Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Orhan Pamuk diz-nos que o património cultural se assemelha ao amor, enquanto atenção profunda e compaixão sentida.
«O MUSEU DA INOCÊNCIA»
“Enquanto passearem de vitrina em vitrina e de caixa em caixa, observando todos estes objetos”, compreenderão como o escritor pôde ficar a olhar para a protagonista do romance durante um jantar ao longo de oito anos - é Orhan Pamuk quem o diz em relação ao seu “O Museu da Inocência”. O amor é como o património cultural, uma atenção profunda e uma compaixão sentida. Na sequência do romance, Pamuk criou um museu em Istambul de pequenos e diversos objetos que se relaciona com o encontro entre os afetos e as lembranças da vida quotidiana. De facto, “O Museu da Inocência” tem a ver com um amor total, persistente, sereno, possível em cada momento e depois tornado impossível. Podemos dizer muito sobre o património cultural, mas ninguém o compreenderá se não o considerarmos uma realidade viva. E eis-nos perante a melhor metáfora sobre o património, a herança e a memória. A identidade não pode ser um quarto escuro, um lugar sem janelas para o mundo – como muitos pretendem. Porque o autocomprazimento esquece, afinal, que só nos compreendemos se entendermos que o outro é a outra metade de nós, como afirmou o Padre Matteo Ricci. Os nacionalismos esquecem, contudo, a essência do patriotismo, que é aberto e disponível, capaz de aceitar as diferenças e de as tornar fatores de enriquecimento pessoal e mútuo. Patriotismo significa afinal amar as raízes e dar-lhes asas para o futuro, a partir da compreensão do horizonte como limite. “Porque nada pode ser tão surpreendente como a vida. Exceto a escrita. Exceto a escrita, sim, evidentemente, exceto a escrita que é a única consolação”. O património como um museu ou como uma tradição, é um lugar de consolação, também porque é onde encontramos objetos ou referências antigas ou novas que amamos, mas sobretudo porque perdemos a noção de tempo. Falo de um tempo fugaz e imediato, porque ganhamos o conceito de duração. E desejamos também a procura melancólica do diálogo entre hábitos, afetos, tradições e culturas e isso leva-nos a considerar hoje o património cultural como uma permanente metamorfose.
CELEBRAR A MEMÓRIA
Devo dizer-vos que aquele tempo que passei em Estrasburgo com os meus colegas na feitura da Convenção de Faro de 2005 correspondeu a mais do que um exercício normativo, mas a uma verdadeira interrogação sobre o futuro, quando estava bem fresca a memória de uma guerra como a dos Balcãs. Parece um paradoxo tratar do património cultural e pensar no futuro, mas não há contradição alguma nisso, uma vez que é a interrogação sobre a eternidade que está em causa. São as marcas da humanidade com todas as suas diferenças que vamos encontrando. Como definir, afinal, o património como realidade comum e fator de paz? Foi já há quinze anos e parece que foi ontem – e em cada momento que reconhecemos a atualidade do documento (a Convenção Quadro) podemos perceber que as dificuldades que sentimos e tivemos foram positivas, uma vez que permitiram anteciparmos, prevenirmos, corrigirmos e superarmos a tentação da obra fechada. A Convenção designa-se como quadro porque lança um campo novo e é uma obra aberta que recusa, porém, o aleatório, visando reconhecer um elo que torne a humanidade e as humanidades fatores de emancipação e de justiça – distinguindo a “excelência autêntica das formas de parasitismo que hoje proliferam como cogumelos”, no dizer de George Steiner. Mas se falo de obra aberta, não esqueço a compreensão dos limites e a exigência permanente de uma aprendizagem que permita a troca de conhecimentos e a ligação entre exemplo e experiência… Sempre com os limites do horizonte presentes… Deparámo-nos, porém, com a desconfiança de alguns relativamente à ideia de comunidade, e daí a nossa preocupação de salvaguardar a definição do Património cultural como “conjunto de recursos herdados do passado que as pessoas identificam independentemente do regime de propriedade dos bens, como um reflexo e expressão dos seus valores, crenças, saberes e tradições em permanente evolução”. Nesta perspetiva, “inclui todos os aspetos do meio ambiente resultantes da interação entre as pessoas e os lugares através do tempo. Isto, enquanto “uma comunidade patrimonial é composta por pessoas que valorizam determinados aspetos do património cultural, que desejam, através de iniciativa pública, manter e transmitir a gerações futuras”. Partimos da singularidade e reconhecemos a liberdade como valor primeiro que nos leva à dignidade, ao bem comum, a fraternidade e à justiça.
CULTURA E PATRIMÓNIO
Estão na ordem do dia o património material e imaterial, a natureza, a paisagem, a tecnologia e o património digital, que apenas têm pleno sentido e fecunda virtualidade se se ligarem à criação contemporânea e se forem oportunidade de direitos e responsabilidades. O Ano Europeu do Património Cultural 2018 pôde pôr as escolas, as comunidades educativas em diálogo, sempre escolhendo o próximo e o mais distante, a nossa terra e a terra dos outros que nos contemplam. E agora, nesta tremenda pandemia, percebemos melhor o valor da cultura, que corresponde à compreensão do essencial, devendo preservar o cuidado do que é permanente. Quem há um ano pensaria chegarmos onde chegámos – com um choque entre o que julgávamos elementar e o que se tornou mais raro. E que podemos concluir? Que a liberdade exige que se revalorize a cultura e que aquilo que tem mais valor é exatamente essa arte que não tem preço, a começar na vida. A reconstrução económica obriga a que a cultura, como fator de tomada de consciência da liberdade, ponha a economia ao serviço das pessoas. O sentido de responsabilidade exige-nos que sejamos capazes de colocar um dique numa pandemia descontrolada. Isso obriga a verdade, vontade, resistência e recusa da facilidade. Temos de saber que o domínio de nós mesmos é a única maneira de recuperarmos a liberdade, protegendo-nos mutuamente – e esse é um desafio cultural. A maturidade significa sermos capazes de concentrar esforços e não de apostar na ilusão. Património cultural significa sermos nós, compreendendo os outros e fazendo da autonomia força e complementaridade. A cultura tornou-se mais importante como sinal de criatividade e apelo de justiça. E desejam uma ilustração nesta mágica Convenção de Faro do que falamos, quando falamos de património cultural como realidade viva? Veja-se como o “Guia de Portugal” de boa memória fala das nossas chaminés algarvias, símbolos da nossa especificidade: “canudos, caixinhas perfuradas, espigueiros, coruchéus, minaretes, zimbórios, agulheiros, chapéus de bico, turbantes, numa exuberância decorativa que revela a persistência do gosto e da tradição mouriscas e a intenção deliberada de fazer diferente, caprichando cada qual na fantasia mais pródiga mais imaginosamente sugestiva”… Aqui se encontram singularidade, memória e criação.
Comemorou-se em Faro na última semana os 15 anos da Convenção-Quadro sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea celebrada no âmbito do Conselho da Europa, cuja génese recordamos.
DISCURSO HISTÓRICO
Ao falar na Universidade de Zurique, em setembro de 1946, Winston Churchill apelou para “uma espécie de Estados Unidos da Europa”. Do que se tratava não era de repetir a experiência histórica de além-Atlântico, mas de pensar as bases de um acordo estável de paz no velho continente, de modo a evitar a repetição das causas dramáticas que tinham conduzido aos conflitos europeus do século XX. É verdade que a Europa viveu muitos séculos mergulhada em conflitos internos, mas nenhum tinha tido expressão mundial, com as consequência tremendas em vítimas e destruição como aquele terminado em 1945. Sobretudo, havia que lembrar o que tinha sucedido depois do Tratado de Versalhes de 1919, em que a humilhação dos impérios vencidos tinha dado lugar a uma vingança, ainda mais sangrenta e destruidora do que o conflito provisoriamente terminado em 1918. Mas, segundo Churchill, havia que saber como começar. E a esta pergunta procurou responder, dizendo que tinha uma proposta que iria deixar perplexos os seus ouvintes. “A primeira etapa para a recriação da família europeia seria uma parceria entre a França e a Alemanha”. De facto, não poderia haver um ressurgimento da Europa sem uma França espiritualmente grande e uma Alemanha também espiritualmente significativa. E o apelo de Churchill para a reconciliação entre a França e a Alemanha Ocidental, como prelúdio de uma Europa unida, era feito sob a sombra de um “horrível agente de destruição”. E esse era a bomba atómica e o conflito nuclear. A ser utilizada pelas nações em guerra, a bomba não só poria fim a “tudo o que chamamos civilização”, como poderia ter um efeito destruidor de todo o globo e da humanidade. Daí a urgência em procurar acabar com um conflito ancestral entre as duas nações da Europa Ocidental. O processo teria de começar imediatamente, e corresponderia a uma nova organização de paz. Mas não seria suficiente apenas um processo de reconciliação na Europa. Esse trabalho difícil exigiria “amigos e patrocinadores”, a começar na Grã-Bretanha e na Comunidade Britânica, bem como nos poderosos Estados Unidos da América, acrescentando ainda, que se esperaria que a Rússia Soviética também devesse colaborar, para que tudo pudesse funcionar estavelmente. Churchill teve, alás, a preocupação de se referir à União Soviética não como um permanente adversário, mas como um parceiro potencial. O certo é que, apesar da surpresa, a ideia de Winston Churchill foi, no essencial, bem recebida, apesar de dúvidas e perplexidades. Em bom rigor, Churchill lançava para o tabuleiro diversas pistas, desde uma grande organização intergovernamental para cuidar dos direitos humanos e da cooperação económica até àquilo que veio a ser, por outro lado, uma organização supranacional de tipo novo, correspondendo à ideia de um Mercado Comum, mais do que uma mera união aduaneira, ao qual o Reino Unido aderiria apenas na década de 1960.
