Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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1. Resta a mágica da tolerância, tida como a grande mágica do mundo lusófono, sinónimo de cordialidade, tolerância com o diferente, com o estranho, com o incomum, com o inusitado, mas também tolerância capaz de mudar o mundo.
Escreve Darc Costa: “Devemos nos orgulhar e glorificar os valores do mundo luso, nossa tolerância, a brandura de nossos costumes, o nosso eclético venerar, a alegria simples que todos que vivem no mundo luso têm mesmo na miséria, e um certo “savoir vivre”, que jamais perdemos nas piores circunstâncias e cuja visão e conhecimento deixam perplexos e atónitos qualquer estrangeiro. Do mundo luso se tem uma mensagem única de esperança: o sinal que a inteligência humana é capaz de saltar por cima das adversidades e se integrar na compreensão do universo total. Do mundo luso vem a possibilidade que temos como género de ousar, aventurar. Somos diferentes e somos especiais. Nós fomos, somos e seremos a mundialização. Este é o nosso destino manifesto” (ibidem, p. 103).
Conclui que o discurso atual da globalização procura impor uma dominação das ideias, dos mercados e das culturas, pela ideia do espaço único. Globalização tida como um discurso de dominação, um discurso que se manipula ou pode manipular, contrário à mundialização, embora seja a versão corrente da mundialização. O que se vê hoje é “uma ideologia, a chamada globalização, revestida num mesmo, monótono e único discurso” (ibidem, p. 109). Por sua vez, a identidade cultural, como a que existe e subsiste no mundo lusófono, tem um passado comum como forma de criar solidariedade, ao contrário da identidade global que não tem quaisquer lembranças para convocar ou reivindicar a consciência formadora de um grupo, pelo que não existe identidade global. Assim, ao invés da globalização, a mundialização não afetou as relações primitivas, continuando a existir as relações centro e periferia sem mudanças nos paradigmas.
Sintetizando: “a mundialização é, antes de tudo, um processo de convivência, …de tolerância, …libertação, de construção de um mundo cada vez melhor. Um processo que continua avançando, apesar do seu uso por um discurso falso, o discurso da globalização. Contudo, o seu término, ou seja, a construção de uma única pátria humana, exige tempo e um demiurgo com características especiais que, no mundo atual, reafirmamos só existe no nosso mundo, o mundo luso” (ibidem, p. 112).
2. Trata-se de uma visão bondosa, bem intencionada, romântica e utópica, algo mitificada, que tem os seus défices, a começar pela ausência de espaço e mentalidade do atual mundo lusófono, entre muros, desde o político, à liberdade de expressão, informação e pensamento, carência de sentido crítico, fenómenos de resistência à mudança, com culto do autoritarismo, do temor reverencial, compadrios e corporizações não tolerantes da criatividade, inovação, evolução e exercício do contraditório, fazendo jus do posso, quero e mando, em desabono da alegada mágica da tolerância, mais patente porque usualmente não posto em causa o poder instituído e a segurança em detrimento da liberdade pela liberdade, gerando um pacifismo per si saudável, é certo, mas limitado.
No país do autor, o Brasil, do mesmo modo que se gosta de o apresentar, por vezes mitificar, como aberto à cordialidade, lhaneza, generosidade, hospitalidade, à diversidade, ao jeitinho afetuoso e informal brasileiro, um idílio, terra de oportunidades e da promissão, uma nação avessa a conflitos, de convivência de géneros, etnias e raças, convém não omitir que tais generalizações nem sempre sobrevivem a um confronto com a violência estrutural (urbana e no campo), ao autoritarismo de vestígios escravocratas, ao mandonismo, coronelismo, desigualdade social e de intolerância, atingindo dos mais altos índices mundiais a nível de insegurança, criminalidade violenta e prisional, desde roubos, furtos, assassínios, latrocínio, narcotráfico, apagamento de populações indígenas, numa epidemia de violência que é o inverso da mágica da tolerância.
Mas é bom, para o futuro, tentarmos superar a fase de estarmos permanentemente malcontentes com aquilo que somos, sabendo valorizar capacidades com potencial positivo em termos de recebimento, absorção, integração e de exportação.
O estratega e neoluso-tropicalista brasileiro Darc Costa, após distinguir entre mundialização (o facto, aquilo que se constata) e globalização (um discurso, aquilo que se pode manipular), defende que os lusos e seus descendentes são os únicos artesãos possíveis da verdadeira mundialização.
Aponta como mágicas mais relevantes da cultura lusa, que lhe permitirão levar adiante a mundialização: a mágica da antropofagia, da mestiçagem, do sincretismo e a da tolerância (“Mundialização, Mundo Luso e Globalização”, Revista de Relações Internacionais da Universidade do Porto, n.º 4, 2003).
Mágica da Antropofagia - “é a propriedade que possuímos, no mundo luso, de apropriarmos, transformando, toda a manifestação cultural exógena”.
