Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Luís Sepúlveda (1948-2020) deixou-nos inesperadamente há um ano. Era um amigo de Portugal e a sua obra mantém-se atual, plena de humor e de sentido quase profético, como na “História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar” (Porto Editora, 2008).
UMA MEMÓRIA VIVA
Ainda a pandemia do Covid-19 dava os seus primeiros passos e, regresssado das “Correntes d’Escritas”, Luís Sepúlveda foi das primeiras vítimas desta terrível peste que assolou o mundo e da qual ainda não nos libertámos. Com uma obra plena de vitalidade, aprendemos com o escritor multifacetado a importância da memória – memória de acontecimentos, memória de pessoas, que transmitia intensamente. Mas a sua personalidade irrequieta fazia questão de lembrar a tragédia ocorrida no Chile em setembro de 1973. Enquanto pensávamos que esse país parecia ser a exceção numa longa lista de pronunciamentos militares em que a América do Sul era pródiga – eis que o Chile se tornou, com a queda de Allende, mais uma triste confirmação de que a liberdade e a democracia nunca estão adquiridas. E Luís Sepúlveda era o exemplo de alguém que representava o entusiasmo dessa juventude chilena que acreditou na vitalidade inovadora de uma democracia social audaciosa. O certo é que nesse ano de 73 muitos sentimo-nos derrotados com a vitória de Pinochet. E nos olhos de Luís Sepúlveda percebíamos a expressão de uma esperança então derrotada, mas o ânimo de quem acreditava generosamente na força da liberdade, do pluralismo e da capacidade de fazer renascer a democracia no Chile, depois de lições dramáticas que foram sendo aprendidas.
UMA VIDA CHEIA
Nascido em 1948, teve uma vida cheia – como jornalista, militante político, romancista, realizador de cinema e argumentista. Logo em 1970 venceu o Prémio Casa das Américas pelo seu primeiro livro, “Crónicas de Pedro Nadie”, e uma bolsa de estudo na Universidade Lomonosov de Moscovo, onde apenas ficaria cinco meses. Foi membro ativo da Unidade Popular chilena nos anos 70, mas partiu para o exílio com a chegada da ditadura militar. Viajou pelo Brasil, Uruguai, Bolívia, Paraguai e Peru. Viveu no Equador entre os índios Shuar, numa missão de estudo da UNESCO. É essa experiência que inspirará o seu romance “Um Velho que Lia Romances de Amor” (1989) – um verdadeiro hino de amor à floresta amazónica, que se tornou uma das obras-primas da literatura latino-americana, em que o humor se liga ao tratamento muito sério de um tema candente. Em 1979 alistou-se nas fileiras sandinistas, na Brigada Internacional Simon Bolívar, e depois da vitória da revolução, trabalhou como repórter. Em 1982 partiu para Hamburgo, atraído pela literatura alemã, militando no movimento ecologista, percorrendo os mares do mundo com a Greenpeace, entre 1983 e 1988. Em 1997, instalou-se em Gijón, em Espanha, na companhia da mulher, a poetisa Carmen Yáñez, tendo fundado e dirigido o Salão do Livro Ibero-americano, destinado a promover o encontro de escritores, editores e livreiros latino-americanos e europeus. Cultor da amizade, o escritor disse em “Jantar com Poetas Mortos”: “os amigos não morrem, simplesmente morrem-nos, uma força atroz mutila-nos da sua companhia e continuamos a viver com esses vazios entre ossos”. A força de memória está ainda na expressão de uma personagem desse livro – “enquanto falarmos deles e contarmos as suas histórias, os nossos mortos nunca morrem”. O método do escritor era o da deambulação e a partir dela contava histórias ouvidas a pessoas que foi conhecendo. O ofício de escritor era, assim, captar pequenos detalhes da existência, para que os afetos permanecessem. E considerava-se um cidadão-fronteira, entendendo essa linha não como um lugar de separação, mas como um modo de unir, um ponto de contacto, de diálogo e de novos conhecimentos. No fundo, entendia que assim poderia compreender melhor a natureza, na militância ativa dos últimos anos da sua vida na causa ecológica e na defesa da natureza. A “História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar” (2008) é ilustração viva dessa militância ecológica. Zorbas é um gato grande, preto e gordo, a quem uma gaivota moribunda apanhada por uma maré negra de petróleo deixa dois compromissos: guardar o ovo que acabara de pôr e criar uma pequena gaivota, bem como ensiná-la a voar. Tudo com a ajuda dos seus amigos Secretário, Sabe-tudo, Barlavento e Colonello, numa tarefa dificílima para um bando de gatos habituados à vida dura do porto de Hamburgo… E aqui se sentem as forças da liberdade e da generosidade – num combate de todos em defesa da natureza para que outras gaivotas não fossem mais vítimas de desastres semelhantes.
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO
Amigo de Portugal, Luís Sepúlveda recebeu em 2016 o Prémio Eduardo Lourenço – pela intervenção relevante no âmbito da cooperação e da cultura ibérica – e sentiu-se especialmente orgulhoso com essa distinção. Em “A Lâmpada de Aladino” (2008), um conjunto de contos marcados pela imaginação e pela procura de personagens inesquecíveis, deu-nos o retrato de Valdemar do Alentejo, um português impagável: “um personagem absolutamente real (diz o escritor). E convém explicar que se trata de um verdadeiro pirata. Não confundir com corsários, flibusteiros ou bucaneiros. Os verdadeiros piratas que eram homens livres no mar, foram muito poucos. Na verdade, só houve piratas em três lugares, No mar do Norte, por onde andou um pirata chamado Klaus Störtebeker, que assaltava navios da Liga Hanseática e distribuía o saque pelos pobres à laia de Robin Hood, nas costas africanas, sob forma de uma república pirata berbere, com um código de conduta ético rigorosíssimo, e depois no Estreito de Magalhães, onde existiram duas confrarias de piratas. Uma dirigida por dois holandeses, desertores da marinha dos Países Baixos, o Van der Meer. E outra que tinha como capitão o Alentejano. Apesar de distantes no espaço e no tempo todos tinham, a mesma bandeira vermelha e negra, como a dos anarquistas. Uma curiosa coincidência. Isto, e uma ideia elementar de justiça – devolver aos mais fracos o que lhe tinha sido tirado pelos mais fortes… Entusiasmado com essa ideia, Luís Sepúlveda preparava um novo romance baseado nas memórias e nos mitos cultivados em torno da sua recordação. Alguém que existiu realmente e que talvez tenha sido executado nas Ilhas Molucas, paraíso das especiarias. Luís Sepúlveda era uma presença assídua entre nós, tendo participado em quase todas as 21 edições do Festival Correntes d’Escritas, na Póvoa do Varzim, a última das quais entre 18 e 23 de fevereiro de 2020. A sua lembrança está, pois, bem presente entre nós. Ao lermos os seus livros, plenos de humor e de uma séria ponderação das questões fundamentais que nos assaltam, é como se ele estivesse sempre a regressar, com a sua generosa força da liberdade…
Este ano, as “Correntes d’Escritas”, na Póvoa de Varzim, partiram de versos e frases de Sophia de Mello Breyner, nomeadamente, para três conversas, esta: “a cultura é cara. A incultura acaba por sair mais cara. E a demagogia custa sempre caríssimo”.
O VALOR INCOMENSURÁVEL DA CULTURA O tema deu pano para mangas, e permitiu glosas diversas para o mesmo mote. Naturalmente, que havia que lembrar a primeira lição de economia, que muita gente esquece. De facto, o que tem mais valor é o que não tem preço. Isto significa que se queremos compreender as relações humanas e sociais, somos obrigados a entender a dificuldade das escolhas que somos obrigados a fazer. O mercantilismo cego tem levado a cairmos nas armadilhas do imediatismo e do curto prazo. Por isso, Sophia dizia, como se estivesse a ver o que a cada passo nos circunda, que a demagogia custa sempre caríssimo. Se é verdade que nem tudo o que reluz é ouro, o certo é que a corrida atrás do que é fácil e imediato só leva a exacerbar egoísmos e consumismos, numa corrida desenfreada para a destruição do que melhor recebemos por parte das gerações que nos antecederam. E regresso ao velho tema da exigência de não deixar ao abandono o património cultural em todas as suas vertentes.
DO QUE FALAMOS? De que cultura falamos? Da arte, onde tudo começa, já que a educação da criança se inicia pelos sentidos e pela admiração, curiosidade e espanto por tudo o que é belo, seguindo a maravilha dos números, que nos permitem unir e distinguir, e continuando na magia das letras e das palavras. Voltando à poeta de “Mar Novo”: “A Arte deve ser livre, porque o ato de criação é em si um ato de liberdade. Mas não é só a liberdade individual do artista que importa. Sabemos que quando a Arte não é livre, o povo também não é livre. Há sempre uma profunda e estrutural unidade da liberdade. Onde o artista começa a não ser livre o povo começa a ser colonizado e a justiça torna-se parcial, unidimensional e abstrata. Se o ataque à liberdade me preocupa tanto é porque a falta de liberdade cultural é um sintoma que significa sempre opressão de um povo inteiro”. Eis o que está em causa. A liberdade corresponde a uma dimensão pessoal e comunitária. Lembro-me bem de Sophia a invocar estas duas palavras, do mesmo modo que Francisco de Sousa Tavares demarcando-se dos entendimentos totalitários que partiam da lógica transpersonalista. Em tantos debates no Centro Nacional de Cultura essa questão tornou-se pedra de toque. Liberdade e diferença, igualdade e responsabilidade – eis o que obrigava a partirmos para uma democracia de pessoas, como nos ensinaram na sala histórica da António Maria Cardoso: Gabriel Marcel, José Bergamín, Schillebeeckx, Padre Manuel Antunes, Maria de Lourdes Belchior, Almada Negreiros, Fernando Amado, Gonçalo Ribeiro Telles… Todos por lá passaram, militantemente. E a liberdade era defendida na encruzilhada da raiz e da utopia – ou como queria Bergamin, na capa da sua revista “Cruz y Raya” como mais e menos. Só poderemos ser livres, se a justiça não for parcial, unidimensional e abstrata. Daí esses dois sinais gráficos da adição e da subtração. Que é a cultura senão essa capacidade de distinguir o que acrescenta e o que diminui. A vida é isso mesmo. E a criação cultural corresponde à aproximação das pessoas concretas – numa relação que tem de ser estabelecida olhos nos olhos… Os criadores são pessoas de carne e osso que partilham a sua capacidade de fazer da arte um valor para todos. Como ainda dizia Sophia: “Existe uma arte para todos à qual o povo deve ter acesso porque esse acesso lhe deve ser possibilitado através dos meios de comunicação social”. Os aedos cantaram nos palácios, os rapsodos nas praças públicas, e com Homero, a arte foi posta em comum – e por isso os gregos inventaram a democracia. E que é a Arte? Um dom pelo qual acrescentamos valor ao que a natureza nos faculta. Como diz Eduardo Lourenço, “o sentido real da cultura é a produção de coisas valiosas e de valores”. Quando pomos em diálogo os poetas, os escritores, os pintores, os escultores, os músicos, os artesãos, os atores, os dramaturgos, os cientistas – é o mundo e a natureza que pomos a falar.
A QUE PREÇO? A cultura é cara? Sim, porque corresponde ao que tem mais valor. Àquilo que não cabe nos cânones do mercado. E falamos de uma noção ampla e rica, a cultura que não pode ser deixada ao abandono. Não é mercadoria, do mesmo modo que a educação e a ciência o não são. Por isso, estamos perante um investimento reprodutivo, transversal e abrangente. Os públicos da cultura formam-se nas escolas. A criatividade do artista e do cientista, do músico ou do artesão têm raízes comuns. Falamos das identidades como realidades dinâmicas, diversas e abertas. Falamos de fundamentos e raízes que temos de enriquecer permanentemente. Falamos de pessoas, de hábitos e costumes, de pedras vivas, mas também de monumentos, de vestígios arqueológicos, de pedras mortas, que têm significado para o nosso ser. E falamos do património genético e do digital, do genoma e da inteligência artificial, bem como da natureza e da paisagem, e igualmente da capacidade criadora de hoje e de sempre. É este o sentido comunitário que foi bandeira cívica de Sophia e de Gonçalo Ribeiro Telles, num combate sem tréguas contra a ilusão e a indiferença. Que são Humanidades? Nunca domínios fechados, mas diálogo vivo de saberes. Lembramo-nos do trivium e do quadrivium medievais. Lá está tudo o que importa, e sobretudo os horizontes abertos: a Gramática, a Lógica e a Retórica, e ainda a Aritmética, a Geometria, a Astronomia e a Música. E como não lembrar a fantástica figura de Leibniz? Não há melhor cultor das Humanidades. Foi filósofo, matemático, escritor, historiador, cientista, figura máxima de todas as artes liberais. Eis por que razão ao falar de cultura, não falamos de uma tribo fechada sobre si. Falamos de educação, de ciência, de comunicação, de artes. E ao falar de educação, referimos o fator essencial de desenvolvimento humano - que é a aprendizagem. Luísa Dacosta insistia na ideia de que a educação é sempre uma troca, desde tenra idade… E esta leva-nos ao exemplo e à experiência. Cultivar a pergunta e a capacidade de ver o que nos rodeia e saber responder – eis o essencial. O espírito científico significa cultivar a atenção, e saber ligar os saberes; ter a humildade suficiente para reconhecer que o valor do conhecimento obriga a saber acrescentar. E só compreendemos se soubermos comunicar, distinguindo o trigo do joio. Tornar a informação conhecimento e o conhecimento sabedoria. E assim temos de nos prevenir contra o erro, a manipulação e as notícias falsas, já que o sentido crítico, sendo indispensável, corresponde a entender os limites. A cultura como dom leva-nos a perceber que só vamos mais além se vencermos passo a passo. E a incultura representa um enorme desperdício.
Guilherme d'Oliveira Martins
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