Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA


Henry J.Y.King


Há que entender o mistério da amizade sem a meter ao mesmo nível essoutras amizades comuns, as que Aristóteles referia: «Ó amigos meus, não há nenhum amigo!»

Acham-se muitas pessoas aptas a relações superficiais, mas quando o trato se estabelece a partir do fundo do coração, necessário se torna que tudo seja límpido e fiável e a raridade desta situação leva a que se diga:

se encontrasse um amigo e se fossemos os dois boa luz dessa amizade, nada nos poderia comparar.

E vislumbrar a sombra de um amigo? sem andar à cata de outros? seríamos então metade de tudo um para o outro sem nos roubarmos parte alguma um ao outro.

Seria grande a fortuna de sermos um de dois em todo o lado dos tempos, e nenhum sobreviveria inteiro, se o outro partisse.

Não haveria limites para a saudade se essa realidade acontecesse. Não haveria nada mais certo de que o amigo-irmão seria sempre amado nessoutro mundo para onde os rios sempre correm.

Mas se os próprios rios ora se esparzem ora se contêm e até por eles entra o mar, como não relacionar estes factos com a vida da amizade, grande senhora da topografia dos sentires que nos dá novas do resto do mundo e assim se assume e arrisca.

Na verdade, o mistério da amizade produz um ninho de avezinha e acha-se muito próximo de um primeiro estado natural, mesmo quando o mais usual seja sermos melindrosos juízes das suas dissonâncias e quase cegos das nossas; seja mesmo, no limite, aceitarmos que o amigo pode ser imprevisível, mas afinal nunca vencido em paralelo, e este grande mistério da amizade envolve sim, o marchar à frente das razões quando se enfrenta a vida.

E combatemos assim, e combateremos assim por uma nação sem sucessões, riquezas, superioridades, servidões, parentescos, e de lá nunca sairá um amigo doente ou um amigo que agrade às brumas dos espíritos comuns.


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

  


À noite, no arraial, era agosto a dançar na ideia dos beijos de setembro. Ah! setembro na vindima!

Bastava a ideia para o cansaço se evaporar.

Eram jovens ainda

e no calor do contacto entre eles, sumia-se o sono das ave-marias, e que o terço durasse o que durasse

para que as folhas das videiras pudessem ter tempo de rogar por um escondido tão escondido,

que aquele cacho de tão belo e grande e sumarento,

ninguém o cortaria não,

pois era amor, era desejo, era deslumbre, tudo confessado em redondo,

e era vinho que de tão santo era capaz de muito,

e como amor com amor se paga,

na véspera de uns meses depois, o anúncio de que haveria no ano seguinte um Natal com o rosto universal de mais uma vida.


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

  


O rio corria miúdo feito riacho largo e solto. A água precipitava-se pedras abaixo até que em jeito de cascata vertia para um pequeno lago verde e calmo. Que poderia fazer agora?

Olhou de lanceiro o rebanho quedo e lanzudo que o olhava também cheio de perguntas,

e arrastado, não sabendo porque fome de aventura, logo se despiu e mergulhou naquela pia batismal, no compromisso do quando finalmente

chegara a sua vez.

E ali, ali ninguém viria quebrar-lhe o abandono.

Ali, era agosto que lho pedia!

No rapaz-pastor de um passado já muito longe, cabia agora o homem-presente:

barro, no localizar-se no mundo;

barro, no somar as metades de uma serra;

barro, nas moradas do rebanho pelas noites;

barro, no segredo da sua intimidade;

barro humano que pergunta a quem?

Depois, vestiu-se, e o silêncio que lhe assistia e que dele se não arredara nunca,

companhia, companheiro,

seiva madura

que de tanto nada dizer sempre foi verso, reverso, medalha, sepultura, e Cristo ao ponto de lhe ouvir a voz.

Depois, de novo depois, lentamente

foi dobrando a vida até que os extremos se tocaram.

Afastou-se então passo a passo,

deixando atrás de si a água pastada tão rumorosa como um canto.

E nem de propósito, ou porque estava escrito, lavou a cara com as lágrimas, chamou o cão:

que foi, que foi? Não te cheiro ao mesmo? 


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

  


O padre olhou-o sério e em silêncio avaliando a força do que ouvia.

Parecia-lhe que se anunciava uma outra espécie de trespasse da vida daquela gente para quem preparava a homilia de todos os dias,

e parecia-lhe que a de hoje, em verdade e em verdade deveria ser assim:

Meus irmãos:

reclamam os tempos que correm que haveis de ter presente que a dona de todas estas terras e arredores que conheceis,

ou de que ouvistes falar,

pretende aumentar-vos os tributos, as rendas, enfim, o modo de pagamento que com ela acordastes.

Meus irmãos:

vós trabalhais descomedidos e no muito no duro; vós tendes doentes e filhos em casa; enfim, vós sois bem pobres e nada devem, bem se sabe,

como se sabe que pelo caminho que isto leva, a fome rasteira é gume que vos ceifará.