Vê como reducionista a explicação de que se trata do resultado da arte que a cultura lusa desenvolveu de adaptar valores e técnicas europeias aos trópicos em geral. Tem-na como uma caraterística única da cultura lusa, dado que nenhuma outra a detém, pelo menos em tal grau. Após afirmar que o lusitano era ibero, celta, fenício, cartaginês, grego, romano, judeu, suevo, visigodo, mouro, cruzado francês e inglês, numa progressiva e paciente assimilação das suas realizações, conclui que este amálgama progressivo dotou os portugueses dos elementos precisos para processar o diferente e torná-lo o igual, quando não o comum”. Dá como exemplo a constituição da cultura luso-brasileira. E acrescenta: “A capacidade de deglutir, de adaptar, de transformar de forma criativa e criadora o que lhe é apresentado, ou lhe é imposto, constitui-se no maior património hoje do povo brasileiro. ... No Brasil, assim como no mundo luso, nada se perde, tudo se transforma em algo que se utiliza. No futuro, assim como o foi no passado, ser mundializado é ser antropofágico” (ibidem, pp. 100, 101).
Mágica da Mestiçagem - é a propriedade que têm os lusófonos do mundo luso de deter diferentes graus de morenidade, em que surge como exemplo paradigmático o Brasil e em que foi e é referência incontornável o contributo de Gilberto Freyre.
Mágica do Sincretismo - é a completa permissividade religiosa. Embora o espaço da lusofonia seja um dos maiores espaços católicos do mundo, detendo o Brasil o lugar cimeiro da catolicidade mundial como país, não somos arrebatados pela mística católica, nem pela santidade. O catolicismo, e respetiva religiosidade, expressa-se no mundo lusófono muito mais por manifestações externas, por procissões e festas populares, dos S. Joões folgazeiros do Porto, dos Santo Antónios casamenteiros de Lisboa, dos Impérios do Espírito Santo, dos amuletos que trazemos, dos bentinhos espalhados pelas gavetas ou trazidos na mala. Com este catolicismo caminham juntos o espiritismo, o candomblé, a quimbanda e os evangélicos protestantes, tudo se miscigenando num caudal de credos e de fé onde impera a mais ampla tolerância religiosa e o mais claro sincretismo religioso. Este sincretismo aceita, quando não incentiva, o esoterismo, ou pretensamente premonitórias do futuro, tipo astrologia, o taro e os búzios.
Trata-se de um mundo luso como que detentor da fé universal, a que, em relação a Portugal, não será porventura alheio o facto de o nosso santo mais popular ser, ao mesmo tempo, o mais internacional (Santo António de Lisboa, é mais conhecido internacionalmente como de Pádua, porque por Itália se santificou, embora nascido em Portugal).
Gilberto Freyre nunca se libertou das acusações de ter apoiado o regime de Salazar, após uma viagem ao Portugal continental e ultramarino de então, de que são seu retrato “Aventura e Rotina” e “Um brasileiro em terras portuguesas”.
De nada lhe valeu defender-se dizendo que se limitava a expor e lutar pelas suas ideias numa pesquisa sociológica e que o regime as utilizava, apesar das críticas às práticas racistas da Companhia de Diamantes de Angola e de criticar a existência da censura no regime salazarista.
Sobre esta temática, argumenta Adriano Moreira: É notório que o luso-tropicalismo não conseguiria deixar de ser utilizado na crise colonial portuguesa, como não evitou sê-lo na crise social brasileira, pelos Governos respetivos, para legitimarem as suas políticas, mesmo quando a autenticidade não acompanhava os discursos. Mas isto não é uma novidade, é destino das doutrinas, como aconteceu aos federalistas inspiradores do discurso dominante do Estado americano que praticou o genocídio dos índios, como aconteceu aos liberais invocados pelas democracias da frente marítima europeia que criaram os impérios coloniais novecentistas, como aconteceu aos utopistas que enriqueceram o discurso do socialismo real soviético. O importante é a permanência das doutrinas, sobreviventes às contingências políticas que também as afetam, e o luso-tropicalismo deixou vigente um critério de identidade, para além da língua, que foi o de entender a cultura, soma de convergências, como a referência comum de povos que trocam padrões de comportamento, valores, experiências e vida” (“A Relação privilegiada Portugal-Brasil”, in Estudos da Conjuntura Internacional, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 99, p. 398).
No que toca aos detratores do luso-tropicalismo, nomeadamente porque apologista da miscigenação (e sincretismo), uma das características essenciais do mundo lusófono (do “mundo que o português criou”, segundo Freyre), são significativas estas palavras de José Eduardo Agualusa: “Os portugueses não são outra coisa senão um bom fruto mulato do imperialismo romano, somado ao imperialismo africano, através dos árabes, somado ainda, mais tarde, a todos os encontros resultantes da grande aventura marítima. Um português racista é um português em confusa luta contra si mesmo - é um antiportuguês” (“Gatos que ladram”, “Pública”, in Público). Fala, por experiência própria, que para muitos genuínos neonazis qualquer português é preto e qualquer moreno é cafre. Na época do apartheid, na África do Sul, os boéres apelidavam os portugueses de cafres brancos. Sugestivo também que a palavra “moreno” venha de “mouro”.
