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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XIX


Minha Princesa de mim:


   Como bem sabes, desde muito jovem convivi com os livros e o pensamento de Ortega y Gasset. E fui guardando e remoendo certas ideias que me enchiam o coração. De algumas delas amiúde te falei, sobretudo quando as surpreendia na liça das minhas cogitações. Mas creio que nunca te disse algo especial que me ocorreu aquando da minha primeira visita ao Japão, há décadas.


   Um esforçado professor universitário nipónico procurava explicar-me a "timidez" de pronomes pessoais no falar japonês, recorrendo a conceitos e exemplos - de que já tratei noutras cartas e textos meus - enraizados numa visão abrangente do mundo, do humano e da natureza. Com o desenrolar das explanações, ia-se acentuando em mim uma qualquer impressão de "já visto", mas de pernas para o ar. Ao fim e ao cabo, ocorreu-me então que a noção "gassetiana" de que yo soy yo y mi circunstancia, se poderia traduzir, em japonês, por yo soy mi circunstancia y yo... Pouco ou nada sabendo que, quatro décadas mais tarde,  acharia em Lévi-Strauss, antropólogo que eu pouco lera antes, uma interessante interpretação do "mistério". Descobri-a relendo o texto de uma conferência que ele proferiu em Kyoto, a 9 de março de 1988, sobre o tema de La Place de la Culture Japonaise dans le Monde, de que seguidamente traduzo alguns trechos.


   Os filósofos ocidentais veem duas diferenças maiores entre o pensamento oriental e o deles. A seus olhos, o pensamento oriental caracteriza-se por uma dupla recusa. Primeiro, a recusa do sujeito, já que, de modos diversos, o hinduísmo, o taoísmo, o budismo negam o que, para o Ocidente, constitui uma evidência elementar: o eu, cujo carácter ilusório aquelas doutrinas insistem em demonstrar. Para elas, cada ser mais não é do que uma montagem provisória de fenómenos biológicos e psíquicos, sem elemento duradouro como é um si mesmo: aparência vã, inelutavelmente destinada a dissolver-se.


   A segunda recusa é a do discurso. Desde os gregos que o Ocidente julga que o homem tem a faculdade de apreender o mundo, utilizando a linguagem ao serviço da razão: um discurso bem construído coincide com a realidade, atinge e reflete a ordem das coisas. Pelo contrário, segundo o conceito oriental, qualquer discurso está irremediavelmente inadequado ao real. A natureza essencial do mundo  -  a supor-se que tal noção tenha sentido - escapa-nos. Transcende as nossas faculdades de expressão e de reflexão. Dela nada sabemos, sendo assim melhor que nada digamos. 
[Lembrando a simetria, ou inversão de imagem, de que já vínhamos falando, Princesa de mim, ocorre-me que o próprio São Tomás de Aquino, Doutor da Igreja - e estrela da escolástica - já dizia, no século XIII, que de Deus só não sabia nada. Na verdade, da Sua existência, avançou provas várias, racionais. Mas sabia e reconhecia que, da Sua essência, nada sabia...]. 


   A ambas as recusas 
[do sujeito e do discurso], reage o Japão de modo inteiramente original. Não dá ao sujeito uma importância comparável à que o Ocidente lhe atribui, nem dele faz o obrigatório ponto de partida duma reflexão filosófica, nem de qualquer tentativa de reconstrução do mundo pelo pensamento. Houve mesmo quem dissesse que o «Penso, logo existo», de Descartes é, em rigor, intraduzível em japonês...


   Mas também não parece que o pensamento japonês aniquile o sujeito: antes fará, dele, não uma causa, mas um resultado. A filosofia ocidental do sujeito é centrífuga, já que tudo parte dele. Mas o conceito japonês do sujeito é centrípeto. Tal como a sintaxe japonesa constrói as frases por determinações sucessivas, que vão do geral ao particular, o pensamento japonês põe o sujeito na meta: ele resulta do modo como os grupos sociais e profissionais, cada vez mais restritos, encaixam uns nos outros. O sujeito volta assim a encontrar uma realidade, como se fosse o último lugar em que se refletem as suas pertenças. 


   Este modo de construir o sujeito pelo lado de fora também serve à língua, propensa a evitar o pronome pessoal, tal como à estrutura social em que a «consciência de si» (jigaishi) se exprime no e pelo sentimento que cada um, mesmo o mais humilde, tem de participar numa obra coletiva. Até ferramentas de conceção chinesa, como certas serras e tipos de plainas, só foram adotadas no Japão, há seis ou sete séculos, com um modo de emprego invertido: o artífice puxa a si a ferramenta em vez de a empurrar para a frente. Situar-se à chegada, e não à partida, de uma ação exercida sobre a matéria revela profunda propensão a definir-se pelo exterior, em função do lugar que se ocupa numa família, num grupo profissional, em dado meio geográfico, ou, de modo mais geral, no país e na sociedade. Dir-se-ia que o Japão revirou, como se revira uma luva, a recusa do sujeito, para extrair dessa negação um efeito positivo e aí encontrar um princípio dinâmico de organização social que ponha esta também a salvo da renúncia metafísica das religiões orientais, da sociologia estática do confucionismo e do atomismo a que o primado do eu expõe as sociedades ocidentais.


   A resposta japonesa à segunda recusa é de género diferente. O Japão operou uma completa reviravolta de um sistema de pensamento: posto pelo Ocidente na presença de outro sistema, retém o que lhe convém e afasta o resto. Visto que, longe de repudiar em bloco o logos, tal como os gregos o entendiam - isto é, enquanto correspondência da verdade racional ao mundo - o Japão tomou resolutamente partido pelo conhecimento científico, onde, aliás, vem a ocupar um lugar de primeiro plano.


   
Seja como for, proponho-me agora sublinhar a importância pragmática de pensarsentirmos o indivíduo, o eu, não como centro mas como parte de um conjunto solidário, necessário ontologicamente. O ser humano, e não só, é um ser em relação, não se explica, nem sequer existe por si e para si. Ao cartesiano cogitoergo sumprefiro o gassetiano yo soy yo y mi circunstancia, posto que, sendo arbitrária a ordem dos fatores, o mesmo é dizer que yo soy mi circunstancia y yo... Aliás, as últimas encíclicas do papa Francisco lembram à nossa cultura hodierna o dever de nos pensarsentir prioritariamente na fraternidade da nossa humanidade comum e com a terra, nossa mãe e abrigo. Assim também me ensinou, ao longo destes anos todos, o meu convívio japonês.

 

Camilo Maria    

   

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XVIII


Minha Princesa de mim:


   Apprivoiser l’ Étrangeté, de Claude Lévi-Strauss, aparece encabeçado por uma citação de Platão: Pois que é o mais contrário, acima de tudo, o maior amigo do que lhe é mais contrário... Assim, Princesa de mim, há paradoxos em que os contrários nos surgem como alter-ego do outro. Também é verdade que prudência é grande amiga da perspicácia e, por isso mesmo, ao querer aproximar-me do ignoto, do desconhecido, tenho sempre bem presente aquela definição "agostino-aquinense" da prudência como amor sagaz. Mas hoje vamos deixar Lévi-Strauss falar-nos do padre Luís Fróis. Traduzirei trechos do tal Apprivoiser l'Étrangeté.


   O Ocidente descobriu o Japão por duas vezes: em meados do século XVI, quando os jesuítas, na senda dos mercadores portugueses, ali entraram (mas foram expulsos um século depois); e trezentos anos mais tarde, com a ação naval conduzida pelos Estados Unidos para obrigar o Império do Sol Nascente a abrir-se ao comércio internacional.