Meus irmãos:

encarregaram-me de vos dizer que haveis mesmo de pagar mais ou perdeis o arrendo.

Meus irmãos:

Jesus pediu-vos que acreditassem na Boa Nova, no Pão da Vida.

Assim, e perdoando-vos uns aos outros, se algum tiver queixa contra outro,

dizei que da cava e da lavra e do desagasalho, pagareis a vossa parte,

mas tão só a vossa parte.

Meus irmãos:

Agosto não é o que o destino quis.


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

  


Dizia-se na povoação que os sinos quando andam muito calados é para não acordarem a morte.

Sempre em agosto

a vida parecia começar de novo num sentido simples de tudo e nada e poderia anunciar até o nada pois que depois do nada era o céu e dele nada se sabia.

Não tenhas pressa,

dizia a Cila para a filha.

A trovoada seca precisa de mais tempo para ir embora, e depois, quando repenica já vai longe. E não te aflijas,

rapazes há muitos terras fora, se este não vier, merece carregar um andor de espinhos.

Mas virá depois da trovoada.

Esteve à porta de manhã para saber de ti à fina força.

E a mãe? Que disse?

Ainda é cedo.

Mas é agosto!

Se o remédio fosse esse! Ó filha, não me iludo.

Tudo chega ao fim da estrada.

Ouve, que te não minto: se não conseguires ver o céu, então deixa-o a Deus.

Mas escuta, os sinos não tocaram.

Vai haver mais futuro.


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

  
Fotografia de Isabel Ramos


Encandearam-se com os olhos um no outro.

A rapariga era linda e fresca como só ela.

As cerejas à volta do chapéu, a fazer de brincos e encadeadas a fazer de colares, e nas mãos aquelas a dizer, comei-me.

Ele mudou de cor ao vê-la e chegou-se afogueado qual criança na pureza de algo inteiro.

Era agosto.

Os instintos todos acordados à beira-terra-céu.

Ora bota aqui meia dúzia na minha mão, disse o João Quim tentando recusar-se a olhá-la com desejos.

Dou-te estas com folhas e tudo. Estão ditosas, não achas?

Que lindo, disse enlevado.

O que lhe dizer mais? Faltavam-lhe as palavras. O namoro, contudo, tinha começado, assim, adivinhando-se.

Ao final da tarde encontraram-se no centro da aldeia. As palavras não saíam. Enrolava-se a coragem na língua,

mas sabiam que se amavam.

As cerejas, as cerejas tinham sido a fonte de tudo começar, dizia-se.

Feiticeiras, rubras, tão rubras.


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

  


“Aqueles que queimam livros, acabam cedo ou tarde por queimar homens.”
Heine


Tragicamente, existem muitos processos de queimar livros, de espremer vidas lentamente confundindo-as, levando-as à destrutibilidade, fazendo-as crer que nunca saberão nada nas suas limitações, na questão das origens, na questão do amor, na questão dos deuses, na questão da liberdade.

Porém, acreditamos que as pessoas que compreendem os perigos, conhecem a jugular da condição humana, as lentes que podem dobrar a luz.

Então, há que não esquecer o quanto a história cultural esclarece os fascínios, as repulsas, os medos, todos espécie de convidados de nós próprios, nós, os anfitriões de famílias e outras instituições-celebrações, e parte integrante do permitir e do julgar, impiedosos e vulneráveis, confinados e confinando num sistema que uma vez dentro, parece não haver saída, mas há! E, a propósito, a partir dessa saída não se serve nenhum guru.


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

  


«Nous ne pouvons plus rien aimer, rien estimer, qui ait la marque de la soumission», afirmou Bataille!

E Sophia:

«Apesar das ruínas e da morte,

Onde sempre acabou cada ilusão,

A força dos meus sonhos é tão forte,

Que de tudo renasce a exaltação

E nunca as minhas mãos ficam vazias»

E Vaclav Havel:

«A verdade e o amor devem prevalecer sobre as mentiras e o ódio». Esta a sua máxima e sempre um coração acompanhava a sua assinatura»

E sempre se perguntou:

E se os teus dedos tocarem o que os teus olhos não viram? Como interpretas?

E se alcançares o grande heroísmo que na guerra nunca atingirias? Como interpretas?

E se a faúlha nunca te abandonar e fores capaz de percorrer a geografia e a antropologia dos povos e o teu pretexto tiver vida própria, por muito condenado que esteja à clandestinidade?

Continua uma batalha em curso pela alma do mundo, e se nela há esperança, é porque há força criativa e revolta contra a ofensa à dignidade do ser humano na defesa da própria ideia de verdade enquanto significado da primazia dos factos.

Como é possível que quem acumula qualquer modo de poder desprezando os direitos humanos, se afirma falar em nome das massas? Os gabinetes dos donos do mundo estão apartados das necessidades das pessoas comuns, é sabido, e ainda deles se reclama a chamada “única palavra”?

