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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

 

COMUNICAÇÃO: UMA FERRAMENTA HOLÍSTICA

 

Vai-se descobrindo ao longo da vida que muito também se fala para nós mesmos, bloqueando acessos à comunicação, impossibilitando, muitas vezes, o ponderar opiniões ao caminho do conhecer uma nova via.

Tende-se, por excesso, ou, inadvertidamente, a falar para dentro de nós, ainda que invocando diálogos, e, não raro, se afirma, uma comunicação, no preciso instante em que se continua a falar de si e para si.

O ser e o sendo também assim se confunde.

O problema da escolha em ato de liberdade implica a necessidade de nos soltarmos do tempo das perceções circulares, soliloquiais.

Abrir o devir, é abrir a partilha, ferramenta essencial que não receia a separabilidade, a impermanência, a própria perplexidade.

Há que ter claro o quanto a redução dos seres é superada pelo diálogo.

Em rigor, há que retrabalhar tudo, e não escamotear, o quanto as dicotomias são razão de afastamento, ruturas, desprezos, impossibilidades de compreender as pertenças de todos, os laços do pluralismo, a própria origem do amor.

Todavia, o isolamento em que se coloca cada um, quando não atenta o quanto apenas para si fala, cria um feixe de supostas relações, nas quais a coexistência e a tolerância são, afinal, realidades constituídas à cautela da sua interpretação.

Nenhum de nós é apenas a soma de partes. Somos raízes das pontes entre os mundo, num todo.

O tempo que nos segura, é o tempo do pensamento comungado, e esta conquista vital faz-se como a Mãe-Natureza ensina: comunicando para além de nós.

 

Teresa Bracinha Vieira

"LIKAI-VOS" UNS AOS OUTROS

 

Quem nunca assistiu, num restaurante, por exemplo, a esta cena de estátuas: o pai a dedar num smartphone, a mãe a dedar noutro smartphone e cada um dos filhos pequenos a fazer o mesmo, eventualmente até a mandar mensagens uns aos outros? É nisto que estamos... Por isso, fiquei muito contente quando, há dias, num jantar em casa de um casal amigo, reparei que, à mesa, está proibido o dedar, porque aí não há telemóvel; às refeições, os miúdos adolescentes falam e contam histórias e estórias e desabafam e os pais riem com eles e vão dizendo o que pode ser sumamente útil para a vida de todos... Se há visitas de outros miúdos, são avisados... de que ali os telemóveis ficam à distância...

 

Vou constatando que, na sociedade da comunicação, há imensa incomunicação. Porque uma coisa é a comunicação formal instrumental e outra coisa é a comunicação na presença, com as suas emoções: a emoção da palavra nas suas tonalidades, o sorriso, as lágrimas, o toque, os silêncios...

 

Na era da comunicação, tanta gente só! Só, naquele sentido de sozinho e abandonado, não tendo ninguém com quem conversar, desabafar, dando e ouvindo uma palavra de conforto, de dúvida, de afago. Ao contrário da outra solidão, a exigida para construir uma obra, preparar um discurso, ler textos clássicos, daqueles que fundam a humanidade e lhe dão futuro, esta é uma solidão mortal. Há médicos de família que me dizem que muitos, concretamente pessoas idosas, os procuram apenas para isso: para terem alguém com quem trocar umas palavras e poderem exorcizar a solidão.

 

Também por isso, se eu fosse pároco, havia de pôr em marcha uma experiência que tive numa paróquia de Paris, quando era lá estudante. Havia uma “salle d’accueil” (sala de acolhimento), onde voluntários (médicos, psicólogos, mães e pais de família..., sempre com a indicação dos respectivos nomes e profissões) davam umas horas semanais de acolhimento às pessoas que vinham. A mim, que também constava, apareceu-me uma vez um senhor que me disse: “Só lhe peço o favor de me ouvir e que me não interrompa”, o que eu fiz. No fim de uma hora e tal, ele acabou e disse-me: “Não sabe quanto me ajudou, nunca o esquecerei”. E foi-se embora e eu não sei quem é, mas também me lembro dele.

 

A solidão pode até acontecer e acontece no meio do barulho ensurdecedor do tsunami da informação e das rajadas de opiniões e insultos e fake news, acoutados na cobardia da impunidade e do anonimato das redes sociais, que se tornaram frequentemente um campo de batalha de bárbaros, analfabetos e achistas...

 

A questão é, a um dado momento, a cisão entre a existência virtual e a existência real. Li, recentemente, num belo livro do jesuíta J. M. Rodríguez Olaizola, “Bailar con la soledad”, a história de José Ángel, um homem de Vigo, que vivia no meio do lixo, vítima da síndrome de Diógenes, que o levou a isolar-se da família, vizinhos e conhecidos.

 

mesmo assim, tinha uma vida activa e popular no Facebook, onde contava com 3.544 amigos e 361 seguidores, dando opiniões sobre a actualidade, desde a actualidade espanhola às questões do meio ambiente... Só passados vários dias é que uma mulher de Tenerife, a 1. 677 quilómetros de distância, estranhando um silêncio prolongado, deu pela sua falta e contactou a polícia, que, passado algum tempo, encontrou o corpo. Aí está o drama: a possibilidade de o mundo virtual se tornar o refúgio de gente só. Já Zygmunt Bauman, em “Amor líquido”, tinha prevenido com razão: “Parece que o sucesso fundamental da proximidade virtual é ter feito a diferença entre as comunicações e as relações. ‘Estar conectado’ é mais económico do que ‘estar relacionado’ mas também menos proveitoso na construção de vínculos e na sua conservação”.

 

Outra ameaça do virtual é a busca desenfreada da popularidade nas redes sociais, através da pressão de obter uma chusma de like e seguidores..., com as consequentes  ilusões e desilusões. Rodríguez Olaizola dá três exemplos.

 

Há pouco tempo, o cantor Ed Sheeran, um das artistas com mais êxito dos últimos anos, anunciou que abandonava a rede social Twitter, porque não aguentava a quantidade de comentários negativos que recebia de pessoas que não o conheciam mas o odiavam. “Um só comentário é suficiente para me estragar o dia”. Comenta o jesuíta: “A pressão amor-ódio  nas redes é demasiado exigente para muitos. Inclusive para quem é maioritariamente aceite.”

 

No outro extremo, em Novembro de 2015, a modelo Essena O’Neill, famosa pelas suas fotografias no Instagram, com centenas de milhares de seguidores e fabulosos contratos publicitários, anunciou que abandonava a rede. Não porque era rejeitada, mas por causa do excesso de aceitação: isso exigia-lhe demasiado tempo na preparação das fotos, no estudo das imagens... Declarou que tinha tomado consciência de que esse escaparate não era a vida real, mas tão-só uma ficção orientada para a aprovação,  para que chovessem os “like”... O preço, chegou a dizer, é “a tua vida e a tua auto-estima”.

 

A 20 de Setembro de 2017, uma conhecida influencer — assim se chama, como diz a palavra, quem, graças à sua relevância nas redes sociais, influencia, com as suas opiniões, imagens ou actividade, uma enorme quantidade de pessoas —, suicidou-se. Chamava-se Celia Fuentes. Pergunta-se: como é que se explica que uma jovem tão popular, com futuro e com uma vida aparentemente perfeita, tenha posto fim à vida? O jesuíta resume: “A ficção de uma vida ideal enquanto na vida real havia solidão e sensação de fracasso. A solidão de uma vida construída apenas para aparentar”. “Tudo é mentira”, foram as últimas palavras da jovem no seu WhatsApp.

 

Por isso, digo, a partir de um título que recebo de empréstimo da revista Philosophie magazine: “Likai-vos uns aos outros”, ponde muitos  like (gosto) uns aos outros. Mas tende cuidado!

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 22 SET 2018

A VIDA DOS LIVROS

 

De 5 a 11 de junho de 2017

 

«Linguagem e Silêncio – Ensaios sobre a Literatura, a Linguagem e o inumano» de George Steiner (Gradiva, 2014) é uma interrogação atualíssima sobre as humanidades e a comunicação nos dias de hoje.

 

 

QUE HUMANIDADES?
O que são hoje as Humanidades? Será que compreendemos plenamente o papel atual das chamadas humanidades quando o progresso científico e tecnológico segue caminhos inesperados e imprevisíveis? Basta lermos os grandes humanistas ao longo da história para percebermos que não podemos fechar-nos dentro de fronteiras rígidas, como se nos devêssemos ater apenas ao formalismo de algumas categorias tradicionais. Quando Dostoievski, em «O Idiota», põe na boca de Hipólito a pergunta ao Príncipe Michkine se haverá uma beleza que salve o mundo, não há uma resposta, apenas silêncio. É desse silêncio que Steiner, na prática, se ocupa – uma vez que não podemos descurar a emoção, a arte, a criatividade, a graça, a emoção e o espírito, mas temos de ligar-lhes o cuidado e a atenção. E se é verdade que há muito barulho à nossa volta, o certo é que temos de saber ver e ouvir, de modo que a indiferença e a idolatria não ocupem o espaço do sentido e da dignidade do ser. Eis por que razão devemos valorizar o silêncio, que permita ouvirmo-nos uns aos outros, e distinguir o que tem valor. Steiner costuma lembrar que por trás da casa de Goethe há um campo de concentração e que grandes atrocidades foram cometidas por quem dizia amar a arte. Eis por que não basta invocar as humanidades, é fundamental torna-las humanas. «Toda a minha vida (diz Steiner) me interroguei sobre se as humanidades realmente humanizam. (…) Passo o dia todo com os meus alunos a ler o «King Lear» e, ao voltar para casa, estou tão possuído interiormente por esse texto que não ouço os gritos de alguém na rua. Algyuém grita por ajuda e eu não ouçio. Sempre me intrigou até que ponto a ficção – e ficção é a palavra-chave – pode ser mais poderosa do que a realidade. Passei a vida a ensinar as pessoas a ler e a amar o que leem. Mas questiono-me a mim próprio sobre o perigo imenso de nos identificarmos com a ficção». De que falamos quando tratamos da literatura? Em bom rigor é da própria vida. O mesmo se diga das diversas artes – quando ouvimos Vivaldi, Bach, Mozart, Beethoven ou Mahler somos transportados para um domínio que supera a nossa natureza, mas que não pode fazer-nos esquecer que somos imperfeitos. Lembrando-nos de Dante e da sua viagem com Virgílio, percebemos que a vida tem inúmeras cambiantes, contraditórias, enigmáticas, sempre difíceis. Não é o facto de podermos usufruir do que há de mais sublime que muda a nossa natureza. E não é essa limitação que nos pode fazer negar a importância da dimensão artística – para compreendermos a relação entre a razão e a emoção e para entendermos que nunca sabemos o suficiente para ser intolerantes.