   O padre Luís Fróis foi um dos principais atores da primeira descoberta. Papel comparável desempenhou, na segunda, o inglês Basil Hall Chamberlain, de quem Fróis surge hoje como o precursor. Nascido em 1850, Chamberlain visitou o Japão, por lá ficou e lá se tornou professor da Universidade de Tokyo. Num dos seus livros, "Things Japanese", publicado em 1890  e composto como um dicionário, na letra T desenvolve um artigo intitulado "Topsy-Turvy Dom" (
o mundo com tudo do avesso) em que afirma que «os japoneses fazem muitas coisas de maneira exatamente contrária à que os europeus consideram natural e conveniente»...


   ...Se ele tivesse conhecido o tratado de Fróis, teria encontrado um repertório fascinante de observações por vezes idênticas às suas, mas mais numerosas, e conduzindo todas à mesma conclusão...


   
Alimentado pelo seu trabalho antropológico, Lévi-Strauss vai então buscar um interessante termo de comparação das notas de Fróis (séc. XVI) e Chamberlain (XIX) com outras, acerca do Egipto, feitas por  Heródoto no século V antes de Cristo! Diz o grego antigo: «Os egípcios conduzem-se, em todas as coisas, ao contrário dos outros povos.» As mulheres dedicam-se ao comércio, enquanto os homens ficam em casa. E são estes, e não elas, quem tece. E começam a tessitura na parte de baixo do tear, e não pela de cima, como nos outros países. As mulheres urinam em pé, os homens de cócoras... E o antropólogo francês comenta: E não continuo a lista, que põe em evidência uma atitude de espírito comum aos três autores. E acrescenta: 


   Não devemos ver só contradições nas disparidades que enumeram. Têm muitas vezes um estatuto mais modesto: ora simples diferenças, ora presença aqui, ausência ali. E Fróis bem o sabia, pois que, no título da sua obra, as palavras contradições diferenças [em português no texto francês] estão lado a lado. E todavia, nele, muito mais do que nos outros dois autores, existe um esforço para que todos os contrastes caibam no mesmo quadro. Centenas de comparações, formuladas de modo conciso e construídas de modo paralelo sugerem ao leitor que não se lhe assinalam apenas diferenças, mas que todas essas oposições constituem, de facto, inversões. Entre os usos de duas civilizações, uma exótica, outra doméstica, Heródoto, Fróis, Chamberlain, partilharam a mesma ambição: para lá da ininteligibilidade recíproca dessas civilizações, eles insistiam em poder ver relações transparentes de simetria. 


   
Pessoalmente, sempre procurei tentar perceber a razão e o modo de pensamentos, sentimentos e comportamentos que me pareciam estranhos, interrogando-me também, simultaneamente, sobre as razões e modos dos meus próprios. Talvez por isso, cedo compreendi que, antes de qualquer construção mental e afetiva, e por detrás das suas expressões, existe um húmus humano comum, graças ao qual nos podemos reconhecer no que, em primeira abordagem, nos aparecia contraditório. Sei, Princesa de mim, que reincido na tradução de longas citações, mas acho bem deixar-te aqui uma conclusão de Lévi-Strauss:


   Assim, teremos de reconhecer que o Egipto, para Heródoto, tal como o Japão, para Fróis e Chamberlain, tinham uma civilização em nada desigual à deles? A simetria que reconhecemos entre duas culturas une-as ao opô-las. Surgem-nos simultaneamente semelhantes e diferentes, como a imagem simétrica de nós mesmos refletida por um espelho que nos fica irredutível, apesar de nos descobrirmos em cada pormenor. Quando o viajante se convence de que usos em total oposição aos seus o tentariam a desprezá-los e rejeitar com desgosto, na realidade lhes são idênticos quando vistos ao contrário, aprende a domesticar o estranho, a torná-lo familiar. 


   Ao sublinhar que os usos dos egípcios e os dos seus próprios compatriotas estavam numa relação de inversão sistemática, Heródoto punha-os realmente no mesmo plano, e indiretamente dava conta do lugar que cabia ao Egipto segundo os gregos: civilização de respeitável antiguidade, depositária de um saber esotérico ao qual se podiam ir buscar ainda ensinamentos.


   Tal como noutros tempos, posto numa conjuntura comparável em presença doutra civilização, é também pelo recurso à simetria que Fróis, sem o saber, pois era cedo demais, e Chamberlain, sabendo-o, nos deram um meio de melhor compreender a profunda razão pela qual, por volta de meados do século XIX, o Ocidente ganhou o sentimento de se redescobrir nas formas de sensibilidade estética e poética que o Japão lhe propunha.

 

Camilo Maria    

   

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XVII


Minha Princesa de mim:


   A coleção La Librairie du XXIe. Siècle, dirigida por Maurice Olender, publicou em 2011 uma pequena coletânea de escritos do grande antropólogo Claude Lévi-Strauss, intitulando-a L’AUTRE FACE DE LA LUNE - Écrits sur le Japon (Seuil, Paris). Junzo Kawada recorda, no prefácio a essa obra, uma confissão de Lévi-Strauss que, na apresentação da edição japonesa do seu livro Tristes Tropiques, em 1977revela o seu apego ao Japão:


   Nenhuma influência contribuiu mais precocemente para a minha formação intelectual e moral do que a da civilização japonesa. Por vias bem modestas, sem dúvida: meu pai, artista pintor, fiel aos Impressionistas, tinha, na mocidade, enchido uma gorda pasta de estampas japonesas, e deu-me uma pelos meus cinco ou seis anos. Ainda me lembro dela: era uma gravura de Hiroshige, já muito gasta e sem margens, que representava umas passeantes debaixo de uns grandes pinheiros à beira-mar. 


   Entusiasmado pela primeira emoção estética que ressentira, com ela cobri o fundo de uma caixa que me ajudaram a pendurar por cima da minha cama. A estampa fazia de panorama avistado do terraço dessa casinha que, de semana em semana, eu me entretinha a rechear de móveis e personagens em miniatura importados do Japão, e de que uma loja chamada "La Pagode", situada na rua dos Petits Champs, em Paris, fizera especialidade sua. Desde então, uma estampa veio premiar  cada um dos meus êxitos escolares, e assim foi durante anos. A pouco e pouco, a pasta de meu pai foi-se esvaziando para proveito meu. Mas tal não chegava para conseguir o encantamento que me inspirava o universo que eu ia descobrindo através de Shunsho, Yeishi, Hokusai, Toyokuni, Kunisada e Kuniyoshi... Até aos meus dezassete ou dezoito anos, todas as minhas economias se gastaram em estampas, livros ilustrados, lâminas e copas de sabre, indignas de qualquer museu (já que as minhas só me deixavam adquirir coisas humildes), mas que me absorviam durante horas, nem que fosse para - armado de uma lista de caracteres japoneses - apenas decifrar, laboriosamente, títulos, legendas e assinaturas... Posso portanto dizer que toda a minha infância e parte da minha adolescência se desenrolaram tanto, ou talvez mais, no Japão do que em França, pelo coração e pelo pensamento.


   
Todavia, curiosamente, só entre 1977 e 1988 é que Lévi-Strauss fez umas cinco viagens ao Japão, onde nunca estivera, ele que nascera em 1908. Já depois de ter escrito que, apesar dissonão ignoro as grandes lições que a civilização japonesa tem em reserva para o Ocidente, se este quiser entendê-las: que, para viver no presente, não é necessário odiar e destruir o passado; e que não há obra de cultura digna de tal nome onde não haja lugar para o amor da natureza e respeito por ela. Se a civilização japonesa consegue manter o equilíbrio entre a tradição e a mudança, e se o preserva entre o mundo e o homem, sabendo evitar que este não arruíne nem torne feio aquele, por, numa só palavra, permanecer persuadida, conforme o ensino dos seus sábios, de que a humanidade ocupa esta terra a título transitório e de que tal breve passagem não lhe confere o direito de causar irremediáveis danos a um universo que existia antes dela e continuará a existir depois, então talvez tenhamos uma fraca probabilidade  de que as sombrias perspetivas a que este livro chega não sejam, pelo menos em partes deste mundo, as únicas promessas às futuras gerações...


   
Reconheço, minha Princesa de mim, que esta carta te foi escrita mais pelo Claude Lévi-Strauss do que por este Camilo Maria que a subscreve. São, na verdade, muito longas as citações que aqui traduzo, mas também é certo que a minha convivência de décadas com a gente nipónica e a sua cultura me leva a acordar-me com tudo, ou quase tudo, do que aqui transcrevi do prefácio straussiano à edição japonesa (em 1977?) do seu Tristes Tropiques, cujo original francês foi publicado pela Plon, Paris, em 1955. Aliás, tem sido longa a minha própria reflexão acerca das diferenças culturais, tal como da evolução das culturas de, e em, várias sociedades, da aculturação e inculturações que todos os dias vão medrando por esse mundo em que vivemos ou, melhor, convivemos. Aprendi muito, quanto ao Japão, com o padre Luís Fróis, jesuíta português do século XVI, observador perspicaz e amantíssimo das gentes e coisas japonesas. Em próxima carta, Princesa de mim, debruçar-me-ei sobre um capítulo de L’autre face de la Lune, capítulo esse intitulado Apprivoiser l’étrangeté (que traduzo por "Domesticar a estranheza ou o estranho", no sentido de tornar cá de casa o que nos é estranho, ou seja, também, conviver com a nossa própria estranheza. A fonte de tal capítulo é um prefácio de Lévi-Strauss ao livro Européens & Japonais. Traité sur les contradictions & différences de moeurs, versão francesa (Chandeigne, Paris, 1998) dum escrito do padre Luís Fróis, no Japão, em 1585. Veremos então a bem profunda admiração de Lévi-Strauss pelo nosso missionário quinhentista...

 

Camilo Maria

   

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Em texto breve e claro, Claude Lévi-Strauss fala de algo que disse no Japão e a que chama apprivoiser l'étrangeté, encabeçando a sua reflexão por uma citação de Platão: Porque o mais contrário é o maior amigo do que lhe é mais contrário... Poderia também ter citado alguém mais seu coevo, como o jornalista correspondente de guerra Robert Guillain, que teve esta afirmação famosa: Le Japon est le pays où le contraire est vrai...

 

   E, referindo-se à descoberta da cultura japonesa pelo Ocidente, logo aponta o jesuíta português Luís Froes como pioneiro, no século XVI, desse exercício de comparação simétrica de pessoas, usos e costumes que, em meados do século XIX, levou o mesmo Ocidente a ganhar o sentimento de se redescobrir nas formas de sensibilidade estética e poética que o Japão  lhe propunha. Esta frase, aliás, resume o teor do prefácio que o célebre antropólogo francês (nascido em 1908, em Bruxelas) escreveu para a edição francesa de Européens et Japonais. Traité sur les contradictions et différences de moeurs, que, em português, foi escrito pelo padre Luís Froes em 1585 e, apesar de praticamente ignorado na sua pátria, e sua própria língua, foi, muito mais tarde, traduzido e publicado em França pela Chandeigne (1998 e 2005).

 

   Noutro texto seu, e noutra charla nipónica, Lévi-Strauss fala de Sengai (1750-1837), calígrafo, pintor e poeta, monge zen que costumava ir beber à fonte dos haikai de mestre Basho. O trecho que seguidamente para ti traduzo vale bem a leitura que fizeres, pelo muito que nos desvenda da íntima relação - para não dizer natureza comum  -  da poesia, caligrafia e pintura japonesas. Escuta bem:

 

   A arte de Sengai, reconhecia André  Malraux, deixa perplexo o espectador ocidental: «Nenhuma outra arte extremo-oriental, prosseguia ele, está tão longe da nossa, nem de nós.»

 

   Cada vez que se nos revela o sentido das legendas inscritas por Sengai à margem das suas pinturas, compreendemos um pouco melhor as razões de tal mal entendido. Pois que, pelo seu significado e o seu grafismo, as palavras têm tanta importância quanto o assunto, já que desses curtos textos, muitas vezes em forma de poemas, com as suas citações implícitas e as suas alusões maliciosas, os seus subentendidos, apenas obtemos das obras uma perceção mutilada.

 

   Mas, em certo sentido, isso é válido para toda a pintura extremo-oriental, indissociável da caligrafia, e não tão somente porque esta tem sempre cabimento naquela. Cada coisa representada - árvore, rochedo, curso de água, casa, senda, monte   -  para além da sua aparência sensível, recebe um significado filosófico de como o pintor a representa e situa num conjunto organizado.

 

   Mesmo se nos ativermos apenas à caligrafia, é claro que, apesar de todos os esforços dos tradutores, o essencial da poesia dos haikai - tais como os de Basho, de quem Sengai se sentia próximo, fica fora do nosso alcance. Tanto quanto o sentido literal, único acessível, contam a escolha de um caracter em vez de qualquer outro, o estilo da escrita (os manuais enumeram pelo menos cinco) e a disposição do texto sobre a folha...

 

   Já noutras cartas para ti, ou ainda em textos vários que escrevi sobre as minhas descobertas e insistentes interrogações acerca da cultura japonesa, abordei temas relacionados com a tradução literária ou as imitações e tentativas de adoção de géneros e modos literários próprios de outras culturas e línguas. Tais aventuras são sempre empresas de risco e incógnitos sucessos à partida. Exigem aos seus fautores, antes de mais, um refletido esforço de escuta e humildade, Com o tempo todo que lhe for necessário. E, depois, a serenidade de uma partilha, só pelo gosto dela. 

 

   O poeta, nosso contemporâneo, Mutsuo Takahashi editou em 2003 uma curiosa antologia de haiku - que, aliás, considera a chave poética do Japão - cuja maior qualidade, a meu ver, reside, precisamente, na achega a uma poética e estética, que nos proporciona, não só através das suas magníficas traduções para inglês, como pelas fotografias que a ilustram, e através das quais Hakudo Inue tenta desvendar-nos alguma visão mais intimista dos poemas japoneses. Essa também é facilitada pelo facto da edição ser bilingue (japonês-inglês), nesta publicação da P-I-E Books (Tokyo, 2003). O prefácio escrito pelo antologista e tradutor é, além disso, breve, conciso e claro, muito informativo e esclarecedor. Vem, a talho da fouce desta carta, traduzir-te eu os seguintes trechos desse texto de apresentação:

 

   ...O haiku de cinco-sete-cinco sílabas, todavia, nem sempre foi uma forma independente. Começou enquanto primeiro verso, chamado hokku, de uma espécie de poesia engrenada, chamada renga e haikai no renga (ou renga em estilo popular).  [Abro aqui um parêntese, Princesa, para te dizer que ouso pensar no "hokku" nipónico como equivalente ao nosso mote em desafios poéticos]. Tais poemas engrenados eram colaborativamente escritos por vários poetas que lhes iam alternativamente adicionando versos de sete-sete ou cinco-sete-cinco sílabas. Há pouco mais de cem anos, Shiki [Masaoka Shiki, 1867-1902, poeta, inventor do neologismo "haiku"] , decidiu separar o hokku do renga e do haikai  no renga, assim nascendo então o haiku.

 

   Havia uma conexão entre o hokku e os versos seguintesque começava com o segundo verso (wakiku ou "verso de suporte"). Apesar disso, o hokku permanecia semiautónomo. Aquilo a que hoje chamamos haiku, de Basho ou de Buson, são os seus semiautónomos hokku, vistos como poemas independentes.

 

   [Permite-me aqui, Princesa de mim, abrir mais um parêntese, chamando a atenção para a pertinência desta observação, já que tem sido generalizada a ideia de que haiku (para o qual, aliás, se inventou o plural, inexistente em japonês, de "haikus") é uma forma poética, ou género literário independente desde a sua origem. E é bem notória a tendência de se identificar tal mal entendido com, por exemplo, a obra escrita de Munefusa Matsuo (mais conhecido por Basho), esquecendo que dois terços da mesma está em prosa, sendo os versos destacados comentários, quiçá mais intimistas, ao próprio relato dos textos prosaicos. Aliás, tal facto nada tem de novo: já em literatura japonesa muito antiga  -  e no próprio Conto de Genji - o recurso a interlúdios poéticos é patente, retratando bem a unidade japonesa e budista das artes da escrita, da caligrafia e da ilustração plástica. Talvez, mesmo mais do que qualquer outra em todo o mundo e história, a literatura japonesa seja integral e profundamente emocional, registo possível do pensarsentir do ser humano. Quiçá por motivos próximos dos que levam a língua japonesa a tanto se alimentar de onomatopeias. Ocorre-me, neste preciso instante da escrita desta carta, voltar a citar-te um passo do Zen and Japanese Culture do professor Daisetz Suzuki (Princeton University Press, 1970), a que já muitas vezes me referi em escritos vários: Está certo dizer-se que a mente oriental é intuitiva, enquanto a mente ocidental é lógica e discursiva. Uma mente intuitiva tem certamente as suas fraquezas, mas o seu ponto forte surge quando trata de coisas mais fundamentais na vida, isto é, coisas relativas à religião, à arte, à metafísica. E foi o Zen que especialmente estabeleceu esse facto: o satori. A ideia de que a verdade última da vida e das coisas deve geralmente ser intuitiva e não conceptualmente apanhada, e de que tal apreensão intuitiva é o fundamento, não só da filosofia, mas de todas as outras atividades culturais - eis aquilo com que a forma Zen do budismo mais contribuiu para a cultura do apreço artístico entre o povo japonês.]

 

   Retomarei o fio desta meada em carta próxima, ou talvez aproveite a oportunidade para iniciar já com a presente uma nova série de escritos meus sobre o Japão, à qual, depois de Fomos em Busca do Japão e de Um Itinerário de Muitos Olhares, talvez ponha o título de Em Rebusca do Japão. Até lá. Mas, a fechar a presente, deixa-me traduzir-te as primeiras linhas de um "Diário de Viagem" de Matsuo Basho, intitulado Nozarashi kiko, e que é o primeiro apresentado, já em 1988, por René Sieffert na sua versão francesa Bashô - Journaux de voyage, publicada pelas Publications Orientalistes de France. A minha versão portuguesa foi feita directamente da francesa de Sieffert, com recurso esporádico e "tant bien que mal" ao texto original japonês, e o apoio do meu querido Dicionário Universal Japonês-Português do nosso jesuíta e contemporâneo padre Jaime Cepeda Coelho, velho e querido amigo. O pequeno trecho que se segue, a meu ver, diz muito sobre o espírito, a obra e o universo do grande Basho:

 

   Partindo para uma viagem de mil léguas, sem me embaraçar com provisões para o caminho, «sob a lua da terceira vigília entrei no inquestionável», poderia dizer esse Ancião: ao seu cajado me apoiei, na era Jokyo, no ano do Primogénito da Árvore e do Rato [1684], pela oitava lua do outono, quando deixei o meu casebre desconjunto, ao pé do rio, e um vento frio soprava.

 

          Embranqueçam os meus ossos
          penetra-me o vento o corpo
          até ao coração

 

          Passados dez outonos
          o nome de pátria designa
          Edo doravante

 

   No dia em que atravessei as barreiras, caía chuva e os montes todos desapareciam por entre as nuvens.

 

          Nevoeiro e bruma
          dissimulam o Fuji
          encanto deste dia

 

      Camilo Maria  

 

Camilo Martins de Oliveira