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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS LUSO-TROPICAIS

 

9. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO
CRÍTICAS E MÉRITOS (VI)

 

Outra crítica refere-se à inadequação do luso-tropicalismo na África e na Ásia, por confronto com o Brasil. 

 

Maria Archer, tomando como referência a sua vivência em África, entende que o pensamento de Freyre não pode ser aplicado do mesmo modo em todos os lugares colonizados por Portugal. Aponta, para África, duas explicações básicas: uma política colonial preferencialmente não amiga da mestiçagem e a ausência de amor no contacto do português com o negro (“Aspectos da “paisagem social” na África portuguesa e no Brasil do passado sugeridos pelos livros de Gilberto Freyre”, Seara Nova, n.ºs 536 e 537).     

 

Acresce que os portugueses se estabeleceram e fixaram no Brasil por mais tempo e com caráter de permanência, ao invés do que se verificou nas colónias lusitanas de África e da Ásia, onde a dominação e fixação demográfica dos dominadores foi territorialmente menos profunda e mais circunstancial, conforme as necessidades europeias.   

 

Nas palavras de Adriano Moreira, Freyre transita de um “modelo observado”, traduzido na formação histórica do Brasil, para um “modelo observante”, em que o modelo observado se torna sujeito observador de uma realidade mais ampla e complexa, a que correspondiam os demais territórios do império colonial português. Pretendia-se verificar se os traços característicos da configuração brasileira se reproduziam fora do Brasil, na África e na Ásia. 

 

Como o próprio A. Moreira reconhece, apenas algumas décadas de presença portuguesa fora do Brasil, nomeadamente em África, não poderiam ter resultados equivalentes aos de vários séculos de manutenção do luso-tropicalismo no Brasil (“Da Europa nos trópicos aos trópicos na Europa”, Anais do Seminário Internacional Novo Mundo nos Trópicos, p. 308).   

 

Observa ainda Adriano Moreira: “Também o português, como os outros navegadores e colonizadores, foi um homem só, e tal como eles, cruzou-se com as mulheres nativas. Igualmente, como regra, sobretudo em relação às negras, não legitimou as uniões. No Brasil tornou-se característica a família mista, na qual o senhor de engenho tinha uma mulher legítima e respetiva descendência, e uma prole numerosa nascida do cruzamento com as negras. Mas todos viviam juntos numa empresa específica que era a Casa Grande, compareciam juntos nos atos religiosos, não era adequado referir a sanguinidade, mas não era apropriado ignorá-la” (“Teoria da Relações Internacionais”, Almedina, Coimbra, 1999, p. 522).     

 

Reconhece que o método português foi integrador (com o fim de construir sociedades igualitárias, independentemente das diferenças entre elas), assimilador (ao pretender implantar preferencialmente padrões europeus de conduta e a fé católica) e sincrético (aceitando modelos de conduta nativos, sobretudo na área da sociedade civil, originando uma miscigenação étnica e cultural).   

 

Apesar de a mestiçagem ser o fenómeno que mais sobressai e socialmente mais relevante, é apenas um entre outros. 

 

Mesmo que se entenda, à semelhança de Cláudia Castelo, que Freyre após enaltecer a miscigenação e proceder à sublimação do mestiço, não se limita a “normalizar” a mestiçagem, como Adriano Moreira, elevando-a a fator de excelência, dado que “Inconscientemente (ou não), inverte a avaliação racista em proveito da nova raça (o mestiço luso-tropical), caindo numa nova argumentação racista” (ibidem, p. 122). E mesmo que se argumente, como Freyre, que o Brasil pode e deve continuar à frente do avanço mundial antirracista.   

 

E mesmo para quem entenda que os portugueses só se misturaram com outras raças por serem numericamente poucos em população e diminutos em território europeu, para tão vasto império, ao contrário dos outros colonizadores, também os houve demograficamente diminutos e de pouco território que o não fizeram, como os holandeses e belgas. Daí que, mesmo agora, muitos aleguem ser mais europeia do que portuguesa uma certa xenofobia e racismo latentes em Portugal. Serão mais um produto de uma europeização do que de uma portugalidade (tendo como seu defensor, por exemplo, o cantor brasileiro e antigo ministro da Cultura Gilberto Gil). 

 

13.12.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICAS LUSO-TROPICAIS

 

8. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO
CRÍTICAS E MÉRITOS (V)

 

Outra das resistências ao luso-tropicalismo, advém da ênfase que Freyre dá à componente árabe e africana na constituição do caráter nacional português, o que contrariava a perspetiva que em geral se defendia em Portugal, a começar pelo ensino, de valorizar quase predominantemente a reconquista cristã e, por arrastamento, a influência europeia.   

 

Esta resistência está interrelacionada com outra, a da miscigenação que, nomeadamente nas décadas de 30 e 40, era tida como de consequências negativas, uma vez que os mestiços eram tidos como biologicamente inferiores. Chegou-se a defender o povoamento das colónias africanas por gentes brancas e numerosas, de ambos os sexos, para evitar a mistura das raças (colonização étnica). Mistura racial que Vicente Ferreira e Armindo Monteiro, entre outros, não aceitavam, distanciando-se de GF, pelo que a experiência brasileira da mestiçagem não se podia repetir no império colonial português. Apenas com o início da guerra em Angola e a ida de Adriano Moreira para o Ministério do Ultramar, houve a promulgação de medidas legislativas inspiradas no luso-tropicalismo.

 

Já o reconhecimento da especial capacidade dos portugueses para a colonização mereceu aceitação unânime, desde sempre, no Estado Novo. 

 

Mas será a partir da década de 50 que o pensamento Gilbertiano terá uma receção mais favorável, após a segunda grande guerra mundial, quando os impérios coloniais europeus entram em declínio e se começa a dar mais importância à sua produção literária e teórica.   

 

Todavia, mesmo nessa época, o luso-tropicalismo nunca foi tido como discurso oficial do Estado Novo. Sendo este nacionalista, as facetas desnacionalizadoras do pensamento de Freyre foram esquecidas, desde a valorização simultânea dos contributos africanos, ameríndios, europeus e orientais, até à não aceitação de uma congregação dos povos de Língua Portuguesa em que fosse preponderante o predomínio do Brasil.   

 

Ciente da sua independência, contra-argumenta àqueles que o acusaram de aceitar um convite, em 1951, do Ministro do Ultramar português a viajar pelo império, com o facto de ter recusado os dois anteriores e de ter sido convidado pelos governos da União Indiana e da União Soviética, o que tem como prova da sua não conotação com qualquer ideologia política em particular.       

 

Outro sinal de querer manter a sua independência, demarcando-se da política, é dado pelo próprio quando afirma que se é verdade que há ideias suas que foram seguidas pelo Estado Novo; também é verdade que o foram por diferentes intelectuais portugueses provenientes de várias áreas. Citem-se, entre muitos, José Osório de Oliveira, Carlos Malheiro Dias, padre Joaquim Alves Correia, António Sérgio, Maria Archer, Manuel Múrias, Adriano Moreira, Jorge Dias e Almerindo Lessa.

 

Mário Soares, socialista, que foi Presidente da República e Primeiro Ministro de Portugal, em discurso de inauguração da sala Caloute Gulbenkian, na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, em 29/03/87, a propósito do luso-tropicalismo, afirmou: “Esta teoria foi mal aproveitada no tempo do antigo regime, mas, justamente, eu quis demonstrar que a obra de Gilberto Freyre era admirada em Portugal, não só por aqueles que eram partidários do colonialismo, como pelo Portugal livre, democrático e moderno que eu represento”(citado por Vamireh Chacon, em “O Futuro Político da Lusofonia”, Verbo, 02, p. 85). 

 

Ainda Mário Soares, em entrevista ao “Jornal de Brasília”, em 30/01/00, declarou que decorridos os anos e lendo de novo Freyre, “Aquilo que ele disse sobre luso-tropicalismo é verdadeiro, é uma cultura própria e temos que desenvolvê-la no futuro” (ibidem, p. 49). 

 

06.12.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício 

CRÓNICAS LUSO-TROPICAIS

Rio de Janeiro.jpg

 

7. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO
CRÍTICAS E MÉRITOS (IV)

 

Importa analisar uma das acusações que com maior frequência é dirigida a Gilberto Freyre: a de ter concebido uma teoria neocolonialista.   

 

Em textos anteriores destas Crónicas Luso-Tropicais (n.ºs 4 e 5), está expressa essa opinião e o seu raciocínio. 

