Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Via as datas como se ainda não tivessem tido até àquele momento qualquer realidade.
Se chegasse ao ano 2000 que idade teria? Como organizaria o seu quotidiano se fosse viva? E olhava-se ao espelho, admirada, e a querer compreender que o que via, a deveria ajudar a situar-se em relação ao tempo.
Também se espantava com as crianças a brincar nos parques infantis por sentir tão longe de si essa verdade.
O envelhecer ultrapassava a sua imaginação.
E olhava para a mãe, e achava-a sem idade. Aqueles olhos dela, aquele sorriso tolerante quando a visitava e que bem dizia que, pois, agora o tempo era pouco para tanto viver, ela também já fora assim. E, penteava-lhe o cabelo macio, daquela vez e da outra.
Às vezes, num estado de indolência agradável, mesclava memórias entre eixos que se interseccionavam e, todavia, não a esclareciam no tempo e no espaço que vivera.
Igualmente constatava que a idade lhe trazia um habitat do «eu» cheio das presenças dos seres ausentes.
Era uma nova forma de solidão que descobria ao confrontar destino no presente e no passado.
A passagem do tempo dava-se dentro e fora de si, e tinha medo de se perder nas múltiplas facetas da realidade que é preciso agarrar, pois tudo a conduzira ao dia de hoje.
Experimentava acima de tudo um vigoroso repúdio face à hipótese de suportar novas dores.
Um imenso cansaço atordoava-a de quando em vez, e a morte com deus morto, perdera a crença na companhia.
Mas sim, a velhice era emprego certo de contrato atípico.
Bem intuía agora, que antes de desaparecer para sempre, teria de fazer frente ao fim de um medo que adivinhava traiçoeiro, esse mesmo que já não lhe deixaria memória.
porque era como se se deixasse para trás tudo o que vivia a sacrifício dos sonhos.
Casar era a possibilidade de se mudar para uma perspetiva
e poderia ser ainda
a força de um comboio que fugiria como um louco da vida sem viagem.
Na televisão, os filmes não condenavam os beijos de verão, auspícios de bodas.
Na televisão, os filmes não sofriam daquela indignação moral que proibia as religiosas de amarem como as bailarinas.
Assim, quando se jogava a petanca, apurava-se a certeza de que bastava perder-se a ingenuidade, se se entendesse, de uma vez, que os pais a desejavam mesmo era casada; bem entregue a quem não lhe levantasse a mão.
Levantar a mão, não. Isso não. Os bens nascidos sabiam que isso era muito feio e os filhos futuros ficariam traumatizados, se vissem.
Assim, casar, fora a única solução, apesar de já sentir cansaço no desejo de agradar sob a bolha de uma outra impotência e ainda
ouviu um dia: tu vê lá o que me fazes! não existem divórcios na nossa família. Não me dês esse desgosto, essa vergonha, mata-me!
A sensação de que atras dela um livro se escrevia sozinho fê-la pensar que agora a vida deveria ser
como apanhar uma dose de boleia da televisão a cores e não adormecer com a mira técnica em fundo.
E não adormeceu.
Agora começava a nascer-lhe uma nova espécie de desejo; o de pensar em si, fora do casal e da família.
O Maio de 68 continuava nas origens.
Agora a terra seca cheirava inequivocamente a tomilho.
Sentara-se à beira do riacho, naquela aldeia que tratava por tu as dores do dar à luz no desbulhar do milho e sem queixa, já que ainda por ali assim era e
o tempo dos filhos devia substituir o tempo dos mortos: a seco e nada mais. E tudo tão parecido com a sua família, afinal.
E a sensação eufórica
de que conseguiria chegar até onde o livro que tinha nas mãos lhe propusera.
Quanto desejo de aprender e realizar coisas novas
está? Ouves-me? Sim, o barulho é da taberna de onde te telefono. Ouves-me? Claro que tenho comigo a esferográfica. Estou aí domingo. Em qual? Ainda não sei.
