Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Recordamos o Cardeal D. Alexandre do Nascimento e a sua colaboração com a Livraria Moraes, através da tradução do “Diário Íntimo” de João XXIII, bem como da proximidade com a revista “Concilium” e com o Centro Nacional de Cultura.
O ESPÍRITO DO CONCÍLIO Com a morte de D. Alexandre Nascimento, Cardeal de Luanda, desaparece uma das grandes referências da Igreja Católica contemporânea, símbolo do aggiornamento lançado por João XXIII, no Concílio Vaticano II, de quem fez a tradução portuguesa do Diário Íntimo (Morais Editores, 1964), obra marcante demonstrativa da riqueza humana do Sumo Pontífice, onde se notam o humor, a fé, a espiritualidade, a sensibilidade, a esperança e a consciência dos sinais dos tempos. E sentimos especialmente a reflexão papal de 11 de outubro de 1962 – o dia da abertura solene do Concílio Ecuménico. Roma estava no coração de todos e a primeira centelha divina permitira que este acontecimento saísse da sua boca e do seu coração. Com grande serenidade repetia “faça-se a Tua vontade” num momento crucial de abertura de horizontes – que o tradutor sentia intimamente com grande alegria, pois compreendia bem a génese das novas nações.
A minha memória do Cardeal Nascimento envolve três momentos – desde os anos sessenta do século passado até à vida simples do clérigo na última década. Conheci-o no tempo em que viveu em Lisboa, com residência fixa, na paróquia de Santo Condestável e como aluno da Faculdade de Direito de Lisboa. Ligou-se desde muito cedo ao grupo da Livraria Morais e da revista O Tempo e o Modo, em torno de António Alçada Baptista, onde estavam João Bénard da Costa, Pedro Tamen e Nuno Bragança. O seu livro O Meu Diário (Luanda, 2017) ilustra bem uma grande riqueza humana e cívica e uma forte consciência cultural do Padre Alexandre Nascimento, que de um modo determinado lançou as bases fundamentais da criação de Angola como uma jovem nação independente. Como poucos, teve a aguda consciência do colonialismo e da sua natureza, bem como do que seria necessário fazer para superar os efeitos dessa situação. Anos mais tarde, tive o gosto de o reencontrar quando estava com Mário Soares na Presidência da República, numa circunstância em que era necessário lançar a reconstrução de Angola, depois da guerra civil. Encontrei então um líder do episcopado, sem ilusões, com um conhecimento profundo da situação do seu país, uma visão de conjunto e uma lucidez como ninguém mais tinha. Mário Soares admirava-o profundamente, e muitas vezes recorreu ao seu douto conselho. Perante fatores contraditórios, com o Cardeal Nascimento era possível obter um retrato rigoroso da situação angolana, no contexto nacional e internacional. O terceiro momento que evoco, já com muita saudade, foi o do último encontro que tivemos, em Luanda, na sua casa modesta, em que tivemos oportunidade de recordar esses outros tempos. O seu olhar continuava vivo e sobretudo senti a mesma fé inabalável e a esperança num futuro de desenvolvimento e de justiça. Era o mesmo sábio que eu conhecera na flor da idade, e que nos deixou sendo o mais velho cardeal da cúria romana, alguém que continuava a acreditar em Angola como país de futuro.
UMA RESISTÊNCIA DETERMINADA João Miguel Almeida no estudo publicado na Lusitania Sacra (nº 46, julho-dezembro 2022) sobre o Cardeal Nascimento afirma que quaisquer que fossem as suas ligações aos nacionalistas angolanos, antes de 1974, o certo é que desenvolveu uma apurada consciência crítica do colonialismo português. Logo na década de 50 com Joaquim Pinto de Andrade desempenhara papel relevante no Colégio da Casa das Beiras. Em 1958 dizia que “pelo que tenho ouvido, está-se a criar contra mim um ambiente político hostil. Há quem pense e diga que devo abandonar Angola”. Em abril de 1961 é-lhe fixada residência em Lisboa. Os seus comentários inseridos no diário são significativos. Fica clara a proximidade com os outros padres sujeitos a vigilância pelo regime (como Vicente Rafael) ou presos, como Monsenhor Manuel das Neves, que morrerá em 1966. Nesse período em que está em Portugal, estabelece contactos estreitos com Nuno Teotónio Pereira e Natália Duarte Silva, com Frei Bento Domingues, com o Padre Felicidade Alves e com o Padre Alberto Neto, em especial no tocante ao “Direito à Informação” sobre a situação colonial, designadamente em iniciativas no Centro Nacional de Cultura, graças ao apoio de Francisco de Sousa Tavares. São oito anos de exílio forçado e dum trabalho intenso. Quando o Bispo do Porto regressa ao País, já na transição que se segue à sucessão de Salazar, é recebido por Marcelo Caetano, em julho de 1969, sendo autorizado a ir a Angola para visitar sua mãe, podendo deslocar-se ao estrangeiro desde que comunicasse às autoridades. A audiência concedida por Paulo VI aos líderes dos movimentos de libertação, Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Marcelino dos Santos, em 1970, compromete, porém, as relações do governo português com a Igreja.
