Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Nos Estados totalitários, seja qual for a sua ideologia, de direita ou de esquerda, o Estado toma a seu cargo e vigilância a definição de normas a que a arte, artistas e intelectuais se devem submeter. É obrigatório que a cultura obedeça a imperativos ideológicos que se integrem na norma vigente. Em substituição da perigosa liberdade de expressão e de pensamento, e da liberdade individual dos criadores, sobressai a imposição de uma arte oficial. São seus exemplos o comunismo e o fascismo (no fascismo, com especial destaque para o nazismo ou nazifascismo).
Para Lenine, na antiga União Soviética, a arte ocidental era decadente, burguesa, reacionária e capitalista. A arte deveria ter um fim inteligível, servindo as necessidades do povo e do regime.
Era imperativo construir um homem novo, diferente do modelo das democracias liberais burguesas e capitalistas.
Na nova Rússia Soviética o homem novo é o proletário, a classe do proletariado, que triunfou do capitalismo.
Se inicialmente os artistas estavam com o sistema, proporcionando um ideal utópico idealizado do comunismo, foram sendo censurados, exilados, acusados, condenados, presos, torturados, coagidos a trabalhos forçados, assassinados, ostracizados, difamados, perseguidos, obrigados a emigrar, numa progressiva centralização e controlo da produção cultural, impondo a arte oficial por expulsões, intolerâncias, marginalizações, nacionalização de museus, de coleções de arte privada, proibição de livros, filmes, imprensa e editoras independentes, purgas em bibliotecas e perseguições de intelectuais tidos por individualistas, pequeno-burgueses, inimigos do povo, sabotadores e traidores. Tudo apoiado numa propagando ao serviço de uma nova arte.
Esse endurecimento na política cultural foi mais sentido com o estalinismo, através do realismo socialista, obrigando os que queriam trabalhar a pertencer à União dos Artistas Soviéticos, que tinha o monopólio da distribuição dos recursos materiais e dos instrumentos de trabalho.
Artistas e cidadãos são compelidos a apoiar e a construir o realismo socialista, nomeadamente aquando da chegada ao poder de Estaline, em 1925.
Malevitch, pai do suprematismo, denunciado, em 1929, de “subjetivismo”, atacado pela imprensa, preso, torturado, proibido de dar aulas e acusado de espionagem, morreu pobre e abandonado.
Tatlin, um dos fundadores do construtivismo, foi esquecido e marginalizado após o desinteresse político pelas obras de vanguarda, acabando por se acomodar e ser obrigado, em fim de vida, às regras de criação artística impostas pelo estalinismo.
Maiakovski, escritor, poeta e desenhador, ter-se-á suicidado, na versão oficial, subsistindo até hoje a hipótese de ser assassinado por razões políticas.
Pavel Filonov, teorizador a autor da arte analítica, recusou o realismo socialista, foi dado como traidor e inimigo do povo, morrendo na penúria.
Boris Pasternak, tido como “subjetivista”, foi impedido, por razões políticas, de receber o Nobel da literatura, em 1958, pela sua obra Doutor Jivago.
Alexander Soljenítsin, romancista, dramaturgo e historiador, preso, exilado e condenado a trabalhos forçados, autor de O Arquipélago de Gulag, Nobel da literatura em 1970, acabou por ser expulso do país, perdendo a nacionalidade.
Andrei Sakarov, físico e defensor dos direitos humanos, forçado a residência fixa, foi premiado com o Nobel da paz, em 1975, que foi proibido de receber, por razões políticas.
Rudolf Nureyev, um dos mais aclamados bailarinos de sempre, pediu asilo no ocidente, em 1961, quando em turnê com o Kirov, em Paris, preferindo uma vida em liberdade à de conforto e glória na URSS, sendo julgado à revelia, condenado e só reabilitado em 1997, após a queda do muro de Berlim.
Eisenstein, cineasta, foi asfixiado e dificultado na sua criatividade, cuja liberdade defendia.
