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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

   Tens-me interrogado sobre o meu silêncio, dizes-me que já leva meses, muitos outros familiares e amigos me perguntam porquês do mesmo, e surgem ainda os que, buscando subtileza, apenas dissimuladamente me manifestam alguma estranheza. Não tenho respondido, por entender que não há resposta a dar: circunstâncias da minha vida têm-me absorvido cuidados e atenção, ao ponto de me roubarem essa tranquilidade de tempo e espírito que nos faculta qualquer diálogo. São, verdade seja dita, condicionantes específicas à minha própria condição familiar, em nada posso referi-las ao ambiente geral de confinamento que a todos nos afeta, mas é sobre este que te escrevo agora.

   Zusamengehörigekeitsgefühl, vocábulo construído por Goethe no século XIX, traduz um conceito que me parece útil em considerações hodiernas sobre as frustrações possivelmente decorrentes da experiência humana de vida em confinamento: na verdade, quer sinteticamente significar a condição e necessidade comum de nos sentirmos pertencer ao conjunto da humanidade. E para restaurarmos tal sentimento de relação ontológica será quiçá indispensável procedermos a um esforço meditado de reinvenção de vivências da nossa condição humana, partindo da reconsideração do que verdadeiramente possa construir-nos como comunidade, isto é, como disse um publicitário parisiense, desse bem imaterial inestimável que é, afinal, a demanda da justiça decorrente de um sentido profundo do bem comum.

   A solidão, enquanto distanciamento físico da vida social, é certamente uma limitação condicionada mas, simultaneamente, condicionante da busca de um bem comum que vai para além das transações habituais e procura outras perspetivas de olhar sobre as relações humanas, libertando-nos dos modelos institucionais e operacionais que atualmente dominam os nossos comportamentos e nos não deixam vislumbrar qualquer conversão a aspirações de maior justiça económica e social, e renovada vivência ecológica e espiritual do mundo e da vida. Por isso estes tempos de "retiro" - assim pensossinto - também se prestam a um esforço de higiene mental que nos permita promover em nós e fomentar socialmente uma visão mais fraterna e construtiva do mundo, como, com tão franciscana simplicidade, nos propõe a nova encíclica papal "Todos Irmãos".

   Num artigo publicado na próxima edição da revista americana Foreign Affairs (novembro/dezembro de 2020), a doutora Mariana Mazzucato, professora no University College London, escreve: ... no meio duma pandemia global, o mundo tem a oportunidade de tentar a ambiciosa criação de uma economia melhor. Tal economia seria mais inclusiva e sustentável. Emitiria menos carbono, geraria menos desigualdade, construiria transportes públicos modernos, providenciaria acesso digital a todos, e a todos ofereceria cuidados de saúde...

   ...Entre os que falam sobre recuperar da pandemia, aponta-se um objetivo apelativo: o regresso à normalidade. Mas esse é um objetivo errado: o normal está quebrado. O nosso objetivo antes deveria ser "construir melhor do que antes". Há doze anos, a crise financeira abriu-nos uma rara oportunidade de mudança do capitalismo, que foi desperdiçada. Agora, outra crise nos apresenta outra oportunidade de renovação. Desta vez não devemos deitá-la para o lixo.

   Curiosamente, também apareceu por aí referida, em meios de comunicação europeus, uma expressão holandesa que, afinal, nos deve alertar para certos riscos da impaciência: huid honger, que significa "fome de pele", isto é, a saudade e o desejo de nos tocarmos em beijos e abraços... Sentimento que, pleonasticamente, podemos qualificar de naturalmente natural, mas que igualmente traduz o nosso gosto da sensação imediata de regresso e de posse.