 

Iremos agora, por confronto, usar o exercício do contraditório, deixando ao critério do leitor a sua opção.

 

Em Junho de 1962, numa conferência do Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, Freyre demarca-se da posição do governo português, quanto à questão colonial, decorrido um ano após o início da guerra em Angola. Diz que o seu conceito de comunidade luso-tropical não é de natureza política mas sim sociológica, aberto a integrar no seu interior várias presenças nacionais, mostrando compreensão pelas aspirações de independência dos povos sob soberania portuguesa. Fala em comunidade luso-tropical, por confronto com a comunidade luso-brasileira defendida por outros, para nela englobar outras presenças nacionais, para além das duas existentes (Portugal e Brasil). Fala em pátrias independentes numa comunidade interdependente.   

 

O presidente do Senegal, Léopold Senghor, insuspeito humanista africano, reconheceu os esforços Gilbertianos no sentido de ajudar os movimentos nacionalistas africanos das ex-colónias portuguesas na sua luta pela libertação nacional, não tendo o luso-tropicalismo contrário ao desejo de independência das colónias portuguesas de África.

 

Também os argumentos que GF usava contra o eurocentrismo e a competição norte-sul, são usados para o qualificar como paladino de uma perspetiva terceiro-mundista. As suas advertências para os perigos representados com os conflitos com culturas tecnicamente superiores, desde a ameaça proveniente do nazismo e fascismo, até ao capitalismo norte-americano e outros “novos imperialismos”, são exemplos tidos, para os seus defensores, como contrários ao desejo de qualquer neocolonialismo. 

 

Mesmo no seio do mundo que o português criou, argumenta-se que GF censura o português quando representante do papel de opressor. 

 

Para vários investigadores foi bastante frontal e firme na denúncia que fez em relação a vários aspetos por ele observados na condução da política colonial portuguesa centrada e dirigida da então metrópole. É conhecida a crítica contundente em que é destinatária a Companhia de Diamantes de Angola, denunciando os processos incivilizados que a concessionária de extração de diamantes impunha ao pessoal de cor ao seu serviço.

 

No seu livro “Aventura e Rotina”, acusa o dirigente da Companhia, Ernesto Vilhena, de dirigir “um sistema que em algumas das suas raízes e em várias das suas projeções não é sociologicamente português, prejudicado, como se acha, por um racismo que é de origem belga e por um excesso de autoritarismo que é também exótico em sua origem e em seus métodos” (Univer Cidade Editora, edição brasileira, p. 379).   

 

E acrescenta:    

 

“A tendência da Companhia dos Diamantes - e das companhias e empresas do seu tipo que operam na África portuguesa do mesmo modo que nas outras Africas - talvez seja para reduzir as culturas indígenas a puro material de museu. Os indígenas vivos interessam-nos quase exclusivamente como elementos de trabalho, tanto melhores quanto mais desenraizados de suas culturas maternas e mecanizados em técnicos, operários substitutos de animais de carga. A proletarização de tais indígenas, sua segregação em bairros para “trabalhadores indígenas” dentro de comunidades organizadas em pura função desta ou daquela atividade económica, constitui um dos maiores perigos para a gente africana do ponto de vista social e, ao mesmo tempo, cultural” (p. 384).

 

Embora acreditando na expansão de um método português baseado na convivência de relações pacíficas entre nações europeias e não europeias, não deixava de censurar e lamentar que isso não acontecesse muito na prática, dado que muitos portugueses nas províncias africanas, à época, renegaram as melhores tradições lusitanas, imitando condutas e preconceitos de alemães, belgas, ingleses e sul-africanos.   

 

Não obstante todas as denúncias e reservas de Freyre relativamente à censura do Estado Novo e às práticas racistas da Companhia de Diamantes angolana, os seus críticos, mesmo reconhecendo-as, não as têm como suficientes para questionar a sua colagem ao governo metropolitano sediado em Lisboa.

