos rodeiam, são totalmente mediatizadas, por uma multitude de interfaces.


Apesar de nos dias de hoje, o cinema ter perdido a sua posição dominante, ainda é através dos filmes que se aprende a ser - os filmes já fazem parte do imaginário de cada um. O indivíduo da sociedade hipermoderna olha para o mundo como se de cinema se tratasse. O cinema é o filtro inconsciente e perecível por onde se vê a realidade em que se vive. Lipovetsky e Serroy explicam que a esfera de ação dos filmes penetra todos os aspetos da existência e tenta sempre não excluir nenhum tipo de identidade e de experiências. O cinema é formador de um certo olhar que influencia fortemente diversos aspectos da vida contemporânea: ‘…on adore un film comme une mode, c’est-à-dire dans un intervalle court.’  (Lipovetsky et Serroy 2007)


O cinema sempre triunfou a explorar o imaginário através da espetacular produção de imagens icónicas e do star-system e esse é o ‘espirito do cinema’, que inunda e alimenta todos os outros ecrãs: ‘…nous sommes tous en passe de devenir des réalisateurs et des acteurs de cinéma (…) on veut non plus seulement voir des ‘grands’ films, mais le film des instants de sa vie et de ce qu’on est en train de vivre.’ (Lipovetsky et Serroy 2007)


O cinema nasceu sem antecedentes, sem passado, sem referências, sem modelos, sem ruturas, nem oposições. Foi a técnica que inventou o cinema. Mas o seu verdadeiro sucesso deu-se assim que se começou a referir a uma narrativa com força emotiva. O cinema, a tela e o ecrã luminoso projetam o movimento da vida através da lógica do efémero e da sedução. O cinema é a arte da ilusão, da idealização, da artificialidade e da mitificação. Explora ao máximo a magia das aparências para ser imediatamente consumida em massa: ‘Le cinéma vise le grand public, un public de masse envisagé sans distinction de classe, d’âge, de sexe, de religion et de nation. (…) Un art d’essence démocratique, cosmopolite, à vocation aussitôt planétaire…’ (Lipovetsky et Serroy 2007)


O cinema é a ‘caixa mágica’ e a ‘catedral do prazer’ que fabrica e contém todo e qualquer tipo de sonho e objeto de desejo mais íntimo. É o cinema que fornece o imaginário do público em massa. Através do cinema, a distância entre o indivíduo e o mundo imaginado/desejado desaparece por completo. Foi a invenção do cinema, que permitiu ao ser humano estar constantemente dentro do mundo que deseja. E a sua retórica simplificada implica o menor esforço possível para que possa ser compreendida, sem demora, pelo espectador (que não necessita de qualquer formação prévia).


Para Lipovetsky e Serroy, o cinema não trata de se referir a qualquer tipo de elevação espiritual e nem tenta revolucionar o olhar que se tem sobre o mundo. O cinema deseja simplesmente ser imediatamente consumido permitindo satisfação instantânea. É a evasão mais fácil e acessível do indivíduo contemporâneo. Tal como a moda, o cinema é capaz de modificar atitudes, códigos de beleza, modos de ser e de fazer. Não é por isso um simples reflexo do seu tempo, porque altera, ainda que breve e transitoriamente, gostos e sensibilidades. Na opinião de Lipovetsky e Serroy, o cinema é tal como um produto de consumo não durável, o seu efeito é efémero e pontual.


A partir do cinema constrói-se assim a ideia de que é possível viver dentro de outras realidades, do efeito poderoso da imagem, da permanente presença do ecrã e da construção de um mundo genérico e global. O ‘espírito do cinema’ muito contribui, por isso, para o presenteísmo extremo da contemporaneidade - através do desejo de vibrar na velocidade e na intensidade do momento descontínuo e na repetida experimentação de sensações diretas e imediatas. Lipovetsky e Serroy reforçam, deste modo, a ideia de que hoje se vive dentro de um constante filme instantâneo, feito de imagens excessivas e extremamente sensoriais e que intensificam o individualismo hedonista e compartimentado.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  

 

 ‘Conto de Primavera’ e os espaços de transição.


O filme “Conto de Primavera” (Eric Rohmer, 1990) explora o controlo espacial. Jeanne vive dividida entre vários espaços e não suporta viver no apartamento desordenado e escuro do seu namorado ausente. 


A palavra é, neste filme, usada de maneira a dar realidade aos pensamentos e o espaço é usado de maneira a dar realidade ao controlo que se tem sobre a vida.