Depois da independência, é inequívoco o papel fundamental que desempenhou, logo em abril de 1975, presidindo ao encontro realizado no Huambo com padres nativos. Intervém, contrariando uma tomada de posição contra uma “hierarquia estrangeira”. “A cor da pele e o facto de havermos nascido em Angola não nos atribuía certamente o privilégio do acerto”. Consegue então capitalizar as relações que estabelecera com nacionalistas angolanos durante o período colonial. Desenvolve intensos contactos políticos, com Lúcio Lara e Pepetela, e mais tarde com o seu antigo aluno José Eduardo dos Santos, e também com a UNITA. É reconhecido como excelente mediador e fator de unidade pelos clérigos angolanos, assumindo uma atitude moderada, mas firme. É, contudo, envolvido em polémicas e guerras de informação entre o MPLA e a UNITA, sendo sequestrado durante uma visita pastoral por militantes da UNITA, em outubro de 1982, e libertado um mês depois, após o apelo do Papa João Paulo II. Procurando desdramatizar o episódio, afirmaria: «Tenho por norma ser o mais reservado possível relativamente a esse episódio da Jamba. O meu papel é unir. Não gostaria que uma afirmação minha prejudicasse qualquer das partes. Sou irmão de todos e ministro da reconciliação». Em 1983, D. Alexandre Nascimento foi o primeiro angolano a ser investido como Cardeal. De 1986 a 2001 exerceu funções na Arquidiocese de Luanda, tendo tido um papel insubstituível como fator de unidade. No Pentecostes de 1992, o Presidente da República Popular de Angola participou na missa campal, celebrada em Luanda e presidida pelo Papa João Paulo II. Pode dizer-se que o Cardeal de Luanda mostrou a maior capacidade de mediação de conflitos entre a hierarquia católica e as diferentes sensibilidades de clérigos e religiosos, estabelecendo pontes de diálogo duradouras com os diversos protagonistas políticos, num contexto de grande tensão e até de confronto civil. Como afirma João Miguel Almeida: “A sua trajetória atesta a capacidade da Igreja católica de promover lideranças com presença na cultura e na sociedade, quer a nível nacional, quer internacional e de dialogar com todas as instâncias de poder”.
Hans Küng, há pouco desaparecido, deixou-nos a obra fundamental “Religiões do Mundo - Em busca dos pontos comuns”, publicado entre nós na editorial Multinova (2005). Lembramos a colaboração ativa do teólogo na revista “Concilium” portuguesa, animada por Helena Vaz da Silva, e o facto de ter estado entre nós numa iniciativa da nossa saudosa presidente.
HOMEM DE TODAS AS ESTAÇÕES
O teólogo católico Hans Küng (1928-2021) morreu a 6 de abril em Tubinga e deixou uma herança intelectual, filosófica e teológica de grande valor. Pode dizer-se que as suas reflexões e a sua obra constituem elementos perenes, para além do horizonte do nosso tempo e do catolicismo. O futuro se encarregará, por certo, em especial no domínio da cultura da paz e do diálogo inter-religioso, de demonstrar como a cultura moderna se enriquece graças à compreensão de que a razão e o sentimento, a ciência e a espiritualidade se completam permitindo que a humanidade se aperfeiçoe e se emancipe, assumindo os limites do conhecimento e a necessidade de fazer do diálogo entre civilizações uma verdadeira troca de experiências, devendo cada qual ser capaz de se colocar no lugar do outro. Só com essa capacidade será possível criar uma verdadeira consciência comum, que impeça a violência ou a intolerância por motivos religiosos ou culturais. Longe de entender o mundo das religiões como imóvel, silencioso e estático, incoerente e contraditório, importa partir de uma informação séria e bem comprovada, de uma orientação que possa servir de ajuda para enfrentar a complexidade e a multiplicidade das religiões e de uma motivação que estimule uma atitude nova frente à religião e às religiões – de forma a reconhecer a dimensão universal do respeito mútuo e da dignidade humana. Daí a exigência de paz entre os homens, num momento em que há a tentação para o fechamento e a intolerância, centrados em novos dogmatismos. E assim o teólogo afirmou: “Não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões; não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as religiões; não haverá diálogo entre as religiões, se não existirem padrões éticos globais; o nosso planeta não irá sobreviver se não houver um ethos global, uma ética para o mundo inteiro”. E não se julgue que é fácil levar este entendimento à prática.