   Ocorreram-me estas lembranças ao ouvir tão insistentes exigências de liberalização dos espaços de circulação e encontro, desde encher estádios de futebol a manter abertos, e úberes de gentes variegadas, estabelecimentos de animação noturna, vias públicas e centros comerciais, templos e teatros, escolas e centros de reunião e trabalho... Uma vez mais me parece que tais reclamações são naturalmente naturais, e em muitos casos se justificam pela urgência da manutenção de modos de vida necessários à subsistência das pessoas e das comunidades. E, todavia, pressinto ainda outra necessidade: a de ganharmos distância para melhor observação e ponderação de valores, tempos e prioridades. Na verdade, talvez sejamos, sobretudo, dantes e além de qualquer pandemia, vítimas de nós próprios, do esquecimento de nós enquanto destino comunitário de uma qualquer eternidade e obreiros de contínua renovação ou conversão. Esta, apesar da sua especificidade - ou talvez por isso mesmo - é, na condição humana, também naturalmente natural. Ouso mesmo dizer que, enquanto humanidade, somos mais reinvenção, recriação, do que obra passiva das circunstâncias. Mais fatores do que factos. Mais capacidade de inovação do que de resiliência, palavra hoje tão utilizada para querer dizer apenas - contrariamente (?) ao que talvez pensem os seus muitos utilizadores - "regresso à primeira forma", recuperação mimética de modelos passados, ainda que comprovadamente já esgotados de capacidades e improdutivos de vida futura. Porque teimosamente nos mantemos confinados no nosso egoísmo cómodo, apenas vislumbramos, nos futuros possíveis, não os horizontes prenhes de promessas, mas o regresso aos nossos modelos falhados. No campo da pretensa recuperação económica, então, patenteiam-se propostas e projetos que, no passado recente, já demonstraram a sua vulnerabilidade a variações imprevisíveis de mercados incontroláveis e geradores de desutilidades (como o turismo de massa e os transportes aéreos adjacentes). Entretanto, continuamos a ser um povo pouco instruído, que vai, resignada e tristemente, envelhecendo... Não haverá modo de educar em letras e humanidades, em artes e ofícios? Não seremos capazes de acreditar num povo mais instruído que, usufruindo também de liberdade de empresa, saiba criar riqueza e animar comunidades, sobretudo no interior desolado do país? Será que só reformados estrangeiros podem ter êxito em empreendimentos agrícolas em zonas de Portugal que se foram desertificando?

   Escuto, cedendo à tentação de procurar entender o desespero humano, a tragédia lírica La Voix Humaine, com letra de Cocteau e música de Poulenc, interpretada pela soprano Felicity Lott, ouço-a gritar Sois tranquille, on ne se suicide pas deux fois... où trouverais-je la force de combiner un mensonge, mon pauvre adoré?... e pasmo perante a força letal, mortífera, da mentira política, como a que referia o Príncipe de Lampedusa, justificando a necessidade de mudar tudo para tudo ficar na mesma... Mas dói-me, sobretudo, a agonia dessa mulher que quer comunicar e não consegue, morrendo com um telefone ao colo, sem alma de pessoa...

   Assim me magoa essa maldição de tanto destino humano, que a alma de Fernando Pessoa, pela boca de Álvaro de Campos, chorava: Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta, / e cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, / e ouviu a voz de Deus num poço tapado. Se investirmos na dignidade e capacidade, na educação das pessoas, talvez todos venhamos a percorrer caminhos de esperança. Durante todos estes meses me lembro, todos os dias, das vozes humanas que não escutamos. E, todavia, tenho os ouvidos cheios de números de estatísticas de infetados, mortos e internados, desempregados e famintos, tal como de projeções e fantasias econometristas sobre as "resiliências" que a nossa falta de imaginação e a nossa surdez à vox populorum nos fazem acreditar em que se tratam de reformas para um mudo novo...

   Em carta próxima te falarei de um filósofo sul coreano que se formou na Alemanha e se doutorou na Universidade de Friburgo com uma tese sobre Martin Heidegger. Por hoje, apenas citarei, do primeiro parágrafo do seu Vom Verschwinden der Rituale, esta reflexão: Os ritos são ações simbólicas. Transmitem e representam aqueles valores e ordens que mantêm coesa uma comunidade. Geram uma comunidade sem comunicação, enquanto que o que hoje predomina é uma comunicação sem comunidade.
   

 Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira

A VIDA DOS LIVROS

De 27 de julho a 2 de agosto de 2020

 

A Guerra e Paz publica de Bernard-Henry Lévy “Este Vírus que nos Enlouquece” (2020), que constitui uma oportuna reflexão sobre um tema atual e profundamente perturbador, que deve ser refletido, para além dos lugares comuns.


QUE CONFINAMENTO?
Muito se tem dito sobre o “confinamento” e sobre as medidas excecionais de preservação da saúde pública perante a estranha pandemia que nos assalta. Hoje sabemos, que além das mortes ditadas pelo vírus, houve muitos outros efeitos que sacrificaram vidas humanas, como a solidão, a violência doméstica, o isolamento e o medo – e, infelizmente ainda iremos ter no futuro mais ou menos próximo outros efeitos negativos. Veja-se o tema da escola e da educação, e compreenda-se que a distância é exatamente o contrário do que se pretende na aprendizagem. Teremos, afinal, de regressar rapidamente à socialização educativa. Como há pouco disse: «Se queremos melhor democracia, temos de dar tempo ao tempo, para que a reflexão não seja substituída pela manipulação. É verdade que o ensino, no seu conjunto, pode sair da pandemia mais preparado para aproveitar as tecnologias e as novas correntes de aprendizagem, mas temos de cuidar dos que não podem ser abandonados, favorecendo a criatividade e a cooperação pessoal. No dilema saúde / economia, o valor fundamental é o da vida, da existência, da liberdade, da igualdade e da fraternidade… O capital social e a confiança obrigam ao que Adela Cortina designa como “amizade cívica” (El Pais, 16.5.2020). Só com esta estaremos mais preparados para afrontar próximas epidemias e ameaças de destruição da humanidade…». No livro de BHL todos os alertas são dados. O ambiente de confinamento é malsão e não pode ser aceite de forma passiva ou indiferente. Não esqueçamos que o “confinamento” italiano foi uma palavra mussoliniana. Confinavam-se as vozes críticas e a oposição para criar bolhas autossuficientes em ilhas ou lugares escolhidos para evitar que as ideias perigosas se espalhassem. Eis por que o filósofo considera indispensável não tornar esse um método normal. Mas há o risco para a vida das pessoas em virtude da presença do vírus. É verdade. Importa adotar soluções inteligentes que nos permitam lidar com o perigo e controlar o medo. Temos de formar crianças conscientes de que não irão viver num mundo assético. Têm de estar preparadas. Temos de regressar à lealdade do aperto de mão como sinal de confiança mútua. Não se esqueça que esse hábito nasceu para dizer que não há armas e que podemos estar seguros uns com os outros. E assim as pessoas mais lúcidas têm de falar, dando confiança e delineando caminhos que preservem a autonomia e a responsabilidade, a segurança e a amizade. Importa dizer: a pandemia não terminou, mas está a ser controlada. Visa-se reduzir efetivamente uma segunda vaga, havendo para tal capacidade médica e hospitalar. Importa, pois, substituir o discurso do medo, pela racionalidade e pela criação de condições para que as máscaras, a higiene das mãos e as distâncias prudentes reduzam a transmissão da doença. Dar sinais de que não há epidemia é criminoso, como é absurdo criar um ambiente de culpa e eleger bodes expiatórios. Se há quem diga que estamos numa boa ocasião para o combate da globalização e do capitalismo, estamos a assumir a mesma atitude medieval contra as grandes epidemias, como se uma qualquer providência estivesse por trás de uma maldição.

 

UM CAMINHO PARA DIANTE…
Se o ritmo da descoberta dos tratamentos e das vacinas pode ser mais rápido e resultar da cooperação internacional, tal deve-se à globalização, não tenhamos dúvidas… Aproveitar a morte e o drama humano para defender uma agenda ideológica é inaceitável. Temos de romper com a tentação de tirar partido de um desastre. Qual a atitude inteligente? Importa viver com mais sobriedade, como nos ensinou a última crise financeira, devemos consumir menos, racionalizar o uso dos transportes, no entanto a frugalidade e a proteção do meio ambiente organizam-se, não se decretam. O experimentalismo social e um novo malthusianismo limitam a cidadania e a liberdade. Não há contradição entre a saúde e a economia. Temos de evitar que a vida destrua a vida. Se pararmos a economia e se não definirmos uma estratégia de melhor utilização dos recursos, teremos mais desemprego, mais fome, mais desigualdade e menos desenvolvimento. Os cientistas não são os novos oráculos de Delfos, são importantes agentes na estratégia humana, mas caminham, como nós, no nevoeiro. Importa mobilizar a sociedade toda. Urge haver partilha de responsabilidades. Importa evitar o abuso de autoridade, onde quer que ele se manifeste. E o certo é que a manipulação do medo leva a pôr em causa a autonomia e a liberdade. O trabalho a distância pode ser bom se houver melhor conciliação familiar, melhor utilização do tempo na vida das pessoas, mas é negativo se favorecer a solidão, o tédio e se levar à incompreensão das fronteiras entre o público e o privado ou à espionagem eletrónica dos empregados pelos patrões.

 

UMA METÁFORA PERIGOSA
Diga-se ainda que a metáfora da guerra é perigosa. Há um vírus, há uma doença, não há uma guerra. Ao contrário do combate do tráfico da droga ou da existência de um inimigo externo, o vírus não tem uma intenção, nem uma vontade. É verdade que há medo. Temos, assim, de saber lidar com ele. Não podemos deixar que os poderes do Estado e da economia ocupem o espaço da cidadania e dos direitos humanos. Não devemos deixar que o medo se torne pânico, limitando a inteligência e a vida humana. Nesse sentido, BHL faz nesta obra um discurso contra a servidão voluntária. A cidadania e a democracia têm, deste modo, de se aliar contra a tomada dos espaços públicos pelos Estados e pelas grandes redes como Google, Amazon, Facebook e Apple… O “Big Brother watching us” tem de ser prevenido. A proteção dos dados pessoais não pode tornar-se uma burocracia inútil e opressiva. Como se mede a liberdade? Na medida em que protegermos a vida privada ou o segredo de que somos detentores. Haverá outras epidemias depois desta, e não poderemos deixar que segmentos da democracia se percam. Por exemplo, espiritualidade e higienismo não podem confundir-se… O distanciamento social preventivo não deve ser sinónimo de fragmentação social. O distanciamento que gere indiferença e torne as pessoas abstrações põe em causa a organização da sociedade e a vida democrática, conquistada ao longo de décadas. Eis o que está em causa… Martha Nussbaum tem, aliás, analisado este tema na perspetiva do “cosmopolitismo”, considerando este como “um nobre e imperfeito ideal”, pela necessidade de ligar o interesse geral e interesse próprio nacional. E o certo é que o empenhamento de cada um no seu país precisa da consideração da proximidade e a compreensão do interesse geral assumido como defesa da dignidade de todos em qualquer parte do mundo…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

PREPARAR O QUE AÍ VEM…


“Um objetivo sem um plano é apenas um desejo”.
Antoine de Saint-Exupéry.

 

Giorgio Agamben deu o grito de alerta em Itália: “corremos o risco de vermos abolido o nosso próximo”. Perante a pandemia e o confinamento chegamos à conclusão de que, em abstrato, é possível funcionar a distância, em linha, sem as relações diretas, olhos nos olhos, mas isso é só em abstrato. É extraordinário podermos contar com a comunicação digital, mas é insuficiente, sobretudo quando falamos das relações humanas, da educação e da cultura, do conhecimento, da sabedoria, mas também da ciência e da técnica. O que tem mais valor não tem preço e o desenvolvimento humano obriga a compreender que a cooperação e a solidariedade são para a humanidade o que a biodiversidade é para os seres vivos. As máquinas não vão substituir o contacto entre seres humanos.