 

Mesmo que com sérias reservas, quiçá ambíguas, transcrevem-se estas palavras de Jacinta Baptista, em História de Portugal, O estado Novo (III), voluma XVII, p. 62/3:  

 

“É certo que Freyre visita Portugal e as suas principais colónias em 1951, quando António Ferro já não é Secretário da Propaganda e se encontra a prestar serviço diplomático na Suíça. Mas não é menos certo que o primeiro convite (recusado, como o segundo) para o sociólogo se deslocar a terras portuguesas partiu do entrevistador de Salazar e foi semente que, a seu tempo, acabou por germinar. O escritor brasileiro, que nada tinha de tolo, receara que o convite de Ferro “fosse um tanto comprometedor, no sentido em que são, de ordinário, os convites dos Secretariados Nacionais de Informação, mesmo quando deixam de se intitular de Propaganda. E acabou por aceitar terceiro convite, este dimanado do Ministério do Ultramar - tão apolítico em Portugal como é o Itamarati no Brasil”.

 

Finaliza, nos seguintes termos:     

 

“Embora redundando num convite prestado à situação política então vigente em Portugal, não o terá sido inteiramente, na maneira em que, por exemplo, denunciou o regime concentracionário observado na Lunda (Angola) e os incivilizados processos que a companhia concessionária da extração dos diamantes impunha ao pessoal de cor ao seu serviço. E foi tão frontal na denúncia que o comandante Ernesto Vilhena, todo-poderoso administrador da Diamang, se viu constrangido a defender a companhia diamantífera em páginas cerradas de argumentação compradas como espaço publicitário do Diário de Notícias”.

 

29.11.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICAS LUSO-TROPICAIS

 

6. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO
CRÍTICAS E MÉRITOS (III)

 

Torna-se necessário expor alguns argumentos em defesa de Freyre.

 

É de sublinhar, em primeiro lugar, o seu contributo fundamental para a reabilitação dos “trópicos”.   

 

Durante décadas foi uma expressão equiparada pelos europeus a exotismo, algo de estranho, uma realidade que era tida como alheia à denominada “civilização ocidental”, transportando consigo conotações negativas. 

 

Também o termo “tropical” nos aparece como sinónimo de exótico, abrasador, diferente e marginal, fora do que é usual e comum, associado negativamente a estigmas de doenças tropicais, a primitivismo, a decadência, a barbárie, a selvajaria, ao degredo, ao anti-desenvolvimento, à negação da saúde, da agricultura, do comércio, da indústria, da civilização, porque anti-civilização. 

 

Esta leitura está bem patente no livro “Tristes Trópicos”, do francês Claude Lévi-Strauss, com a particularidade de fazer uma descrição do Brasil. 

 

Como é enfatizado pelo próprio título da obra, os trópicos são tristes, sendo sugestivo o seu início, onde se lê:

 

“Odeio as viagens e os exploradores. E aqui estou eu disposto a relatar as minhas expedições. Mas quanto tempo para me decidir! Quinze anos passaram desde a data em que deixei o Brasil pela última vez e, durante todos estes anos, muitas vezes acalentei o projeto de começar este livro; a cada vez, era detido por uma espécie de vergonha e de repulsa, pois será mesmo necessário contar minuciosamente tantos pormenores insípidos, tantos acontecimentos insignificantes?” (edições 70, p. 11).   

 

E acrescenta, prosseguindo:  

 

“É possível, (…), consagrar seis meses de viagens, privações e lassidão fastidiosa para se recolher (…) um mito inédito, uma regra de casamento nova, uma lista completa de nomes clânicos, mas esta escória da memória: “às 5 e 30 da manhã entrávamos na doca de Recife em meio ao grasnar das gaivotas e uma frota de mercadores de frutas exóticas que enxameava ao longo do casco”, essa recordação tão débil, merece que eu erga a minha pena para fixá-la?.   

 

E, no entanto, esse género de narrativa goza de uma aceitação que para mim continua inexplicável” (idem, p. 11/2).    

 

Trata-se de uma careta de escárnio, de um ponto de vista carregado de tédio e enfado, num tom desinteressante, entediante, angustiante e penoso, emitido por um francês oriundo de um centro da civilização, a França, com a missão de “civilizar” a periferia dos trópicos e as suas populações, tristemente depreciadas, baseando-se Lévi-Strauss na noção de alteridade. 

 

Sendo “Tristes Trópicos”, de 1955, um livro de viagens, não deixa de ser curioso que Freyre, em 1953, tenha publicado “Aventura e Rotina”, de igual modo uma obra de viagens.

