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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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   De 18 a 24 de abril de 2022

 

“Vírus” de André Ruivo (2022) com prefácio de João Pinharanda, é uma leitura ou aventura gráfica dos tempos a que fomos condenados por esta nova peste designada como COVID-19, ou mais simplesmente como Corona-Vírus.

 

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UMA TRADIÇÃO NACIONAL

Comecemos pelo princípio. O livro de hoje é uma crónica gráfica. «A tradição nacional desta linha de fino humor é forte – vem de Bordalo a Carlos Botelho, de Sam a Luís Afonso, por exemplo. No caso de André Ruivo (como no de Bordalo) o leve desvio / deslocação do ponto de vista que provoca a situação humorística não é apenas detetável no discurso escrito mas é também visualmente acentuado pelas perspetivas urbanas, as vistas de janela, as distorções anatómicas». Quem o diz é João Pinharanda, compreendendo que, mais de dois anos depois do início da pandemia, e quando a espada de Dâmocles continua sobre a nossa cabeça, é necessário iniciarmos a tarefa de tirar conclusões sobre um estranho tempo em que nos vimos envolvidos e que, por certo, voltará a repetir-se. Estamos longe de estar libertos de confinamentos, quarentenas, distâncias, máscaras etc. No fundo, fomos nós que desarranjámos a máquina do mundo. A capa do livro é bastante clara, ao pôr-nos perante um rosto velado que esconde o seu sorriso, ou será riso ou será agastamento e raiva? É estranho que não venhamos apresentar o essencial deste livro com episódios caricatos sem o desenho inicial de uma boca a sorrir-se. Afinal, quando lemos o velho “Album das Glórias”, lá encontrámos Rialto, Ribaixo, Ripouco… Aqui, nem muito nem pouco, nem assim-assim, apenas um boneco enigmático, sem sombra de riso, tapado por uma máscara. Tão só um olhar espantado, e tudo o mais nos vai intrigar, quando começamos a folhear o livro.

 

O QUE AINDA FALTA

«Falta talvez um desenho nesta série. E poderia ser mais um auto-retrato, onde se visse o autor injetando grandes doses de humor através das finas agulhas dos seus desenhos. Na realidade cada desenho deste livro é uma dessas doses. A toma não é intravenosa mas ocular. As doses administradas pelo artista parecem homeopáticas, tal é a leveza de cada cartoon, mas cada um deles é um poderoso projétil lançado pelo farmacêutico Ruivo, que é cientista sem diploma, e que não usa as pessoas como cobaias mas como amostras do tecido social, como casos de estudo». É ainda João Pinharanda, o crítico contaminado (pelo vírus ou pelo humor?), quem insiste na caracterização deste contributo vacinal, uma vez que ao vermo-nos tantas vezes ao espelho nesta reunião de comentários ilustrados percebemos que o nosso lado picaresco é dos mais importantes que devemos cultivar. Carlos Botelho dava os seus “Ecos da Semana” com leituras quotidianas desenhadas de estórias que todos os dias a cidade protagoniza. Leitão de Barros fazia, assim, os seus “Corvos”. E em cada apontamento, em cada desenho, encontramos oportunidade para muitas lembranças e para uma dose apreciável de paciência e de sentido de ridículo, que tantas vezes esquecemos, por nos levarmos demasiado a sério. Démos vários exemplos, clássicos e para levar muito a sério, mas o mais importante é compreendermos que o quotidiano dá-nos mil oportunidades para fazermos da realidade uma verdadeira oportunidade para nos desmancharmos a rir. Poderíamos ainda lembrar Stuart de Carvalhais, Almada Negreiros, Emmérico Nunes, Francisco Valença, António Antunes, João Fazenda… Mas atenhamo-nos a este livro e aos seus episódios. Nós, os leitores, somos contaminados gostosamente com este vírus, que André Ruivo nos transmite, por transmissão ou como vacina com várias doses de reforço. E, ao mesmo tempo, não só contraímos este vírus, certamente benigno, mas também ganhamos o saudável sentido de nos sentirmos desprotegidos e ridículos, cientes de que este humor funciona como verdadeiro anti-corpo, homenagem ao Dr. Jenner e à sua fantástica capacidade de compreender como uma pobre vaca (com as mulheres que a ordenhavam) se tornou salvadora de muitas vidas pela inoculação vacinal do vírus. Também André Ruivo desejou. A janela permitia fazer amigos. E dentro de casa, todos fomos percebendo, que não foi apenas a família que foi confinada, mas também uma grande Arca de Noé de pequenos bichos, como baratas e percevejos, pulgas e tudo o imaginável, que povoam os cantos das nossas casas e de que tardiamente nos apercemos. Eis um dos efeitos do confinamento. Liberdade para respirar o ar da cidade, para transportar os alimentos, para sair a passear o animal de companhia, percebendo que nós é que somos a sua companhia, e que a bicharada torna-se pretexto para podermos pôr um pé na rua. O nariz de fora merece especial atenção, pois de nada serve. É como trazer a máscara na barba. É um adereço inútil. E os milhares de especialistas merecem atenção, não pelo que nada dizem, mas por terem aparecido como gafanhotos com estantes psicadélicas nas suas costas. Alguém pergunta policialmente: “E o senhor que faz na rua?” – Eu? Deve ser confusão… - Hoje fui à Rua! Foi cá uma emoção! – “Não se fechem demasiado”. “Que dia é hoje?” – Estou completamente perdido. “E o que é abraçarmo-nos a nós próprios?” – Mas quem mete medo ao vírus? E o Doutor pergunta: Onde lhe dói? – “Nas orelhas Senhor Doutor”. E que máscara usa? A do Carnaval ou a do vírus? Mas o Carnaval já passou há muito. Os diálogos sucedem-se, cada um mais estranho do que outro… E as estatísticas falsas e as datas verdadeiras misturam-se como dados imaginários. Qual a diferença entre teletrabalho e televida? Ou será vice-versa? André Ruivo explica exaustivamente.

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

JUÍZO DO ANO…


N
o começo do ano, na velha tradição do Borda d’Água faz-se o juízo do ano.


I.
Começo pela tremenda Pandemia Covid-19. Sinto que há condições esperançosas para 2021. A existência de vacina não resolve ainda o problema, mas permite aumentar as condições de imunidade. Portanto, olhando a bola de cristal, vejo que a segunda metade do ano vai permitir termos condições favoráveis para o mundo recomeçar a girar sem grandes solavancos. No entanto, há sete questões fundamentais, a não esquecer: (i) Não devemos baixar a guarda – a prevenção continua a ser a grande solução ao nosso alcance; (ii) a máscara é antipática, mas tem de ser usada devidamente – sem o nariz de fora e sem ficar pela barbela; (iii) A lavagem das mãos é essencial, e deve ser repetida amiúde; (iv) a distância social tem de se fazer;  (v) o arejamento dos lugares onde estamos é preciso; (vi) nunca devemos facilitar, temos de estar sempre de pé atrás; (vii) procurar usar os meios que nos permitam comunicar uns com os outros… As condições são cumulativas, umas não devem esquecer as outras. E mesmo depois da vacinação, vamos ter de manter durante um período largo estas cautelas, uma vez que o vírus vai sofrer mutações e ainda vamos ter um tempo largo de jogos do gato e do rato ou da cabra-cega… E não esqueço o bom exemplo de 
Ignaz Semmelweis (1818-1865), o médico húngaro do século XIX, que percebeu como combater uma misteriosa febre pós-parto que estava a matar muitas mulheres numa enfermaria. A culpa era dos seus colegas que não lavavam as mãos. Foi, porém, incompreendido e acabou ostracizado num manicómio. Só depois de morto viu a sua posição reconhecida, quando Louis Pasteur formulou a demonstração científica sobre o efeito das bactérias na génese das doenças.
Hoje, não há qualquer dúvida. O que importa é entender que as formas preventivas são aliadas da saúde.


II.
Quem me conhece, sabe a minha tristeza por causa do Brexit. De facto, as dificuldades finais nesta negociação indesejável deveram-se à circunstância de haver britânicos que continuam a achar que o Império da Rainha Vitória ainda existe. Há muito que caiu e quando se negoceiam as pescas, por exemplo, não há outro remédio se não aceitar a globalização e a interdependência. Basta ler a Carta das Nações Unidas para o entender. Ninguém pode reivindicar a exclusividade da propriedade numa parcela do mar ou do globo terrestre. Leiam-se as opiniões sensatas e veja-se como não é possível esquecer que o grande mercado comercial do Reino Unido ainda é a Europa, que os mercados financeiros e os respetivos serviços não irão manter-se fieis a Londres, se as condições concorrenciais se degradarem, ou que os Estados Unidos não desejam ser uma colónia britânica… Agora, resta-nos esperar para ver as consequências efetivas de uma decisão tão absurda e imponderada… Continuarei anglófilo. Mas nada posso fazer. E espero que Mr. John Bull não se deixe dominar pela tentação da cegueira. Não sei francamente que se passará. Mas a incerteza será a regra, sobretudo se olharmos para a evolução da pandemia a somar à pressão interna das opiniões públicas, quando estas perceberem que o mundo de hoje é muito diferente do que existia no fim da Segunda Guerra… Releiam-se as palavras de Churchill em Zurique e perceba-se como o conceito de soberania partilhada é condição de paz e de sustentabilidade geoestratégica… Para já, quando tiver de fazer a revisão meu MG, vai ser uma carga de trabalhos… A ver vamos…   


III. Uma última e boa notícia… Está marcado para 21 de outubro o lançamento mundial do próximo álbum das aventuras de Astérix. Nesse dia, serão postos à venda cinco milhões de livros da nova aventura, com publicação simultânea em Portugal e em vários países. Em ano de novo álbum, os autores Didier Conrad e Jean-Yves Ferri, os sucessores de Goscinny e Uderzo, revelam algumas pistas. Há uma protagonista feminina que vai complicar as vidas de Astérix e de Obélix, e que estará à guarda de centuriões romanos. Daí o pedido de "três voluntários para guardar a prisioneira" - que deve ser bastante simpática, pois toda a guarnição levanta a mão e se voluntaria. Há uma prancha inédita é muito mais explícita. Como diz Jean-Yves Ferri, estão lá várias pistas e afirma: "Antes de começar a trabalhar neste álbum, tinha pensado fazer viajar os nossos eternos irredutíveis até esta região que..." Não diz mais nada, afinal é tradição que as 48 páginas do álbum só sejam conhecidas exatamente no dia de lançamento. Aliás é normal haver uma alternância entre as aventuras passadas na aldeia e fora dela. Quanto ao desenhador Didier Conrad, que vive nos Estados Unidos, este acrescentou um desafio: " Ora reparem bem nos pormenores. Observem o desenho à esquerda e pensem um bocadinho!" Mas há várias informações nesta prancha que podem ajudar. A de que o druida Panoramix precisa de deixar a aldeia gaulesa e se ausentar. Ele acorda de um sonho e grita. Explica que "um velho amigo meu está a pedir a minha ajuda! Está a tentar contactar-me!. Deve ser grave. Ele não é do género de me importunar sem razão!" Se Obélix acha que Panoramix apenas está a inventar uma desculpa para não continuar o jogo, Astérix fica em dúvida sobre a importância do apelo do amigo. No entanto o druida garante que terão de viajar. Não sem antes preparar a poção mágica para se protegerem, e aí sim: "Partimos o quanto antes!" E a última pista é "a viagem é muito longa!"Este é o 39.º álbum das aventuras de Astérix, o quinto com assinatura desta dupla após Astérix entre os Pictos, em 2013, O Papiro de César em 2015, Astérix e a Transitálica em 2017 e A Filha de Vercingétorix em 2019. O novo álbum já está na fase final de conceção e, 60 anos após o aparecimento desta série de banda desenhada, regressa com um novo título depois de ter batido vários recordes no mundo editorial: 385 milhões de álbuns vendidos em 111 línguas e dialetos - em Portugal sai também em língua mirandesa. Temos assim um aliciante para o Novo Ano…

 

Agostinho de Morais

ENTRE O ANO VELHO E O ANO NOVO

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A passagem de ano é sempre, mesmo nesta nossa presente circunstância triste e confinada, um tempo especial: balanço do ano que passou, perspectivação do ano novo que chega.

1. Agora, percebemos melhor que é preciso programar, mas há também o imprevisível. Quem poderia prever há um ano que iria cair sobre nós, nós todos, globalmente, esta catástrofe de uma pandemia: um vírus invisível, com sofrimentos indizíveis por todo o lado, que nos traz a todos em sobressalto permanente? Tivemos de aprender por experiência dura o que não conhecíamos: palavras como covid-19, confinamento, desconfinamento, reconfinamento, “distância social”, máscaras (sabíamos, mas era tudo em abstracto)... Sobretudo: que muitos, no fim do ano de 2020, já cá não estão, e foram-se sem uma despedida, como se tivessem desaparecido numa noite de breu, no meio de uma tempestade...

Ficámos a saber - será que ficámos? -, nós que nos julgávamos omnipotentes, que afinal somos frágeis, terrivelmente frágeis. E oxalá tenhamos aprendido que somos todos interdependentes, para o melhor e para o pior. E esta desgraça pandémica também nos mostrou à saciedade que o ser humano é de uma inaudita complexidade e de terríveis contradições: somos capazes de generosidade heróica para salvar pessoas, mas também está aí a nossa loucura e brutalidade: apesar da pandemia, que esperaria uma trégua no meio do horror, guerras brutais, terrorismos hediondos, assassinatos arrepiantes, violações repugnantes, exploração clamorosa dos mais fracos... continuaram. Já Sófocles constatou: “Coisas terríveis há, mas nenhuma mais terrível que o Homem.”

Daqui a alguns anos, quando se voltar ao “normal” - o que é isso? -, o que se dirá desta desgraça? O que ficará na memória? A memória humana é curta e talvez só quando vier outra pandemia - ela virá com certeza, sobretudo se não houver a necessária conversão quanto ao modelo de desenvolvimento, que atenda ao meio ambiente e à justiça para toda a Humanidade, no quadro de uma racionalidade dialógica global, como propugna J. Habermas - é que aqueles que cá estiverem recordarão... Quem se lembrava de que, no século XIV, a peste negra fez 100 milhões de mortos e que há cem anos a gripe espanhola ceifou uns 50 milhões de vidas, incluindo os dois pastorinhos de Fátima, Francisco e Jacinta?

2. Perante um ano novo que está aí à nossa frente, os sentimentos misturam-se: perplexidade, entusiasmo, dúvida, expectativa, temor, temores, esperança. Que é que nos reserva 2021? Para mim, para a minha família, para os meus amigos, para o país, para a Europa, para o mundo? Será melhor, será pior que o ano que passou?

Ele está aí novo, pela primeira vez, como criança acabada de nascer. E exactamente como a criança está aí com confiança. Todos nós, individual e colectivamente, enfrentamos o novo ano essencialmente com confiança: se reflectirmos bem, esperamos, evidentemente com realismo, também com algum ou muito temor, mas essencialmente esperamos confiadamente, tanto mais quanto está aí a vacina. O ser humano é um ser constitutivamente esperante, apesar da dureza toda com que a vida nos vai confrontando.

Porque é que os homens e as mulheres, apesar de todos os fracassos, horrores, sofrimentos e cinismos, ainda não desistimos de lutar e esperar? Porque é que continuamos a ter filhos? Porque é que depois de guerras destruidoras e pestes e terramotos devoradores, recomeçamos sempre de novo? Perguntava, com razão, o célebre teólogo Johann Baptist Metz: “Porque é que recomeçamos sempre de novo, apesar de todas as lembranças que temos do fracasso e das seduções enganadoras das nossas esperanças? Porque é que sonhamos sempre de novo com uma felicidade futura da liberdade”, embora saibamos que os mortos não participarão nela? Porque é que não renunciamos à luta pelo Homem novo? Porque é que o Homem se levanta sempre de novo, “numa rebelião impotente”, contra o sofrimento que não pode ser sanado? “Porque é que o Homem institui sempre de novo novas medidas para a justiça universal, apesar de saber que a morte as desautoriza outra vez” e que na geração seguinte de novo a maioria não participará nelas? Donde é que vem ao Homem “o seu poder de resistência contra a apatia e o desespero? Porque é que o Homem se recusa a pactuar com o absurdo, presente na experiência de todo o sofrimento não reparado? Donde é que vem a força da revolta, da rebelião?”

Neste movimento incontível. ilimitado, do combate da esperança, pode ver-se um aceno do Infinito, um sinal de Deus. Como se não cansou de repetir o ateu Ernst Bloch, um dos filósofos maiores do século XX: “Onde há esperança, há religião”.

3. Um propósito bom para o novo ano: prometer a si mesmo, a si mesma, no meio do turbilhão da vida, do barulho e da agitação, alguns momentos diários de meditação, de silêncio, para o aparentemente inútil, que é o mais necessário: ouvir o Silêncio, ouvir a voz da consciência e da razão, falar com o Mistério, talvez mudar de rumo. Neste contexto, permita-se-me evocar Maradona, a quem chamaram “deus”, um dos mais famosos a desaparecer em 2020: um ano antes, confessou que “não era exemplo para ninguém”, que tinha cometido “muitos erros”, mas também tinha feito “coisas boas”, que “o regresso à Igreja fora inspirado pela vida e a fé da sua mãe” - “uma das coisas que aprendeu dela foi a fé simples”, “tinha orgulho nela e no seu pai também” -, que “queria paz para o tempo de vida que Deus ainda lhe concedesse.”

Bom ano!

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 DEZ 2020

A VIDA DOS LIVROS

De 27 de julho a 2 de agosto de 2020

 

A Guerra e Paz publica de Bernard-Henry Lévy “Este Vírus que nos Enlouquece” (2020), que constitui uma oportuna reflexão sobre um tema atual e profundamente perturbador, que deve ser refletido, para além dos lugares comuns.


QUE CONFINAMENTO?
Muito se tem dito sobre o “confinamento” e sobre as medidas excecionais de preservação da saúde pública perante a estranha pandemia que nos assalta. Hoje sabemos, que além das mortes ditadas pelo vírus, houve muitos outros efeitos que sacrificaram vidas humanas, como a solidão, a violência doméstica, o isolamento e o medo – e, infelizmente ainda iremos ter no futuro mais ou menos próximo outros efeitos negativos. Veja-se o tema da escola e da educação, e compreenda-se que a distância é exatamente o contrário do que se pretende na aprendizagem. Teremos, afinal, de regressar rapidamente à socialização educativa. Como há pouco disse: «Se queremos melhor democracia, temos de dar tempo ao tempo, para que a reflexão não seja substituída pela manipulação. É verdade que o ensino, no seu conjunto, pode sair da pandemia mais preparado para aproveitar as tecnologias e as novas correntes de aprendizagem, mas temos de cuidar dos que não podem ser abandonados, favorecendo a criatividade e a cooperação pessoal. No dilema saúde / economia, o valor fundamental é o da vida, da existência, da liberdade, da igualdade e da fraternidade… O capital social e a confiança obrigam ao que Adela Cortina designa como “amizade cívica” (El Pais, 16.5.2020). Só com esta estaremos mais preparados para afrontar próximas epidemias e ameaças de destruição da humanidade…». No livro de BHL todos os alertas são dados. O ambiente de confinamento é malsão e não pode ser aceite de forma passiva ou indiferente. Não esqueçamos que o “confinamento” italiano foi uma palavra mussoliniana. Confinavam-se as vozes críticas e a oposição para criar bolhas autossuficientes em ilhas ou lugares escolhidos para evitar que as ideias perigosas se espalhassem. Eis por que o filósofo considera indispensável não tornar esse um método normal. Mas há o risco para a vida das pessoas em virtude da presença do vírus. É verdade. Importa adotar soluções inteligentes que nos permitam lidar com o perigo e controlar o medo. Temos de formar crianças conscientes de que não irão viver num mundo assético. Têm de estar preparadas. Temos de regressar à lealdade do aperto de mão como sinal de confiança mútua. Não se esqueça que esse hábito nasceu para dizer que não há armas e que podemos estar seguros uns com os outros. E assim as pessoas mais lúcidas têm de falar, dando confiança e delineando caminhos que preservem a autonomia e a responsabilidade, a segurança e a amizade. Importa dizer: a pandemia não terminou, mas está a ser controlada. Visa-se reduzir efetivamente uma segunda vaga, havendo para tal capacidade médica e hospitalar. Importa, pois, substituir o discurso do medo, pela racionalidade e pela criação de condições para que as máscaras, a higiene das mãos e as distâncias prudentes reduzam a transmissão da doença. Dar sinais de que não há epidemia é criminoso, como é absurdo criar um ambiente de culpa e eleger bodes expiatórios. Se há quem diga que estamos numa boa ocasião para o combate da globalização e do capitalismo, estamos a assumir a mesma atitude medieval contra as grandes epidemias, como se uma qualquer providência estivesse por trás de uma maldição.

 

UM CAMINHO PARA DIANTE…
Se o ritmo da descoberta dos tratamentos e das vacinas pode ser mais rápido e resultar da cooperação internacional, tal deve-se à globalização, não tenhamos dúvidas… Aproveitar a morte e o drama humano para defender uma agenda ideológica é inaceitável. Temos de romper com a tentação de tirar partido de um desastre. Qual a atitude inteligente? Importa viver com mais sobriedade, como nos ensinou a última crise financeira, devemos consumir menos, racionalizar o uso dos transportes, no entanto a frugalidade e a proteção do meio ambiente organizam-se, não se decretam. O experimentalismo social e um novo malthusianismo limitam a cidadania e a liberdade. Não há contradição entre a saúde e a economia. Temos de evitar que a vida destrua a vida. Se pararmos a economia e se não definirmos uma estratégia de melhor utilização dos recursos, teremos mais desemprego, mais fome, mais desigualdade e menos desenvolvimento. Os cientistas não são os novos oráculos de Delfos, são importantes agentes na estratégia humana, mas caminham, como nós, no nevoeiro. Importa mobilizar a sociedade toda. Urge haver partilha de responsabilidades. Importa evitar o abuso de autoridade, onde quer que ele se manifeste. E o certo é que a manipulação do medo leva a pôr em causa a autonomia e a liberdade. O trabalho a distância pode ser bom se houver melhor conciliação familiar, melhor utilização do tempo na vida das pessoas, mas é negativo se favorecer a solidão, o tédio e se levar à incompreensão das fronteiras entre o público e o privado ou à espionagem eletrónica dos empregados pelos patrões.

