Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Esta é a pergunta decisiva. De facto, se não somos livres, o que se chama dignidade humana pode ser uma convenção, mas não tem fundamento real.
Mas quem nunca foi assaltado pela pergunta: a minha vida teria podido ser diferente? Para sabê-lo cientificamente, seria preciso o que não é de modo nenhum possível: repetir a vida exactamente nas mesmas circunstâncias. Só assim se verificaria se as “escolhas” se repetiam nos mesmos termos ou não.
Não há dúvida de que a liberdade humana é condicionada. Mas ela existe ou é uma ilusão? Não pretendem agora neurocientistas dizer que, mediante dados da tomografia de emissão de positrões e da ressonância magnética nuclear funcional, se mostra que afinal as nossas decisões são dirigidas por processos neuronais inconscientes?
De qualquer modo, já em 2004, destacados neurocientistas também tornaram público um “Manifesto sobre o presente e o futuro da investigação do cérebro” - cito Hans Küng, no seu Der Anfang aller Dinge (O princípio de todas as coisas) -, revelando-se prudentes no que toca às “grandes perguntas”: “Como surgem a consciência e a vivência do eu? Como se entrelaçam a acção racional e a acção emocional? Que valor se deve conceder à ideia de ‘livre arbítrio’? Colocar já hoje as grandes perguntas das neurociências é legítimo, mas pensar que terão resposta nos próximos dez anos é muito pouco realista.” É preciso continuar as investigações, no sentido de perceber o nexo entre a mente e o cérebro. “Mas nenhum progresso terminará num triunfo do reducionismo neuronal. Mesmo que alguma vez chegássemos a explicar a totalidade dos processos neuronais subjacentes à simpatia que o ser humano pode sentir pelos seus congéneres, ao seu enamoramento e à sua responsabilidade moral, a autonomia da ‘perspectiva interna’ permaneceria intacta. Pois também uma fuga de Bach não perde nada do seu fascínio, quando se compreende com exactidão como está construída.”
A liberdade não é desvinculável da experiência subjectiva, da “perspectiva interna”. Essa experiência é uma experiência transcendental, no sentido de que se afirma até na sua negação. De facto, se tudo se movesse no quadro do determinismo total, como surgiria o debate sobre a liberdade? Ele seria possível?
Essa experiência coloca-se concretamente no campo da moral e da responsabilidade. Neste contexto, há um célebre exercício mental de Kant na Crítica da Razão Prática, que já aqui citei e que é elucidativo e obriga a pensar. Suponhamos que alguém, sob pena de morte imediata, se vê confrontado com a ordem de levantar um falso testemunho contra uma pessoa que sabe ser inocente. Nessas circunstâncias e por muito grande que seja o seu amor à vida, pensará que é possível resistir. “Talvez não se atreva a assegurar que assim faria, no caso de isso realmente acontecer; mas não terá outro remédio senão aceitar sem hesitações que tem essa possibilidade.” Existem as duas possibilidades: resistir ou não. “Julga, portanto, que é capaz de fazer algo, pois é consciente de que deve moralmente fazê-lo e, desse modo, descobre em si a liberdade que, sem a lei moral, lhe teria passado despercebida.”
O que confunde frequentemente o debate é a falta de esclarecimento quanto ao que é realmente a liberdade. Ela é a não submissão à necessidade coactiva, externa e interna, mas não pode, por outro lado, ser confundida com a arbitrariedade e a pura espontaneidade – não implica a espontaneidade a necessidade?
A liberdade radica na experiência originária do ser humano como dom para si mesmo. Paradoxalmente, é na abertura a tudo, portanto, no horizonte da totalidade do ser, que ele vem a si mesmo como eu único e senhor de si. Então, agir livremente é a capacidade de erguer-se acima dos próprios interesses, para pôr-se no lugar do outro e agir racionalmente. Faço a experiência de que sou dado a mim próprio como senhor de mim; portanto, sou dono de mim (já ouvi uma criança de seis anos dizer à mãe: “tu não és a minha dona”) e, portanto, dono dos meus actos e, consequentemente responsável, respondo por eles e por mim.
É preciso distinguir entre causas e razões. Quando se age sob uma causalidade constringente, não há liberdade. Ser livre é propor-se ideais, deliberar e agir segundo razões e argumentos, impondo limites aos impulsos, inclinações e desejos, o que mostra que o Homem pode ser senhor dos seus actos e, assim, responsável, pode e deve responder por eles.
Só existe liberdade, se há alguém capaz de autodeterminação. A determinação por um “eu”, segundo um juízo de valor, é que faz com que uma acção seja livre e não puro acaso ou enquadrada no determinismo das leis naturais. Como diz P. Bieri – ver de novo citação em O princípio de todas as coisas --, “é inútil procurar na textura material de um quadro o representado ou a sua beleza; é igualmente inútil procurar na mecânica neurobiológica do cérebro a liberdade ou a sua ausência. Ali, não há nem liberdade nem falta de liberdade. Do ponto de vista lógico, o cérebro não é o lugar adequado para esta ideia. A vontade é livre, se se submete ao nosso juízo sobre o que é adequado querer em cada momento. A vontade carece de liberdade, quando juízo e vontade seguem caminhos divergentes.”
Quando se pensa em profundidade e verdade, ser Homem é ser livre e, consequentemente, responsável: responder por si e pelos outros. O que quero fazer de mim? Para onde queremos ir verdadeiramente?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 31 de agosto de 2024
Uma antiga aluna, agora avó, enviava-me há dias um vídeo com o seu neto. É uma alegria comovedora ver aquele bebé a gesticular e a sorrir, agitando-se... Uma outra avó: “É uma emoção muito grande”. E eu alegro-me também e reflicto: Estes bebés vão crescer, aos poucos vão tentar articular palavras, e muito lentamente, depois de se referirem a si como o menino, a menina ou pronunciando o seu nome, dizer “eu”. Ao princípio sem consciência do que isso significa na sua grandeza, mas, depois, mais uma vez lentamente, com tom acentuado e afirmativo de autonomia... Evidentemente, sempre em contraposição com o outro, um tu: afinal, há eu porque há tu, e a primeira tomada de consciência é mesmo a do tu, mas sempre numa interação e inter-relação permanentes. E num processo nunca verdadeiramente acabado...
E perguntamos: o que diz alguém, quando diz "eu", fazendo-o de forma autenticamente consciente? Afirma-se a si mesmo, a si mesma, como sujeito, autor/a das suas acções conscientes, centro pessoal responsável por elas, alguém referido a si mesmo, a si mesma, na abertura e em contraposição a tudo.
Mas, reflectindo, deparamos com observações perturbadoras. Por exemplo, pode acontecer que alguém adulto, ao olhar para si em miúdo, se veja de fora, apontando como que para um outro: aquele era eu, sou eu?
Há filósofos que se referem à ilusão do eu. Certas interpretações do budismo caminham nessa direcção. No quadro da impermanência e da interdependência de todas as coisas, fala-se da inexistência do eu. Matthieu Ricard, investigador em genética celular e monge budista, deu-me uma vez, num congresso no Porto, um exemplo: veja ali o rio Douro. O que é o rio Douro, onde está? Ele não existe como substância, pois não há senão uma corrente de água. Está a ver a consciência? O que é ela senão um fluxo permanente de pensamentos fugazes, de vivências? O Eu não passa de um nome para designar um continuum, como nomeamos um rio.
Por mim, afirmo que há a experiência vivida e inexpugnável do eu, ainda que numa identidade em transformação, que continuamente se faz, desfaz e refaz. De facto, vivemo-nos numa identidade em processo. Em relação ao eu, o que se passa é que, não se tratando de uma realidade coisista, é inobjectivável e inapreensível. Nunca nos captamos totalmente, porque nos experienciamos como uma subjectividade reflexiva: somos objecto de conhecimento para nós próprios, mas, uma vez que a possibilidade de nos objectivarmos é uma subjectividade que se retrai sempre, nunca nos conhecemos adequada e plenamente, de tal modo que seremos sempre enigma para nós mesmos.
E é e será sempre enigmático como aparecem no mundo corpóreo o eu e a consciência, consciência da consciência, consciência de que somos conscientes... É claro que o Eu não pode ser pensado à maneira de uma alma, um homunculus, um observador dentro do corpo — o fantasma dentro da máquina. Há, portanto, uma correlação entre a consciência e os processos cerebrais. Mas significa isto que essa correlação é de causalidade, de tal modo que haverá um dia uma explicação neuronal adequada para os estados espirituais? Ou, como já viu Leibniz e é acentuado também pelo filósofo Th. Nagel, mesmo que, por exemplo, tivéssemos todos os conhecimentos científicos sobre os processos neuronais de um morcego, não saberíamos o que é o mundo a partir do seu ponto de vista? A questão é: como se passa de acontecimentos eléctricos e químicos no cérebro — processos neuronais da ordem da terceira pessoa — para a experiência subjectiva do eu na primeira pessoa?
Apesar de não se afastar por princípio a possibilidade de se poder vir a dar essa compreensão, o filósofo Colin McGinn pensa que talvez nunca venhamos a entender como é que a consciência surge num mundo corporal, a partir de processos físicos. Também o neurocientista W. Prinz disse: "Os biólogos podem explicar como funcionam a química e a física do cérebro. Mas até agora ninguém sabe como se chega à experiência do eu nem como é que o cérebro é capaz de gerar significados."
E sou livre ou não? É claro que, como escreveu o filósofo M. Pauen, se as nossas actividades espirituais se identificassem com processos cerebrais, segundo leis naturais, já se não poderia falar em liberdade: "as nossas acções seriam determinadas não por nós, mas por aquelas leis."
Mas, afinal, quem age, quem é o autor das minhas acções: o meu cérebro ou eu? "Como não é a minha mão, mas eu, quem esbofeteia esta ou aquela pessoa, não é o meu cérebro, mas eu, quem decide. O facto de eu pensar com o cérebro não significa que seja o cérebro, e não eu, quem pensa", escreve o filósofo Th. Buchheim.
Só existe liberdade, se há alguém capaz de autodeterminação. A determinação por um "eu", segundo um juízo de valor, é que faz com que uma acção seja livre e não puro acaso ou enquadrada no determinismo das leis naturais. Como já aqui tentei explicar, a liberdade é-nos dada numa experiência — faço a experiência de ser dado a mim mesmo e, consequentemente, a experiência de ser dono de mim próprio e, portanto, dono dos meus actos. Por isso, sou responsável por mim e por eles, isto é, respondo por eles e por mim. Dada a neotenia — nascemos por fazer —, a nossa missão e tarefa é, fazendo o que fazemos, fazermo-nos a nós próprios. E todos morremos inacabados. Para os crentes, morremos para Deus, o Outro absoluto que finalmente nos dirá quem somos para Ele e Ele para nós. A plenitude.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 22 de abril de 2023
127. A CONSCIÊNCIA DO BEM E DO MAL EM TEMPOS DE ESCURIDÃO
Para além da disciplina, há a consciência em cada ser humano.
Quando entram em conflito, cada um de nós tem liberdade de escolha.
O que é determinante em tempos de trevas, ao ignorar ou ser indiferente à anulação da capacidade de autoquestionamento, alienando a liberdade.
Em favor da tese da disciplina, há o argumento da obediência burocrática, segundo o qual aos funcionários integrados numa estrutura administrativa baseada nos princípios da autoridade absoluta, hierarquização rígida e da dependência acrítica, apenas lhes resta obedecer, retirando-lhes a sua capacidade de livre arbítrio, sendo o burocrata exemplar a primeira vítima, reduzido a uma peça burocrática que facilmente se transforma num instrumento do mal. Para Hannah Arendt: “Um funcionário, quando não é nada mais que um funcionário, é alguém muito perigoso”.
Recorre ao argumento de defesa de Eichmann, no seu julgamento, em Jerusalém, em 1961, quando acusado pelo encaminhamento para a morte de centenas de milhares de judeus, onde foi culpado e condenado.
A ideia de que há pessoas que em circunstâncias excecionais foram obrigadas a ter um estatuto sub-humano, transformando-as em monstros e negando-lhes a sua condição moral, legitimando a sua participação em atos criminosos, não é aceitável se estivermos cientes que são seres conscientes, que distinguem entre o bem e o mal, não podendo invocar a sua fuga e morte moral como justificação, por maioria de razão em crimes contra a humanidade.
Pondo de lado questões pendentes e não resolvidas sobre a ação moral, o juízo e o pensar, qual o pensamento que pode e não pode impedir catástrofes e malefícios quando pensamos, se há algo no pensamento que pode impedir as pessoas de fazer o mal (e incitá-las para o bem), a relação intrínseca que há entre capacidade de pensar e mal (e bem), chegamos a uma encruzilhada em que nos interpelamos: como se comportaria cada um de nós se tivesse vivido naquela época e naquelas circunstâncias?
Mesmo tendo presente, em permanência, que as sociedades se regem pela lei e não pela moral (da época), sendo a norma legal mais redutora, mesmo que se defenda que quem mata outras pessoas tende a estar consciente de que é errado.
É uma temática que ultrapassa o totalitarismo nazi (e soviético, entre outros), interpelando toda a Humanidade, incluindo saber se o Holocausto (e outros crimes ao longo da História) é fruto de uma elite e bando de psicopatas arianos ou também da cumplicidade e indiferença de milhões de seres humanos normais e indispensáveis.
Excluindo a teoria da culpa coletiva, que não aceitamos e é excessiva, sempre houve honrosas e louváveis pessoas que, naquela época e circunstâncias de tempos sombrios e de escuridão, souberam distinguir o bem do mal, sem se agarrarem a ideologias, recusando-se a obedecer a comandos que implicavam a negação da dignidade humana e o direcionamento para a morte dos mais expostos e muitos inocentes.