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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ

  


6. OBÔ, CASCATA SÃO NICOLAU E CASA MUSEU ALMADA NEGREIROS


1. Nas áreas de maior altitude da ilha, onde o meio não facilita a intervenção humana para atividades agrícolas, mantém-se o tipo de vegetação primitiva ou dela próximo. É a zona do Obô, uma floresta de nevoeiros, densa e húmida de montanha, ocupando o interior e o centro das duas ilhas do arquipélago (e zonas dispersas), cobrindo 235 quilómetros quadrados em São Tomé e 85 do Príncipe.   

No Jardim Botânico do Bom Sucesso, porta de entrada do parque natural do Obô, só houve tempo para uma visita, conduzida pelo guia, à sede e espaço envolvente, não permitindo caminhadas pedonais ou conhecer o pico mais alto e a lagoa. Muito menos estudar e investigar o que estudiosos e investigadores de todo o mundo aí estudam e investigam.

Em canteiros e espaços trilhados ao longo do caminho, há uma enorme variedade de espécies e flores. Desde curas para todos os males, de aplicações terapêuticas, como a árvore cata-grande (a casca é usada para baixar a tensão e tratar a diabetes), folha de goiabeira (diarreia e tosse), marapião (dores de dentes), pau-sangue (anemia), folhas de cêlo-sum-zon-maiá (gripes), planta da quina (chás da malária), casca da nêspera do bô (hérnias), pau-três (dores de barriga e efeitos afrodisíacos), folhas de pau-parto ou pau-cabra (com que as mulheres tomam banho quando em trabalho de parto), pega-rato (cólicas), folhas de sapo sapesapeiro (febre tifóide e malária), caneleiras, cafeeiros, cacaueiros e, claro, a singular não me toques.   

Há também vários tipos de micocó: usados na culinária, em chá para asma e problemas respiratórios e de poderes afrodisíacos. Sem esquecer a planta medicinal bordão do macaco (massagens, infeções intestinais e banhos de recuperação após o parto). A que acresce a sonífera bunga, cuja folha colocada e deixada, alguns minutos, num copo com água ou vinho, e bebida, de seguida, pode fazer dormir 24 horas contínuas.   

Há que mencionar as flores, como a flor de Jorge Tadeu (antúrio de São Tomé), a rosa de porcelana (de caule e folhas grossas, com um centro em forma de pinha e pétalas carnudas) e os bicos-de-papagaio (cachos de flores, em que as fêmeas caem dos ramos e os machos crescem para cima, sendo um dos símbolos do país).

A entrada era gratuita, mas a doação em dinheiro, no final, é encorajada, havendo orgulho no trabalho aí desenvolvido.       

2. O itinerário prossegue com parada na cascata São Nicolau, uma imponente queda de água em longo véu, com 60 metros de altura, que acaba numa piscina natural, de águas frescas, disponível para mergulhos, em especial na época das chuvas. 

Sombreada e ladeada por uma floresta verde, que se adensa na zona, é um monumento turístico natural, onde a beleza e o som da água a cair, associada à quietude e trinar dos pássaros, nos faz sentir de bem com a natureza.

Depois de tocados e relaxados pela seiva da queda de água que nos refresca, seguimos para a roça onde nasceu Almada Negreiros.     

3. José Sobral de Almada Negreiros nasceu na roça Saudade, Trindade, em São Tomé, em 7 de abril de 1893, onde há documentação a certificar o seu nascimento. O seu pai foi António Lobo de Almada Negreiros, alentejano, jornalista e escritor, nomeado administrador do concelho de São Tomé, onde desposou Elvira Freire Sobral, uma mestiça abastada são-tomense de ascendência angolana, que morreu em 1896, com 23 anos, cujo filho saiu novo da ilha para não mais regressar.         

Foi no local onde este artista multidisciplinar (das artes plásticas, da escrita e do modernismo) nasceu, que houve (e há) uma tentativa de recuperação do seu passado. Iniciativa do proprietário e comunidade local, ao que se indicia, até agora, bem-sucedida, através de uma reconstrução de ruínas que se multiplicou a um restaurante, sala de chá, casa-museu e uma guest-house, num espaço aprazível, verde e acolhedor, por entre dizeres, escritos e memórias de Almada Negreiros. Onde também se ouve o canto ameno e suave do ossobô, pequeno pássaro de asas verdes.