CATOLICIDADE CRÍTICA
Na sequência do Concílio Vaticano II, o teólogo desempenhou um papel de grande importância, persistindo numa “catolicidade crítica”, exercida a partir de dentro da Igreja – uma vez que só uma voz que persista no espírito dos apóstolos pode contrariar eficazmente a deserção dos lugares de culto, a secularização crescente da sociedade, a rarefação de candidatos a funções religiosas e a revelação de abusos dos clérigos. Daí invocar na sua obra os exemplos de Erasmo, de Tomás Morus ou de Monsenhor Romero – e a partir deles assumir a ideia de liberdade teológica, exercida com rigor. E foi essa fundamentação sólida do pensamento que lhe permitiu ser respeitado, mesmo pelos seus críticos – que, aliás, sempre afirmou respeitar e considerar. Por outro lado, contra um certo “restauracionismo” ou recuo em relação aos avanços conciliares, defendeu um cristianismo fiel a uma ideia de serviço, mais próximo da Bíblia e de Jesus e menos subordinado à organização em pirâmide da Igreja. Como suíço, Hans Küng procurou articular catolicismo e democracia, dando ao “povo de Deus” um sentido de liberdade e responsabilidade – invocando nas suas “Memórias” (2006-2010) o exemplo do educador Franz Xavier Kauffmann, que encontrou quando tinha 12 anos, e que foi um apelo irreversível no sentido da vivência e do exemplo das bem-aventuranças. Assim, a democracia e a colegialidade, foram para o teólogo elementos fundamentais e de uma grande pertinência. Por isso, distinguiu, como corolário lógico do seu pensamento, fidelidade à vontade de Deus, Jesus, e obediência ou submissão total às regras, devendo a fidelidade prevalecer relativamente à obediência. Estudioso sistemático da “nova teologia francesa” de Teilhard de Chardin, Henri de Lubac e Yves Congar, o padre, ordenado em 1954, desenvolveu, de forma pioneira, a noção aberta e moderna de ecumenismo – dialogando ainda com Rudolf Bultmann e Karl Barth, a partir da compreensão de um Jesus histórico, da vivência do Seu exemplo e de um compromisso necessário em nome da dignidade humana. Foi, assim, muito relevante a criação do Instituto de Investigações Ecuménicas em Tubinga (1960-1996) e os passos corajosos que deu no sentido de mobilizar vontades num esforço de verdadeira compreensão mútua.
A FORÇA DA GRAÇA DIVINA
Em lugar de uma atitude conformista, indiferente ou pessimista, Hans Küng centra-se na capacidade criadora e na força da Graça divina, livre e corajosa, à imagem dos Atos dos Apóstolos. Como espírito atento ao mundo e aos sinais dos tempos, salientou a importância das artes e da arquitetura contemporânea. Os novos caminhos artísticos permitiriam uma vivência religiosa mais autêntica e uma melhor inserção na cultura contemporânea. Não escondeu, assim, de modo persistente, a enorme esperança depositada no Concílio Vaticano II, a partir da audácia de João XXIII, invocando ainda as ideias lançadas nos anos sessenta, designadamente na “Nova Fronteira” de John Kennedy. Estudou os cinco paradigmas da História da Igreja: o original judaico-cristão, o helenístico, o romano-católico medieval, o da Reforma e o da modernidade – afirmando a recusa de uma atitude retrospetiva ou medieval no pensamento religioso. Depois de 1965, foi, assim, um dos animadores da revista internacional “Concilium”, com grande repercussão internacional, lançada em língua portuguesa por António Alçada Baptista e Helena Vaz da Silva. Hans Küng realizou, aliás, duas conferências em Portugal em 5 e 7 de abril de 1967, ambas muito concorridas, a primeira na Igreja de Santa Isabel, com a assistência de cerca de mil pessoas e ainda no Colégio do Rosário do Porto, com cerca de quinhentas. O tema foi “A liberdade dentro da Igreja”, a merecer um grande interesse de cristãos e não cristãos, havendo até uma nota da PIDE sobre a iniciativa. Infelizmente, a revista não durou muito, pela censura e pelas condicionantes políticas e económicas.
O pensador suíço-alemão, apesar de lhe ter sido retirado o mandato canónico para ensinar em Tubinga, nunca foi impedido de exercer o seu múnus sacerdotal – tendo-se dedicado nos últimos anos ao projeto “Ética planetária – Paz mundial pela paz entre as religiões”. Nessa causa foi inspirado por Lorde Menuhin, que lançara a ideia de diálogo universal na série televisiva “The Music of Man”. A partir daí, o teólogo suíço avançou para as religiões. “Yehudi Menuhin precisava apenas de pegar no seu violino ou na sua batuta para, mesmo a ignorantes ou a ouvidos talvez pouco musicais, abrir o coração para o fascinante mundo da música. Mas como seria possível abrir os ouvidos e os corações para o mundo igualmente misterioso e diferente da religião?”. Hans Küng levou a iniciativa adiante e desse conjunto de programas resultou o livro “Religiões do Mundo – Em busca dos pontos comuns”, publicado entre nós na editorial Multinova (2005), pelo meu saudoso amigo Manuel Bidarra de Almeida. Ao longo destas páginas, encontramos alguém que procurou sempre fazer do “misterioso e imenso mundo das religiões” uma oportunidade para a descoberta partilhada da importância da liberdade religiosa e da liberdade de consciência como fatores essenciais para que a causa da paz se torne pedra angular das democracias.