Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Diz-se que o nome de Inês (Agnes) significa, em língua grega, Pura. Quiçá seja mais pelo simbolismo da virgindade como entrega a Deus, ou sacrifício, isto é, feito sagrado o próprio corpo, até ao martírio. Terá este ocorrido em meados do século III, e os registos cristãos, desde a Depositio Martyrum, de 354, situam-no num 21 de Janeiro, dia em que, hoje ainda, se celebra a festa de Santa Inês. É no século IV que ela surge louvada na literatura cristã, designadamente na exortação De virginibus, que Sto. Ambrósio lhe dedicou, nesse aniversário, em 376. Provavelmente será do mesmo autor o hino Agnes beatae virginis, mas muitos outros doutores da Igreja a referem e louvam em escritos e sermões, incluindo S. Jerónimo e Sto. Agostinho, popularizando-se, aliás, o seu culto pela Itália, África e Palestina. Já no século XIII, Tiago Voragino escreve na sua Legenda Aurea: Inês, virgem muito sage, no testemunho de Ambrósio, que redigiu a sua Paixão, tinha treze anos de idade, quando perdeu a morte e ganhou a vida. Esta expressão traduz bem a conta em que a cristandade, mesmo depois das perseguições de que fora hostia (vítima) tinha o martírio, sacrifício supremo, como o do Redentor Cordeiro de Deus. É interessante -- e explica muito do culto teológico e popular a Santa Inês -- olhar para a etimologia que o Voragino apresenta do nome próprio: O nome de Inês (Agnes) vem de agna, «anhela», porque ela foi doce e humilde como uma «anhela». Ou então, vem o nome do grego agnos, que significa piedoso, porque ela foi piedosa e misericordiosa. Ou virá de agnoscere, «conhecer», porque ela conheceu a via da verdade. Ora, segundo Agostinho, a verdade opõe-se à vaidade, à falsidade e à duplicidade, três vícios que ela repeliu pela verdade que manifestou. No relato do autor da Lenda de Oiro, a história da paixão de Inês começa quando, certo dia, ao regressar da escola, foi vista pelo filho do governador, que logo dela se apaixonou e a quem prometeu inúmeras joias e riquezas, se aceitasse desposá-lo. A menina recusa, pois já pertence a Cristo. Ouvindo isso, o jovem foi tomado de loucura, teve de acamar-se e, pelos seus profundos suspiros, os médicos descobriram que ele estava doente de amor... Tal doença -- todos devemos sabê-lo -- consta que é tão velhinha como a humanidade, e já na antiguidade se diagnosticava. O paciente desta morreu, mas foi ressuscitado pela oração da Santa e começou a pregar o cristianismo. Assim enfureceu os sacerdotes e algozes pagãos que, finalmente, a sacrificaram. Num seu Praefatio, escreve Sto. Ambrósio: Santa Inês, desprezando as seduções da nobreza, mereceu a glória celeste, desdenhando os desejos da sociedade humana, associou-se a um rei: sofrendo uma morte preciosa para confessar Cristo, a Ele simultaneamente se tornou conforme.
Mais de meio milénio depois, Paul Claudel dirá que Inês teve o privilégio da neve, e o Cordeiro como prémio:
Mais Agnès a ce privilège,
la neige,
Agnès a reçu ce cadeau,
l´Agneau
A neve é branca e pura. Como o alvo velo do anho, do Cordeiro.
E a minha neta Inês dirá: Avô, é tão bonito e bom ver as palavras dançar e cantar! Dizem mais do que logo julgamos perceber, não é, Avô? E o tal Avô -- que, nestas ocasiões, é um velho mais velho e relho do que eu -- com aquele carinho tão especial que nos dá a vivência da despedida próxima, rende-se ao sorriso e à vida: Os símbolos, netinha, são faróis e espelhos; as lendas e histórias que no-los contam são lições e desafios. Há jactos de luz que nos mostram caminhos possíveis, mas só no tempo e no modo de cada um de nós nos reconheceremos, nesse esforço de achar o caminho certo. Nenhuma verdade se ensina em qualquer escola. A verdade das nossas vidas é esse esforço de comunhão com o espírito, fiel e misericordioso, de bem querer. A essa disponibilidade eu chamo virgem.
Assim liberrimamente traduzo um poemeto de Paul Claudel, o último dos Petits Poèmes Japonais, publicado na Revue de Paris, em Novembro de 1936. Faço-o, escutando a sonatina para dois violinos do Arthur Honegger. É certo que o poeta e o compositor nos deram, juntos, a Jeanne au Bûcher, mas só pela minha cabeça terá passado a associação desta sonatina H. 29 com o caracol alpinista. Aconteceu lembrar-me da trepadeira da música de Honegger, ao deparar com a quadra de Claudel quando percorria a sua obra poética, para ir identificando os vários versos que foi dedicando a Sainte Agnès, padroeira onomástica da minha neta Inês. A curiosidade motora de tal percurso desaguará noutro texto de memórias. Hoje, silenciosa em fim de tarde chuvosa de domingo, ocorre-me, retém-me e sobrepõe-se, outra lembrança, esta já registada em fotografias para a galeria de retratos da nossa família: a do meu neto Sebastião dando o braço, enluvado a preceito, ao Elvis, um mocho bufo quase maior do que ele; e a minha, sorrindo e pedindo beijo a uma águia chamada Virgínia... Momentos de um passeio à Tapada de Mafra, no ambiente tão amigo do Real Club Tauromáquico Português. Olho para retratos simultâneos de neto e avô que sessenta e seis anos cronologicamente separam... Eis como me detenho e quedo neste pensarsentir a família, na sucessão das suas gerações, como um caracol trepador que vai engolindo, mais do que montanhas, o rio indizível do tempo que corre. E, como noutros contos breves já confessei, ao Sebastião devo a atenção especial, quase metafísica, à persistente valentia dos caracóis.
O senhor Bucha Lingrinhas -- também conhecido pela alcunha de Orçamento do Estado - tem um pisar oscilante, até já se interrogou sobre se não seria descendente directo do Visconde Cortado ao Meio, «quiçá o Ítalo Calvino tivesse deixado engordar-lhe uma metade e emagrecer-lhe outra, hoje em dia nem os escritores conseguem ser equilibrados»... Cambaleando, caminhou do carro até ao restaurante Mesa Comum, lá para as bandas de Alcabideche. Sentou-se à mesa do canto, com vista desimpedida para a televisão que reinava sobre a sala, encomendou pratinhos de petiscos para ir picando, enquanto ia vendo o programa da noite. Sentiu-se bandarilheiro, dado que, conforme manda o novo acordo ortográfico, espetava as rodelas de chouriço com o garfo sem deixar de ser, simultaneamente, espetador de televisão. Deu graças ao progresso, sentiu grande admiração pela corrente democratização de todas as formas de cultura. No sedutor ecrã surgiam agora duas fortes personalidades, sábias de números e argumentos, que discutiam vários plafonamentos, horizontais, verticais, dimensionais, etc.... O seu lado Bucha pediu mais uns petiscos, o Lingrinhas concentrou-se no debate televisivo, mas ambos ficaram a pensar -- com diferentes graus de satisfação -- que uma casa com tantos tectos por cima, por baixo, e até pelos lados, devia ser como a de Alice no país das maravilhas... Mas Bucha Lingrinhas não é arquitecto, nem engenheiro, nem cumpriu - com a celeridade meteórica que caracteriza as aprovações hodiernas por créditos vários - qualquer curso superior, nem sequer desses tão reclamados. Assim, ficou na mesma, ainda que com desgosto de não ser igualmente sabedor de tantas coisas. Esqueceu a TV e abriu um jornal que, por brioso acaso, também tem edição ònelaine. Logo deu com abundante prosa de jornalistas e professores universitários de linguística sobre a evolução semântica das palavras, em artigo dito de semiótica, que lançava, à cara de ignorantes como ele, exemplos gritantes de variações vocabulares. Esbugalhou os olhos, com estes devorando, não os torresmos que espetava com o garfo, mas o espetáculo das letras à frente. Os insignes mestres explicavam à plebe ignara que, "contrariamente ao que o vulgo pensa, só recentemente pensar quer dizer pensar: dantes, pensar queria dizer alimentar animais, tratar de doentes ou feridas"... Se qualquer honesta pessoa dissesse eu penso, não concluiria eu existo, mas sim alimento um animal... Não esqueçamos! «Nenhum daqueles brilhantes cérebros - que por aí se passeiam em busca de novidades, por mares nunca dantes navegados, dessas que os autorizem a reivindicar celebridade e vendam jornais, revistas e programas de TV - ouviu sequer o meu professor de português -- pensou Bucha Lingrinhas - o Dr. Silva, com ordenado de docente liceal, há sessenta anos, ensinar que "o verbo pensar vem do latim penso, -as, -are, -avi, atum, que significava pesar, aferir, ponderar. A palavra, o verbo, nesse claro sentido, está na língua portuguesa desde o século XIII. Os romanos, como os de cultura latina, talvez por terem mais tempo para pensar, diziam cogito, significando então uma reflexão mais demorada, introspectiva ou engenhosa. Donde o cogito ergo sum do Descartes. O tal penso, no sentido de ração para animais, ou de curativo, encontra-se na nossa língua desde o século XV". Já o nosso Dr. Silva», lembrou-se Bucha Lingrinhas, «nos ensinava isso, e até nos disse que poderia ter sido porque "dar de comer ou tentar curar" é sempre pensar nos outros... Ainda me recordo dessas lições!». A caminho de casa, o nosso BL passou pela placa que anunciava Alcoitão. Encheu as entranhas de brios, viu-se na televisão e nos jornais, ensinando: «Chama-se hoje assim este lugar, porque os novos califas da nossa cultura, aqui têm passado noites de luxúria cerebral!»
"Não sejas criança, Tomás! Responde ao que pergunto!" - "Mas eu sou criança, Avô, e já respondi ao que me perguntou...". Para poupar ferramentas (travessões, aspas, dois pontos ou um ponto e vírgula, etc...), vou contar este diálogo, conversa e desconversa, em estilo saramago, como adiante se verá. Disseste pois mas pois não é resposta pois tanto pode dizer vai lá fora ver se eu lá estou como não ouvi nada do que disseste pior ainda não ouço nada do que dizes, Pois é Avô mas pois também quer dizer que sim concordo e às vezes é melhor concordar sem ouvir do que ouvir porque é que não concordas, Lá estás tu Tomás a querer ter razão e dar a volta e eu já te conheço, Não sei se o Avô me conhece tanto faz conheça ou não tem sempre razão, Eu não tenho sempre razão só quero que tu ouças e percebas o que te digo, Pois mas o Avô quer que eu perceba como o Avô percebe e eu sou pequeno e percebo doutra maneira ou não percebo ainda ou talvez nada o Avô percebe ou não? Percebo pois pois contigo só me resta perceber, Pois ainda bem porque quando o Avô percebe ajuda-me a perceber e então já não sou só criança e neto sou amigo do Avô que não ensina mas fala comigo e eu vou dizendo pois pois pois sou todo ouvidos... Pois é Tomás já me ajudaste a perceber que percebes o que queres perceber ou percebes demais pois, Pois pois Avô percebo o que o Avô deixa que eu possa perceber e o que posso vir a perceber pois é Avô? Pois, Agora o Avô também respondeu pois!
É este um conto para ser lido por gente caridosa, mais caridosamente ainda, por pessoas sensatas e com muita experiência de conversa com as confusões de cabeças alheias.... Para ser objectivamente franco e decente - to be candid - começo por confessar que será sempre temeridade minha assistir ao vivo a jogos de ténis. Não tanto porque me excitem ou paulatinamente me possam enervar, mas porque me obrigam a, descontroladamente, virar a cabeça de um lado para o outro, até não conseguir fixar a esquerda ou a direita e o centro ser um ponto vago como o vento. Mas o pior, bem pior, é que entretanto tudo se vai misturando na minha cabecita. Deixo mesmo de lhe chamar cabeça, vou dizendo coisas tão lúcidas como "ó pá, não consigo parar o shaker !" Shaker, como todos sabemos, é misturador em inglês, ou ainda agitador, etc... Isto das palavras terem vida é o diabo! Agitar, por exemplo, além de misturar ideias e confundir cabeças, pode fazer espuma no banho, entusiasmar multidões, fomentar ódios e revoluções... eu sei lá! Mas quando os ingleses dizem "let´s shake hands!", agitemos as mãos!, querem afinal dizer "apertemos as mãos!", sinal de acordo e amizade, como quem diz venham mais cinco ou dá cá o bacalhau nosso fiel amigo... Seja como for, ver jogos de ténis, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, com a bola ao centro só quando acerta na rede e terminou a jogada... Baralha-me! Mesmo quando gosto do despique, fico sem perceber para que lado caiu a ideia, ou se, afinal, ela optou mesmo (será possível?) por ser volátil... E não há dicionário que me sirva ou salve! Acabo por trocar palavras, não digo nem penso coisa com coisa, soergo-me no sofá e já não é ténis bem disputado o que estou a ver, talvez tenha mudado de canal, os sons batidos que saltitam à minha vista não são bolas de ténis, são rebentos de réplicas de políticos que debutam, perdão, debatem...
Mas não resisti hoje à tentação de ver em directo a final de Roland-Garros. E gostei, gostei muito: cada um dos oponentes foi procurando os seus argumentos e lançando-os. No fim, ganhou o menos favorito, mas foi bonito ver-se então um abraço de apreço sincero e mútuo. Afinal, quem trabalha muito e faz, como se costuma dizer, o seu trabalho de casa, por saber o que lhe custa é também capaz de reconhecer mérito ao adversário. Não se enganam um ao outro, nem têm possibilidade de enganar terceiros... Cometi, finalmente, um erro crasso: passei de uma confrontação desportiva, esforçada, para uma conversa de declarantes políticos... Tarde acordei do pesadelo, que me agitou e confundiu a pobre cabeça, coitadita, já tão gasta pelos anos. Senti fome, mas em vez de abrir a dispensa ou o frigorífico, fui à biblioteca abrir um dicionário... E, correndo muito, fui à mercearia próxima comprar, para frugal jantar, um latim de atum. A moça de serviço percebeu o que lhe pedia, e perguntou: "Além da lata de atum, também quer uma de feijão frade?" Não será muito instruída, mas deve ter sentido prático...
A Inês, a caminho dos quinze, já não pede colo ao Avô. Há anos! Emancipou-se, foi-se fazendo senhorita, diz umas coisas, manda umas opiniões, mas sempre lá de longe, dois passos atrás, afastando-se rapidamente do beijinho com que saúda: "Olá Avô, como está?" O velho, manhoso e brincalhão, invariavelmente lhe responde, à boa lusitana maneira, que vai andando, que já andou muito e por muitos anos... "Olha, menina, já tenho idade para estar melhor ou pior, até posso ser resmungão sempre que isso me ajude, ou se me apetecer ou calhar que assim seja... Mas tu... tu é que não te safas, tens pela frente uns anos para mostrares os dentes (e não te esqueças de os lavares todos os dias várias vezes!) num sorriso largo, para dizeres «Estou óptima! Viva a república!», percebes?" Esta neta deita-me então uns olhos, meu Deus, nem sei como explicar... Ou talvez saiba, mas não quero, não gosto, até parece que está a fazer troça! Não deve estar, não, coitadinha, ela é tão boazinha... Será? Tam-tam-tam-taaam!, começo logo a ouvir a 5ª sinfonia do Beethoven, será o destino a bater-me à porta? E ponho-me a cogitar : será que a miúda tem a mania de que já é o máximo, ou será que cresceu mesmo e eu, saudosista, não dei por isso, ou será - assim canso a cabeça - que estou xéxé e já não me lembro da "idade do armário"? Seja como for, lá se senta e se vai chegando a mim, sobretudo se eu estiver sentado ao computador, escrevendo... A curiosidade é mãe de todas as coisas, não é? - "O Avô continua a escrever muito? E não escreve contos dos netos?" Sinto-me logo escravizado, cheio de ganas de ir reclamar, para mim também, caramba!, o direito ao lazer, férias pagas, exílios em paraísos tranquilos... Ergo o rosto severo e inquisidor, desfaço-me num sorriso parvo, mas logo todo o meu mim se amansa: não tenho outro espelho senão o sorriso que alegra os olhos e a boca da Inês: vejo então que é, afinal, meu também aquele sorriso, nada tem de parvo, parvo fui eu ao pensar que já não tinha idade para ser vencido, ou por não ter logo entendido que as famílias são rios de nascentes longínquas e que vão desaguar no infinito. As gerações são imperfeições que, correndo como as águas, se sucedem... Tempos depois, em manhã de sossego e solidão, atendo um telefonema lá de longe, da Inês. "Não tens escola?" - "Tenho, mas não fui, dói-me a barriga, mas a Mãe está comigo e logo à tarde talvez já possa ir... O Avô está a escrever? Fala dos netos?" Falámos nós os dois, sim, de livros e da vida, do tempo e de coisas banais, dessas que são desinteressantes mas valem muito por serem desinteresseiras... A Inês, no dia em que se surpreendeu mulher, voltou a sentar-se ao colo do Avô, por telefone, a mais de mil quilómetros de distância.
Na festa de S. Sebastião, como já foi contado, uma multidão de caracóis aplaudiu um menino desse nome e, em coro uníssono cantou-lhe o va pensiero. Talvez - penso eu agora, pois sou avô, e os avós têm de pensar o que podem - para lhe agradecerem, na onomástica efeméride, o seu carinhoso acompanhamento de um deles, que nunca deslocou, nem sequer tocou, apenas foi olhando e vendo, quiçá percebendo no silêncio - no silêncio que é a misteriosa voz das coisas que, por serem muito, falam pouco - como a amizade é, tão simplesmente, o inexplicável sentimento de uma presença, ainda que ausente. Há uns dias, na véspera do equinócio desta primavera, ao correr, ao fim da tarde, o cortinado que nos cobria da luz poente a entrada da casa, vejo, colado ao vidro de uma das janelas da porta, entre esse e o ferro forjado que o protege, um caracol solitário. Pasmei. Olhei-o, vi um gastrópode que era um olhar fixo. Retribuí-lhe o olhar, encostei a orelha ao lado interior do vidro, nada ouvi. Decidi que deveria ser eu a falar primeiro: "O Senhor caracol que vai desejar?" - assim ouvi muitas vezes a fórmula nas esplanadas dos cafés... Silêncio. Insisti. Nada. Antes de me irritar - sou facilmente irritável - achei melhor pergunta: "Estás à procura do Sebastião, caracol querido?" - "Percorri o jardim, subi os degraus de pedra desta entrada e, pela porta acima, aqui cheguei, a passo de caracol. O Sebastião não está? Não veio ver a primavera que chega amanhã e lhe traz, de presente, um eclipse e marés enormes?" - "Va pensiero, caracolito amigo, o Sebastião ainda não chegou, vem só depois da Páscoa, mas eu digo-lhe que vieste procurá-lo..." - "Bem hajas, Avô, cá o espero!" - "Onde, meu lindo? Aí, colado a esse vidro? Não te peço para entrares, porque também não sei tratar de ti e não te quero magoar... Já é milagre grande - e dos maiores - estarmos aqui os dois à conversa... - "Não te preocupes, Avô, vê-se bem que és homem de pouca fé... O teu neto Sebastião, quando voltar, há de saber onde estou, já esta noite me encontrará nos seus sonhos. Sabes? Nós, os caracóis, somos assim: pequeninos e vagarosos, ninguém dá por nós, mas vamos aparecendo. Como a Páscoa na Primavera, e a saudade de Deus no coração dos homens."
O meu neto Sebastião nasceu sete anos depois da sua irmã Inês. Foi sempre muito desembaraçado e, com dois irmãos mais crescidos, também foi despertando asinha... Só que, quanto a falar, procurava imitar os outros dois, pelo que, com a pressa, lhe saía a articulação atropelada, como se se exprimisse numa língua que eu desconhecia. Obrigava-me, muitas vezes, a recorrer aos maternais cuidados da Inês, que concentradamente me ia traduzindo os impagáveis discursos. Mas quando estávamos só os dois, acontecia que - depois de escuta atenta e esforçada - eu lhe dissesse "Sebastião, não percebi nada do que estiveste para aí a dizer!" Ele olhava-me interrogadoramente ("O meu Avô será pouco esperto ou estará a gozar comigo?"), trepava para o meu colo (tinha três anitos) afirmava "N´fá mal!" abraçava-me o pescoço e dava-me um beijinho: "Ai! Pica!" - "A barba do Avô pica?" - "Sim!" Daí a pouco, vindo a correr, Deus sabe donde, lá se chegava outra vez a mim... "Dás-me um beijinho?", pedia eu. "Pica!", respondia, e punha-se a milhas. Para não deixar por mãos alheias os meus créditos e direitos, bem se vê que este Avô não perdia qualquer oportunidade de picar o miúdo. O mariola levava então as mãozitas à cara, sacudia a picadela, lançava-me um olhar de cumplicidade marota, e punha-se ao fresco. Até que, aos cinco anos, num dia em que regressavam, para férias na nossa casa, Sebastião - que já ia falando inteligivelmente - me veio abraçar e me beijou a barba branca. "Então, Sebastião, já não pica?" - "Pica sim, Avô, mas eu não me importo". E sorriu-me, como quem diz: "Vê lá se aprendes com esta!" Hoje, quando o vejo, aos sete anos, tornado bom tenista e surfista, falando português, francês e inglês, como quem salta a corda, muito independente e despachado, não me surpreende a inefável ternura com que sempre vem ter comigo. Muitas coisas mudam connosco e em nós. Mas algo, muito de nós, é sempre. Tantas vezes penso como o carinho entre as gerações, precisamente porque o tempo e o modo de cada uma delas é diferente na circunstância, na percepção do mundo e nas condições de vida, é um sinal claro de que o amor não deve ser visto como poço de contradições e afrontamentos, mas enquanto permanente desafio. Teria o Sebastião quatro anos e, numa salita, onde tínhamos jogos vários e uma televisão, ele entretinha-se a desligar e ligar as tomadas de aparelhos e candeeiros, encantando-se com o acender e apagar das luzes, a mando dele, claro. Deixei-o entreter-se, mas quando entendi que para aprendizagem - até do poder dos nossos gestos - já bastava, mandei-o parar. Digo mandei, porque devo ter usado de um modo autoritário, de que ele não gostou. Deu um berro, ameaçou continuar. "Mau, mau, olha que o Avô zanga-se!", disse-lhe. Reparei em que reprimiu lágrimas que me diriam mágoa, e logo se empertigou. Cruzou os bracitos, levantou o queixo, mudou o olhar de mágoa para desafio teimoso à minha autoridade zangada. Nem estremeci, não abri a boca. Deixei-me estar, e assim ficámos, olhando fixamente um para o outro. Bem hajam os olhares que não mentem e dizem tudo. Esgotada a raivinha, sorriam-nos os olhos e as bocas. "Goto muito de ti, Avô!" - "E eu sou muito teu amigo!" Talvez por ser o benjamim - ou por não querer obedecer à Mãe (que anda sempre a dizer-lhe que não se diz tu ao Avô) - o Sebastião é o único neto que me trata por tu. A mim, que não desisto de escrever Avô com A.
Batem à porta do meu gabinete. Respondendo ao "Entre!", duas cabeças, uma por detrás doutra, quase sobrepostas, surgem na fresta da porta entreaberta. A mais alta traz um olhar azul, incipientemente irónico, quando nele brilha o sorriso que ela também traz nos lábios, e cobre-se de cabelo loiro, escorreito e arrumado. A menos alta (sabemos que, numa nossa idade, todos gostamos de ser mais crescidos) franze um sobrolho que não esconde a ternura escura dos olhos, sob um cabelo de crina rija e remoinhos. Visitam-me a Inês e o Tomás, perguntam em uníssono "Podemos, Avô?". Não lhes dou licença, abro-lhes os braços... Logo a menina pergunta ainda: "O Avô está a escrever? Posso ver o que é?" - "Nunca te disseram que é feio ser cusca? Porque é que queres saber o que escrevo?" - "Então se o Avô não é curioso, porque é que tem tantos livros? Não os lê?" Diz então o Tomás: "Pois.. E se o Avô também escreve, não é para o Avô ler, pois não? O Avô já leu estes livros todos?" - "Li quase todos, quer dizer, há muitos que li por inteiro, outros só em parte, e mais uns tantos que só consultei... Depende do gosto, do interesse, do tempo que se tem... Qualquer livro é como uma conversa, nós não conversamos da mesma maneira com toda a gente, sentimo-nos mais à vontade com umas pessoas do que com outras, sei lá, tudo isso tem que ver com mais ou menos simpatia, entendimento, confiança... E passa-se o mesmo com os livros!" - "Mas porque é que o Avô tem tantos livros?" - "Olhem: não sei se é por vício ou por virtude..." - " O que é vício e o que é virtude?" - "Diz-se que vício é um hábito bom, e virtude um hábito mau" - "O que é um hábito?" - "É um comportamento que repete os mesmos actos, às vezes até sem querermos..." - "E o Avô não sabe se comprar livros é um hábito bom ou um hábito mau?" - "Bem... Sei e não sei..." - "O Avô está sempre a dizer que sabe e não sabe... E nós é que ficamos sem saber!" - Então explico: para mim, a diferença entre vício e virtude não é, propriamente, a de que, sendo ambos hábitos, um seja necessariamente mau e outra boa. Mas penso que todos nós devemos aprender a ser senhores dos nossos actos, isto é, saber que os fazemos e ter a coragem de responder por eles. Quando se trata de hábitos, nem sempre nos damos bem conta do que estamos a fazer... Como estes netos já trabalham com computadores, posso dizer-lhes que também uma pessoa está muitas vezes programada para fazer certas coisas, desta ou daquela maneira. Claro que a maioria dessas coisas começaram a ser feitas e repetidas porque escolhemos fazê-las, pensando ou sabendo logo que eram boas ou más. Mas também nos enganamos, e só mais tarde descobrimos que, se calhar, tal ou tal hábito não é bom, ou não é tão bom como gostaríamos que ele fosse... E podemos corrigir-nos, ou evitar fazer uma coisa habitual, pelo menos dessa vez, porque não será assim tão boa... Como assim é, o vício será comportamento que não controlamos, que não sabemos gerir; e virtude é sempre a possibilidade de nos habituarmos a fazer melhor ou de nos recusarmos a fazer isto ou aquilo, aqui e agora. Quando o Avô compra livros, nem sempre pensa bem se valerá a pena ter este ou aquele, se terá mesmo tempo para o ler, ou se será bom o que dele espera: nessas alturas é vício... - " Estamos a perceber por que é que o Avô diz que sabe e não sabe..." diz o Tomás. E logo a Inês : "Mas o Avô precisou de tantos livros para saber isso?" E o velho manhoso concluiu: "Talvez não precisasse, mas ajudaram muito..." - Riram-se (ou sorriram só?): "O Avô arranja desculpa para tudo..."
O sorriso da Inês é uma adivinha. Quem diz adivinha, diz manha. Uma esconde sempre a outra, ambas nos intrigam - por este lado ou por aquele, depende de que lado está ou virá a estar a surpresa... - e, se formos lúcidos, nos divertem e animam. O sorriso da Inês é o seu jeito de se chegar a mim. Sem animosidade, desconfiança ou timidez, apenas em desafio. E, só por isso, uma misteriosa alegria me revolve o coração. Gosto entranhadamente desse sorriso que me diz: "Avô, vamos a ver quem ganha hoje?". Por uma neta me fiz luz sobre um cantinho secreto do amor no coração: a confiança que nos interpela, o que outro nos pergunta porque tem fé em nós. Quando compreendemos isso, caímos, sim, na armadilha do amor, sem qualquer mentira possível, nem capricho ou ciúme que nos prenda. Podemos então brincar, desenhar arabescos capciosos e ilegíveis, contar histórias farsantes e rocambolescas, inventar paisagens em mundos ignotos... Diante de nós, tão defronte que até nos vemos ao espelho, está esse sorriso subtil que nos descobre e diz : "Conheço-te tão bem!" Por alturas da confirmação da Inês, disse-lhe eu, disfarçado: "Olha que Deus é um grande manhoso!" - "Como é que o Avô sabe?" - "Olha: sei, porque até consegue que acreditemos nele!" A miúda sorriu-me e disse: "Eu também acredito no Avô! O Avô é manhoso?" - "Eu? Não sei, não sou, sou só adivinho..." - "Adivinha o quê?" - "Sei lá, talvez o mesmo que tu: quando amamos, quando queremos bem, acertamos." O sorriso dela abriu-se e iluminou-lhe os olhos : "Quem adivinha, pergunta sempre, não é Avô?"