Além da esplanada do restaurante, no primeiro piso, com vista sedutora e a reter, sobre a verdura da zona e ao fundo o mar, há uma outra para chá, no rés do chão, com desenhos e escritos murais alusivos à história da roça relacionada com a vida e a obra de Almada. Motivos referentes ao artista são extensivos a todo o espaço, desde a entrada com uma escultura em preto e placas evocativas a um “Almada Negreiros Africano: filho de São Tomé e neto de Angola”, passando pelo restaurante e paredes das casas de banho, até ao interior da casa museu com um retrato da mãe, uma cópia da famosa pintura da autoria de Fernando Pessoa, pósteres de exposições na Fundação Gulbenkian, livros da obra do homenageado, além do inevitável artesanato africano.         

O serviço do restaurante, com duas entradas, prato principal e sobremesa, era fixo ao dia, tornando a refeição mais célere, mas sem alternativa, a querer imitar uma degustação mais europeia e sofisticada, a necessitar de evoluir, como o projeto, no seu todo, a todos os níveis, dadas as potencialidades, não obstante ser justo reconhecer, como estimulante e gratificante, o que já existe.

Sugeri, a quem cuida e explora, para diligenciar por contactos, internos e externos, incluindo parcerias, para a preservação, implemento e manutenção deste espaço, com um tão singular cunho e “cheiro” cultural. O que pode ser extensivo ao estudo e investigação da relação que teve Almada com África (num tempo em que a influência da arte negra sobre a arte moderna era indiscutível), a começar por São Tomé. O que faz sentido, uma vez ser meio-africano.


08.11.24
Joaquim M. M. Patrício 

CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ

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Monte Café – S. Tomé © Ji-Elle/Wikimedia Commons


5. FERNÃO DIAS, BATEPÁ E A ROÇA MONTE CAFÉ


1. A 3 de fevereiro de 1953, houve em São Tomé acontecimentos violentos que ficaram conhecidos como o massacre de Batepá (do português coloquial “Bate-Pá!”) ou guerra da Trindade. No início da década de 50, coincidindo com a alta cotação do cacau, cresceu a escassez de mão-de-obra nas ilhas de São Tomé e Príncipe, que assentava no trabalho contratado e forçado, por regra assegurado por angolanos, cabo-verdianos e moçambicanos. Ao programar superar tal carência, pretendeu o governo obrigar os forros (nativos são-tomenses) ao trabalho contratado nas roças, deixando de ficar abrangidos pelo Estatuto do Indigenato, que recusava o trabalho assalariado e coagido, gerando protestos, reforçados por anteriores medidas da administração colonial que visavam, na prática, obrigá-los a trabalhar nas obras públicas e nas roças.  

Perante o desmentido oficial das autoridades e o arrancar, por alguns forros, das declarações por aquelas afixadas em Batepá e Trindade, começa a repressão com o registo de confrontos, extensivos a outros pontos da ilha, num remoinho de violência, com abusos, assassinatos, rusgas, prisões, torturas, casas incendiadas, purgas no funcionalismo público, deportações e exílios. Várias pessoas foram enviadas para um campo de trabalho forçado em Fernão Dias, a fim de construir um cais acostável, onde um dos castigos era o de esvaziar o mar, causando a morte de vários nativos, cujos corpos foram lançados ao oceano.  

O dia 3 de fevereiro, feriado nacional, alusivo ao massacre de Batepá, de que não há certezas quanto ao número de mortos, apontando-se para mais de mil ou, no mínimo algumas centenas, é tido como a ocorrência mais penosa da história das ilhas e um momento de rutura com o sistema colonial.     

A brutalidade foi justificada, num primeiro momento, pelo governador (Carlos de Sousa Gorgulho) como uma tentativa (ficcionada) de reprimir uma conspiração comunista, a que se seguiu a defesa, por alguns, de uma exceção à regra da narrativa luso-tropicalista do colonialismo português ultrapassada pelos excessos de um homem louco.   

As vítimas, após a independência, foram transformadas em heróis nacionais, a primeira celebração oficial foi designada por “Dia dos Mártires do Colonialismo”, mais tarde como “Dia dos Heróis da Liberdade”, passando a ênfase do sofrimento da repressão colonial para a firmeza com que o povo (em luto) lutou pela libertação. 

Elevada Batepá a uma história de heroísmo (e não de subjugação), tida como o momento fundador do nacionalismo de São Tomé e Príncipe, havia que a materializar.   Assim se compreende, nesta perspetiva, ser local de passagem obrigatória a praia de Fernão Dias, onde há um monumento e um memorial às vítimas de 1953, dado ser para aí que foram levados muitos detidos do massacre, sem esquecer os lançados ao mar.  

Na sua simplicidade e dignidade, os movimentos curvilíneos, em tons de azul, do monumento representando o mar, ao lado de um memorial homenageando os que morreram, pode ser o desejo de um futuro melhor, sem esquecer, no presente, o passado, no que teve de bom e de mau, a que acresce as suas potencialidades em termos de turismo histórico.    

Também no centro de Batepá, onde parei, há uma homenagem condigna às vítimas do massacre, em cores apelativas e chamativas nas representações dolorosas e dramáticas que invocam, para que as gerações mais jovens e vindouras não esqueçam e vejam o futuro como um símbolo de união e desenvolvimento, não excluindo o passado comum.

2. Seguimos para a roça Monte Café, das mais antigas, fundada em 1858, que foi sede da sociedade agrícola Terras de Monte Café, que tinha como dependências, entre outras, as roças de São Nicolau, Bemposta, Saudade, Nova Moca, Santa Catarina e São José. 

Situada numa zona acidentada, a quase 700 metros de altitude, na região Mé-Zóchi, com uma ampla e bela vista, teve sempre um lugar de destaque como maior produtora de café, que mantém, produzindo e comercializando café artesanal e biológico, dos dois tipos existentes na ilha, o Arábica e o Robusta.    

Organizada segundo a tipologia “roça-cidade”, tida como mais moderna e correspondente a um aglomerado urbano, com terreiros ou eixos, ruas, bairros, praças, jardins, necessita de melhorias e obras de conservação, com exceção dos edifícios principais em atividade, entre eles o Museu do Café, dependências acessórias e de trabalho, uma vez ser uma das roças mais bem-sucedidas, aí trabalhando um número considerável de pessoas.    

Visitei o museu, arejado, organizado e limpo, onde aprendi e vi, guiado por uma guia, todos os passos de processamento da produção do café até à sua recolha e seleção, desde tempos idos. A compra do bilhete dá direito a provar uma das duas variedades. Comprei algumas embalagens de ambas em grão (também o há moído), com certificação biológica. 

Curiosa é a referência à passagem de trabalhadores chineses: “O património de Monte Café tem sido considerado como um espaço de encontro entre povos e culturas. Foi para tal determinante a contratação, como atestam os diversos registos, de coolies chineses oriundos da antiga colónia de Macau” (As Roças de São Tomé e Príncipe, de Duarte Pape e Rodrigo Rebelo de Andrade)   


01.11.24
Joaquim M. M. Patrício 

CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ

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Estátua de Pêro Escobar no Padrão dos Descobrimentos, foto de Luís Pavão


4. ENTRE MEMÓRIAS DO PASSADO E O PRESENTE (II)


1.
Prosseguindo viagem eis-me junto ao “Memorial da descoberta/achamento da ilha de S. Tomé a 21 de dezembro de 1470 pelos navegadores portugueses Pêro Escobar e João de Santarém”, onde fica o cruzeiro ou padrão dos descobrimentos, no local do primeiro desembarque.   

O acesso é mau, agravado pela ausência da ponte, que ruiu e caiu, forçando os veículos a atravessar a água da ribeira, quando podem e consoante a época do ano, o que foi possível, no meu caso. A degradação é geral, incluindo o monumento, um edifício inativado, mesas e bancos ao ar livre a fazer lembrar tempos idos de melhor preservação.

Degradado, mas não destruído, é um património que merece ser cuidado e reabilitado, quiçá através de obras de conservação e manutenção com a ajuda de parcerias público-privadas portuguesas e do Estado são-tomense.

Apesar da deterioração, há um sossego, uma tranquilidade, uma beleza colorida pela vegetação banhada pelas águas de uma pequena praia à beira mar, que nos “alheamos” da desolação e idealizamos um turismo histórico e cultural reinventado e descomplexado.       

2. De seguida, paragem na roça Diogo Vaz, uma das mais antigas, fundada em 1895, localizada num pequeno promontório elevado em relação à cota do mar e organizada sob um eixo perpendicular à costa, ladeado por terreiros em socalcos enquadrados por sanzalas e edifícios de apoio, com a casa principal (escritórios e casa do médico) no extremo oposto, com visibilidade para o mar e todo o eixo da fazenda.   

Mantendo a tipologia-base em avenida, sendo a primeira estrutura do género, possibilitou aperfeiçoar e testar o modelo de roça-avenida, para a posterior construção da Rio do Ouro. 

Tendo passado por várias fases de construção, reabilitação e modernização, notório na conservação dos edifícios mais emblemáticos, é um dos exemplos de sucesso, de produtividade e rendimento, entre as roças de São Tomé. Prova-o a floresta de cacaueiros de variedades nativas e não endémicas, o chocolate de qualidade que produz, já consagrado como marca, exportado e premiado internacionalmente, que comercializa numa loja elegante na marginal da capital da ilha. 

3. A viagem prossegue até ao túnel de Santa Catarina, percorrendo uma estrada que é tida como a mais bonita da ilha, pelo que ouvi e li, o que pude presumir pelos reflexos solares, de tons levemente dourados e prateados, refletidos na água da praia e por entre palmeiras posicionadas uma atrás das outras, vergadas pelo vento, entre a estrada e a beira mar. Naquela hora, com a despedida solar, foi um dos momentos paisagísticos mais deslumbrantes e emocionantes que vivi em São Tomé.

Tudo a apelar a fotografias e vídeos, em vários ângulos, formatos e posições, o que é corroborado com a chegada ao túnel verdejante de Santa Catarina, escavado na rocha, onde a beleza da natureza, com a ajuda humana, predomina.

Não foi fácil chegar, dado o péssimo estado de conservação da estrada na zona de Neves, capital do distrito de Lembá, com enormes buracos, aberturas e desníveis do piso, agudizados pela queda de uma chuva forte e repentina, que deu oportunidade a porcos, cães e toda a gama de animais à solta fazerem bebedouro das covas e fendas rodoviárias, embaraçando o trânsito numa povoação desorganizada, compacta e populosa.  

Mais perplexo fiquei quando me apercebi estar ali instalada a fábrica da icónica cerveja Rosema, a única do país, e os depósitos de abastecimento de combustível, tornando incompreensível a degradação que acabara de ver. Respondeu-me, quem me acompanhava, que os camiões de transporte pesado de combustível danificam permanentemente as vias por onde passam, não sendo compensada, em contrapartida, a população local com as melhorias a que devia ter direito.

O dia findava e havia que regressar ao ponto de partida, o que fizemos voltando por Guadalupe, capital do distrito de Lobata.     

Deparei-me com uma cidade limpa, organizada, boa estrada de pavimento novo, passeios para peões, sinalética adequada, o que facilitou, e muito, a chegada à Cidade de São Tomé, dado o bom estado de todo o percurso. Enfim, uma surpresa, por contraste com o desleixo de Neves.

Perguntei, a mim mesmo: porquê esta disparidade, se ambas as cidades são capitais de distrito, urbes com indústria, embora Neves seja mais populosa? Não sei a resposta. Mas de uma observação atenta tive a intuitiva impressão de que em Guadalupe há habitações de qualidade acima da média, por oposição a Neves (muitas delas barracas).

Também em Guadalupe, ao passar pela igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, perguntei ao guia se havia em São Tomé algum santo ou santa de origem negra, como Nossa Senhora da Aparecida, no Brasil. A resposta foi negativa, pelo que sugeri, a ser assim, que podem importar o culto do Brasil. Ou ter santos nativos e negros de São Tomé e do Príncipe, O que faz sentido, pois só têm santos brancos. Ambos, bem-dispostos, rimos. Algum tempo depois, fim de mais um dia.


25.10.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ

  
     Baía de Ana Chaves, S. Tomé © Centro Nacional de Cultura


3. ENTRE MEMÓRIAS DO PASSADO E O PRESENTE (I)


1. A primeira paragem do dia foi no extremo sul da baía de Ana Chaves, na cidade de São Tomé, onde fica o forte de São Sebastião, erguido pelos portugueses, em 1575, diante do qual, no seu perímetro exterior, ao ar livre, estão as estátuas monumentais dos navegadores lusos João de Santarém e Pêro Escobar e do povoador João de Paiva. Retiradas de praças e jardins, após a independência, não foram, até agora, destruídas nem vandalizadas, sendo preservadas como património e memória histórica (o que é de louvar), como que parte ou a continuação do Museu Nacional de São Tomé e Príncipe, instalado no interior da fortaleza.   

A alva representação monumental dos homenageados, reforçada pelo obelisco que os acompanha, sinaliza-se à distância, contrastando com a discrição do tributo aí prestado ao líder anticolonial santomense Amador.   

O espólio do museu faz a retrospetiva possível da história e cultura que evoca, através de documentos artísticos e históricos, fotografias, esculturas, pinturas, recolha de objetos e reconstituição da vida diária nas plantações de cacau e café, departamentos públicos, residências estatais e eclesiásticas, desde a época colonial à atual, exemplificando-o a vida nas roças e o texto do hino nacional, subscrito por Alda Espírito Santo. De destacar também a capela do santo padroeiro, baluartes, farol, terraços e vista para o ilhéu das cabras.     