Hoje, como se sabe, tem predominância o bloco anglo-saxónico, pese embora, estudos recentes apontem para a perda progressiva desse monopólio. A este propósito Samuel Huntington - cujo conceito de choque de civilizações ganhou notoriedade após os atentados do 11 de Setembro - prevê, no seu novo livro “Who are we?” (Quem somos nós?), uma nova colisão cultural, que terá como resultado a morte do sonho americano nos Estados Unidos pelos imigrantes hispânicos. Baseia o seu prognóstico com a alta taxa de natalidade desses imigrantes, a sua não aceitação dos valores anglo-protestantes e a dificuldade em aprender inglês. Para Huntington, a maior ameaça que hoje pesa sobre a identidade americana é a imigração contínua e massiva proveniente da América Latina, em especial do México.
Daqui se conclui que os Estados Unidos, principal potência mundial, tenderão para uma sociedade multiétnica, o mesmo se indiciando na Europa, dada a imigração (e quebra da natalidade nos países acolhedores), também tida como fonte de criação (atente-se que a população de países europeus, como a França e Alemanha, é cada vez mais, numa percentagem crescente, de origem imigrante, sendo em Portugal cada vez mais miscigenada, ao que não será alheia a imigração das ex-colónias). Tudo a apontar para a miscigenação e o sincretismo em associação com o que defende o luso-tropicalismo, não sendo este um valor despiciendo.
Mesmo entre nós, os luso-tropicalistas permanecem, como o exemplificam estas palavras: “Sou um luso-tropicalista encartado. (…) Não nego nada da realidade que pareça desmenti-la, nem creio que essa fosse a ideia de Gilberto Freire - como pode um brasileiro negar a favela? Ou as desigualdades do seu tempo? Acolho o luso-tropicalismo como um olhar não só benigno, mas bondoso. Penso que é bom para o futuro e um potencial conformador positivo. (…) Uma cultura que se crê mestiça e valoriza a capacidade de se enriquecer por receber, absorver, integrar é uma cultura boa, não só porque não segrega, mas porque acolhe e cresce. É assim que entendo a maneira de ser portuguesa e a nossa cultura” (José Ribeiro e Castro, “O Público”, 16.07.19).
Ame-se ou deteste-se o luso-tropicalismo permanece e sobrevive em permanência às contingências temporais, com ele sobrevivendo GF à polémica e à não indiferença. Anote-se, por fim, que Freyre sempre ultrapassou a fase de estarmos permanentemente descontentes com aquilo que somos, exemplificando-o com o Brasil e o mundo que o português criou, afirmando-se sempre, no essencial e no geral, pela positiva (o que não significa ausência de espírito crítico), quer em relação a Portugal, ao Brasil e aos demais e atuais lusófonos, o mesmo sucedendo com Agostinho da Silva, cujas ideias (de ambos) permanecem, sobrevivendo e ultrapassando as contingências.
Registe-se ainda que o luso-tropicalismo inspirou a formação da comunidade luso-brasileira, a comunidade luso-afro-brasileira e a atual CPLP, sem esquecer a comunidade lusófona.
10. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO ANTÓNIO SÉRGIO E O MUNDO QUE O PORTUGUÊS CRIOU
António Sérgio, após louvar e enaltecer a abertura, cosmopolitismo, antirracismo, entre outras caraterísticas dos portugueses, no seguimento do luso-tropicalismo, coloca uma questão, que tem como decisiva: se assim é, qual a razão para o nosso horror à ciência, ao labor e saber científico? Quais os fundamentos para o nosso conservadorismo, o não culto da democracia?
Parece haver uma contradição, um contrassenso. Porquê?
Em prefácio à obra “O mundo que o Português criou”, de Gilberto Freyre (Livraria José Olympo Editora, Rio de Janeiro, 1940), escreve também A. S.:
“(…) admitido o plástico do caráter da Grei - determinante do êxito que ele alcançou no Brasil - não nos releva abster-nos, por isso mesmo, de buscar a causa do seu insucesso na Europa em qualidades intrínsecas do Português? Não estaremos obrigados, por conseguinte, a sinalar como réu do nosso destino europeu o dado complementar e correlativo do homem, isto é, o ambiente físico em que ele nasceu?
E acrescenta:
“Ai de mim! Formulador de perguntas, a tal interrogação hei de responder com outras: não seria acaso nas regiões do Brasil que o Português encontrou pela primeira vez condições de ambiente francamente propícias para um género determinado de cultura básica? (…) admitida a hipótese, poder-se-ia dizer: por ser desse modo, desde o princípio da nossa história que andámos buscando nos recursos do Oceano - no sal, na pesca e no comércio marítimo - as possibilidades de subsistência e de esplendores de vida de que sempre a nossa terra se nos mostrou avara”.
Assim, após reconhecer o mérito intelectual e científico de Freyre sobre o mundo que o português criou em regiões tropicais, quer em termos de amplidão e de originalidade, interroga-se do porquê da modéstia do que fizemos e fazemos na Europa, a que associa (e a que não serão alheios) fatores agro-clímacos a nível europeu.
Uma outra contradição, por certo, uma vez que os dotes que nos fizeram nos trópicos são os mesmos que na Europa nos desserviram.
A que acresce, diremos nós, o argumento permanente de que foi sempre demasiado pequeno para o nosso ego o nosso ponto de partida, sentindo-nos asfixiados nesta ponta ocidental da Europa, pelo que estamos permanentemente de partida, necessitando sempre de aventura. O que nos dificulta o conhecimento de nós próprios na Europa e enquanto europeus, fazendo lembrar a velha dialética do Velho do Restelo, nos Lusíadas, de Camões.
E após agradecer a amabilidade de Freyre por ser seu prefaciador, tornando-o conhecido dos leitores no Brasil, agradece em nome da gente do seu país”(…) o sólido prestígio que deram os seus livros à nossa capacidade de colonização, com a preclara autoridade que conquistaram”, tendo como inútil querer formular no seu país (ou no nosso) qualquer juízo sobre ele, uma vez que tanto lá como cá “(…) se escreveram sobre os livros do historiador-sociólogo apreciações sagazes e de cabal justiça, a que eu nada acrescentaria que tivesse préstimo”.
Quanto às formulações, indagações e possibilidades que levanta, questiona:
“Será assim como eu digo? Estará aí a verdade?
A mim cabe a pergunta, o responder é para os sábios.
Só formulo um problema, uma interrogação, uma hipótese, como simples apêndice de um admirador curioso a um dos temas da obra de Gilberto Freyre”.
Eis um testemunho de uma figura não apoiante do Estado Novo e não detrator da obra de Freyre.
9. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO CRÍTICAS E MÉRITOS (VI)
Outra crítica refere-se à inadequação do luso-tropicalismo na África e na Ásia, por confronto com o Brasil.
Maria Archer, tomando como referência a sua vivência em África, entende que o pensamento de Freyre não pode ser aplicado do mesmo modo em todos os lugares colonizados por Portugal. Aponta, para África, duas explicações básicas: uma política colonial preferencialmente não amiga da mestiçagem e a ausência de amor no contacto do português com o negro (“Aspectos da “paisagem social” na África portuguesa e no Brasil do passado sugeridos pelos livros de Gilberto Freyre”, Seara Nova, n.ºs 536 e 537).
Acresce que os portugueses se estabeleceram e fixaram no Brasil por mais tempo e com caráter de permanência, ao invés do que se verificou nas colónias lusitanas de África e da Ásia, onde a dominação e fixação demográfica dos dominadores foi territorialmente menos profunda e mais circunstancial, conforme as necessidades europeias.
Nas palavras de Adriano Moreira, Freyre transita de um “modelo observado”, traduzido na formação histórica do Brasil, para um “modelo observante”, em que o modelo observado se torna sujeito observador de uma realidade mais ampla e complexa, a que correspondiam os demais territórios do império colonial português. Pretendia-se verificar se os traços característicos da configuração brasileira se reproduziam fora do Brasil, na África e na Ásia.
Como o próprio A. Moreira reconhece, apenas algumas décadas de presença portuguesa fora do Brasil, nomeadamente em África, não poderiam ter resultados equivalentes aos de vários séculos de manutenção do luso-tropicalismo no Brasil (“Da Europa nos trópicos aos trópicos na Europa”, Anais do Seminário Internacional Novo Mundo nos Trópicos, p. 308).
Observa ainda Adriano Moreira: “Também o português, como os outros navegadores e colonizadores, foi um homem só, e tal como eles, cruzou-se com as mulheres nativas. Igualmente, como regra, sobretudo em relação às negras, não legitimou as uniões. No Brasil tornou-se característica a família mista, na qual o senhor de engenho tinha uma mulher legítima e respetiva descendência, e uma prole numerosa nascida do cruzamento com as negras. Mas todos viviam juntos numa empresa específica que era a Casa Grande, compareciam juntos nos atos religiosos, não era adequado referir a sanguinidade, mas não era apropriado ignorá-la” (“Teoria da Relações Internacionais”, Almedina, Coimbra, 1999, p. 522).
Reconhece que o método português foi integrador (com o fim de construir sociedades igualitárias, independentemente das diferenças entre elas), assimilador (ao pretender implantar preferencialmente padrões europeus de conduta e a fé católica) e sincrético (aceitando modelos de conduta nativos, sobretudo na área da sociedade civil, originando uma miscigenação étnica e cultural).
Apesar de a mestiçagem ser o fenómeno que mais sobressai e socialmente mais relevante, é apenas um entre outros.
Mesmo que se entenda, à semelhança de Cláudia Castelo, que Freyre após enaltecer a miscigenação e proceder à sublimação do mestiço, não se limita a “normalizar” a mestiçagem, como Adriano Moreira, elevando-a a fator de excelência, dado que “Inconscientemente (ou não), inverte a avaliação racista em proveito da nova raça (o mestiço luso-tropical), caindo numa nova argumentação racista” (ibidem, p. 122). E mesmo que se argumente, como Freyre, que o Brasil pode e deve continuar à frente do avanço mundial antirracista.
