Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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O cinema reproduz a realidade e a arquitetura é a construção da realidade.
“Inversement, la nature nue est d’un maigre charme, si nous refusons d’y deviner la main d’un Architecte de l’univers.” (Rohmer 2010, 931)
No filme Le Celluloïde et Le Marbre (1965) o arquiteto e urbanista Georges Candilis afirma que o cinema tem a capacidade de reproduzir a realidade e a arquitetura tem a capacidade de construir essa realidade.
Na sua opinião, tanto o cinema quanto a arquitetura dizem respeito à vida e devem expressar o mesmo desejo de mudança. Para Candilis, o cinema consegue dar um enquadramento muito amplo e completo da realidade. E por vezes através do cinema é possível descobrir arquitetura mesmo em filmes que nada têm a ver com arquitetura. Para Candilis, a grande lição do cinema é a possibilidade de compreensão da totalidade da vida, que está dentro das casas e até por trás da arquitetura mais austera.
O cinema apresenta sempre dois pontos de vista muito precisos e úteis - o longe e o muito perto. Há vida em todo o lado. Através do cinema apercebemo-nos de que a arquitetura é o contrário de dureza e de rigidez. Principalmente a arquitetura moderna, porque está sempre em mudança e está sempre pronta a desaparecer - é mutante, é transitória e etérea. Porém Candilis não acredita na tábula rasa, que só leva à destruição porque o passado é constantemente necessário para que consigamos perceber o presente.
O cinema é um dos elementos da modernidade, já faz parte integrante da nossa vida. Responde às necessidades do ser humano moderno - fragmenta e desdobra a realidade quotidiana. O cinema aprofunda, completa, torna visível, multiplica, é a sombra e o desejo de uma outra vida. É uma maneira de ver o mundo de forma muito próxima e real. Tudo tem um significado está associado a sentimentos precisos. É por isso que, para Candilis, o cinema é uma arte que pertence a todos.
Ora, Claude Parent e Paul Virilio, também no filme Le Celluloïde et Le Marbre, acreditam que a arquitetura e o cinema têm em comum o movimento do espaço, a sucessão dos planos, o desejo de continuidade, o fascínio pela viagem, a vontade de concretizar percursos e a cronologia do tempo. Ambas dizem respeito à apreensão do espaço e à deslocação do utilizador e por isso lidam com o problema do espaço-tempo.
Na opinião de Virilio a arquitetura não diz só respeito ao objeto arquitetural mas sim e sobretudo diz respeito ao urbanismo e a um desejo de fluidez e continuidade no tempo e no espaço. E a cidade, tal como o cinema, tem a grande capacidade de tudo conter - a continuidade do passado no presente, a permeabilidade entre os diversos lugares, a junção de deslocações contraditórias, a procura pela evasão, o desejo de centralidade. Tanto a cidade como o cinema respondem a essa vontade de totalidade, a essa ânsia de escapar à incompletude.
Entretiens sur le Béton e o equilíbrio ideal entre o artificial e o natural.
Entretiens sur le Béton de Éric Rohmer (1969), é composto por entrevistas, ao arquitecto Claude Parent e ao teórico urbanista Paul Virilio, conduzidas por Louis Paul Letonturier e François Loyer, onde se expõem as possibilidades expressivas do betão armado - de modo a contrapor a generalizada hostilidade pública em relação à arquitetura brutalista.
Através desta entrevista, Rohmer contribui para o debate sobre modernização da arquitetura, que sucedeu à Segunda Guerra Mundial e que mobilizou cidadãos, os arquitetos e urbanistas. (Schmid 2015, 10).
Entretiens sur le Béton apresenta uma reflexão pertinente sobre as novíssimas formas do betão - o betão foi o material que, por excelência, possibilitou o uso das formas puras, na emergência do modernismo. O arquiteto Claude Parent e o filósofo Paul Virilio, são assim chamados e entrevistados, para com a sua experiência, explicarem as qualidades plásticas e excecionais do betão e tentarem por isso afirmarem poesia nas grandes novas formas do betão à vista.
Rohmer, com este programa, proclama fé nos novos materiais, através do testemunho de Parent e Virilio. A beleza difícil dos novos materiais (que apareceram após Revolução industrial) endereçados e apresentados no documentário Métamorphoses du Paysage (1964) é aqui esquecida, porque nesta entrevista, é explorada a potencialidade estética e estrutural do betão. (Schmid 2015, 11)
A entrevista tenta assim resgatar beleza a um material, normalmente associado a formas construídas assépticas e sem alma. Segundo Parent e Virilio, o betão representa uma nova maneira de fazer arquitetura, porque unifica e permite a continuidade do espaço - ao passado pertence o uso do betão numa perspetiva meramente estética e decorativa. Ao apresentar fluidez, ritmo e a possibilidade de construir formas simples, o betão apresenta-se como sendo o primeiro elemento plástico, na história da arquitetura, antes mesmo do aparecimento do plástico, porque representa a possibilidade do movimento infinito - onde chão, parede e teto estão em constante comunicação e se unificam.