2. A CACAU (Casa das Artes, Criação, Ambiente e Utopias) é um caso pioneiro no panorama cultural de São Tomé, como o é João Carlos Silva a inovar e a caminhar por caminhos nunca antes caminhados. Seja na inovação e reinvenção da cozinha tradicional e de autor na roça de São João, na Fábrica das Artes e Cidadania Ativa (FACA), no autocarro Tata, uma biblioteca móvel levando livros e cultura a toda a ilha (como outrora a da Gulbenkian), sem esquecer a CACAU, o seu mentor mostra-nos que há algo de belo em ter uma missão, haja querer e perseverança para o tentar realizar.

Na CACAU há um museu, galeria de exposições, auditório, palco de espetáculos e eventos, espaço de dança, livraria, bar, restaurante, produção e venda de artesanato, tendo como objetivo principal promover a arte e a cultura. É também um centro polivalente de vocação aberta e transversal no que toca à educação, formação artística, empreendedorismo, aprendizagem, informação e animação turística, incluindo mostras permanentes e temporárias de pinturas e tradições culturais, com uma detalhada retrospetiva histórica, económica, social e cultural do país, dos primórdios à atualidade, não esquecendo o tchiloli, que persiste.   

Se a arte é essencial para construir cidadania, também é possível transformar São Tomé e Príncipe num entreposto cultural, com novos voos, parcerias bilaterais ou multilaterais e com o beneplácito do Estado local e de pessoas visionárias como João Carlos Silva.    

3. Se as roças foram o ordenador territorial do país e ainda são um polo central do seu desenvolvimento, ir a São Tomé sem ter uma noção da sua importância no passado, no presente e das suas potencialidades futuras é indesculpável.   

Após uma breve paragem na roça da Bela Vista, onde a casa principal é o edifício mais interessante do conjunto construído (seguido do hospital), e de uma visita à aprazível e discreta cascata Rio de Ouro, paramos na roça Agostinho Neto (antigamente chamada Rio de Ouro).       

É a maior e a mais emblemática pela sua dimensão e imponência arquitetónica em São Tomé e Príncipe, apesar do abandono e degradação a que está votada, organizando-se através de uma larga, longa e pavimentada avenida central, dominada pelo impactante hospital (de influência déco), na extremidade mais elevada, e ladeada pelo conjunto das sanzalas com terreiros privados, das casas dos feitores, encarregados, trabalhadores e pessoal dos escritórios, hoje ocupadas e habitadas por população local.   

É desolador constatar o desleixo e deterioração a que chegou um hospital que outrora funcionou com duas grandes alas, masculina e feminina, para doentes, consultório médico, enfermarias e farmácia, tendo ao lado uma capela.   

No extremo oposto ao hospital, ficava a casa do proprietário, antiga casa principal, substituída agora por um pavilhão de festas, museu ou algo similar. No espaço onde houve um jardim botânico, zoológico e um pavilhão de chá, há flora e vegetação à solta, onde sobressai uma planta conhecida por “não me toques”, a qual se fecha e dorme quando é tocada. Dizem os locais fazer lembrar a antiga proibição aos santomenses de tocarem nas mulheres portuguesas.     

Dentro das três grandes tipologias das roças, correspondia ao modelo da roça-avenida, mais complexa e organizada, em redor da espinha-dorsal constituída por uma alameda, situando-se nela, em tempos, o mais avançado sistema ferroviário do arquipélago, fazendo a ligação com o porto em Fernão Dias.       

Era uma espécie de joia da coroa das roças de São Tomé. Foi na Rio do Ouro que pernoitou, em 1907, o Príncipe Luís Filipe, filho do rei D. Carlos, aquando da sua visita à colónia.     

Mesmo desaproveitada e exposta ao descuido, é uma permanente atração turística, organizada de modo a condicionar uma visita guiada, com a obrigação de deixar um contributo para ajuda da comunidade, que nos recebe bem.     

E se é verdade que se as roças não estivessem localizadas em zonas interiores e remotas de São Tomé, o país não se teria desenvolvido tanto do ponto de vista viário, ferroviário e portuário, o mesmo releva, agora, em termos turísticos.    

4. Seguimos para a Lagoa Azul, antecipando uma paragem no topo da estrada, observando as águas azul-turquesa de um dos melhores locais de mergulho da ilha, com uma grande variedade de corais, a haver boa visibilidade.       

Junto à lagoa, somos abordados por jovens santomenses que expõem, para venda, artesanato local, que assim passam os dias, segundo apurei. 

Havia que satisfazer um pedido, de alguém muito especial e em trabalho de voluntariado: saber da situação do embondeiro, por ela eleito como seu, o qual, neste entretanto, desapareceu por arrastamento para a água, por destapamento das raízes com a erosão da terra onde assentava. Era de grande porte, segundo testemunho do guia, confirmado por quem o escolheu. Afinal, a lagoa, na sua idílica beleza de águas azul-turquesa ou verde-esmeralda, consoante a disposição da luz, também tem os seus caprichos.           

Almoço no Mucumbli, num refúgio que é um hino à natureza, como que a compensar o dissabor que acabáramos de ter.


18.10.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ

  
João Carlos Silva © Carmo Correia /Lusa 2008 


2. DA CIDADE DE SÃO TOMÉ A SÃO JOÃO DOS ANGOLARES


1. Após uma noite sossegada num hotel acolhedor, num quarto suficientemente espaçoso, bem posicionado e com uma vista encantadora, humana e marítima da capital da República Democrática de São Tomé e Príncipe, seguimos para sul, em viagem para São João dos Angolares. 

No percurso houve uma paragem em São Marçal, para ver uma escultura em madeira de jaca, alusiva à “Família”, na presença do autor, por entre ruas sem passeios, repletas de automóveis, motorizadas e pessoas, em movimentos contínuos de ar domingueiro, ouvindo-se música, observando-se homens a lavar viaturas, transeuntes de roupa lavada à mistura com algumas familiaridades africanas que os dias solares e o clima sensualizam.   

Aglomerado de pessoas, fora do comum, em Santana, causado por cerimónias fúnebres, penalizando o tempo da viagem, que tentámos recuperar, tendo-se atravessado, sem demora, Ribeira Afonso, onde magotes de lavadeiras esfregavam a roupa, deixavam-na a secar e, enquanto secava, lavavam a loiça na água corrente de que natureza é pródiga. São às centenas, desde as primeiras horas matinais até meio da tarde. 

Chegados a São João dos Angolares, há a impressão, à primeira vista, de um povoado proporcionalmente grande para o país, com placas toponímicas e de vária sinalética espalhadas pelo núcleo central e seus acessos, com o centro de saúde, o mercado e a escola, bem localizados e próximos. Num curto desvio e paragem, saboreámos a paisagem ao redor do espaço envolvente de um aprazível bar e restaurante, “O Mionga”, que significa “Mar”, no dialeto local.  Era hora do almoço e dirigimo-nos para a roça São João dos Angolares.     

2. Tem sido questionada, entre os historiadores, no contexto do debate sobre a origem dos angolares, a suposição maioritária de que São Tomé (e o Príncipe) era desabitada quando os portugueses lá chegaram. São tidos como um dos três grupos por que é constituída a população local, juntamente com os forros (crioulos nativos) e os tongas (descendentes de trabalhadores contratados). Quanto à sua origem, há três hipóteses que concorrem entre si.  

A mais antiga, acolhida e divulgada, diz que os angolares são descendentes dos sobreviventes de um navio de escravos oriundo de Angola, com rota para o Brasil, que naufragou nos ilhéus das Sete Pedras, na costa sudeste da ilha, no século XVI, posteriormente à chegada dos portugueses.  

A segunda alega que a ilha já era habitada pelos angolares aquando da chegada dos primeiros portugueses, sendo tidos como os habitantes autóctones, indígenas, nativos e originários de São Tomé, tese que foi oficialmente aceite pelos nacionalistas são-tomenses após a independência.     

A terceira e mais recente (das que conhecemos) defende que os antepassados dos angolares eram cimarrones, escravos fugidos nos séculos XVI e XVII, explicação largamente ignorada e recusada no país.  

Todas as hipóteses são contestadas, não reunindo, para os especialistas, factos históricos incontestáveis e incontestados. Quer se entenda prevalecer a tese do naufrágio, do nacionalismo que acarinha a hipótese da primazia africana ou se marginalize a teoria mais recente, é praticamente uníssona a não probabilidade de São Tomé ter sido habitada antes da chegada dos portugueses (a teoria da prioridade africana não é a mais consensual quanto à origem dos angolares).

Sobressai sempre, em qualquer caso, uma aura lendária e misteriosa em redor dos angolares, que permanece. 

3. Destaca-se na roça São João dos Angolares, um restaurante de cozinha de autor, de fusão entre o tradicional e o contemporâneo, que reinventa e inova, de João Carlos Silva, bem conhecido pelos programas televisivos de culinária Na Roça dos Tachos ou Sal na Língua. Um nome consagrado, à frente do criativo restaurante aí existente, que com arte e imaginação sonhou e concretizou, onde somos simpaticamente recebidos, num espaço de madeira onde pontua uma extensa varanda, com vista para a vegetação em redor, aí se singularizando a palmeira-leque. 