 

UMA METÁFORA PERIGOSA
Diga-se ainda que a metáfora da guerra é perigosa. Há um vírus, há uma doença, não há uma guerra. Ao contrário do combate do tráfico da droga ou da existência de um inimigo externo, o vírus não tem uma intenção, nem uma vontade. É verdade que há medo. Temos, assim, de saber lidar com ele. Não podemos deixar que os poderes do Estado e da economia ocupem o espaço da cidadania e dos direitos humanos. Não devemos deixar que o medo se torne pânico, limitando a inteligência e a vida humana. Nesse sentido, BHL faz nesta obra um discurso contra a servidão voluntária. A cidadania e a democracia têm, deste modo, de se aliar contra a tomada dos espaços públicos pelos Estados e pelas grandes redes como Google, Amazon, Facebook e Apple… O “Big Brother watching us” tem de ser prevenido. A proteção dos dados pessoais não pode tornar-se uma burocracia inútil e opressiva. Como se mede a liberdade? Na medida em que protegermos a vida privada ou o segredo de que somos detentores. Haverá outras epidemias depois desta, e não poderemos deixar que segmentos da democracia se percam. Por exemplo, espiritualidade e higienismo não podem confundir-se… O distanciamento social preventivo não deve ser sinónimo de fragmentação social. O distanciamento que gere indiferença e torne as pessoas abstrações põe em causa a organização da sociedade e a vida democrática, conquistada ao longo de décadas. Eis o que está em causa… Martha Nussbaum tem, aliás, analisado este tema na perspetiva do “cosmopolitismo”, considerando este como “um nobre e imperfeito ideal”, pela necessidade de ligar o interesse geral e interesse próprio nacional. E o certo é que o empenhamento de cada um no seu país precisa da consideração da proximidade e a compreensão do interesse geral assumido como defesa da dignidade de todos em qualquer parte do mundo…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

COMO VOLTAR À TONA DE ÁGUA…

 

A retoma da economia depois da pandemia do covid-19 vai demorar. E vai ocorrer gradualmente, consoante as atividades económicas e os países. A prevenção contra a pandemia vai ter de continuar, até porque vai haver grandes assimetrias na superação da doença. A livre circulação das pessoas será afetada e o tema fundamental vai ser o do combate ao desemprego e o da criação de valor. Começando pelas lições de 2008, importa recusar a ilusão monetária e financeira. O endividamento e o mero aumento da circulação monetária não criam riqueza. Temos de lembrar a regra de ouro das Finanças Públicas – só pode haver dívida pública para financiar despesa de investimento reprodutiva. Não basta lançar dinheiro sobre os problemas. E se aumentam as desigualdades, importa garantir a justiça distributiva – horizontal, com salários e impostos justos que garantam uma partilha de riqueza e a criação de valor; e a vertical, pela equidade intergeracional, reduzindo o endividamento.

 

Depois da crise, a prioridade terá de estar nas políticas de emprego, orientadas para a satisfação das necessidades fundamentais, o combate ao desperdício,  a promoção de poupanças virtuosas e a melhoria da qualidade de vida, para que o desenvolvimento se oriente para as pessoas. Mas o tema do emprego obriga a repensar o tempo de trabalho. A situação atual de confinamento e de teletrabalho, e a política gradual de retoma, ensinam-nos que os horários de trabalho presencial terão de ser repensados. O grave problema demográfico dos países ricos obriga a criar políticas de conciliação familiar com horários flexíveis. As licenças de paternidade para marido e mulher e os horários flexíveis para os pais tem permitido melhorar as taxas de natalidade nos países nórdicos, sem esquecer o cuidado dos mais velhos.

 

Terão de ser considerados, assim, “bancos de tempo” com flexibilidade, em vez de uma lógica de horários rígidos. Isto, para conciliar as necessidades, a disponibilidade individual e o melhor aproveitamento das capacidades disponíveis. Os “bancos do tempo” permitirão acorrer a uma multiplicidade de tarefas sociais que têm de ser asseguradas por todos. Não devemos esquecer que a inovação vai obrigar à ligação das políticas do Estado, do mercado e das iniciativas privada, social e pública não estatal. Por iniciativa pública não estatal entendemos a das instituições sociais, culturais, académicas e científicas de utilidade pública ou natureza cooperativa. As políticas públicas têm de ser consideradas como catalisadores económicos e sociais. A inovação científica obriga a que a lógica do lucro não impeça a difusão do conhecimento. A criação de valor dependerá da articulação do Estado e da sociedade. A lógica Silicon Valley tem de ser completada com planeamento estratégico global e com redes coordenadas de informação e conhecimento.

 

Mas não haverá inovação sem aprendizagem. Daí uma atenção necessária à educação e à formação ao longo da vida. Uma parte dos “bancos do tempo” tem de ser ocupada com formação contínua relevante, afinada individualmente. Por outro lado, o ensino profissional terá de articular os níveis secundário e superior, com atenção à cooperação entre Universidades e Politécnicos. Não deve haver becos sem saída, nem canais rígidos e não comunicáveis entre si.  Prosseguimento de estudos, vida ativa, mobilidade e cooperação internacional (Erasmus) têm de se articular.

 

Numa palavra, a prioridade é a promoção de valor e de um desenvolvimento justo e sustentável. O “doce comércio” de Montesquieu tem de se completar pela subsidiariedade. Urge tornar a informação conhecimento, e o conhecimento sabedoria. Para contrariar os egoísmos, temos de favorecer a solidariedade e o cuidado. Com instituições mediadoras, participadas e representativas, atentas a uma justiça complexa e equitativa, que favoreça a coesão e a sustentabilidade, é a democracia das pessoas, pelas pessoas e para as pessoas que está em causa.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

OS ESPECIALISTAS

 

Esta pandemia trouxe-nos um novo tipo de pessoas que invadem o espaço público, a que poderemos chamar de “especialistas”. Que fazem esses temíveis palradores? Invadem-nos a casa, através dos meios de comunicação, em especial a televisão, e dão-nos explicações e palpites, sobre tudo o possível e imaginário. Julgam saber de tudo, desde as origens fisiológicas das transformações operadas pelo dramático Covid-19 até aos efeitos psicológicos do confinamento. Têm sempre algo a dizer-nos. São fisiologistas, psicólogos, candidatos a psiquiatras, biólogos, educadores, cientistas – tudo. Fazem-me lembrar o simpático Gaston Lagaffe, aqui representado (que quando chegou a Portugal, no início dos anos sessenta, se chamava Zacarias, e pontificava com as suas desventuras). Também ele era especialista de tudo, mas tudo em que se metia dava desastre… Em qualquer posto de comunicação ouvimos esses especialistas que peroram sobre as máscaras, sobre as viseiras, sobre os perdigotos, sobre os desabafos intestinais, sobre as estatísticas, sobre os ventiladores, sobre os medicamentos, sobre morcegos e ratos, sobre vacinas e testes serológicos, sobre a peste negra e bubónica ou sobre a gripe espanhola, vulgo pneumónica… Eu sei lá? No entanto, tirei-me de cuidados e conversei com um cientista sério e a sério. E que me disse ele? Que ninguém sabe nada, verdadeiramente. Até a respeitada revista “Lancet” teve de reconhecer a dificuldade em dizer algo de relevante, dando o dito por não dito. Talvez daqui a algum tempo possa haver alguma coisa de relevante. Mas para já, apenas podemos proteger-nos. Prevenir é a única palavra de ordem. É que o vírus não é um bicho. Não é um ser vivo. Em latim, vírus significa veneno ou toxina. É um agente infeccioso com 20-300 nanómetros de diâmetro, apesar de existirem vírus ɡiɡantes de (0.6–1.5 µm), sendo constituído por uma ou várias moléculas de acido nucleico. Disse esse meu amigo e eu anotei religiosamente (mas mal percebi) que os ácidos nucleicos dos vírus apresentam-se geralmente revestidos por um envoltório proteico formado por uma ou várias proteínas, que pode ainda ser revestido por uma espécie de envelope formado por uma dupla camada lipídica… Não me peçam para explicar. O que sei é que fora do ambiente intracelular os vírus são inertes… Qual o perigo? Nas superfícies não duram muito tempo, e no ar mantêm-se tempo suficiente para se transmitir pelas vias superiores respiratórias. Mas, uma vez dentro das células, a capacidade de replicação dos vírus é surpreendente: um único vírus é capaz de multiplicar, em poucas horas, milhares de novos vírus. E os vírus são capazes de infetar seres vivos de todos os domínios, inclusive bactérias. Daí todas as dificuldades. Eis por que razão tenho o maior cuidado com a minha máscara e com o lavar das mãos… De facto, os vírus representam a maior diversidade biológica do planeta, sendo mais diversos que bactérias, plantas, fungos e animais juntos. Quase 200 mil tipos diferentes de vírus se espalham nos oceanos do mundo. Por exemplo, a última contagem é 12 vezes maior do que o censo anterior de vírus marinhos registado em 2016. Esse meu amigo, que, como diria o saudoso Bocage, não era um doutor das dúzias, fez-me compreender como esses especialistas falam barato do que não sabem e peroram sobre o que não existe. Assim se entende que o Senhor Donaldo Trump se aventure num campo difícil e minado, como se fosse um verdadeiro especialista – falando de desinfetantes e aconselhando práticas mortíferas para os mais incautos. Alguns que o seguiram foram levados a perigosas lavagens ao estomago. O mesmo se diga do Senhor Bolsonaro e de tantos outros, que na Idade Média teriam emprego certo como bobos ou como charlatães… Percebe-se assim que estes especialistas que nos invadiram têm onde se inspirar.  E percebem-se as cautelas postas pelos verdadeiros infeciologistas, que são os primeiros a dizer que muito pouco se sabe ainda sobre este tema. Todo o cuidado é pouco. Andamos todos às apalpadelas – que o diga este momento de grande incerteza. De facto, ainda a procissão vai no adro. E não podemos facilitar. Ninguém se julgue imune. A ciência sabe muito pouco. Por isso os falsos especialistas são como esse Gaston, que um dia se lembrou de organizar um arquivo com o mais estranho dos instrumentos – uma ventoinha… O resultado dessa operação é exatamente a que suspeitam..… Está tudo dito… É assim também com estes doutores da mula ruça. Quando virem e ouvirem um destes especialistas ilusórios ponham-se de sobreaviso.

 

Agostinho de Morais

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

A VER A CRISE PELAS COSTAS?

 

Não sei que vos diga. Há sinais contraditórios. É verdade que a crise pandémica como situação assimétrica vai ultrapassando, pelo menos aparentemente, a sua expressão mais dramática. Mas a primeira lição que poderemos tirar, é que deixamos de poder estar descansados. A cada passo pode surgir um qualquer morcego e com ele um vírus traiçoeiro e tudo pode começar de novo, mesmo sem falar das hipóteses de segundas e terceiras vagas. Há dias, lendo o testemunho de um médico atingido pela Covid-19, verifiquei duas coisas: a primeira é que qualquer atraso pode ter consequências fatais (como aconteceu em Itália e Espanha), a segunda é que ninguém está imune à fatalidade. O vírus ataca todos, ainda que, democraticamente, escolha aleatoriamente uns mais do que outros. Tanto podemos ter os assintomáticos (que alegremente transmitem a enfermidade), como os ligeiros e ainda os severos – que de um dia para o outro, mesmo fazendo-se fortes são prostrados com violência e vêem-se na iminência de passar para a eternidade. Se no auge da pandemia e do confinamento, havia vozes que prometiam tudo ir mudar – depressa percebemos que “de boas intenções, está o inferno bem cheio”… Agora, subitamente, depois do desconfinamento e perante uma aberturazinha, eis-nos diante da ideia imprudentíssima de que tudo já passou e de que temos um escudo protetor contra os vários perigos que nos imuniza. Puro engano! Os riscos mantêm-se, talvez atenuados, mas a redução do perigo só acontecerá se mantivermos as medidas protetoras – máscaras, distâncias, prevenção constante… E sobretudo prudência. Ninguém está imune, em nenhuma idade – a peste continua a pairar. Como li algures na imprensa italiana, pela boca de Walter Veltroni: “a nova fase significa trabalho. Significa reconstruir as condições de uma nova fase de desenvolvimento, fundada no ambiente, no saber, nas infraestruturas materiais e na digitalização. Significa que, acabada a emergência mais grave, os fundos que gastaremos não devem ser uma nova página de assistencialismo de massa, mas um fluxo de recursos guiado por uma visão estratégica e moderna de uma nova realidade que haverá de nascer desta crise”. Seria o melhor se assim fosse, mas temo que tudo fique na mesma… Senão vejam três ou quatro coisas: Deixámos de fazer o que era menos essencial, mas ninguém deu pela falta; fomos obrigados a encontrar solução para o que não podia deixar de ser feito; reduzimos o desperdício e a poluição – mas é verdade que houve coisas essenciais que ficaram por fazer. O quê? O serviço e o cuidado dos outros exigiam esforços adicionais, que ficaram aquém do desejável. E houve mortos. O medo ocupou excessivamente as nossas vidas. Muitas lições da peste ficaram por tirar. Por isso, Veltroni tem razão. As desigualdades agravaram-se e os mais fracos foram os mais prejudicados. Eis por que tem de haver aprendizagem e temos de encontrar novas formas de estar próximos do próximo, mesmo com a prudente distância. Não há aprendizagem sem proximidade. A distância é sempre um recurso excecional e transitório. Não resisto a citar um livrinho que escrevi há já bastantes anos e que tinha o título algo esotérico “Para o Estudo do Paradoxo de Zenão – Aquiles e a Tartaruga”: “Ora vejam bem a dificuldade que o mestre grego teve em explicar aos seus peripatéticos discípulos que logicamente nunca Aquiles poderia vencer a pobre tartaruga. Todos responderam em uníssono que só um passo de Aquiles permitiria ultrapassar a pachorrenta tartaruga e que, nem o povo se deixaria enganar por essa patranha, uma vez que a fábula de Fedro permitia que a Tartaruga vencesse a Lebre, porque esta se deixou dormir, tão segura estava de que iria vencer sem a mais breve das dificuldades. Distingamos assim as coisas: a tartaruga venceu a lebre realmente, porque esta mandriou, não podendo esquecer-se que só alcança em porfia. Também têm razão os alunos zombadores quando usam o senso comum para dizer que a passada de Aquiles é muito maior do que os movimentos da tartaruga. Mas agora vem o segredo maior. É que Zenão também tinha razão – porque a pergunta dele partia de um se. Se nós compararmos logicamente a caminhada da tartaruga e os passos de Aquiles para atingirem a meta, dividindo sucessivamente por dois o que falta para atingir o objetivo, nenhum dos dois vai atingir a meta, ou seja, nenhum vai vencer, por que as operações para os dois percursos são infinitas. E a verdade é que são mesmo. Tal passa-se também com a flecha que nunca chegará ao alvo se (e só se) nós formos sucessivamente dividindo por dois a distância que nos falta até ao destino. Tem razão Fedro, têm razão os meninos zombadores e tem razão o matemático. Não podem misturar-se as coisas. Afinal, a lógica reserva-nos grandes surpresas. Se a lógica da fábula prevalecer, se o senso comum dos jovens dominar ou se o problema de Zenão for compreendido tudo está certo. Alguém pode provar que existe o luzeiro que avista na noite limpa de Verão no firmamento? Não só não pode, como pode já não existir esse luzeiro há milhões de anos. O que há é uma ilusão ditada pela lentidão da velocidade da luz. E no entanto a luz vê-se, apesar de há muito estar apagada. O mesmo no confronto entre Aquiles e a tartaruga. Não estamos a perguntar se Aquiles vence, mas se algum dos dois pode atingir o destino se procedermos à operação lógica que Zenão nos propôs”. E eis-nos chegados ao meu ponto de agora. Nesta crise paradoxal, temos de compreender que nada vai ser como até aqui. Julgávamos que a penicilina e as vacinas conhecidas nos protegiam contra todas as ameaças. No entanto, regressámos aos tempos da Peste, porque um vírus migrou de um morcego para o bicho homem – o que não era suposto. Mas aconteceu. Tudo era mais simples se o vírus ficasse sossegado no morcego. Como tudo seria mais simples se Zenão nos estivesse a falar do senso comum e do que é normal.  Mas o vírus fugiu do morcego e Zenão fez-nos analisar o confronto de Aquiles e da Tartaruga em duas operações da lógica abstrata… Na imagem que apresento Corto Maltese pensa no que pode vir a acontecer. Ninguém sabe. Eis-nos, pois, a pensar na incerteza e a tomar consciência de que até a natureza que nos rodeia pode ser destruída pela nossa estupidez…

Agostinho de Morais

UM ASTROFÍSICO E UM FILÓSOFO FRENTE À COVID-19

 

Têm outro horizonte de compreensão e, por isso, podem ajudar-nos no discernimento da presente hecatombe. Ambos muito conhecidos. Um é astrofísico, o outro é filósofo. Do alto do seu saber e da sabedoria que a idade, 88 e 98 anos, respectivamente, também dá, vale a pena ouvi-los. Foi o que fiz, pela intermediação de entrevistas que deram, a partir do seu confinamento.

 

1. O astrofísico é Hubert Reeves, que conversou com Luciana Leiderfarb para o Expresso. E que disse?

 

Constatou o facto: em casa, confinados, por causa de um vírus invisível. “A única coisa que não é clara para mim é se a poluição e a degradação do planeta a que estamos a assistir e a que chamamos a ‘sexta extinção’ estão ou não relacionadas com este vírus.” Embora não seja especialista na matéria, pensa que “está perto da verdade: a pandemia não foi causada directamente pela sexta extinção, mas indirectamente, facilitando as condições para o coronavírus se expandir tão depressa.”

 

De qualquer modo, somos muito maus a fazer antecipações: “Ninguém sabe do futuro. É a imprevisibilidade da realidade que quero destacar. A realidade é difícil de prever, e somos muito maus a fazê-lo.” Mas temos hoje excesso de poder que nem sempre queremos ou somos capazes de controlar, e aí está o perigo: “Temos duas formas de nos autodestruirmos: através de uma guerra nuclear ou da sexta extinção. Ambas podem eliminar-nos e dependem do nosso autocontrolo.”

 

A Natureza foi construindo estruturas. “E uma das suas obras-primas é a espécie humana. Somos provavelmente o nível mais alto de complexidade que conhecemos, a estrutura mais complexa do Universo.” A Humanidade trouxe ao mundo a cultura — Mozart, Van Gogh, um tipo de criatividade que desapareceria completamente se o ser humano fosse extinto —, a ciência — nenhuma outra espécie animal teria chegado à teoria da relatividade de Einstein —, e a compaixão — temos pulsões destrutivas, mas também temos compaixão, sofremos quando vemos pessoas a sofrer. “A Humanidade merece ser preservada.” Adverte, porém, que o ser humano é tremendamente poderoso, o mais poderoso, mas também o mais complicado e tanto somos capazes do melhor como do pior: tanto podemos fazer uma sinfonia de Beethoven ou construir a teoria da relatividade como uma bomba atómica ou a II Guerra Mundial. “Hoje sabe-se que a probabilidade de a actividade humana ser a principal causa do aquecimento global é de 99%” (Aqui, acrescento eu: por causa do confinamento, é um facto que, com a diminuição da intervenção antropogénica, se constata uma forte melhoria do meio ambiente). Também “sabemos que, se não nos adaptarmos ao ecossistema, em vez de continuarmos a forçá-lo a adaptar-se a nós, vamos desaparecer.” A nossa presença na Terra está ameaçada. Portanto, “a nossa responsabilidade agora é não destruirmos de vez a complexidade do planeta. Garantir que com o nosso comportamento não eliminamos a Humanidade.”

 

O aparecimento da vida e, concretamente do ser humano, na gigantesca história da evolução, continua envolto em mistério. Quais as condições presentes desde o início para que se desse esta aparição? “Vivemos ainda num grande mistério, sem conhecimento do que se passou entre o início e agora e sem fazermos ideia sobre se houve um antes e se haverá um depois.” Uma questão muito debatida entre os cientistas, mas “aqueles que possuem uma crença religiosa não têm qualquer problema em relação  a isso, porque a resposta é Deus.” Perguntado sobre se acredita em Deus, responde: “Tenho muitas perguntas sobre Deus. Mas não sei o que Deus é. Para mim, é um assunto importante, mas relativamente ao qual não cheguei a nenhuma certeza.” Aqui, digo eu: também o crente não tem certeza, tem fé, com razões, e é razoável acreditar.  Sobre se é possível conciliar ciência e religião, Reeves reconhece que “são duas actividades diferentes da mente”, que tem dois domínios, sendo um o conhecimento — “aprender, saber como as coisas são, como funciona o mundo” — e o outro o do valor. Dá um exemplo: a ciência diz como fazer a bomba atómica, mas não pode dizer se devemos ou não fazê-la, pois isso já é do domínio do valor, no qual se inclui a filosofia e a religião. ”Enquanto a ciência pergunta: ‘o que é, como funciona?’, a religião questiona: ‘é bom ou mau?’. Este é um assunto na ordem do dia, na medida em que, cada vez mais se coloca a questão da aplicabilidade da ciência e das suas fronteiras éticas.”

 

À pergunta da jornalista: “O que é que ainda o surpreende? O que é que o emociona?”, responde: “A amizade, o amor, a música. Ouço música o dia todo. Não há nada mais elevado. As salas de concerto são as minhas igrejas. É o lugar onde sinto que existe algo maior do que eu.”

 

Envolvido pelo espanto, pelo maravilhamento perante o  Universo e a sua história, sabe que a sua vida roça “o seu limite perigoso” e, por isso, não se deita antes da uma ou duas da madrugada. “Tenho esta ideia de, até onde a saúde mo permitir, não querer desperdiçar o tempo a dormir.”

 

2. Edgar Morin é filósofo e sociólogo e continua a surpreender-me, agora confinado, com mais uma entrevista concedida ao jornalista Francis Lecompte para o sítio Cnrs. Le journal, que colocou como título para a conversa que teve: “Edgar Morin: Temos de viver com a incerteza”.

 

Uma mensagem principal desta pandemia é que derrubou a nossa sensação de omnipotência e pôs em causa a relação com a ciência, que se pretendia omnisciente. Diz Edgar Morin: “O que me impressiona é que grande parte do público via a ciência como o repertório de verdades absolutas, afirmações irrefutáveis.” Afinal, observámos que os cientistas convocados pelo poder político “defendiam pontos de vista muito diferentes e, às vezes, contraditórios, e isso nas medidas a ser adoptadas, nos possíveis novos remédios para responder à emergência, na validade deste ou daquele medicamento, na duração dos ensaios clínicos a realizar.” Parece que mesmo entre os cientistas poucos leram, por exemplo, Karl Popper, que estabeleceu que uma teoria só é científica se for refutável, portanto, o critério de cientificidade de uma teoria é a sua refutabilidade, ou Gaston Bachelard, ao colocar o problema da complexidade do conhecimento, ou Thomas Kuhn, ao estabelecer, com a sua teoria dos paradigmas, que “a história das ciências é um processo descontínuo”.

 

“O facto de hoje estarmos a falar do coronavírus era completamente desconhecido há um ano”, afirma Reeves. E Edgar Morin confirma: nesta crise do coronavírus, o impressionante é que “não temos ainda nenhuma certeza sobre a própria origem desse vírus nem sobre as suas diferentes formas, as populações que ataca, os seus graus de nocividade. Nós estamos igualmente a passar por uma grande incerteza sobre todas as consequências da epidemia em todos os domínios, sociais, económicas, etc.”. Aqui, acrescento eu: A China portou-se da pior maneira ao não alertar atempadamente o mundo e continua a manifestar má consciência ao impedir estudos e investigações  internacionais independentes sobre precisamente a origem da pandemia.

 

O paradoxo é este: por um lado, estamos todos à espera de que a ciência, através de medicamentos, através de uma vacina, nos liberte do pesadelo; por outro, não sabemos e temos de conviver com a incerteza. Edgar Morin espera que a presente crise sirva para “revelar como a ciência é uma coisa mais complexa do que se quer crer. É uma realidade humana que, como a democracia, assenta sobre os debates de ideias, embora os seus modos de verificação sejam mais rigorosos.” Temos de aceitar as incertezas e viver com elas, “quando a nossa civilização nos inculcou a necessidade de certezas cada vez mais numerosas sobre o futuro, muitas vezes ilusórias, por vezes frívolas. A chegada deste vírus deve lembrar-nos que a incerteza permanece um elemento inexpugnável da condição humana. Nenhum seguro social que possamos fazer será capaz de nos garantir que não vamos adoecer ou que seremos felizes. Tentamos cercar-nos com o máximo de certezas, mas viver é navegar num mar de incertezas, através de ilhotas e arquipélagos de certezas nos quais nos reabastecemos.”

 

O jornalista: “É a sua própria regra de vida?” Edgar Morin: “É sobretudo o resultado da minha experiência. Assisti a tantos e tantos acontecimentos imprevistos na minha vida que isso faz parte da minha maneira de ser. Não vivo na angústia permanente, mas estou à espera de que surjam acontecimentos mais ou menos catastróficos. Não digo que previ a epidemia actual, mas digo, por exemplo, que há vários anos que, atendendo à degradação da nossa bioesfera, nos devíamos preparar para catástrofes. Isso faz parte da minha filosofia: ‘Espera o inesperado’.” Aliás, desde que na década de 60 li Martin Heidegger, apercebi-me de que vivemos na era planetária e a globalização é um processo que poderia trazer  benefícios e também danos. “Também observo que o desencadeamento descontrolado do desenvolvimento tecno-económico, animado por uma sede ilimitada de lucro e favorecido por uma política neoliberal generalizada, se tornou prejudicial e provoca crises de todos os tipos. A partir desse momento, estou intelectualmente preparado para enfrentar o inesperado, para enfrentar as convulsões.”

 

Edgar Morin confessa satisfação porque, desde o seu primeiro discurso sobre a crise, o Presidente Macron até mencionou a possibilidade de mudar o modelo de desenvolvimento. Significa que caminhamos para uma mudança económica? Resposta: “O nosso sistema baseado na competitividade e na rentabilidade tem muitas vezes graves consequências nas condições de trabalho. A prática massiva do teletrabalho por causa do confinamento das empresas pode contribuir para mudar o funcionamento das empresas ainda muito hierárquicas ou autoritárias. A crise actual pode acelerar também o regresso à produção local e o abandono de toda a indústria do descartável, dando assim trabalho aos artesãos e ao comércio de proximidade.”

 

E vamos passar também para uma mudança política, na qual “as relações entre o indivíduo e o colectivo se transformam?”

 

Resposta: “O interesse individual dominava tudo, mas agora as solidariedades estão a despertar”, e dá o exemplo do mundo hospitalar. Infelizmente, não podemos falar de um despertar da solidariedade humana ou planetária. No entanto, já éramos seres humanos de todos os países, confrontados com os mesmos problemas no que se refere à degradação do meio ambiente ou ao cinismo económico. Mas, hoje, da Nigéria à Nova Zelândia, encontramo-nos todos confinados e deveríamos tomar consciência de que os nossos destinos estão ligados, queiramos ou não. Seria, portanto, o momento para refrescar o nosso humanismo, pois, enquanto não virmos a Humanidade como uma comunidade de destino, não poderemos pressionar os governos a agir num sentido inovador.”

 

O jornalista: E agora, passando longos períodos de confinamento, o que é que a Filosofia nos poderia ensinar?

 

Edgar  Morin: “É verdade que para muitos de nós que vivemos uma grande parte da nossa vida fora de casa este confinamento brusco pode representar um incómodo terrível. Mas penso que pode ser uma ocasião para reflectir, perguntar o que, na nossa vida, é frívolo ou inútil. Não digo que a sabedoria é permanecer toda a vida num quarto, mas, para dar um exemplo: pensando apenas no nosso modo de consumo e de alimentação, é talvez o momento de nos desfazermos de toda esta cultura industrial, cujos vícios conhecemos, o momento para nos desintoxicarmos. É também a ocasião para tomarmos consciência de modo duradouro dessas verdades humanas, que todos conhecemos, mas que estão recalcadas no nosso subconsciente: o amor, a amizade, a comunhão, a solidariedade, que fazem a qualidade da vida.”

 

3. Fica uma pergunta imensa, mas essencial: Quando terminar a hecatombe, teremos ao menos aprendido onde está o essencial? Ou voltaremos à vertigem do ter, esquecendo o ser?

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 10 MAI 2020

COMO VOLTAR À TONA DE ÁGUA…

 

A retoma da economia depois da pandemia do covid-19 vai demorar. E vai ocorrer gradualmente, consoante as atividades económicas e os países. A prevenção contra a pandemia vai ter de continuar, até porque vai haver grandes assimetrias na superação da doença. A livre circulação das pessoas será afetada e o tema fundamental vai ser o do combate ao desemprego e o da criação de valor. Começando pelas lições de 2008, importa recusar a ilusão monetária e financeira. O endividamento e o mero aumento da circulação monetária não criam riqueza. Temos de lembrar a regra de ouro das Finanças Públicas – só pode haver dívida pública para financiar despesa de investimento reprodutiva. Não basta lançar dinheiro sobre os problemas. E se aumentam as desigualdades, importa garantir a justiça distributiva – horizontal, com salários e impostos justos que garantam uma partilha de riqueza e a criação de valor; e a vertical, pela equidade intergeracional, reduzindo o endividamento.

 

Depois da crise, a prioridade terá de estar nas políticas de emprego, orientadas para a satisfação das necessidades fundamentais, o combate ao desperdício, a promoção de poupanças virtuosas e a melhoria da qualidade de vida, para que o desenvolvimento se oriente para as pessoas. Mas o tema do emprego obriga a repensar o tempo de trabalho. A situação atual de confinamento e de teletrabalho, e a política gradual de retoma, ensinam-nos que os horários de trabalho presencial terão de ser repensados. O grave problema demográfico dos países ricos obriga a criar políticas de conciliação familiar com horários flexíveis. As licenças de paternidade para marido e mulher e os horários flexíveis para os pais tem permitido melhorar as taxas de natalidade nos países nórdicos, sem esquecer o cuidado dos mais velhos.

 

Terão de ser considerados, assim, “bancos de tempo” com flexibilidade, em vez de uma lógica de horários rígidos. Isto, para conciliar as necessidades, a disponibilidade individual e o melhor aproveitamento das capacidades disponíveis. Os “bancos do tempo” permitirão acorrer a uma multiplicidade de tarefas sociais que têm de ser asseguradas por todos. Não devemos esquecer que a inovação vai obrigar à ligação das políticas do Estado, do mercado e das iniciativas privada, social e pública não estatal. Por iniciativa pública não estatal entendemos a das instituições sociais, culturais, académicas e científicas de utilidade pública ou natureza cooperativa. As políticas públicas têm de ser consideradas como catalisadores económicos e sociais. A inovação científica obriga a que a lógica do lucro não impeça a difusão do conhecimento. A criação de valor dependerá da articulação do Estado e da sociedade. A lógica Silicon Valley tem de ser completada com planeamento estratégico global e com redes coordenadas de informação e conhecimento.

 

Mas não haverá inovação sem aprendizagem. Daí uma atenção necessária à educação e à formação ao longo da vida. Uma parte dos “bancos do tempo” tem de ser ocupada com formação contínua relevante, afinada individualmente. Por outro lado, o ensino profissional terá de articular os níveis secundário e superior, com atenção à cooperação entre Universidades e Politécnicos. Não deve haver becos sem saída, nem canais rígidos e não comunicáveis entre si. Prosseguimento de estudos, vida ativa, mobilidade e cooperação internacional (Erasmus) têm de se articular.

 

Numa palavra, a prioridade é a promoção de valor e de um desenvolvimento justo e sustentável. O “doce comércio” de Montesquieu tem de se completar pela subsidiariedade. Urge tornar a informação conhecimento, e o conhecimento sabedoria. Para contrariar os egoísmos, temos de favorecer a solidariedade e o cuidado. Com instituições mediadoras, participadas e representativas, atentas a uma justiça complexa e equitativa, que favoreça a coesão e a sustentabilidade, é a democracia das pessoas, pelas pessoas e para as pessoas que está em causa. 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
in Jornal Expresso | 18 de abril de 2020

O CONTÁGIO DA ESPERANÇA

 

1. Naquele fim de tarde escuro do passado dia 27 de Março, quando a chuva começava a cair, o Papa Francisco, sozinho, concentrado, em passos lentos, quase alquebrado como se transportasse aos ombros a cruz da Humanidade toda, atravessou, em silêncio, uma Praça de São Pedro deserta e subiu os degraus para uma plataforma fragilmente iluminada e rezou, sozinho. Uma imagem que fica na memória de todos quantos assistiram àquela caminhada lenta, uma das imagens marcantes desta catástrofe. A apontar para a solidariedade mundial de todos e para a esperança. E disse: “Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair da noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo de um silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem; pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos.” Aludindo à imagem do Evangelho, acrescentou: “Fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda”. Constatando que “nos demos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários”, continuou, sublinhando o que desde a deflagração da pandemia tem sido uma constante sua: “Somos todos chamados a remar juntos, todos carecidos de encorajamento mútuo.” “Estamos juntos neste barco”, ninguém poderá vencer a tempestade sozinho, “só conseguiremos todos juntos”. E incutiu esperança e abençoou o mundo: “Desta colunata que abraça Roma e o mundo desça sobre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus.”

 

De lá, do seu confinamento em Santa Marta no Vaticano, todos os dias está presente ao mundo, dando ânimo, esperança, apelando à co-responsabilidade mundial. Para que ninguém se sinta só. Na homilia do Domingo de Ramos, mais uma vez, apelou à solidariedade, lembrando concretamente os mais sós: “Quando nos sentimos encurralados, quando nos encontramos num beco sem saída, sem luz, quando parece que nem Deus responde, lembremo-nos de que não estamos sozinhos.” E foi ao essencial, quando a Humanidade no meio desta pandemia é obrigada a deixar o supérfluo: “O drama que estamos a atravessar impele-nos a levar a sério o que é sério, a não nos perdermos em coisas de pouco valor, a redescobrir que a vida não serve, se não for para servir. Porque a vida mede-se pelo amor.” Aos jovens deixou esta mensagem: “Queridos amigos: olhai para os verdadeiros heróis que vêm à luz nestes dias: não são aqueles que têm fama, dinheiro e sucesso, mas aqueles e aquelas que se oferecem para servir os outros. Senti-vos chamados a arriscar a vida.”

 

2. No Domingo de Páscoa, há 8 dias, deixou uma mensagem histórica, pensando já no que é preciso e urgente para o futuro próximo. Uma mensagem própria de um líder político-moral global, pronunciada excepcionalmente, como não acontecia desde 1947, a partir do interior da Basílica de São Pedro e não da varanda frente à Praça. Para a sua síntese, inspiro-me na exposição esquemática do jornal “La Croix”.

 

2.1. Dedicada em larga medida à crise causada pela Covid-19, incentivou o mundo, “oprimido pela pandemia, ao contágio da esperança.” A ressurreição de Cristo não é “uma fórmula mágica que faz desaparecer os problemas, mas a vitória do amor sobre a raiz do mal.” E lembrou em primeiro lugar as vítimas do coronavírus, “os doentes, os que morreram, e as famílias que choram o desaparecimento dos seus entes queridos, aos quais por vezes não puderam sequer dizer um último adeus”.

 

2.2. Pediu para não esquecer aqueles que esta pandemia torna ainda mais vulneráveis: “os idosos e as pessoas sós, os que trabalham nas casas de saúde, os que vivem nas casernas ou nas cadeias”. Uma palavra especial, “pedindo força e esperança” para os médicos e enfermeiros, auxiliares, todo o pessoal de saúde, “que em toda a parte oferecem ao próximo um testemunho de atenção e de amor até ao limite das suas forças e muitas vezes até ao sacrifício da sua própria saúde”. Exprimiu-lhes a sua “gratidão”, a eles e “aos que trabalham assiduamente para garantir os serviços essenciais”, e ainda aos polícias e militares que “contribuíram para aliviar as dificuldades e os sofrimentos da população.”

 

2.3. Encorajou os governos “a empenhar-se activamente a favor do bem comum dos cidadãos, fornecendo os instrumentos e os meios necessários para permitir a todos levar uma vida digna e para favorecer, quando as circunstâncias o permitirem, a retoma das actividades quotidianas habituais”.

 

Porque “este tempo não é o tempo da indiferença, todos devem estar unidos para enfrentar a pandemia”, e fazer o necessário para que não se agrave a situação dos que já carecem de alimentos, medicamentos e assistência de saúde.

 

E pediu um alívio das sanções internacionais, “que impedem os países que as sofrem de dar um apoio conveniente aos seus cidadãos” e a redução ou até pura e simplesmente o perdão da “dívida que pesa sobre os orçamentos dos mais pobres.”

 

2.4. Porque “este tempo não é o tempo dos egoísmos”, dirigiu uma palavra veemente sobre e para a União Europeia, que nestas últimas semanas não brilhou particularmente pela sua solidariedade. Sublinhando que “do desafio do momento actual dependerá não só o seu futuro, mas o do mundo inteiro”, lembrou “o espírito concreto de solidariedade que lhe permitiu ultrapassar as rivalidades do passado” a seguir à Segunda Guerra mundial, sendo imperioso que “estas rivalidades não ganhem novo vigor”. E preveniu: “A alternativa é o egoísmo dos interesses particulares e a tentação de um regresso ao passado, com o risco de expor a uma dura prova a coabitação pacífica e o desenvolvimento das próximas gerações”.

 

2.5. Porque “este tempo não é o tempo das divisões”, apelou a “um cessar fogo mundial e imediato em todas as regiões do mundo”, citando nomeadamente a Síria, o Iémen, o Iraque, o Líbano, a Terra Santa, a Ucrânia e os “ataques terroristas perpetrados contra tantas pessoas inocentes em diversos países de África”, e desejou que “os capitais enormes” para o armamento “sejam utilizados para cuidar das pessoas e da melhoria das suas existências”.

 

2.6. Porque “este não é o tempo do esquecimento”, fez votos “para que a crise que enfrentamos não nos faça esquecer outras emergências que trazem consigo o sofrimento de muitas pessoas”, citando as “graves crises alimentares” na Ásia e na África, mas também a situação dos migrantes “que vivem em condições insuportáveis, especialmente na Líbia e nas fronteiras entre a Grécia e a Turquia, a que juntou especificamente a ilha de Lesbos, e a Venezuela.

 

2.7. E concluiu: “Indiferença, egoísmo, divisão, esquecimento não são propriamente as palavras que queremos ouvir neste tempo. Queremos bani-las para sempre!”.

 

3. A esperança não se pode confundir com wishfull thinking. Ela tem de ser pensada e activa, implicando uma estratégia correcta e eficaz. Assim, durante a semana, Francisco, convencido de que nos encontramos numa mudança de época, criou uma comissão de peritos, com cinco grupos, para estudar a crise económica, social e política global, já presente e que se agravará na sequência deste flagelo pandémico, e qual o contributo que a Igreja pode e deve dar a nível local e universal.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 19 ABR 2020