ANTECIPANDO A COOPERAÇÃO
Foi este discurso que antecipou a necessidade de um Conselho da Europa, mas pressupôs a criação de condições de equilíbrio de poderes no velho continente. Daí a defesa da participação da Alemanha Ocidental num projeto que permitisse ao centro da Europa defender-se das ambições da União Soviética e do bloco de leste. Se nos anos 1919 e 1920 a Sociedade das Nações (SDN) saíra de uma ideia de democratização, a verdade é que a solução encontrada não deu a resposta que se exigiria, originando o contrário do pretendido – a vitória dos totalitarismos. Com os seus oito pontos, a Carta do Atlântico de 1941 foi, com mais realismo, o complemento dos catorze pontos da declaração W. Wilson. Para estabelecer uma relação democrática duradoura importaria que em cada país o poder fosse exercido por força democráticas, com pluralismo e eleições livres, com alternância no poder – e as características do Estado de direito: primado da lei (rude of law); e a legitimidade da origem e do exercício. Se a solução da SDN tinha falhado, haveria que encontrar um quadro institucional estável que não só prevenisse os conflitos, mas também que definisse um quadro democrático, de nível interno e externo - a começar nas Nações Unidas (ONU), como um sistema de freios e contrapesos, a completar nas organizações de cooperação e de defesa da democracia e dos direitos fundamentais nos diversos Continentes. Como defendera Kant, no seu ensaio sobre a “Paz Perpétua”, haveria que tornar coerente a organização interna e a sua inserção internacional no sentido da salvaguarda da paz e do respeito mútuo entre os cidadãos.
O CONGRESSO DE HAIA DE 1948
Devido à iniciativa de diversos movimentos federalistas, o Congresso da Haia reuniu em maio de 1948 mil delegados representando dezanove Estados e alertou as opiniões públicas para a necessidade de haver um esforço comum europeu. A Mensagem aos Europeus adotada pelo Congresso é um manifesto vigoroso, no qual se fazem sugestões precisas: a criação do Tribunal Supremo encarregado de pôr em prática a Carta Europeia dos Direitos Humanos, uma Assembleia europeia de representantes das forças vivas das nações, assim como a criação um Centro Europeu da Cultura. O Conselho da Europa, cujo Estatuto foi assinado um ano mais tarde, criando-se o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e a Convenção com o mesmo objetivo, naturais corolários das recomendações do congresso Europeu da Haia. Assim, os fundadores do Conselho da Europa ensaiaram o esforço de dar vida a um ideal de cooperação europeia. Apesar de haver perspetivas mais avançadas e outras mais cautelosas, o Conselho da Europa surgiu como um verdadeiro percursor do ideal europeu – sendo a primeira organização a consagrar uma representação parlamentar ao lado da representação dos governos. Apesar de tudo, a regra da unanimidade limitou a influência do Conselho da Europa no velho continente. No entanto, se as perspetivas poderiam parecer favoráveis na Europa do fim da Guerra (1945), dois anos depois, os vencedores estavam desunidos, havendo dois blocos hostis em confronto, emergia um modo de guerra, diferente do habitual, designado como “guerra fria”, com dois blocos de superpotências (EUA e URSS). É o tempo do Plano Marshall, que visava assegurar a reconstrução das economias do continente europeu e que permitiu um reforço da coperação entre os países do velho continente. Daí o Tratado de Washington de 16 de abril de 1948 e a constituição da Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE), hoje OCDE, Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico, já com um âmbito não exclusivamente europeu. O ressurgimento da Europa vai, pois, corresponder à assistência externa na reconstrução, mas também a um movimento de unificação completamente novo na história do continente. No plano militar, o Tratado de Bruxelas (17 de março de 1948) e o Pacto do Atlântico (4 de agosto de 1949) completaram a cooperação no velho continente, numa perspetuiva integrada. Se a ideia é antiga, vinda sobretudo da reflexão utópica do Duque de Sully, Abade de Saint-Pierre, de Condorcet, Saint-Simon ou Coudenhove Kalergi e de outros precursores, como Aristide Briand, foi sobretudo o efeito da guerra que obrigou a gestos concretos de sobrevivência, centrados na igualdade entre Estados, na cooperação reforçada, envolvendo vias complementares – a intergovernamental, no Conselho da Europa e supranacional nas Comunidades Europeias e hoje na União Europeia.