A anteceder o menu de degustação, é preciso passar pelo spa de boca. Há que tirar um gomo de cacau e chupar. Um grão de pimenta com um pouco de chocolate e mastigar. Segue-se a pasta de gengibre. E um copito de vinho. O pretendido é limpar o paladar de tudo, lavar o palato, depois comer, inovando com as capacidades medicinais das ervas e acréscimos de peregrinações gastronómicas.

Pode haver uma afrodisíaca omelete de micocó, ovas panadas com batata doce, atum de vinagrete, ceviche de espadarte com erva-mosquito, pimenta e coentros selvagens, feijoada à moda da terra, com choco e atum, preparada com pau-pimenta, micocó, óleo e fura-cueca, salada de papaia verde com erva-príncipe, mel e baunilha, abacate com azeite e gengibre, bolo de cuscus de mandioca, por entre o lavar o palato, provar, saborear, variar e recomeçar, até final.

O segredo não está apenas na frescura e na simplicidade, mas também na inovação e invenção, com um empratamento europeizado, mais acessível a turistas, num belo e apropriado espaço para aniversariantes (e não só), como pudemos testemunhar.   

A que acresce, como despedida, uma foto com o anfitrião, que prontamente se voluntariou, por maioria de razão ao lado de quem então me acompanhava e conhecia há vários anos.   

Pelo que lhe ouvi, em breve conversa, continua a sonhar, querendo realizar novos sonhos, o que não surpreende em alguém com visão, que tenta sempre e já concretizou vários planos, como pude constatar e observar.      

4. Findo o almoço, regresso à Cidade de São Tomé, com paragem na idílica e serena praia das sete ondas, tida como uma das mais bonitas da ilha.   

Nova interrupção na Boca do Inferno, resultado de um fenómeno natural, com uma ravina que as águas percorrem na direção de uma gruta, formando, em crescendo, ondas que com ressonância rebentam na rocha. No cimo, há um quiosque onde bebemos água de coco, com vista para o azul do mar.   

Houve ainda um desvio para a roça Água-Izé, com uma área residencial degradada e casas habitadas, ruas empedradas, armazéns, carris desativados, edifícios abandonados, entre eles o antigo hospital, de elegante e distinta arquitetura, a precisar de urgente recuperação, em frente do qual fomos abordados por crianças locais, que presenteámos e com algumas das quais nos fotografámos.       

Tida como a primeira roça a ter o cultivo de cacau em São Tomé (depois de introduzido na ilha do Príncipe), há nela, segundo o guia, uma cooperativa que o produz e emprega algumas dezenas de pessoas em permanência.   

Por fim, findo o percurso de regresso, chegada ao ponto de partida matinal.


11.10.24
Joaquim M. M. Patrício 

CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ

Ilheu das Rolas - são tome DR CNC.jpg

 

1. LEVE-LEVE


1
. Segundo a teoria mais plausível, João de Santarém e Pêro Escobar encontraram a ilha de São Tomé em 21 de dezembro de 1470, a que deram o nome do santo do dia, pelo costume então vigente. A 17 de janeiro de 1471 chegaram à ilha do Príncipe, no dia de Santo Antão ou Santo António Abade (nome inicial), a que foi dado, posteriormente, o nome atual, no reinado de D. João II, em honra ao herdeiro da coroa.   

Por mim, foi no dia de São Martinho, em agraciamento a outro santo bem popular, que cheguei, pela primeira vez, à ilha de São Tomé. 

Espera pesarosa, das malas, no aeroporto, em espaço improvisado e inadequado, da autoria, ao que me constou, da cooperação chinesa. Mesmo assim, para melhor, dizia-se. 

Uma demora a pedir paciência, lentidão, uma espécie de leve-leve, devagar-devagar, como lema do país, que os são-tomenses parecem usar e abusar. Por tudo e por nada? 

Há quem o pense, referindo a regularidade das falhas de eletricidade, a ausência ou lacunas da internet, as estradas esburacadas, arrastamento no atendimento e serviços, a falta de investimento, o desemprego, o saciar a fome sem esforço, tudo a associar-se para abrandar o ritmo do segundo país mais pequeno de África, a seguir às Seicheles. O que não invalida posicionar-se, de momento, acima da média dos países africanos nos índices de grau de desenvolvimento humano, à frente de Angola, Moçambique e da Guiné-Bissau, por exemplo.     

Há que tentar compreender o que é, na sua autenticidade, o leve-leve de São Tomé (e da ilha do Príncipe), como filosofia de vida e marca de identidade do seu povo.        

2. No poema de Alda Espírito Santo, cantado por Kalú Mendes, pode ler-se:     

“Leve-Leve     
Não é sabotagem, nem malandragem 
(…) Não é máxima velocidade, sem fazer travagem 
(…) É guiar com acerto, sem desacerto
(…) Não é andar na paródia, noite e dia, dia e noite, parado 
E entrar na repartição, com relógio na mão, à hora que Deus quer   
Leve-leve não é isso.     
(…) É providência que traz sempre prudência, com muita conveniência 
(…) É fazer sacrifício e entrar no liceu a hora   
(…) Não é barafunda, no país que afunda, deixando estar como está, para ver como fica
(…) É não correr à toa, como tudo o que voa
Leve-leve     
É andar com passo certo, para conhecer felicidade”.    

Leve-leve é uma maneira de ser e estar na vida, conveniente, frugal, pacífica, prudente, responsável, serena e simples, “não é máxima velocidade, sem fazer travagem”, mas sim “guiar com acerto, sem desacerto”, “andar com passo certo” para conhecer a felicidade. É o não esperar por amanhã para gozar ou usufruir o que se pode ter ou fazer hoje. O que não exclui caminhar ou desacelerar num passeio ou mergulhar numa praia deserta de água morna que se avizinha da estrada.   

Não é um assunto de pontuação, andar muito depressa, a toda a velocidade, é aprender a socializar e a viver com esforço, trabalhando com acerto, prudência e sacrifício. É procurar a felicidade, não achar que é só um direito e não uma aspiração.   

Há quem diga que a felicidade está nas pequenas coisas: no nascer e pôr do sol, no aroma e florir das flores, no cheiro do cacau e do café matinal. Tem que ser mais que isso, dado ser mais que um estado de espírito, sendo essencialmente uma atividade, em que só é possível sermos felizes esforçando-nos pela felicidade e trabalhando-a sem desacerto, sem ficar parado, sem atraso, sem correr à toa, sem barafunda, não deixando estar como está, para ver como fica, o país que afunda.

Se o leve-leve é esta mensagem de resiliência, de apelo e de confiança nas capacidades dos são-tomenses, plasmada num belo poema e embalada numa suave melodia africana, contrariando as adversidades do dia a dia, há que divulgá-la e adaptá-la aos tempos atuais, preservando o que tem de bom e expurgando o seu lado pejorativo.   

3. Há a ideia, quiçá predominante, de que o leve-leve é o culto do ir devagar-devagar, devagarinho, do deixa andar, do culto da preguiça, da indolência, da inação, de o que é censurável ser aceitável nas relações são-tomenses, incluindo atrasos, incumprimentos, quebras de palavra e compromissos, com reflexos sociais e culturais a todos os níveis, desde a ausência de infraestruturas básicas, à educação, habitação, saúde, etc. Facilitando amiguismos, além do mais.   

É um leve-leve tido como socialmente paralisante, gerando a necessidade de estabelecer uma fronteira entre o que é aceitável e inaceitável. É inadmissível, por exemplo, que o injustificável se justifique, ao sabor da conveniência, com um: “é o leve-leve”.   

E a vida do povo de São Tomé não é leve, por maioria de razão leve-leve, no sentido literal do termo. É uma vida pesada, onde não se deve aceitar, como atendível e normal, a apatia e a pobreza. Há quem lhe chame uma morfina social que alivia, mas onde tudo falta e ninguém é responsável. 

Tem de ser combatido o lado depreciativo do leve-leve, que apela a uma interpretação literal e simplista da sua autenticidade, dado que o que importa é o que alia a alegria, a serenidade, a paz, o caminhar e guiar com acerto, com a preservação e a adaptação de um leve-leve sem stresse aos valores da modernidade, longe do trekking à máxima velocidade, sem fazer travagem. A fazer jus ao poema aqui escrito (e cantado).   

O que também implica não aceitar estradas, ruas e arruamentos com buracos (e que buracos, alguns!), faltas regulares de eletricidade, falhas da internet, como o testemunhei no percurso e chegada ao hotel, no primeiro dia, com reiterações diárias, o que é incompatível, em qualquer circunstância, com um desculpável e condescendente leve-leve. Leve-leve não é isso, não é fazer-se “pequeno” num encolher de ombros resignado, é caminhar com passo certo para conhecer a felicidade. 


04.10.24
Joaquim M. M. Patrício