E mesmo para quem entenda que os portugueses só se misturaram com outras raças por serem numericamente poucos em população e diminutos em território europeu, para tão vasto império, ao contrário dos outros colonizadores, também os houve demograficamente diminutos e de pouco território que o não fizeram, como os holandeses e belgas. Daí que, mesmo agora, muitos aleguem ser mais europeia do que portuguesa uma certa xenofobia e racismo latentes em Portugal. Serão mais um produto de uma europeização do que de uma portugalidade (tendo como seu defensor, por exemplo, o cantor brasileiro e antigo ministro da Cultura Gilberto Gil).
8. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO CRÍTICAS E MÉRITOS (V)
Outra das resistências ao luso-tropicalismo, advém da ênfase que Freyre dá à componente árabe e africana na constituição do caráter nacional português, o que contrariava a perspetiva que em geral se defendia em Portugal, a começar pelo ensino, de valorizar quase predominantemente a reconquista cristã e, por arrastamento, a influência europeia.
Esta resistência está interrelacionada com outra, a da miscigenação que, nomeadamente nas décadas de 30 e 40, era tida como de consequências negativas, uma vez que os mestiços eram tidos como biologicamente inferiores. Chegou-se a defender o povoamento das colónias africanas por gentes brancas e numerosas, de ambos os sexos, para evitar a mistura das raças (colonização étnica). Mistura racial que Vicente Ferreira e Armindo Monteiro, entre outros, não aceitavam, distanciando-se de GF, pelo que a experiência brasileira da mestiçagem não se podia repetir no império colonial português. Apenas com o início da guerra em Angola e a ida de Adriano Moreira para o Ministério do Ultramar, houve a promulgação de medidas legislativas inspiradas no luso-tropicalismo.
Já o reconhecimento da especial capacidade dos portugueses para a colonização mereceu aceitação unânime, desde sempre, no Estado Novo.
Mas será a partir da década de 50 que o pensamento Gilbertiano terá uma receção mais favorável, após a segunda grande guerra mundial, quando os impérios coloniais europeus entram em declínio e se começa a dar mais importância à sua produção literária e teórica.
Todavia, mesmo nessa época, o luso-tropicalismo nunca foi tido como discurso oficial do Estado Novo. Sendo este nacionalista, as facetas desnacionalizadoras do pensamento de Freyre foram esquecidas, desde a valorização simultânea dos contributos africanos, ameríndios, europeus e orientais, até à não aceitação de uma congregação dos povos de Língua Portuguesa em que fosse preponderante o predomínio do Brasil.
Ciente da sua independência, contra-argumenta àqueles que o acusaram de aceitar um convite, em 1951, do Ministro do Ultramar português a viajar pelo império, com o facto de ter recusado os dois anteriores e de ter sido convidado pelos governos da União Indiana e da União Soviética, o que tem como prova da sua não conotação com qualquer ideologia política em particular.
Outro sinal de querer manter a sua independência, demarcando-se da política, é dado pelo próprio quando afirma que se é verdade que há ideias suas que foram seguidas pelo Estado Novo; também é verdade que o foram por diferentes intelectuais portugueses provenientes de várias áreas. Citem-se, entre muitos, José Osório de Oliveira, Carlos Malheiro Dias, padre Joaquim Alves Correia, António Sérgio, Maria Archer, Manuel Múrias, Adriano Moreira, Jorge Dias e Almerindo Lessa.
Mário Soares, socialista, que foi Presidente da República e Primeiro Ministro de Portugal, em discurso de inauguração da sala Caloute Gulbenkian, na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, em 29/03/87, a propósito do luso-tropicalismo, afirmou: “Esta teoria foi mal aproveitada no tempo do antigo regime, mas, justamente, eu quis demonstrar que a obra de Gilberto Freyre era admirada em Portugal, não só por aqueles que eram partidários do colonialismo, como pelo Portugal livre, democrático e moderno que eu represento”(citado por Vamireh Chacon, em “O Futuro Político da Lusofonia”, Verbo, 02, p. 85).
Ainda Mário Soares, em entrevista ao “Jornal de Brasília”, em 30/01/00, declarou que decorridos os anos e lendo de novo Freyre, “Aquilo que ele disse sobre luso-tropicalismo é verdadeiro, é uma cultura própria e temos que desenvolvê-la no futuro” (ibidem, p. 49).
7. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO CRÍTICAS E MÉRITOS (IV)
Importa analisar uma das acusações que com maior frequência é dirigida a Gilberto Freyre: a de ter concebido uma teoria neocolonialista.
Em textos anteriores destas Crónicas Luso-Tropicais (n.ºs 4 e 5), está expressa essa opinião e o seu raciocínio.
Iremos agora, por confronto, usar o exercício do contraditório, deixando ao critério do leitor a sua opção.