Quem não prestou atenção a tudo isto? 

E o que se sabe das fantasias compensadas pela ignorância, quando um génio da sorte libertado por uma garrafa, por uma cautela, pela negociação de promessas, nos concede desejos instantâneos, tudo capturando no seu interior?

Quem não acordou para a realidade de sermos uma só espécie inconclusa?

Enfim, cabe-nos, no que dizemos e como agimos, galvanizar o alerta ao fanatismo, à intimidação, ao ódio, aos monstros, a fim de que nos ofereçamos a nos interpor às forças desencadeadas contra nós, e que o deixemos claro: por escrito, por leitura, por posto de trabalho, por família, por amor, por vida!

We shall not be moved

 

Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

  


A grande caça ao homem existe ou não existissem espécies de vida sem convicção.

Vidas, quantas vezes, já não a tempo, ou no desamparo do quase não a tempo.

Os incautos homens mirrados que vivem dentro dos próprios sarcófagos, diga-se, foram atraídos para eles pelos cantos das sereias que lhes prometeram e prometem o ouro dos tolos.

Há que desvendar os mistérios dos objetivos desta caça, para que se entenda a motivação, o interesse inicial que se concentra no que torce e distorce até que as realidades sejam apercebidas pela forma que se impõem como verdade.

Há que registar que se enviam para muitos campos de batalha os espíritos criativos - considerados como os mais problemáticos - a fim de que sejam decapitados nas ditas guerras justas.

Parece que se desconhece a ideia da liberdade, essa mesma que envolve a do seu pressuposto, e consequentemente aquela que tem a capacidade de rejeitar a ideia recebida: a que insiste sempre em marchar fora do ritmo.

Todos contribuímos para deixar este mundo intolerante e mesmo retrógrado a que se chegou, mas este mundo ainda tem uma beleza e uma potencialidade espantosa.

Que as novas gerações resistam a não respeitar o que não merece respeito, há que ser cético em relação ao que nos pretendem fazer engolir; há que pensar na proposta de John Lennon «E se não houver céu».

Sonhem!

Creiam que a ideia não morre!

Que à ideia, a felicidade não é suficiente: antes, a sua procura é a que também recebe as visitas do mundo na sua estranheza.

E vós – e ainda nós - a partir daí.


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

  


A sombra suplanta em tamanho o seu dono, mas não confunde quando se decide executar o homem.

Se as sociedades tivessem esta consciência, sinal seria de que se avançara através do questionamento, o que impossibilitaria a miniaturização dos seres e o seu consequente abate.

É certo que a argumentação, mesmo a interrogativa, pode tomar direções retrógradas, mas entendemos que o indagar, é o que nos permite não nos deixarmos encerrar por pensamentos dominantes.

Bem se tem conhecimento real de que a bestialidade promulga leis como resposta às ideias de quem se não submete; e, utiliza leis, a fim de usar a mascarada teatral que indica quem está certo ou errado, o que não carece de esforço de entendimento por parte de quem nem sabe que desistir da liberdade é extinguir-se a si mesmo.

Mas «liberdade» é algo conquistado ou também algo em dúvida? Que palavra de poder, «liberdade»!

E afinal saberemos nós procurar a composição dos âmagos que abarca? Teremos apurado esse instinto nuclear?

Les Hirrondelles de Kaboul, esclarecem-nos, como a seu tempo expressámos.

Ansiamos a liberdade e queremo-la de volta se a mesma nos tiver sido retirada, mas há sempre trabalho a fazer.

O desejo e a vontade de liberdade são indivisíveis como bem nos transmitiu Nelson Mandela «as correntes em todo o meu povo eram as correntes em mim».

O grande alerta é o de que o oposto deste pensar-sentir está a ressurgir e com ele a anatematização.

Regressa o uso da religiosidade do líder quando tudo o que é mau é o que está fora do seu domínio, e incute-se o medo desmensurado a fim de que a sociedade soçobre ao comando, ou se entregue por se crer definitivamente vítima.

Resultou do Príncipe de Maquiavel o quanto o medo é um instrumento de governação mais eficaz do que o amor.

Mas recordamo-nos também que George W. Bush declarou memoravelmente que «um líder é alguém que une as pessoas», por oposição a quem afirma que todos o seguem.

Há que desmascarar com urgência a variedade de aiatolas que nos rodeiam e que vão sobrevivendo e se vão reforçando, graças aos donativos das ignorâncias catastróficas que tão em coro, papagueiam clichés de uma estupidez charlatã.

Afinal, pensar por si, pensarmos pela nossa cabeça, não é um dado adquirido.

Mas se nos reclamam como membros de pertença e titulares de um bilhete de pensamento de grupo, eis-nos face à possibilidade do nosso eu valioso se expor.

 

Teresa Bracinha Vieira