Outros, como Wassily Kandinsk e Marc Chagall, emigraram.
Em toda a Europa de Leste, e não só, restava ao cidadão comum e artistas descontentes a resignação, serem apolíticos. Se manifestassem um descontentamento aberto, havia a dissidência, com os inerentes riscos: perda de direitos cívicos e de cidadania, fixação de residência, internamento psiquiátrico, prisão, tortura, morte, exílio, retaliações, intimidações à família e amigos, extensivos a outros regimes comunistas, como em Cuba (Reinaldo Arenas, Guillermo Cabrera Infante, Jesús Díaz, Roberto San Martín, Herberto Padilha), China (escritora Ding Ling, Campanha das Cem Flores), Polónia (Adam Michnik), Hungria (George Konrad), Checoslováquia (Vaclav Habel, Milan Kundera, Jan Patocka), Roménia (Paul Goma). Mesmo depois de conhecido o relatório Krustchov, em 1958, sobre os crimes do estalinismo, como o Holodomor.
É fácil ser-se comunista numa sociedade e num Estado onde haja liberdade de expressão e física, mas irrealizável ser-se livre numa sociedade e num Estado comunista.
Pouco sou consumidor, menos ainda frequentador, de discursos e comentários políticos. Aliás, pouco me interessa o que dizem ou possam dizer, divirto-me mais a antecipar o que dirão. Sou esteticamente alérgico a quase todos, tal como às catatuas indignadas que por aí vão, sem reflexão nem critério, perorando contra todos e quase tudo. Recuso-me a olhar para o resultado de qualquer eleição ou referendo para contar votos e ordenar vencedores e vencidos, mais me preocupa tentar perceber os fatores sociais e culturais que ditam tais resultados, e vou tentando interpretá-los tão objetivamente quanto possa, sem me ater a quaisquer simpatias ou antipatias pessoais, nem me prender a critérios de ordem ideológica.
A citação de Steve Bannon com que encerro a minha carta anterior poderá ajudar-nos a melhor entender o que quero dizer, se a relermos inserida no seu contexto. Na verdade, aquele conselheiro do presidente Trump habita hoje uma casa catita na Costa Leste, sinal iniludível do êxito duma carreira profissional seguinte a um estimável diploma de Harvard. Todavia, além de se manter fiel a uma tradição católica conservadora da sua família e educação básica, também não esqueceu ser filho de operários da cintura industrial norte americana designada rust belt, hoje uma das faixas demográficas onde Trump foi buscar grande parte do seu eleitorado. É gente desiludida pelo que considera ter sido o abandono da sua condição por uma democracia conduzida pelas novas classes cosmopolitas e participantes do atual processo de globalização económica e social.
O exemplo de Steve Bannon é destacável, não só pela posição que conseguiu na construção do triunfo de Trump, mas sobretudo porque a família Bannon, de origem irlandesa e católica, foi sempre, como tantas outras linhagens norte americanas, fiel ao partido democrata, eleitora de "kennedys", etc... assim sendo sinal de como os atuais surtos do chamado populismo se devem mais a sentimentos de quem se sente traído por protagonistas dum sistema político em que se confiava, do que a uma hipotética restauração totalitária. As reivindicações nacionalistas têm mais a ver com a crise e o desejo de restabelecimento de uma identidade própria do que com quaisquer concessões a tentações de totalitarismo. No caso em análise, é importante recordar-se que, nas últimas décadas, quer por força do desenvolvimento da robótica e de outras novas tecnologias, como da globalização dos grandes grupos económicos e consequente deslocalização de unidades de produção das indústrias manufatoras, as condições de remuneração e vida das classes operárias e da média burguesia das sociedades industrializadas se foram progressivamente deteriorando e gerando sentimentos de exclusão e injustiça social, facilmente convertíveis em xenofobia perante as crescentes vagas imigratórias provenientes de países em via de desenvolvimento. Às causas locais do correspondente aumento da emigração a partir destes países pouco cuidado foi prestado, pelo que os motivos de descontentamento e furiosa reivindicação de direitos a respeitar foram alastrando por todos os lados, como demonstram as tragédias migratórias no Mediterrâneo ou os excessos cometidos por coletes amarelos.