 

Para Gilberto Freyre, ao contrário de Strauss, os trópicos não são tristes e enfadonhos,  nem periferias marginais, antes sim o lugar por excelência onde floresce uma civilização original, mais humana e universalista em muitos aspetos, com especial incidência nos espaços marcados por aqueles que em seu entender são portadores do verdadeiro destino tropicalista, os portugueses. Eis os trópicos e a civilização lusa condensados no luso-tropicalismo. 

 

À alteridade de Lévi-Strauss, contrapõe Freyre uma proclamação pública de similitude, procurando anular e superar distâncias e antagonismos, elogiando e defendendo a possibilidade de ultrapassar esse dualismo e oposição do Outro. 

 

Freyre, fala-nos numa língua não dominante e do hemisfério sul, tido como não hegemónico; Lévi-Strauss, fala-nos numa língua tida então como hegemónica e partindo do hemisfério norte, tido como dominante.     

 

Isso não o impede de defender que o mundo tropical não é um mundo “antiquado”, “arcaico”, “enfadonho”, “entediante”, “desinteressante” e “exótico”, face a um tido como “desenvolvido” e “normal”.     

 

Que não é um mundo “estático e parado” face a um outro “dinâmico e em movimento”. Tropicalismo não é equivalente a primitivismo.   

 

Eis um inquestionável contributo de Gilberto Freyre, diferenciando os “trópicos” pela positiva, sem complexos.        

 

22.11.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício 

CRÓNICAS LUSO-TROPICAIS

 

5. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO
CRÍTICAS E MÉRITOS (II)

 

Cláudia Castelo emerge com a sua análise crítica na tese de mestrado “O Modo Português de Estar no Mundo: O luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961)” (Porto, Edições Afrontamento, 1998).

 

Entende que o Estado Novo usou o luso-tropicalismo para fundamentar a presença de Portugal em África, com a aceitação de Freyre.   

 

Sublinha que duas obras que versam sobre a temática do luso-tropicalismo, como “Integração portuguesa nos trópicos” e “O luso e o trópico”, de 1958 e 1961, respetivamente, foram “encomendadas” e publicadas por organismos do Estado português. A primeira, pela JIU, fazendo parte da coleção ECPS. A segunda, pela Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, no decurso do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos. Segundo as suas palavras “O Estado Novo utiliza estes livros, supostamente científicos, como instrumento de propaganda e de legitimação da sua política colonial. Se a manipulação político-ideológica é exterior aos textos, no interior dos textos radica a sua possibilidade. O autor não deixa de ser conivente com esse processo” (p. 37).

 

Tendo o luso-tropicalismo como uma ideologia, em face da manipulação feita pelo Estado Novo do pensamento de Freyre, sustenta que a sua natureza supostamente científica resulta, sobretudo, graças à propaganda salazarista, adquirindo então uma credibilidade excessiva, ajudando a perpetuar uma imagem mítica da identidade cultural portuguesa. Critica os pressupostos de que parte, baseados em lugares comuns sobre o caráter positivo e imutável do português, bem como os apriorismos sobre o seu modo de ser e de estar no mundo, via anunciação de uma civilização ideal. 

 

Assim, “A comunidade luso-tropical de que fala GF nunca deixou de ser um mito e uma aspiração. O luso-tropicalismo (à semelhança dos seus “sucedâneos” portugueses) foi inventado “de costas voltadas” para os factos históricos e para a totalidade concreta. No entanto, perante a existência de práticas que “desmentiam” o modelo luso-tropicalista, Freyre ilude o problema: considera que não é a validade do modelo que está em causa; essas práticas é que contrariam a “tradição portuguesa”” (p. 140).

 

Critica também a tendência gilbertiana de tomar como referência a bem sucedida experiência da colonização portuguesa no Brasil, generalizando-a no sentido de dela tirar semelhanças aplicáveis às restantes colónias lusitanas. Esta tendência para a generalização, não se coaduna com a especificidade de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Índia Portuguesa, etc., porque “Realidades geográficas, étnica e culturalmente diferentes são-nos apresentadas como partes de um todo coeso e coerente” (p. 39).   

 

Já o investigador e jornalista português Jacinto Baptista, após se referir a convidados e propagandistas estrangeiros do salazarismo, afirma que casos houve em que a “festança e papança” não se limitou ao retângulo continental europeu, tendo tido como caso mais notório o da viagem de Freyre, “o inventor e propagandista do luso-tropicalismo, a grande parte de o mundo que o português criou (…) e de que veio a resultar a alentada obra intitulada “Aventura e Rotina” (“História de Portugal, O Estado Novo (III), volume XVII”, p. 62). 

 

15.11.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICAS LUSO-TROPICAIS

 

4. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO
CRÍTICAS E MÉRITOS (I)

 

Toda a obra e trabalho é passível de críticas, não sendo GF uma exceção.

 

Por maioria de razão tratando-se de um autor inovador e ousado, com uma nova interpretação da colonização portuguesa nos trópicos, até chegar ao luso-tropicalismo, um dos pilares da lusofonia. 

 

O luso-tropicalismo e a análise dos seus múltiplos aspetos, é um tema discutido essencialmente nos meios universitários, onde prima uma tendência que vai no sentido de o considerar como uma ideologia ou doutrina ao serviço do colonialismo português.

 

Na sua análise crítica destacam-se dois africanos de origem lusófona: o angolano Mário Pinto de Andrade e o escritor cabo-verdiano Baltazar Lopes. Merecem também referência o historiador inglês Charles Boxer e a portuguesa Cláudia Castelo.

 

Mário Pinto de Andrade, sob o pseudónimo de Buanga Fele, foi o primeiro autor a criticar explicitamente o luso-tropicalismo, num artigo intitulado “Qu`est-ce que le  luso-tropicalismo?”, publicado na revista “Présence Africaine”. 

 

Critica o desinteresse de Freyre em relação às questões económicas e políticas do colonialismo português, afirmando que é a recusa de pensar o funcionamento do aparelho colonial como sendo o primeiro responsável de uma empresa económica dirigida por um poder político, que determina a fraqueza da sua sociologia. 

 

Diz existir uma disparidade entre a teoria e a prática luso-tropicalista, argumentando que nunca houve reciprocidade cultural nos territórios tropicais colonizados por Portugal, sobretudo nas colónias africanas.   

 

Não aceita que a mestiçagem seja uma tendência portuguesa, não a vendo como um indício de convivência fraterna, igualitária e pacífica entre raças diferentes, defendendo que a causa real da intensa miscigenação no Brasil foi o reduzido número de mulheres brancas (razão conjuntural) e não caraterísticas intrínsecas de natureza cristã, moral ou política inerentes a uma visão superior dos portugueses. 

 

Toda a cultura luso-tropical está viciada desde o início, uma vez que nos territórios coloniais portugueses, nomeadamente africanos, sempre houve uma relação de cultura dominante sobre culturas dominadas. 

 

O luso-tropicalismo resulta de uma falsa interpretação da génese da expansão marítima portuguesa, fundamentando uma falsa interpretação da “civilização luso-tropical”.

 

Conclui que o luso-tropicalismo seria, ao mesmo tempo, um conceito, uma conceção, uma teoria, um método e um sistema de colonização.

 

Baltazar Lopes, por seu lado, critica as páginas de “Aventura e Rotina” dedicadas por Freyre a Cabo Verde, considerando superficiais as suas observações sobre a realidade local, denunciando alguma repulsa à cultura material e imaterial cabo-verdiana, à culinária local e ao crioulo. 

 

Um dos aspetos que mais o chocou foi o modo como o sociólogo brasileiro abordou a questão do crioulo, secundarizando o seu valor literário, ao contrário de Lopes que o via como uma verdadeira afirmação de independência regional e como um instrumento literário cheio de possibilidades.

 

Censura-o ainda por não se ter apercebido da originalidade da mestiçagem de Cabo Verde que tem como anterior à que se veio a realizar em grande escala no Brasil., acusando Freyre de ter sucumbido a uma perceção eurocêntrica.   

 

Boxer, por sua vez, em 1962, em lições prestadas na Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, ensina que as relações raciais no império colonial português não correspondiam, no essencial, a uma integração harmoniosa que o luso-tropicalismo faria supor e o governo português de então aproveitava. No período compreendido entre os séculos XV e XIX os portugueses, à semelhança de outros colonizadores europeus, foram marcadamente racistas. As exceções, poucas, confirmam a regra.     

 

08.11.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício