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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CORSINO FORTES

  


Se estivesse entre nós, Corsino Fortes teria completado, no dia 14 de fevereiro, noventa anos. Graças à iniciativa de Filinto Elísio, poeta e editor, cultor da língua portuguesa, de Márcia Souto e Ana Paula Godinho (filha do poeta), familiares e amigos do autor de “Pão e Fonema” reunimo-nos no Grémio Literário, com a presença do Presidente da República José Maria Neves, em nome da morabeza, num convívio em que a memória de um saudoso amigo esteve sempre presente. E começámos, como não poderia deixar de ser, por ouvir a leitura dos poemas reunidos pela editora Rosa de Porcelana em “Sinos de Silêncio”. “Perfume d’nôs ilha / Perfume d’nôs vida / Sê pai é amor / Sê mãe é melodia / Morabeza é farol / De nossa Senhora da Luz / Que Deus plantá Kab Verd / Na alma de coraçon”. E o poeta ali regressou e, por momentos, fechando os olhos, pudemos reencontrá-lo na sua inconfundível veste branca, com a aura fraterna, que tanto admirámos. Conheci-o na cidade da Praia e nunca mais deixámos de nos falar, até aos seus últimos dias, ouvindo na sua voz pausada e quente numa militância cívica inesgotável. O homem de cultura não esqueceu o dever de memória. E a sua originalidade ia ao ponto de ligar a necessidade de viver a identidade cabo-verdiana dinâmica, aberta e corajosa. E falámos de S. Vicente e do Mindelo, de Baltasar Lopes e da “Claridade”, bem como da importância dos crioulos. Foi das pessoas mais lúcidas que conheci no tema da diversidade das culturas da língua portuguesa. O plural é o sentido da alma. O seu percurso de vida foi extraordinário, desde as provações de juventude à formação jurídica, à resistência, às funções de professor, de exemplar magistrado e de exímio diplomata e governante. Foi o primeiro Embaixador de Cabo Verde em Portugal. Mas nunca deixou a sua banca de poeta, escritor, ensaísta, tendo colaborado nas revistas “Claridade”, “Cabo Verde” e “Raízes e África”, tendo sido o primeiro presidente da Academia Cabo-Verdiana de Letras.


Protagonista da libertação e da independência, pôde assumir, com uma irrepreensível coerência, a defesa da cultura popular, a afirmação emancipadora da identidade da jovem nação, o culto da poesia oral das mornas e das coladeiras e a relação com o fado português, a modinha brasileira, o tango argentino e o lamento angolano. Quando lemos “Pão e Fonema” (1974), “Árvore & Tambor” (1986), “Pedras de Sol & Substância” (2001) ou a reunião poética de “A Cabeça Calva de Deus” (2001), sentimos a vivência de um património exultante, onde a liberdade e a vontade se juntam à tomada de consciência dos sinais da opressão. E Corsino pega no tema de “Pasárgada” de Manuel Bandeira, (“Vou-me embora pra Pasárgada”) como um sonho interno do paraíso e um suplemento de alma, da tradição “claridosa”, abrindo caminho alternativo à partida de “Chiquinho” de Baltasar Lopes, obra-prima e referência nacional. Como resistente, pensa no retorno e na independência. E em “Pão e Fonema” é a tónica do povo que encontramos, do chão e da fome, como grito e denúncia. E o fonema é símbolo da fala, inequívoca marca de uma vontade indómita contra a seca e a provação.


Corsino Fortes foi um poeta empenhado na cultura dos crioulos e na consciência dos castigos da seca, da fome e da pobreza. A nossa última conversa foi sobre a necessidade de uma cultura inclusiva do crioulo, num arquipélago de diferenças. Urge a celebração da identidade insular e a exaltação serena dos valores da pátria, com especial relevância para a memória coletiva. O pão simboliza a esperança do cabo-verdiano no saciar da fome. “A vogal adentra / O coração do ditongo / Faminta de amor”. E o significado da metáfora remete para a ideia de que o pão vai além do signo, pois simboliza fonema, mar, matrimónio, património e a própria palavra constitui-se em imagem revivida pelo leitor, porque, segundo Octávio Paz, “o poema é uma obra sempre inacabada, sempre disposta a ser completada e vivida por um leitor novo”.


GOM

CORSINO FORTES (1933-2015)

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Foto de Noé Sendas, Cidade da Praia, 2004

 

Corsino Fortes, poeta maior da cultura cabo-verdiana e da língua portuguesa, cidadão exemplar, democrata de sempre, Embaixador, antigo governante, era um amigo de há muito do Centro Nacional de Cultura, sendo um dos elos fortes de uma relação riquíssima ao lado de Germano de Almeida, Vera Duarte ou de Fátima Bettencourt. Todos nos lembramos do memorável encontro que tivemos na cidade da Praia, no âmbito do ciclo «Os Portugueses ao Encontro da Sua História» em que Corsino Fortes representou a Associação de Escritores Cabo-verdianos. Colaborador da revista «Claridade», presente na antologia «Modernos Poetas Cabo-verdianos», é autor de «Pão e Fonemas», «Árvore e Tambor», «Pedras de Sol e Substância», «A Cabeça Calva de Deus», obras fundamentais para a compreensão da saga do povo de Cabo Verde. Foi o primeiro Embaixador de Cabo Verde em Portugal (1975-1981) e aqui reforçou amizades e ligações afetivas muito fortes e inesquecíveis. Estamos a ouvir a sua voz suave, a sua camisa imaculadamente branca, como lembra o nosso querido Germano de Almeida. Era o mais generoso homem que poderíamos conhecer. Quando eu chegava à Praia arranjava sempre um tempo para falarmos… A sua poesia é feita de memória e de ponderação certa de cada palavra. No fim da vida, apaixonou-se pela poesia japonesa e pelo uso parcimonioso das palavras. E o seu último livro, saído poucos dias antes da partida, deve ser lido com respeito religioso: «Sinos de Silêncio: Canções e Haicais». Querido Corsino Fortes – um grande abraço, não te esquecemos!


Guilherme d’Oliveira Martins