À medida que a sua memória se despia da humilhação do até então não verbalizado, o presente era cada vez mais um campo de agir:
o inverno interminável entrara pela esferográfica e saía agora papel fora numa entrevista à vida
O elmo, as luvas de ferro, a armadura completa que vestia o cavaleiro, era como uma única e selada peça que há muito o separava do mundo que enfim procurava, e, porventura, daquilo que nele procurava, defendendo-se deste modo do Mal que a descoberta envolveria, inclusive, quando adormecendo na praia, a espada, despida e deitada ao seu lado, era fortemente agarrada pela sua mão como um surdo aço em contacto atento.
Helgi, o cavaleiro, tinha o seu nome gravado na viseira do elmo, na vontade de se entender por sinais escritos face a eventuais chamamentos do além, cuja linguagem não decifrasse. Tinha Helgi a perfeita consciência que o seu cansaço na longuíssima procura, fizera-o ir e deixando a sua juventude expunha agora as olheiras de uma idade não dita, mas expressa pela pele e sobretudo pelo modo de olhar a indagação.
Faço questão em reafirmar o quanto creio que o modo de olhar a pergunta nos expõe a idade, o quanto os sinais têm consistência e peso e luto, o quanto os refúgios absolutos são anteparos das angústias onde se existe na procura. A vida? Um dardo? Um fecho éclair que se nega? Um sentimento? Uma biblioteca.
Assim, inicio o dia, mais uma vez tentando transmitir a minha interpretação deste genial conto de António Vieira relendo «A Procura», publicado no livro Dissonâncias pela &etc.
Helgi tinha tido em tempos um escudeiro de nome Gylfi ficara ele, um dia, por um castelo, ou a violência da vã esperança não o tivesse seduzido na sua necessidade, na sua gregaridade. Helgi prosseguiu sozinho a procura, sem que esse facto lhe adviesse de coragem, antes, dizer que talvez, de há muito, só lhe interessavam as perguntas fundamentais, logo, a decisão do escudeiro não lhe disputara nenhuma atenção. Contudo, julgo entender que o cavaleiro sentia que o seu cavalo lhe transmitia, a razão da sua errância, pois o trote de Kirjat era tão livre e tão cúmplice dos interditos que Helgi, a ao seu cavalo, reconhecia que indicações díspares não lhe sucederiam; era um ser superior da natureza: incapturável.
E a procura continuava e expunha-se também pelo pasmo frontal de encontrar um licorne dos mares jazendo morto na praia onde Helgi adormecera. Veja-se que era um licorne dos mares, criatura dos bosques segundo os códices, e ali à boca do oceano morto, em plena metamorfose de monstruosidade. Haveria que decifrar esta razão. Esta razão e outras, como a da belíssima mulher lhe surgir neste momento e ser seu nome Sigrun, e falar ela outra língua, e o silêncio os levar a compreender a espessura dos gestos e dos olhares e dos caminhos e eis a ilha, eis que antes ou depois dela, quis o cavaleiro interpelar Deus, mas ao desamparar-se Dele interrogando-se das razões, diminuíram as próprias razões da procura que em nome de Deus intentara.
Helgi e Sigrun amaram-se numa gruta.
Diria que desta feita, ao reler este conto, acreditei ter sentido já que um olhar profundo de desejo retirava ao ser cobiçado algo que não o deixaria igual, como refere o genial autor deste livro. Creio mesmo ser através deste mistério que nos doamos quando nos entregamos a alguém.
E eis que o cavaleiro foi o primeiro a sentir o fortíssimo ranger das rochas da gruta ao apertarem-se no seu intento inamovível de se fecharem, e, agarrou o Graal tendo tido ainda tempo de ver que lá dentro, lá estavam os tempos dos primórdios, e nada do fulgor da alma. O futuro? Sim, também estava lá, apocalíptico.
Helgi olhou para a sua companheira que escutava o tremor das pedras que os emparedariam vivos. Mostrou-lhe a sua adaga.
Estavam nus na eternidade de um momento de graça e apaziguamento depois do amor.