Em Junho de 1962, numa conferência do Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, Freyre demarca-se da posição do governo português, quanto à questão colonial, decorrido um ano após o início da guerra em Angola. Diz que o seu conceito de comunidade luso-tropical não é de natureza política mas sim sociológica, aberto a integrar no seu interior várias presenças nacionais, mostrando compreensão pelas aspirações de independência dos povos sob soberania portuguesa. Fala em comunidade luso-tropical, por confronto com a comunidade luso-brasileira defendida por outros, para nela englobar outras presenças nacionais, para além das duas existentes (Portugal e Brasil). Fala em pátrias independentes numa comunidade interdependente.
O presidente do Senegal, Léopold Senghor, insuspeito humanista africano, reconheceu os esforços Gilbertianos no sentido de ajudar os movimentos nacionalistas africanos das ex-colónias portuguesas na sua luta pela libertação nacional, não tendo o luso-tropicalismo contrário ao desejo de independência das colónias portuguesas de África.
Também os argumentos que GF usava contra o eurocentrismo e a competição norte-sul, são usados para o qualificar como paladino de uma perspetiva terceiro-mundista. As suas advertências para os perigos representados com os conflitos com culturas tecnicamente superiores, desde a ameaça proveniente do nazismo e fascismo, até ao capitalismo norte-americano e outros “novos imperialismos”, são exemplos tidos, para os seus defensores, como contrários ao desejo de qualquer neocolonialismo.
Mesmo no seio do mundo que o português criou, argumenta-se que GF censura o português quando representante do papel de opressor.
Para vários investigadores foi bastante frontal e firme na denúncia que fez em relação a vários aspetos por ele observados na condução da política colonial portuguesa centrada e dirigida da então metrópole. É conhecida a crítica contundente em que é destinatária a Companhia de Diamantes de Angola, denunciando os processos incivilizados que a concessionária de extração de diamantes impunha ao pessoal de cor ao seu serviço.
No seu livro “Aventura e Rotina”, acusa o dirigente da Companhia, Ernesto Vilhena, de dirigir “um sistema que em algumas das suas raízes e em várias das suas projeções não é sociologicamente português, prejudicado, como se acha, por um racismo que é deorigem belga e por um excesso de autoritarismo que é também exótico em sua origem e em seus métodos” (Univer Cidade Editora, edição brasileira, p. 379).
E acrescenta:
“A tendência da Companhia dos Diamantes - e das companhias e empresas do seu tipo que operam na África portuguesa do mesmo modo que nas outras Africas - talvez seja para reduzir as culturas indígenas a puro material de museu. Os indígenas vivos interessam-nos quase exclusivamente como elementos de trabalho, tanto melhores quanto mais desenraizados de suas culturas maternas e mecanizados em técnicos, operários substitutos de animais de carga. A proletarização de tais indígenas, sua segregação em bairros para “trabalhadores indígenas” dentro de comunidades organizadas em pura função desta ou daquela atividade económica, constitui um dos maiores perigos para a gente africana do ponto de vista social e, ao mesmo tempo, cultural” (p. 384).
Embora acreditando na expansão de um método português baseado na convivência de relações pacíficas entre nações europeias e não europeias, não deixava de censurar e lamentar que isso não acontecesse muito na prática, dado que muitos portugueses nas províncias africanas, à época, renegaram as melhores tradições lusitanas, imitando condutas e preconceitos de alemães, belgas, ingleses e sul-africanos.
Não obstante todas as denúncias e reservas de Freyre relativamente à censura do Estado Novo e às práticas racistas da Companhia de Diamantes angolana, os seus críticos, mesmo reconhecendo-as, não as têm como suficientes para questionar a sua colagem ao governo metropolitano sediado em Lisboa.
Mesmo que com sérias reservas, quiçá ambíguas, transcrevem-se estas palavras de Jacinta Baptista, em História de Portugal, O estado Novo (III), voluma XVII, p. 62/3:
“É certo que Freyre visita Portugal e as suas principais colónias em 1951, quando António Ferro já não é Secretário da Propaganda e se encontra a prestar serviço diplomático na Suíça. Mas não é menos certo que o primeiro convite (recusado, como o segundo) para o sociólogo se deslocar a terras portuguesas partiu do entrevistador de Salazar e foi semente que, a seu tempo, acabou por germinar. O escritor brasileiro, que nada tinha de tolo, receara que o convite de Ferro “fosse um tanto comprometedor, no sentido em que são, de ordinário, os convites dos Secretariados Nacionais de Informação, mesmo quando deixam de se intitular de Propaganda. E acabou por aceitar terceiro convite, este dimanado do Ministério do Ultramar - tão apolítico em Portugal como é o Itamarati no Brasil”.
Finaliza, nos seguintes termos:
“Embora redundando num convite prestado à situação política então vigente em Portugal, não o terá sido inteiramente, na maneira em que, por exemplo, denunciou o regime concentracionário observado na Lunda (Angola) e os incivilizados processos que a companhia concessionária da extração dos diamantes impunha ao pessoal de cor ao seu serviço. E foi tão frontal na denúncia que o comandante Ernesto Vilhena, todo-poderoso administrador da Diamang, se viu constrangido a defender a companhia diamantífera em páginas cerradas de argumentação compradas como espaço publicitário do Diário de Notícias”.
6. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO CRÍTICAS E MÉRITOS (III)
Torna-se necessário expor alguns argumentos em defesa de Freyre.
É de sublinhar, em primeiro lugar, o seu contributo fundamental para a reabilitação dos “trópicos”.
Durante décadas foi uma expressão equiparada pelos europeus a exotismo, algo de estranho, uma realidade que era tida como alheia à denominada “civilização ocidental”, transportando consigo conotações negativas.
Também o termo “tropical” nos aparece como sinónimo de exótico, abrasador, diferente e marginal, fora do que é usual e comum, associado negativamente a estigmas de doenças tropicais, a primitivismo, a decadência, a barbárie, a selvajaria, ao degredo, ao anti-desenvolvimento, à negação da saúde, da agricultura, do comércio, da indústria, da civilização, porque anti-civilização.
Esta leitura está bem patente no livro “Tristes Trópicos”, do francês Claude Lévi-Strauss, com a particularidade de fazer uma descrição do Brasil.
Como é enfatizado pelo próprio título da obra, os trópicos são tristes, sendo sugestivo o seu início, onde se lê:
“Odeio as viagens e os exploradores. E aqui estou eu disposto a relatar as minhas expedições. Mas quanto tempo para me decidir! Quinze anos passaram desde a data em que deixei o Brasil pela última vez e, durante todos estes anos, muitas vezes acalentei o projeto de começar este livro; a cada vez, era detido por uma espécie de vergonha e de repulsa, pois será mesmo necessário contar minuciosamente tantos pormenores insípidos, tantos acontecimentos insignificantes?” (edições 70, p. 11).
E acrescenta, prosseguindo:
“É possível, (…), consagrar seis meses de viagens, privações e lassidão fastidiosa para se recolher (…) um mito inédito, uma regra de casamento nova, uma lista completa de nomes clânicos, mas esta escória da memória: “às 5 e 30 da manhã entrávamos na doca de Recife em meio ao grasnar das gaivotas e uma frota de mercadores de frutas exóticas que enxameava ao longo do casco”, essa recordação tão débil, merece que eu erga a minha pena para fixá-la?.
E, no entanto, esse género de narrativa goza de uma aceitação que para mim continua inexplicável” (idem, p. 11/2).
Trata-se de uma careta de escárnio, de um ponto de vista carregado de tédio e enfado, num tom desinteressante, entediante, angustiante e penoso, emitido por um francês oriundo de um centro da civilização, a França, com a missão de “civilizar” a periferia dos trópicos e as suas populações, tristemente depreciadas, baseando-se Lévi-Strauss na noção de alteridade.
Sendo “Tristes Trópicos”, de 1955, um livro de viagens, não deixa de ser curioso que Freyre, em 1953, tenha publicado “Aventura e Rotina”, de igual modo uma obra de viagens.
Para Gilberto Freyre, ao contrário de Strauss, os trópicos não são tristes e enfadonhos, nem periferias marginais, antes sim o lugar por excelência onde floresce uma civilização original, mais humana e universalista em muitos aspetos, com especial incidência nos espaços marcados por aqueles que em seu entender são portadores do verdadeiro destino tropicalista, os portugueses. Eis os trópicos e a civilização lusa condensados no luso-tropicalismo.
À alteridade de Lévi-Strauss, contrapõe Freyre uma proclamação pública de similitude, procurando anular e superar distâncias e antagonismos, elogiando e defendendo a possibilidade de ultrapassar esse dualismo e oposição do Outro.
Freyre, fala-nos numa língua não dominante e do hemisfério sul, tido como não hegemónico; Lévi-Strauss, fala-nos numa língua tida então como hegemónica e partindo do hemisfério norte, tido como dominante.
Isso não o impede de defender que o mundo tropical não é um mundo “antiquado”, “arcaico”, “enfadonho”, “entediante”, “desinteressante” e “exótico”, face a um tido como “desenvolvido” e “normal”.
Que não é um mundo “estático e parado” face a um outro “dinâmico e em movimento”. Tropicalismo não é equivalente a primitivismo.
Eis um inquestionável contributo de Gilberto Freyre, diferenciando os “trópicos” pela positiva, sem complexos.
5. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO CRÍTICAS E MÉRITOS (II)
Cláudia Castelo emerge com a sua análise crítica na tese de mestrado “O Modo Português de Estar no Mundo: O luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961)” (Porto, Edições Afrontamento, 1998).
Entende que o Estado Novo usou o luso-tropicalismo para fundamentar a presença de Portugal em África, com a aceitação de Freyre.