 

UMA CULTURA DE EMANCIPAÇÃO
A cultura é um talento cheio de ambiguidades, e se Tolstoi não foi capaz de nos libertar da imperfeição, pelo menos, foi quem nos abriu os olhos para a força emancipadora das diferenças e das convergências… Caldéron de la Barca disse-nos que a «vida é sonho», mas não nos apresentou uma fuga à realidade, sim uma procura da realidade humana, do mesmo modo que Platão nos fala da alegoria da caverna… Perante os gigantes devemos ficar calados – mas temos de preservar a liberdade e o sentido crítico. Assim, George Steiner procura assegurar que não haja uma humanização da mentira. E chega, desse modo, à cultura científica, não numa lógica positivista ou naturalista, mas como a procura da capacidade criadora – que faz com que se encontrem o artista e o investigador científico, o novelista e quem descobre um novo tratamento para uma doença até então incurável… E o pensador diz-nos que a cultura científica tende a não conhecer a hipocrisia e a não fazer bluff. Quem faz batota é obrigado a sair do jogo. Nas ciências sociais talvez seja mais fácil fazer batota… É certo que as coisas não são tão simples assim. Mas do que se trata é de nos aproximarmos de Humanidades que se tornem humanas e humanizadoras… Mais poderosas que qualquer exército são as mentiras do totalitarismo. E este funciona através da linguagem. Como poderemos proteger-nos? Por vezes vivemos como se a memória fosse retrospetiva. Tratar-se-ia de considerar o mundo como um grande museu. Uma das razões para o otimismo de Steiner tem a ver com o facto de a ciência se ocupar do futuro. Mas não basta ver o mundo através desses contrastes. O Admirável Mundo Novo de Huxley reserva-nos muitas perplexidades e desenha um futuro inquietante.

 

COLOCAR AS PESSOAS NO CENTRO DA REFLEXÃO
As Humanidades têm, assim, de colocar as pessoas no centro da vida e do mundo – sem a tentação de repetir o que recebemos nem de considerar o novo como um absoluto.  Mas surge a pergunta perturbadora: sobreviveremos como civilização? O pensador não está certo de qual a resposta. O nacionalismo é um poderoso veneno do nosso tempo. O chauvinismo torna o outro e o diferente como inimigos. Despreza as pessoas com nacionalidade diferente. A absolutização da identidade torna-se um fator de fechamento. Uma civilização autista tende a decair e a desaparecer por incapacidade de responder aos novos desafios, limitando-se a repetir tiques exteriores. O que nos caracteriza e nos distingue uns dos outros deve ser considerado como elemento de enriquecimento mútuo – não como de separação, de indiferença ou de ignorância. Os fundamentalismos e os protecionismos têm a mesma raiz. Hoje o tema dos refugiados não pode, pois, ser visto de modo simplista, como se correspondesse apenas a uma ordem de razões. Impõe-se articular a compreensão do outro, considerar a mobilidade das populações nos dias de hoje como algo de natural e tantas vezes necessário – bem como a cooperação para o desenvolvimento realizada nos países de origem… Os que se limitam a pensar na questão da segurança, bem como os que se atêm exclusivamente ao acolhimento de refugiados como tema humanitário estão equivocados – uma vez que há que equacionar a complexidade de temas, entendendo-se não só a resposta ao agravamento das desigualdades e à ocorrência dos fenómenos de exclusão, mas também a motivação social e humana e a emancipação cultural. A diversidade linguística e a comparação das diferentes literaturas colocam-nos no cerne da cultura como criação – e George Steiner permite-nos compreender a complexidade de fatores humanos que devemos considerar. E porventura estaremos hoje a atravessar um período muito semelhante ao que ocorreu no Renascimento. Daí a multiplicidade de pistas abertas e a necessidade de um diálogo entre saberes. O livro é ainda hoje uma referência para o pensador, mas ele próprio compreende que a criatividade e a resposta humana aos diferentes desafios vão depender de diferentes caminhos, a que a humanidade tenderá a responder de um modo múltiplo… 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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