Para Parent e Virilio, nem Le Corbusier foi capaz de utilizar o betão nas suas maiores capacidades e de forma expressiva. O betão é mais vivo do que a pedra, pela sua flexibilidade e pela sua capacidade de se ligar ao que rodeia, adquirindo uma cor e uma textura diferente ao longo do tempo. Para Virilio, o betão é comunicação, é liberdade, significa movimento livre. É o novo lirismo arquitetónico.
Nesta entrevista, Virilio e Parent, acreditam que a arquitetura sobretudo deve permitir a deslocação espontânea do ser humano - é muito mais do que uma fachada e vai muito mais além do que o mero funcionalismo. E o betão pode ser esse veículo do ser humano tão desejado na arquitetura.
Na opinião de Virilio, a torre de vidro moderna representa uma arquitetura puramente visual. O betão tem a capacidade de permitir outras soluções urbanas mais dinâmicas, para além da vertical - deve possibilitar uma arquitetura que é suporte de vida. A verticalidade é estática, é a negação do dinamismo urbano e humano.
Para Virilio, a arquitetura do passado é uma arquitetura meramente protetora, que dá muita importância à cobertura e à fachada. A época contemporânea é a época da infraestrutura, do nível, do chão, do suporte e o betão reforçado tem aqui um papel fundamental, porque apresenta grandes capacidades de trabalhabilidade e de resistência.
Segundo Virilio e Parent, existem dois tipos de arquitetura a da proteção (críptica e primitiva) e a arquitetura infraestrutural (que é a arquitetura do suporte e do lugar humano, da deslocação e da circulação sociológica). A arquitetura contemporânea deve ser pois exterior e infinitamente contínua. O betão flui e permite fluir e está na base da reorientação do futuro. É uma matéria táctil e viva.
Schmid no artigo Between Classicism and Modernity (2015) argumenta que a visão de Rohmer, acerca da arquitetura moderna, em Entretiens sur le Béton, é mais uma vez ambígua, sobretudo a seu ver, por causa da insistência de Parent e de Virilio ao sublinharem e elogiarem a plasticidade e tactilidade das estruturas de betão - até considerando estas estruturas muitíssimo superiores à leveza e à estética transparente da arquitetura de Mies Van der Roher. Virilio não acredita no modelo da torre transparente como solução urbana e Rohmer, nesta entrevista, permite claramente demonstrar que o betão é uma estrutura tão especial que pode até revolucionar o desenho urbano modernista, apenas através da redefinição da sua infraestrutura.
Schmid diz que a ambiguidade de Rohmer também se manifesta nas imagens dos bunkers, porque em nada esclarecem o tipo de arquitetura que Parent e Virilio acreditam como solução. Se estivermos bem atentos e informados acerca da teoria de Parent e de Virilio, da fonction oblique (teoria que afirma rampas, ângulos e diagonais como definidores do desenho do espaço e que assim permitem uma continuidade infinita, onde público e privado se misturam e a superfície da cidade é fluída) reconhecemos que os bunkers só são mencionados pelos entrevistadores, por em nada esta ser a arquitetura representativa do betão, nem a arquitetura que defendem. O bunker representa a arquitetura epidérmica, de proteção por excelência e que se relaciona com as mais primitivas e já ultrapassadas formas construídas. Virilio afirma que estamos na era da infraestrutura e é para isso que o betão em muito pode contribuir, ao permitir reorganizar a cidade em camadas e em fluxos contínuos e infinitos.
Neste debate, Rohmer permite que a visão de Parent e Virilio, acerca de uma arquitetura do betão ambígua, contínua, fluída, dinâmica, orgânica e circulatória, tome conta do debate. Parent e Virilio fazem-nos acreditar no betão como sendo o material por excelência capaz de negar a arquitetura isolada, estática, artificial, epidérmica, encenada e petrificada da modernidade. Esta entrevista confirma o interesse de Rohmer em fazer coexistir equilibradamente o artefacto e o natural, o divino e o humano (Margulies 2014, 163). E Parent e Virilio mostram que isso poderá ser possível com uso sábio do betão.