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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA


RETOMANDO O FIO DE ARIANA…
por Camilo Martins de Oliveira


"Meu Marquês de quem...


De quem não sei. Talvez de mim, ou de mim também. Dás-te, deste-te, eu sei-o bem e sinto-o muito. Há em ti essa força misteriosa, uma ternura imensa que não se explica, uma fidelidade de anos, um carinho atento a cada momento da minha vida. Mas há também o universo do teu ser, e uma afirmação de ti em tudo. Muitas vezes repetiste esse dito do nosso Alberto: "Prefiro perder um "bom" amigo a uma boa piada!" E explicavas: "se o amigo for mesmo bom, saberá sempre apreciar a boa piada..." Tenho este problema contigo: aceito mal que alguém se esqueça da minha sensibilidade a certos temas... Que te custa a ti aceitar-me sensivelmente diferente? Custa-te assim tanto perceber que o que afirmas do "alto da tua cátedra" me pode ofender ou ferir, mesmo que não seja eu visada? Será assim tão difícil, para ti, compreenderes as minhas hesitações entre o amor maior que te tenho e as fidelidades a escrúpulos ou considerações pessoais que também são minhas? Sou mulher, não te esqueças, e habituei-me a viver as coisas nas tarefas quotidianas, no horizonte que os gestos de cada dia vão abrindo. Encontrei em ti um sonho e, contigo, uma misteriosa intimidade. Não foi, nem é quimera. É simultaneamente uma alegria imensa, etérea e rica, e um peso duro, grave e sóbrio. Ao dizer isto, dão-me ganas de apagar o que escrevi agora, porque pensossinto (como dizes) que tu mesmo o poderias dizer de igual maneira. Sei que o dirias. E não quero! Ou talvez queira, não sei. Estendi-te um dia a minha mão vazia...e fiquei com ela cheia da tua! Até à morte. Serei para ti a Violaine de "L'Annonce faite à Marie", virgem desde e para sempre. Mas poderia ser outra mulher qualquer: sei que, no teu coração, há uma lareira para mim e, apesar de não seres lusitano, "dois braços à minha espera", como na casa portuguesa da Amália Rodrigues. Talvez por isso, pelo gosto do teu acolhimento, eu te perdoe tanto: as tuas irritações, que não são contra mim mas me magoam, o teu desprezo aristocrático pela insanidade do mundo. Terás muitas vezes razão, mas não consigo dizer-te que a reconheço. Sou mulher e quero paz. Quero esse repouso que as mães querem sentir quando um menino cresce no seu seio... Como te quis e te quero ainda tanto: não como coisa minha - tu nunca serás de ninguém - mas como o amigo fidelíssimo que, por divino ou humano capricho, Deus me deu. Vês? Digo divino ou humano, porque uma mulher nem sempre diferencia um do outro: estamos na origem da vida, com um mistério que é só sensivelmente nosso. Tens ainda muito a aprender, Camilo Maria, se calhar, até coisas que me ensinaste - ou que aprendi contigo - mas que terás de ver por outro prisma. Eu sei que as tuas perspetivas são sempre caleidoscópicas. Talvez por isso tenhas tanta dificuldade em te fixares numa. Gostei e gosto dessa variedade de olhares. E quando os partilhei contigo, é verdade que, para mim, enriqueceste o mundo. Mas serás tu capaz de calçar umas pantufas mentais, de te sentares comigo à lareira do coração, e de procurares, seguindo o meu, projetar o teu olhar por outro lado? Camilito, serás capaz, sequer, de perceber o que te digo agora? Ao fazer-te esta pergunta, já respondi: acho que sim, que és capaz de tudo. És como comida ao lume: enquanto se cozinha há que estar atento, não vá ferver demais. Se soubesse a que temperatura ferves, tinha-me casado contigo. Ou talvez estejamos já casados. Não sei. E assim me despeço: contigo, nunca sei nada. Ou saberei tudo: todas as manhãs sinto o meu coração maior, pela imensa ternura que, por ti, o alarga tanto. E sei que, deste ou do outro lado do mundo, há uma fidelidade amiga e íntima que responde há minha. Hesito entre o desejo furioso de te dar uma sova desmedida e o gesto manso de te dar a paz. Fica em paz." Este bilhete da Princesa de... é dos poucos que o Marquês de Sarolea guardou. Por isso me pareceu que poderia traduzi-lo e publicá-lo. Não sei se faço bem. Pessoalmente, sempre tive alguma dificuldade em perceber as mulheres. Pretendem ter - e talvez tenham - razão em tudo.


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 16.08.13 neste blogue.

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Conta-se que Vicente  van Gogh, ao ver pela primeira vez (em 1885) A Noiva Judia, de Rembrandt, terá dito a um amigo que daria dez anos de vida para poder sentar-se a ver o quadro durante quinze dias, comendo apenas pão duro. Sabe-se que, em carta a seu irmão Theo, escreveu, em 10 de outubro do mesmo ano: Que pintura tão íntima, tão infinitamente compassiva! O fundo da cena é escuro, a luz emana do próprio casal terna e silenciosamente abraçado. De Rembrandt disse um dia Eugénio Fromentin que foi com a noite que ele fez dia! E Claudel fala de sacramento da luz... É toda interior, vem-lhes da alma, a graça desse momento, que nos revela uma história e uma comoção que as mãos de Rebeca e Isaac tão bem contam! A direita dele sobre o peito dela, mais do que gesto erótico, que também é, é sinal de união e de fidelidade: diz-se que, de todos os homens da sua família, Isaac foi o único que só conheceu uma mulher, Rebeca. Mesmo Abraão, seu pai, teve concubinas e descendência delas... Pelo relato do livro do Génese (26, 1-11), uma fome levou o casal a partir para terras de filisteus, cujo rei, Abimelech, teria reparado na beleza de Rebeca. Para proteger a mulher, e fugir ele mesmo de possível ameaça de morte, Isaac declarou-se irmão de Rebeca. Mas o rei surpreendeu-os em ternuras mais conjugais do que fraternas e descobriu a verdade. Comovido, nem os castigou, apenas os admoestou pela mentira e proibiu os seus súbditos de importunarem o casal. Noutras ilustrações deste episódio, incluindo em desenhos do próprio Rembrandt, a cabeça de Abimelech surge sempre, à espreita.

No quadro, não. Aí, o rei está ausente, a presença que conta é a do amor do casal. Já te tinha falado, Princesa, da intimidade de si, de nós, onde afinal habita o motor da espiritualidade, que o pintor seiscentista holandês - que da Holanda nunca saiu, mas onde certamente recebeu a emocionante influência do Caravaggio - tão bem exprime por olhos cegos e pela ternura de mãos que se encontram ou abraçam...

   Neste quadro, a mão esquerda do noivo, pousada no ombro da amada, poderá dizer proteção - como narra a história - ou posse - como será legítimo deduzir e era normal entender-se no contexto da época. Mas essa posse é ali partilhada, é mútua: a mão esquerda dela, repousando sobre o seu próprio ventre, acaricia em suave acordo a direita dele. E a sua direita repousada está, no seu ventre, mais abaixo. Entre as três mãos está o ninho que criaram, onde nascerão, gémeos rivais, Esaú e Jacó. Nova história, que Machado de Assis também contará, imaginando-a no Rio de Janeiro. História intrigante - como também será a luta de Jacó com o anjo - de que, quiçá, noutro dia te falarei.


Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira