Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O filme “Conto de Primavera” (Eric Rohmer, 1990) explora o controlo espacial. Jeanne vive dividida entre vários espaços e não suporta viver no apartamento desordenado e escuro do seu namorado ausente.
A palavra é, neste filme, usada de maneira a dar realidade aos pensamentos e o espaço é usado de maneira a dar realidade ao controlo que se tem sobre a vida.
Ao longo do filme seguimos Jeanne durante o seu tempo vazio e em deslocação permanente. Ao não ter qualquer controlo sobre o espaço que habita - durante todo o filme Jeanne fica a dormir em casa de Natacha - abrem-se fendas na sua vida. Jeanne durante estes momentos de plena disponibilidade coloca-se no meio, em espaços de transição, em lugares que estão entre a realidade e a imaginação, entre a palavra e o pensamento, entre o contido e o aberto.
No texto ‘Rohmer’s Poetics of Placelessness’, Leah Anderst afirma que portas, escadas, ruas e corredores são os elementos espaciais que mais aparecem no filme. A insistência contínua em espaços de transição têm o efeito de destacar a ausência de lugar mas também revelam uma ambivalência e uma incerteza profunda, não reconhecida por Jeanne.
No livro ‘Éric Rohmer’ de Carlos F. Herdeiro e Antonio Santamarina lê-se que o filme gira à volta de um conceito pedagógico que tenta encontrar um sentido e uma ordem para as ações e para as coisas.
Jeanne é a fonte de equilíbrio para a Natacha. Mas, Natacha para Jeanne representa a liberdade de uma realidade fabulada.
Jeanne envolve-se na história irreal de Natacha de modo a tentar escapar ao seu ordenado universo quotidiano (que nunca chegamos a ver). A trajetória de Natacha começa numa bruma espessa e confusa e termina com a conquista de um equilíbrio e uma ordem. Jeanne caminha no sentido inverso, da ordem para a desordem.
Durante todo o filme Jeanne não tem espaço próprio. Apesar de ter a chave de duas casas, Jeanne não tem para onde ir. Na opinião de Herdeiro e Santamarina a história desenvolve-se dentro de um parêntesis (imaginado, não controlado), entre o prólogo e o epílogo (que são iguais, até com a mesma música). A realidade inventada de Natacha é uma viagem ao incontrolável. Os falsos factos de Natacha são produto de uma interpretação que põe em causa qualquer tipo de categorização (até espacial) e fazem Jeanne duvidar de tudo e de si própria. O ‘Conto de Primavera’ é assim um filme que explora a fragilidade de qualquer tentativa de ordenação e de controlo de um espaço. E ao recorrer a espaços de transição, Rohmer faz aparecer o lado oposto, incerto e ambíguo de Jeanne que parece tão decidida nas suas procuras e decisões.
Conto de Primavera - imensidão, vazio e inconclusão.
'A sensação de voar que se liberta em mim ajuda-me a ajustar melhor a mão quando conduzo o trajecto das minhas tesouras. É muito difícil de explicar. Diria que é uma espécie de equivalência linear, gráfica, à sensação de voar. Há também a questão do espaço vibrante.', Matisse
'O Periquito e a Sereia' (Matisse, 1952), oferece ao 'Conto de Primavera' (Eric Rohmer, 1990) o enquadramento estrutural e formal. O guache recortado de Matisse introduz ao filme a imensidão do espaço limitado, a dispersão das folhas, dos frutos e dos corpos, a abertura do fundo branco sobre o qual tudo gravita, a variação subtil mas imutável de todas as formas bem delimitadas e a intensidade das cores contrastantes. O elemento humano está diminuído e funde-se com todos os outros elementos.
O filme passa-se na primavera, e tal como no guache recortado o elemento floral é dominante e vigoroso, uma alegria de viver (mesmo que tudo seja flutuante, transitório, sem efeito, mesmo que tudo seja uma dança interminável e sem razão de ser).
Neste filme a primavera está associada a um novo começo, a um nascer de novo, a um crescimento iminente. Tal como Natacha, Jeanne está dividida entre dois apartamentos, e entre dois estádios diversos das suas vidas.
'I wanted something really light, almost empty. The story begins very slowly, it almost does not begin my exposition scenes have often been long, here the film almost stays as an exposition seen until the end. At the moment when we think that something is going to happen, it doesn't happen: that is my aim in Conte de Printemps', Eric Rohmer.
O mistério do pensamento nunca é totalmente revelado. Nunca é conclusivo. Jeanne gosta de pensar sobre o seu próprio pensamento. É através do pensamento que Jeanne se distancia das próprias sensações e mesmo da sua existência. Existe em toda história, uma vontade imensa em encontrar uma ordem, uma razão, um sentido e uma reposta. Jeanne consegue contribuir para a clarificação do mistério do colar. E sente-se extremamente seduzida pela liberdade fabuladora da sua amiga Natacha. Mas termina presa a uma suposição irreal, que a permitia escapar ao seu ordenado universo.
'I always thought, if you asked me what was happening in this film, I could answer 'nothing', because in my other films there is always an outcome. Here things happen but there is no outcome. The only thing that happens is the frivolous one of finding this necklace. But the only thing that the story of the necklace implies is that all this is never finished. That's what I was interested in, that's what I wanted to show. It is this hole, this absence that got me interested in this subject.', Eric Rohmer
Apesar de mais compacto, os contos das quatro estações de Rohmer, apresentam a ainda a estrutura aberta e livre das Comédias e Provérbios.
As personagens gravitam e nunca se confrontam de verdade. Jeanne e Natacha nunca se revelam na totalidade.
O filme termina no mesmo sítio onde começa - no apartamento desordenado do namorado de Jeanne. Nada mudou, está tudo no mesmo lugar, talvez somente o modo de ver/pensar se alterou. A firmeza inicial é afinal vulnerável, o desejo de ordem e de controlo é afinal ausência e vazio.