Evidentemente também, a evolução da prática democrática nas democracias ocidentais para o "marketing" eleitoralista dos políticos e concomitante surto de um fulanismo estelar "à Hollywood", quer em "shows" televisivos, quer, mais banalmente, através das "redes sociais" ou "internet de fofocas", vai ajudando ao apagamento do espírito crítico no foro público, bem como à quase impossibilidade de se construírem plataformas sérias de debate e desejáveis acordos. Da edição deste março da revista literária francesa Lire, retiro umas declarações do escritor israelita Etgar Keret, de que a L´'Olivier publicará em breve uma obra intitulada Incident au fond de la galaxie. Traduzo:
A população de Israel está extremamente dividida. A 2 de março, terá as suas terceiras eleições legislativas em curtíssimo lapso de tempo. Quando olho à minha volta - é candidato Benjamim Netanyahu, suspeito de fraudes e corrupção, e já Donald Trump sai ileso do seu processo de destituição - fico com a impressão de que os dirigentes políticos já não são eleitos responsáveis perante o povo, mas estrelas de cinema. No passado, os média faziam títulos com a educação ou a abertura de hospitais; hoje, 99% do que nos é dado ouvir são comentários, quase sempre ordinários, de Trump, Netanyahu ou Putin acerca de fenómenos da actualidade... ... A democracia segundo Netanyahu e Trump serve para tornar insuportável a existência de todos aqueles que são diferentes deles: homossexuais, ateus, estrangeiros...e isso inquieta-me mais do que o resultado das eleições no meu país.
Fica - assim me parece, Princesa de mim - respondida a afirmação de Bannon sobre a saúde actual da democracia. Afinal, como já bastas vezes te escrevi, o problema é mesmo uma questão de cultura...ou sobre a falta dela. Leio. na imprensa britânica e norte americana desta manhã que o presidente dos EUA decretou a interdição, por um período de trinta dias, de qualquer voo proveniente da Europa, com exceção dos originários do Reino Unido. Justifica a medida como prevenção contra o covid 19. Haverá alguém que lhe recorde outra curiosa exceção britânica, além dessa sua decisão discricionária? Tanto quanto saiba, no governo de Sua Majestade britânica, a própria ministra da saúde está infetada pelo vírus. Mas tal medida, ao que entendi, fere igualmente a entrada de pessoas não cidadãs dos EUA, bens e mercadorias... Pelo que a justificação sanitária será mero artifício.
Pelo início dos anos 1990, foi aparecendo por aí o conceito e a palavra democratura que, na sua obra La Démocrature: dictature camouflée, démocratie truquée (Paris, L´Harmattan, 1992),o sociólogo e economista Max Liniger Goumaz origina no período marcado pelo fim da Guerra Fria e a transição de regimes comunistas para democracias liberais. Hoje, falamos mais de democracias iliberais. Seja como for,diz Max-Erwan Gastineau (cf. Le dictionnaire des populismes, Paris, Cerf, 2019), nos cenáculos e centros de decisão, chegara então a hora da transitologia, do fim da História de Fukuyama e da harmonização das políticas aduaneiras. O mundo converge... Deveremos então estreitar laços e, sob os auspícios do direito e do comércio fraterno, preparar o advento de uma sociedade universal.
Creio que é na realização de tal esforço que temos vindo a falhar e a criar mais impasses ainda ao convívio internacional. Desde logo, por ausência de convites e insistência ao diálogo, preferindo-se-lhe o lucro dos grandes grupos económicos e a manipulação do voto popular através da desinformação e de promessas ilusórias.