Ao longo do filme seguimos Jeanne durante o seu tempo vazio e em deslocação permanente. Ao não ter qualquer controlo sobre o espaço que habita - durante todo o filme Jeanne fica a dormir em casa de Natacha - abrem-se fendas na sua vida. Jeanne durante estes momentos de plena disponibilidade coloca-se no meio, em espaços de transição, em lugares que estão entre a realidade e a imaginação, entre a palavra e o pensamento, entre o contido e o aberto.


No texto ‘Rohmer’s Poetics of Placelessness’, Leah Anderst afirma que portas, escadas, ruas e corredores são os elementos espaciais que mais aparecem no filme. A insistência contínua em espaços de transição têm o efeito de destacar a ausência de lugar mas também revelam uma ambivalência e uma incerteza profunda, não reconhecida por Jeanne.  


No livro ‘Éric Rohmer’ de Carlos F. Herdeiro e Antonio Santamarina lê-se que o filme gira à volta de um conceito pedagógico que tenta encontrar um sentido e uma ordem para as ações e para as coisas. 


Jeanne é a fonte de equilíbrio para a Natacha. Mas, Natacha para Jeanne representa a liberdade de uma realidade fabulada.


Jeanne envolve-se na história irreal de Natacha de modo a tentar escapar ao seu ordenado universo quotidiano (que nunca chegamos a ver). A trajetória de Natacha começa numa bruma espessa e confusa e termina com a conquista de um equilíbrio e uma ordem. Jeanne caminha no sentido inverso, da ordem para a desordem. 


Durante todo o filme Jeanne não tem espaço próprio. Apesar de ter a chave de duas casas, Jeanne não tem para onde ir. Na opinião de Herdeiro e Santamarina a história desenvolve-se dentro de um parêntesis (imaginado, não controlado), entre o prólogo e o epílogo (que são iguais, até com a mesma música). A realidade inventada de Natacha é uma viagem ao incontrolável. Os falsos factos de Natacha são produto de uma interpretação que põe em causa qualquer tipo de categorização (até espacial) e fazem Jeanne duvidar de tudo e de si própria. O ‘Conto de Primavera’ é assim um filme que explora a fragilidade de qualquer tentativa de ordenação e de controlo de um espaço. E ao recorrer a espaços de transição, Rohmer faz aparecer o lado oposto, incerto e ambíguo de Jeanne que parece tão decidida nas suas procuras e decisões.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


A arquitetura necessita do cinema.


“Os arquitetos vivem imersos num ambiente cultural e quando estão a fazer um projeto são influenciados pelo tempo em que vivem, que também tem que ver com a cultura que consomem, com os livros que leem, com os filmes que veem, as peças de teatro a que assistem, com a música que ouvem.” (Urbano 2013, 122)


Em “Histórias Simples. Textos sobre Arquitectura e Cinema”, Luís Urbano salienta a importância da relação entre a arquitetura e o espaço imaginado para o cinema. Para Urbano, o cinema mostra um próprio e característico sentido de lugar, que já faz parte do imaginário de cada um. Há filmes quase com cem anos e por isso a maneira como se olha e se pensa o espaço real onde se vive é também certamente influenciado pelo cinema.


Para Urbano, os cenários são a ligação mais óbvia e evidente entre o cinema e a arquitetura. Os estúdios de cinema são autênticas cidades e por vezes até tomam formas mais experimentais. Urbano explica que há naturalmente tendência para desvalorizar a arquitetura cinematográfica, por esta ser transitória: «Mas se começarmos a pensar que há filmes que foram feitos há setenta ou oitenta anos, os grandes clássicos do cinema que continuam a ser vistos por uma grande quantidade de pessoas, e que a arquitetura que está nesses filmes continua a ser vista hoje em dia, então acho que é de lhe dar alguma importância.» (Urbano 2013, 117)


No cinema também se sente com o corpo - depois de se ver um filme tem de haver uma readaptação à realidade. É através do espaço que se tem existência física e sensorial e cada um tem uma maneira própria e irreproduzível de se relacionar com este. A arquitetura é entendida por cortes, bocados e fragmentos, é pesada, é matéria, é luz, é som. Urbano explica que a arquitetura e a memória espacial resultante é constituída por partes por vezes desconexas. Por isso o espaço virtual não é arquitetura porque é contínuo, fluído e homogéneo. A fotografia é também diferente porque pode alterar as dimensões e apresenta sempre pontos de vista estáticos e imóveis. Mas já o cinema é o meio mais próximo da arquitetura porque é através do movimento e do percurso que se capta a real perceção de qualquer espaço: “No cinema, identificamo-nos com os personagens também porque eles são coincidentes com o espaço arquitetónico que habitam. (…) Sentimo-nos transportados para aquela realidade e, às vezes, transportados fisicamente.” (Urbano 2013, 120)


Para Urbano é difícil tentar perceber a importância do cinema na arquitetura, mas os processos mentais para fazer arquitetura aproximam-se muito dos processos mentais para se fazer cinema - sobretudo no que diz respeito à escolha de planos e à definição da montagem de acontecimentos espaciais. Os arquitetos também têm de imaginar a vida que irá acontecer num determinado espaço. Ao projetar, os arquitetos têm a capacidade “… de fazer a transição entre espaços que têm dimensões completamente antagónicas, de espaços estreitos e baixos para espaços largos e altos, ou espaços que tenham materiais diferentes.” (Urbano 2013, 120)


Nem a arquitetura e nem o cinema são possíveis sem o espectador em movimento, isto é, sem a capacidade de juntar formas e espaços diferentes sob uma mesma narrativa. Tanto a arquitetura como o cinema têm a capacidade de, ao juntar certas partes diferentes, alterar ou criar novos significados, reordenando a realidade. Na arquitetura é importante a forma como se juntam espaços distintos - é a maneira de dispor e relacionar espaços diferentes que cria expressões variadas.


Mas a relação entre a arquitetura e o cinema tem de se dar através da metáfora e por meio de substituições e aproximações não evidentes. E por mais que se queira, o espaço construído pelo arquiteto nunca corresponde totalmente ao que foi imaginado, porque a arquitetura transportará sempre múltiplas interpretações e possibilidades. A arquitetura tem de estar permanentemente preparada para receber livremente várias narrativas, sentidos e funções. Ao fazer parte de um tempo, a arquitetura, tem ainda capacidade de ser o testemunho e a imagem de determinados acontecimentos. Também ela conta uma história. Porém, o cinema usa o espaço para servir uma determinada e específica narrativa. Os cineastas têm a possibilidade de controlar toda a ocupação de um espaço: “A grande vantagem da arquitetura, podemos dizer que é uma vantagem ou uma limitação, é permitir que todas as histórias da aconteçam nela. Há liberdade, as pessoas podem utilizar a arquitetura como quiserem. O cinema apesar de conseguir controlar a forma como as pessoas vivem a arquitetura, também a limita, já que só se pode viver o espaço daquela maneira.” (Urbano 2013, 123)


Mas ainda assim, na opinião de Urbano, o cinema é o instrumento mais útil para descrever a arquitetura - é o testemunho mais real de uma verdade construída. A arquitetura necessita pois do ecrã, dos planos, da história e do movimento para ser compreendida e experienciada e o ecrã precisa da arquitetura para reconstruir a realidade a favor de uma nova ordem e de um novo significado.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  

 

A cidade como ecrã.


«Já nos Estados Unidos a contaminação da cidade pelo cinema e vice-versa não podia ter um aspeto mais prático, positivo e efetivo. O cinema entrou na cidade e a cidade entra no cinema e os dois emprestam-se um ao outro, ampliando e reinventando o território de ambos. Se a cidade do século XIX constituía um proto-ecrã, o ecrã constitui agora uma proto-cidade, a proto-cidade onde muitos querem viver» (Sol 2018, 20)


Na tese “A Imagem da cidade e o seu espaço-representado no videoclip da década de oitenta. Interferências norte-americanas na cultura arquitetónica contemporânea dita ocidental.” (Universidade de Lisboa, Faculdade de Arquitetura, 2018), Luísa Sol escreve que há toda uma nova atmosfera urbana, advinda das alterações impostas no final do séc. XIX, e que antecipou todo o ecrã contemporâneo - através da transformação da noção de espaço público e da emergência de uma nova consciência do individual (Sol 2018, 8). Essa nova consciência surgiu com o advento do capitalismo industrial que destruiu lentamente o domínio público, ao ampliar as expectativas e os interesses privados. O eclodir dos grandes armazéns e o seu sucesso fizeram da vida pública um lugar mais intenso e menos sociável, sublinhando sobretudo o papel da secularização. A secularização leva o ser humano a mistificar a sua própria condição – e a não ter tempo para olhar para qualquer outra coisa que não seja a sua eterna face num reflexo. Sol explica que Baudelaire em O Pintor da vida moderna afirmou que o indivíduo moderno deseja assemelhar-se somente àquilo que pretende ser, sem se deixar tocar pelo incontrolável e pelo incompreensível. E vive, por isso, em grande conflito com o facto de ser outro. O seu reflexo nunca corresponde ao sonhado. O resultado é o culto da personalidade, através do fascínio das roupas e da moda. Haussmann, contribuiu em Paris, para a produção desta sociedade que agrava a visão que cada um tem de si próprio - os grandes boulevards não escondem nada, o importante é aquilo que as pessoas têm para mostrar.


A metrópole da era industrial e o cinema surgiram num contexto muito próximo: «A cidade moderna, do comércio, dos boulevards, das vitrines e das arcadas sintetiza um modelo expositivo que determinaria a importância da imagem, estática ou em movimento, da visibilidade do indivíduo e da mercadoria, da sua circulação e transações.» (Sol 2018, 12)


A cidade e também a arquitetura, para Sol, funciona assim como o ecrã da modernidade e, gera, a necessidade do cinema. A cidade moderna trouxe a constante vontade das pessoas verem e serem vistas. A nova velocidade, as multidões de olhos e as largas avenidas esboçaram o ato de filmar e a permanente exposição dos percursos no espaço. Por isso, a arquitetura da cidade é a superfície ideal para se projetar tudo aquilo que as pessoas têm para exibir.


Luísa Sol revela ainda que os situacionistas já avisavam que a sociedade moderna estava contaminada e dominada por imagens. A imagem do mundo torna-se assim mais importante que o próprio mundo. Essas imagens são uma produtificação da vida quotidiana. E vai ser cada vez mais difícil separar a realidade da ficção. (Sol 2018, 20)


Ana Ruepp

ANTOLOGIA

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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

LEAL SOUVENIR

 

 


1.  Por que é que se volta repetidamente a certos lugares que, de viso próprio, nunca escolheríamos? Por que é que se malogram sucessivamente visitas a outros certos lugares, tanto e há tanto tempo desejadas? São duas perguntas sem resposta ou com a mesma resposta que não obtemos quando nos perguntamos o que nos leva a encontrar sucessivamente quem não buscámos nem buscamos ou a desencontrar, com a mesma irregularidade, aquela ou aquele que procurávamos e procuramos. Os acasos têm as costas largas e eu sou daqueles que nunca acreditou na dimensão delas. O que tem que ser tem muita força e raramente se acha força que a contrarie. Lembrei-me disso, em Rimini. Como julgo que já expliquei aqui uma vez (com a idade, a gente repete-se) Rimini nunca foi cidade que eu buscasse. Ora (cf. Público, 8 de novembro de 2002, "Fellini de Rimini") por duas vezes em dois anos seguidos me achei nessa cidade, por obra e graça do mesmo Fellini, cuja obra nunca foi da minha graça. Basta o Templo Malatestiano para obrigar alguém como eu a visitar essa cidade? Basta. O elefante e a rosa. Alberti e Piero. O galgo branco e o galgo negro. A imaculada conceição do Renascimento, necessitas, commoditas, voluptas. Mas não eram coisas minhas, antes de as ver, e eu raramente vejo o que antes não era já meu. Só agora sei que um dia seria. E só agora sei que quando "voei" de Alberti para Bramante e do Templo de Sigismondo para as cúpulas de Santa Maria delle Grazie (é mesmo Grazie, caríssimo Manoel de Oliveira) fiz o "raccord" mais perfeito que se pode fazer entre os cumes do renascimento arquitetónico italiano. Mas não é do Tempietto que hoje vou falar, pois que até a repetição tem limites. Desta vez, embora tenha ganho muito do meu tempo entre o galgo negro de Piero e os rabinhos redondos dos mil "putti" de Isotta degli Atti, os meus passos levaram-me para o museuzinho da cidade, onde eu sabia que podia ver um Bellini que antes muito vira (uma Pietá com anjo cor de rosa). E eis que, de súbito, nessa sala, se me atravessa uma estátua de Santa Catarina (a de Alexandria, não a de Sena) datada de 1410 e atribuída ao "Mestre da Anunciação Dreicer" que não sei quem foi, mas, me soube a Dreyer. É uma estátua de pedra branca com vestígios de policromia. Não é muito alta (1 metro e 30) mas, como a colocaram em cima de um plínio de 40 cm, a cabeça dela ficou quase à altura da minha. Veste um longo manto de pregas que a cobre inteiramente do pescoço aos pés (nenhuma carne visível) e usa uma cabeleira de anjo muito encaracolada. Mas o que me hipnotizou foi o sorriso, um sorriso inenarrável, sossegadissimamente meigo e sossegadissimamente desafiante. Tão desafiante era que, aproveitando o facto de estar sozinho na sala, me aproximei para lá de todos os critérios aconselhados pela mais benevolente segurança. Os olhos da estátua são daqueles que olham frontalmente quem frontalmente os olha a eles. Um dos olhos é cego ou ficou cego de tanto ver. O outro, pelo contrário, olha todo, olha tudo. Assim, quase "cheek-to-cheek", fiquei colado a ela. Ninguém nos interrompeu. Numa vasta sala, solitária e gelada, o meu vulto e o vulto dela, ficaram de corpo-aberto, benzedeiros e videntes, como se diz dos corpos onde entrou um espírito, que dentro dele fala. Como Quinto Fábio Pictor quando foi a Delfos consultar o oráculo e inquirir dos meios mais adequados para alcançar favores divinos. Hawthorne, que como ninguém sabia destas coisas (ele me deu ou dará o título "Proféticas Imagens") falou de experiência semelhante em "The Marble Faun". Sinais de alma que, no mundo, só algumas mulheres têm. E algumas estátuas e alguns quadros. Como a minha - a de Bronzino - Lucrezia Panciatichi, que há seis décadas me vela e me desvela, "Amour Dure-Dure Amour", Madonna do Futuro, Madonna do Passado, como, antes de mim, para Henry James já fora. Como Milly Theale reencontrada.

 

2.  A fotografia, desde os tempos imemoriais em que eu brincava com retratos avoengos de Mniz Martinez, com moradas na Rua de Serpa Pinto n.º 66 e no Largo da Abegoria 4 ou da Helios Photos, com moradas na Avenida da Liberdade 158 ou na Rua de S. José 209 A; a pintura, desde os tempos mais memorizáveis em que abri as Janelas Verdes; tinham-me dado visões semelhantes. A pedra ou o mármore, jamais. A tal ponto que essa estátua dreyeriana (não é gralha) se me sobrepôs à "morbidezza e diligenza" (Vasari o disse, que raramente se enganou) dos vários Malatesta que estão aos pés de S. Vincenzo Ferreri, na pala com o nome do Santo, que é a obra máxima exposta no museu. Ghirlandajo a pintou em 1493, quase cem anos depois de esculpida a Catarina, e, muito mais impressivos do que os Santos adorados (além do "protagonista", os inseparáveis São Sebastião e São Roque) são os adoradores: Pandolfo IV Malatesta, que foi o último senhor de Rimini (tão fraco guerreiro como bom negociante, pois que por duas vezes vendeu a cidade que não conseguiu defender) a mãe, Elisabetta Aldobrandini, a mulher, Violante Bentivoglio e o irmão Carlo. Todos eles, luxuosissimamente vestidos e com a raça imaginável pelos apelidos, não sendo retratos autónomos (figurantes ajoelhados da cena supostamente sacra), em pouco espaço, se volvem para a expressão ideal a que só a "alta immaginazione" pode aceder. Ninguém olha ninguém. Ou seja, não se olham uns aos outros nem olham os santos. Mas é da perna, fugazmente nua, do pestífero São Roque, que desce a carne que os torna tão palpáveis e frementes. Pensei na implausibilidade (para não dizer impossibilidade) de um nariz como o de Pandolfo, a começar quase no meio da testa e a seguir retilíneo quase até à boca, um nariz quase tão soberbo como o do Medicis de Botticelli ou o do Montefeltro de Piero. Na noite desse mesmo dia, jantei com uma italiana que tinha um nariz quase igual. Em Itália nunca se sabe se é a natureza que copia a arte ou se é a arte que copia a natureza. Provavelmente, nem uma nem outra coisa. Os retratos são a mais imaginosa das nossas memórias, ou as mais perduráveis imaginações nossas.

 

3.  Não estou a dizer nada que não tenha sido dito e redito. Só que nos esquecemos de o lembrar. "Nothing, in the whole circle of human vanities, takes stronger hold of the imagination than this affair of having a portrait painted. Yet why should it be so? The looking glass, the polished globes of the andirons, the mirror-like water, and all others reflecting surfaces, continually present us with portraits, or rather ghosts of ourselves, which we glance at, and straightway forget them. But we forget them only because they vanish. It is the idea of duration - of earthy immortality - that gives such a mysterious interest to our own portraits" ("Dentre todas as mundanais vaidades, nada tem mais forte poder sobre a imaginação do que esta coisa de possuir um retrato pintado. Porquê? Porque é que isso acontece? Os espelhos, as vítreas placas das salamandras, a água e todas as superfícies refletoras continuamente nos oferecem retratos, ou, melhor dito, espectros de nós próprios que olhamos de relance e imediatamente esquecemos. Mas só os esquecemos porque desaparecem. É a ideia da permanência - da imortalidade terrena - que confere tão misterioso interesse aos nossos próprios retratos"). Perdi tempo e espaço a citar o texto de Hawthorne (outra vez Hawthorne) no original inglês e na aproximativa tradução portuguesa? Não, não perdi. Ganhei-o. Porque a repetição - como a permanência - estimula a memória e com ela a imaginação. Aprende-se isso no cinema ou com o cinema. Um dos primeiros teóricos dele - Giambattista della Porta - escreveu em 1602 (quase trezentos anos antes dos comboios de Lumière) que "a memória mais não é do que uma pintura inteira, guardada nessa mesa animada a que chamamos cérebro". Ars riminiscendi. Não julgo preciso explicar-vos quem nos ensinou que tudo o que fazemos não é mais do que lembrarmo-nos. E lembro-me do nariz de Pandolfo, do "azul profundo, quase noturno" de Bellini, da cor maléfica "do sumo de papoula" da Lucrezia de Bronzino, do galgo negro nascido das costas do galgo branco de Piero. E lembro-me mais e mais do sorriso evanescente e do olhar húmido da Santa Catarina, única imagem que aqui vos deixo, sabendo que não a vereis como eu a vi, "tremendo com todo o corpo" como Plutarco disse que Cassandro tremeu ao ver a imagem de Alexandre, tempo depois de Alexandre morto. 
Uma última imagem? No retrato de Van Eyck, dito de Timoteos, que hoje está na National Gallery em Londres, lê-se a inscrição "Leal Souvenir". Penso que tudo quanto disse sobre a imagem, a memória e a imaginação, pode caber nessa expressão. E penso - parecendo que não - que tudo quanto vos confiei foram recordações leais. Não mais, não menos.

 

João Bénard da Costa
in Público, 21 de novembro de 2003

 

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Éric Rohmer é incapaz de trabalhar sobre o eterno.


No texto Architecture d’Apocalypse, que Éric Rohmer escreveu para a revista Cahiers du cinéma, em 1955, lê-se que a arquitetura (ao contrário da pintura, da música e da literatura) não pode nunca deixar de responder ao seu destino principal e às necessidades que lhe dão origem - servir e proteger - em todos os lugares e para sempre: “Elle est bien un art, toutefois, puis qu’elle n’a pas oublié non plus sa prétention à satisfaire notre amour du beau.” (Rohmer 2010, 70)


As obras que a arquitetura produz são, na sua génese, muito diferentes daquelas produzidas pelo pintor, pelo poeta ou pelo músico. O pintor, o poeta e o músico produzem como que um espelho do mundo, tão distorcido quanto se quer. As produções concebidas pelo arquiteto fazem parte integrante do próprio mundo e estão entre todas as outras coisas. O arquiteto, aos olhos de Rohmer, não refaz a natureza, mas enriquece-a com uma nova ordem equilibrada e simples, com novos elementos belos e úteis e também com um renovado olhar: “Par œuvre architecturale, j’entends, non pas le monument «en soi», offert dans un écrin à l’appétit du touriste, mais tout l’ensemble des «arts décoratifs», toute la masse des objets usuels, dans la mesure où ils se flattent de ressortir à l’esthétique. Ainsi la carrosserie d’une automobile, le tracé d’une rue entrent bien plus sous ma rubrique que telle colonne commémorative.” (Rohmer 2010, 71)


O cinema, para Rohmer, também constrói a sua ficção com a própria realidade. É uma nova organização do que já existe e promove um tipo de contemplação sem nostalgia, nem qualquer tipo de posse - apesar de alterar a nossa relação com a natureza, porque o ato de fotografar ou de filmar altera certamente proporções e distorce a escala.


Para Rohmer, as grandes e intermináveis planícies, as cadeias montanhosas e o infinito do mar só produzem em nós todo o seu efeito se houver alguma adição humana. Por isso, para Rohmer, a perfeita harmonia está na simultaneidade e na coincidência da natureza com o trabalho humano. Essa harmonia imperfeita é a verdadeira porta de entrada para a compreensão da autêntica ordem divina. A genuína arquitetura também manifesta em si o desejo de encontrar o eterno, o divino e o intemporal através da sua incompletude e da sua falha. A visão arquitetónica da vida é uma visão para sempre imperfeita, provisória e temporal.


Rohmer pensa que a vida perfeita e completa não é tema para nenhuma narrativa. O infortúnio e o tédio, esse sim deve ser a matéria primeira da arte, deve ser a sua principal substância.


Rohmer escreve que uma grande esperança nasceu com o advento da arquitetura moderna - a esperança por um mundo novo feito na extensão do nosso prazer e da nossa sede pela liberdade. Mas Rohmer considera que o arquiteto que começa do ‘zero’ e que que rompe com todas as tradições, se esquece que todas as formas e motivos que nos rodeiam foram moldados por um longo trabalho de várias gerações e por muitos anos de uso, inspirados também pelos lugares que nos circundam. Os novos materiais permitem sim mais e novas possibilidades mas as novas criações da ciência e da tecnologia pertencem a uma espécie diferente daquela a que pertencem os produtos que vêm da terra. As novas criações podem tornar-se em criações monstruosas e por isso cabe-nos a nós amaciar, aclimatar e moldar as formas à imagem daquilo que nos rodeia. Para Rohmer, a verdadeira forma é sempre orgânica e é sempre conformada pela natureza.


“Être modernes: oui. Encore faut-il que nos constructions actuelles fassent bon ménage avec les anciennes. Être modernes: bien sûr. Mais ce goût que nos contemporains éprouvent pour le passé, n’est-il pas un fait spécifiquement moderne?” (Rohmer 2010, 77)


Ser moderno, para Rohmer, passa por abraçar a tecnologia, mas passa também, certamente por olhar para o passado e aprender com aquilo que está para trás de nós. Rohmer chega mesmo a dizer que se o nosso amor pelo passado terminasse, quantas fábricas fechariam as portas e quantos hotéis estariam à espera em vão por turistas! Naturalmente, em todos nós existe uma curiosidade pela coisa antiga e pela história - talvez por uma qualquer aversão à esterilidade ou talvez como prova da nossa incapacidade em estar completamente satisfeito com o nosso próprio tempo.


Rohmer acredita que o mal dos arquitetos modernos talvez assente num grande equívoco que alguns filósofos defendem, ao afirmarem que a ordem é o princípio básico para que o belo se estabeleça - e essa ordem a que se referem está sempre relacionada com uniformidade e não com diversidade. A natureza, sem dúvida, ensina-nos que, pelo contrário, a ordem está na variedade e não na monotonia. Rohmer não defende como antídoto o culto desesperado pela diferença. Rohmer defende como solução a norma clássica. Na sua opinião a regra clássica é a única capaz de suportar a particularidade, a exceção e o individual.


Foi através do amor pelo cinema que Rohmer chegou ao seu interesse pela arquitetura e pelo mundo que o rodeia. É da própria vida e da natureza crua que o cinema deve ser composto e por isso só o ato de filmar, entre todas as artes, deve ser capaz de ser o verdadeiro reflexo do seu próprio tempo.


Rohmer escreve que infelizmente a nossa admiração pela arte depende de uma visão e de uma crença desmedida de que o espírito humano terá um progresso ilimitado rumo à perfeição infinita. Rohmer é incapaz de trabalhar sobre o eterno. Rohmer prefere perder-se na visão de um mundo finito e incompleto no tempo e no espaço, um mundo onde cada particularidade conta e contribui para o funcionamento de um conjunto, de um ciclo.


Nada é mais pobre do que a ideia de repetição perpétua ou a ideia de uma pretensa perfeição encontrada ou ainda a ideia do constante e do propositadamente diferente. Rohmer acredita ser muito mais emocionante a finitude das nossas criações ao serem constantemente incompletas e superadas pelas próximas. Rohmer finalmente acredita que não é impossível ser clássico e moderno em simultâneo - ao amar-se o seu próprio tempo abre-se sempre a possibilidade de unir o passado e o presente através do espaço.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


O cinema é para Eric Rohmer uma simples captação mecânica das coisas.


No livro “Eric Rohmer. Film as Theology.” de Keith Tester (Palgrave Macmillan, 2008) lê-se que o território dos filmes de Eric Rohmer situa-se entre o campo e a cidade. Cada espaço, para Rohmer estabelece uma relação profunda e intrínseca com o ser humano - porque é capaz de o influenciar e de o fazer sonhar.


Nos seus filmes, Rohmer insiste na criação que existe para lá da construção humana. Numa entrevista a Antoine de Baecque e Thierry Jousse, em 1993, Rohmer afirma que o cinema não tem uma relação predatória com a natureza. Pelo contrário, para Rohmer, o cinema tem a capacidade de gravar a beleza do real: “My love of cinema itself springs from my love of nature.” (Handyside 2013, 138)


O cinema é, assim para Rohmer uma simples captação mecânica das coisas - é uma máquina que se coloca perante algo e que nada altera. Rohmer diz que a pintura é diferente porque é forçada a transpor, a descrever, a usar a metáfora, a representar. Na verdade é um filtro: “Painting (…) is a strength of the imagination which bothers me more.” (Handyside 2013, 138)


Foi o enorme interesse pela natureza que levou Rohmer a amar o cinema acima de todas as artes. Para Rohmer, a ambição e o desejo em construir um mundo novo e melhor, pode ser devastadora e pode até levar à desumanidade extrema: “The demagogues’ problem is that they want to impose culture, because that implies that there is a correct culture, and one that is wrong. While in fact there are different cultures for different audiences.” (Handyside 2013, 137)


“I’ve always kept faith in the future and trust in the past together. In a certain way, I am very conservative, but the more conservative I am, the more I’m waiting for the future (…) You have to be conservative in the framework of tradition, for example, in Paris, but one has to be resolutely futuristic in Utopian settings, such as in the New Towns, where everything can be allowed.” (Handyside 2013, 139)

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR


Para Eric Rohmer realmente novas são as ideias que são eternas.


“My characters refuse heroism. They want to live in the everyday life and heroism is not part of everyday life. I think it’s an interesting problem because it concerns everybody - how to live each day according to certain ideas. What is tragic in modern life is when the idea of life is lost.”, Rohmer, 1973 (Handyside 2013, 38)


No livro Eric Rohmer: Interviews, editado por Fiona Handyside (2013), lê-se que Eric Rohmer defende uma posição em que o cinema é entendido como a reprodução mecânica de tudo aquilo que existe fora de si. É um instrumento que ajuda a descobrir a beleza do mundo, porque nos transporta de volta à própria natureza. A filosofia do seu cinema está infundida por um ponto de vista teológico e ecológico, no qual o papel do realizador é o de gravar e conservar a beleza ordenada do mundo, mais do que tentar transformá-lo ou modificá-lo (tal como o pintor ou o arquiteto aspiram).


Na verdade, Rohmer nunca parece considerar-se outra coisa senão modernista - os seus filmes são construídos em torno de historias densas, personagens complexas e existe um desejo claro de transparência realista. Os seus filmes são sempre filmados em lugares reais. E por isso, Rohmer chega mesmo a afirmar que os seus filmes dependem imensamente do tempo e do clima. Para Handyside, os seus filmes devem ser vistos como sendo o conflito entre o estável e o não estável, o imóvel e a mudança. Estão sempre forçados a acomodarem-se à mudança e à inconstância - existe um enorme interesse em explorar a habilidade do cinema em conservar a constante mutação do mundo. O seu interesse pelo mundo e pela paisagem está também intimamente relacionado com o seu envolvimento critico em relação à arquitetura e ao desenho urbano: “Rohmer is delighted to be asked the question, glad that his interest in urban planning is visible in his films.” (Handyside 2013, 9)


Os filmes de Rohmer contam sobretudo histórias. A possibilidade da não narrativa não é uma opção para Rohmer. Para Handyside, as histórias são sempre psicologicamente detalhadas, as atuações expressivas e o comportamento, o gesto e a apresentação de cada personagem varia com o tempo e com o espaço.


Rohmer demonstra sempre um grande interesse em abordar o cinema como a ciência do ser, que revela conceitos relacionados com a existência, o devir e a realidade (ao explorar a relação, difícil de filmar, entre o pensamento e a matéria). Os seus filmes tornam visível, concreto e percetível a vida através do processo do pensamento, dos estados de espírito e dos sentimentos de cada uma das personagens: “What interest me are the thoughts that fill his mind at that particular moment. And I wanted to use the cinema to show them, even though as the art of the objective and exterior images, it might seem the least appropriate.” Rohmer, 1971 (Handyside 2013, 18)


Rohmer dá a mostrar uma realidade contida e específica e que lhe é familiar - a sua experiência, a sua circunstância, as cidades que habita e que conhece - e deseja lidar somente com aquilo que lhe interessa. Cada filme é uma testemunha do seu próprio tempo, de um momento singular onde se mostram as coisas tal como são, de modo a tornar-se fonte de inspiração: “In the cinema nothing is easier than to show what is: you only have to look around you.” Rohmer, 1971 (Handyside 2013, 20)


Rohmer interessa-se pela natureza e não pelo artifício. Interessa-se por aquilo que é permanente e por aquilo que não muda. Não anseia criar um novo tipo de cinema. Para Rohmer realmente novas são as ideias que não tem data e que são eternas: “There may be people who are creating a ‘new’ kind of cinema but you have to ask how new it really is, if it doesn’t just form part of the ‘eternal avant-garde’ which sometimes just rediscovers ideas that were avant-garde years ago. For me what is really new is those ideas that never date.”, Rohmer, 1971 (Handyside 2013, 12)


“… and the events of the film could have taken place in Ancient Greece, for things haven’t changed all that much. For me what is interesting in mankind is what is permanent and eternal and doesn’t change, rather than what changes, and that’s what I am interested in showing.”, Rohmer, 1971 (Handyside 2013, 11)

 

Ana Ruepp