 

Lembrando-me do exercício que tive o gosto de coordenar sobre a definição do perfil dos alunos no fim do ensino obrigatório, não posso esquecer que a liberdade, a responsabilidade e a cidadania, exigem presença, autonomia, risco. É verdade que a situação atual não oferecia alternativa – havia que usar a distância no ensino para salvaguardar a presença futura. Mas importa, desde já, preparar a sequência. Por isso, José Tolentino Mendonça disse: “Não é possível excluir o corpo da escola, pois é através dele que damos significação ao mundo, maturando os diversos saberes e exercitando a responsabilidade pela inteira existência” (Expresso, 30.5.2020). Perante uma situação excecional, tivemos de encontrar respostas excecionais, mas urge agora delinear com inteligência novas saídas. Afinal, se reforçarmos a liberdade e a responsabilidade pessoal podemos combater melhor os efeitos da pandemia, prevenir e salvaguardar a saúde pública e reforçar a cidadania democrática e o desenvolvimento económico.

 

Foi por falta de transparência e descrença na responsabilidade cívica das pessoas e das instituições que muitas soluções falharam. Temos, assim, de reconhecer as virtualidades e as limitações da solução possível encontrada – a distância e o confinamento. Agravam-se as desigualdades, afetam-se os mais frágeis, comprometem-se os níveis mais precoces de aprendizagem. A educação e a escola têm, agora, de corresponder de modo inovador ao desafio atual. Imediatamente, não havia margem de manobra, mas temos de pensar a ligação entre desenvolvimento, saúde pública, liberdade, responsabilidade e cidadania. Veja-se como avançámos na consciência de que o consumismo e a destruição do meio ambiente podem ter respostas positivas, através da equidade intergeracional e da justiça distributiva… Em lugar de uma estratégia defensiva, devemos preparar-nos para não ser apanhados novamente desprevenidos. Importa contrariar os riscos de agravamento das desigualdades e da exclusão – tomando consciência de um dilema paradoxal contemporâneo, entre Cila e Caríbdis, vivemos entre a uniformização e a fragmentação. E Edgar Morin tem insistido na necessidade de tirar lições da brutal situação em que ficámos: quanto de essencial perdemos no culto do acessório, quanta liberdade perdemos no medo. Volto ao tema do perfil do cidadão do século XXI: importa complementar os avanços do mundo digital e do ensino a distância com maior cooperação interpessoal, com os bons efeitos das redes, com o favorecimento da dimensão internacional, contra os egoísmos nacionalistas. O patriotismo cívico e constitucional prospetivo, é essencial, com o cosmopolitismo centrado no respeito mútuo. Urge adequar, na aprendizagem de qualidade, motivação, exigência, trabalho, capacidade de resolver problemas, cuidado, atenção e entreajuda.

 

Se queremos melhor democracia, temos de dar tempo ao tempo, para que a reflexão não seja substituída pela manipulação. É verdade que o ensino, no seu conjunto, pode sair da pandemia mais preparado para aproveitar as tecnologias e as novas correntes de aprendizagem, mas temos de cuidar dos que não podem ser abandonados, favorecendo a criatividade e a cooperação pessoal. No dilema saúde / economia, o valor fundamental é o da vida, da existência, da liberdade, da igualdade e da fraternidade… O capital social e a confiança obrigam ao que Adela Cortina designa como “amizade cívica” (El Pais, 16.5.2020). Só com esta estaremos mais preparados para afrontar próximas epidemias e ameaças de destruição da humanidade… 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

CRÓNICA DA CULTURA

ENTREVISTA

 

- Como tem sido para a senhora e seu marido o suportar deste confinamento?

Pois, para nós o confinamento não tem custado.

- Ah!, não? Tem-nos parecido que ninguém gosta.

Bem, no início fomos na onda, digamos assim, do horror de ficar em casa, íamos ao supermercado uma vez por semana, e vínhamos logo para casa. Mas afinal não era mau.

- Não era mau? Deixaram de fazer a vossa vida normal, deixaram de usufruir da vossa liberdade, dos vossos costumes, dos vossos prazeres, já para não falar do medo da doença…?

Pois o medo da doença tocou-nos fundo e toca-nos – e também nos toca o medo de outras doenças - mas quanto ao confinamento, chegámos à conclusão que já vivíamos confinados, e não nos tínhamos dado conta que a situação até já estava batizada por essa palavra.

- Como assim?

Olhe, nós somos reformados. O meu marido é engenheiro, mas devido a um problema de coluna, teve de antecipar a reforma e ela é baixinha, e eu trabalhava em Alcoitão e já me reformei, também com pouco, face ao que auferia, que era pouco.

- Alcoitão?

Sim, lá no local onde as impossibilidades se tornam, às vezes, desconfinamentos de futuros. Trabalhei muito lá, e acreditando sempre que se eu não desistisse dos meus doentes, eles teriam êxito. Era fisioterapeuta. Mas voltando ao confinamento. Sabe?, nós falámos aqui em casa - o meu marido e eu - e decidimos ir ao supermercado, mas todos os dias, durante e após a pandemia para fingirmos que vivemos mais desconfinados. Entende?

- Como assim?

O que eu quero dizer é isto: como pode imaginar as reformas baixas não dão para almoçar fora, nós nunca almoçamos fora, também não dão para viajar, nós nunca viajamos, nem cá dentro. Também não dão para irmos ouvir concertos de que tanto gostamos. Ir ver montras, às vezes, sabe bem, mas não temos disponibilidades para adquirir algo só pelo gosto de ter esse bem connosco, e, fica-se um pouco triste. Também não saímos de metro, pois o meu marido fica com medo dos empurrões e pode ficar pior da coluna. Andar de táxi, é caro, só se temos de ir ao médico. A Caixa é longe daqui. Resumindo: íamos ao supermercado uma vez por semana para adquirir o essencial, e não nos tínhamos dado bem conta de que é precisamente o que fazemos agora com o confinamento.

- Ah! Daí a decisão de irem todos os dias ao supermercado, agora e depois da pandemia?

Sim. Havia muito mais para dizer, mas é isso. Resumindo, é isso. Tudo isto foi um modo de concluirmos, mais exatamente, que a nossa liberdade já era confinada.

- Disseram-me que tinham filhos, eles não participam num jeito de vida melhor, para vós?

- Bem, é assim: os nossos filhos têm mais de trinta anos e se for preciso queixam-se de nós não os ajudarmos financeiramente, mas eles a nós, nem que seja para estarem connosco à beira-rio, não têm tempo. São bons filhos, mas é assim que pensam. Pensam neles. E nós atenuamos o impacto disto em nós, ou pintamos cor no que se vive agora dentro deles. Até os elogiamos quando falamos com outras pessoas. Dizemos que estão bem na vida e são inteligentes, etc., essas coisas. Nós nunca imaginámos que nos confinariam assim. Para eles, fazerem conversa connosco e companhia no estarmos juntos, é amputar muito tempo do seu mundo. Ou seja, para eles basta a mera regra a cumprir nas festividades. Eles desconfinam do grupo no Natal. Vêm aqui e não se demoram, e sempre levam algum…mas eles amam-nos, pode crer! Mas é assim.

- Então o confinamento nem sequer alterou o vosso estado psicológico? Nem o usar máscara vos incomodou?

O meu marido, um dia, até me disse: ó Laura já ninguém nos ouvia antes e agora é mais difícil; as máscaras até são boas a clarificar certas coisas. Eu não transmito o vírus dos problemas ou da tristeza que incomode os outros; os outros, ou fingem que não têm problemas, no olá como estão, nós ótimos, ou, com a ajuda da máscara, escondem algum sorriso de felicidade, o que é bom para eles, não vá terem de dividir com alguém, um vírus positivo.

- Obrigada. Obrigada pela entrevista que me concedeu.

Ah!, ó senhora jornalista, é verdade, escreva que estamos bem, não temos covid 19, ou julgamos não ter, não temos esperança nem medo, o que é fantástico face a tanta tragédia por aí.

                                                                                 

Teresa Bracinha Vieira