Sublinha que duas obras que versam sobre a temática do luso-tropicalismo, como “Integração portuguesa nos trópicos” e “O luso e o trópico”, de 1958 e 1961, respetivamente, foram “encomendadas” e publicadas por organismos do Estado português. A primeira, pela JIU, fazendo parte da coleção ECPS. A segunda, pela Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, no decurso do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos. Segundo as suas palavras “O Estado Novo utiliza estes livros, supostamente científicos, como instrumento de propaganda e de legitimação da sua política colonial. Se a manipulação político-ideológica é exterior aos textos, no interior dos textos radica a sua possibilidade. O autor não deixa de ser conivente com esse processo” (p. 37).
Tendo o luso-tropicalismo como uma ideologia, em face da manipulação feita pelo Estado Novo do pensamento de Freyre, sustenta que a sua natureza supostamente científica resulta, sobretudo, graças à propaganda salazarista, adquirindo então uma credibilidade excessiva, ajudando a perpetuar uma imagem mítica da identidade cultural portuguesa. Critica os pressupostos de que parte, baseados em lugares comuns sobre o caráter positivo e imutável do português, bem como os apriorismos sobre o seu modo de ser e de estar no mundo, via anunciação de uma civilização ideal.
Assim, “A comunidade luso-tropical de que fala GF nunca deixou de ser um mito e uma aspiração. O luso-tropicalismo (à semelhança dos seus “sucedâneos” portugueses) foi inventado “de costas voltadas” para os factos históricos e para a totalidade concreta. No entanto, perante a existência de práticas que “desmentiam” o modelo luso-tropicalista, Freyre ilude o problema: considera que não é a validade do modelo que está em causa; essas práticas é que contrariam a “tradição portuguesa”” (p. 140).
Critica também a tendência gilbertiana de tomar como referência a bem sucedida experiência da colonização portuguesa no Brasil, generalizando-a no sentido de dela tirar semelhanças aplicáveis às restantes colónias lusitanas. Esta tendência para a generalização, não se coaduna com a especificidade de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Índia Portuguesa, etc., porque “Realidades geográficas, étnica e culturalmente diferentes são-nos apresentadas como partes de um todo coeso e coerente” (p. 39).
Já o investigador e jornalista português Jacinto Baptista, após se referir a convidados e propagandistas estrangeiros do salazarismo, afirma que casos houve em que a “festança e papança” não se limitou ao retângulo continental europeu, tendo tido como caso mais notório o da viagem de Freyre, “o inventor e propagandista do luso-tropicalismo, a grande parte de o mundo que o português criou (…) e de que veio a resultar a alentada obra intitulada “Aventura e Rotina” (“História de Portugal, O Estado Novo (III), volume XVII”, p. 62).
4. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO CRÍTICAS E MÉRITOS (I)
Toda a obra e trabalho é passível de críticas, não sendo GF uma exceção.
Por maioria de razão tratando-se de um autor inovador e ousado, com uma nova interpretação da colonização portuguesa nos trópicos, até chegar ao luso-tropicalismo, um dos pilares da lusofonia.
O luso-tropicalismo e a análise dos seus múltiplos aspetos, é um tema discutido essencialmente nos meios universitários, onde prima uma tendência que vai no sentido de o considerar como uma ideologia ou doutrina ao serviço do colonialismo português.
Na sua análise crítica destacam-se dois africanos de origem lusófona: o angolano Mário Pinto de Andrade e o escritor cabo-verdiano Baltazar Lopes. Merecem também referência o historiador inglês Charles Boxer e a portuguesa Cláudia Castelo.
Mário Pinto de Andrade, sob o pseudónimo de Buanga Fele, foi o primeiro autor a criticar explicitamente o luso-tropicalismo, num artigo intitulado “Qu`est-ce que le luso-tropicalismo?”, publicado na revista “Présence Africaine”.
Critica o desinteresse de Freyre em relação às questões económicas e políticas do colonialismo português, afirmando que é a recusa de pensar o funcionamento do aparelho colonial como sendo o primeiro responsável de uma empresa económica dirigida por um poder político, que determina a fraqueza da sua sociologia.
Diz existir uma disparidade entre a teoria e a prática luso-tropicalista, argumentando que nunca houve reciprocidade cultural nos territórios tropicais colonizados por Portugal, sobretudo nas colónias africanas.
Não aceita que a mestiçagem seja uma tendência portuguesa, não a vendo como um indício de convivência fraterna, igualitária e pacífica entre raças diferentes, defendendo que a causa real da intensa miscigenação no Brasil foi o reduzido número de mulheres brancas (razão conjuntural) e não caraterísticas intrínsecas de natureza cristã, moral ou política inerentes a uma visão superior dos portugueses.
Toda a cultura luso-tropical está viciada desde o início, uma vez que nos territórios coloniais portugueses, nomeadamente africanos, sempre houve uma relação de cultura dominante sobre culturas dominadas.
O luso-tropicalismo resulta de uma falsa interpretação da génese da expansão marítima portuguesa, fundamentando uma falsa interpretação da “civilização luso-tropical”.
Conclui que o luso-tropicalismo seria, ao mesmo tempo, um conceito, uma conceção, uma teoria, um método e um sistema de colonização.
Baltazar Lopes, por seu lado, critica as páginas de “Aventura e Rotina” dedicadas por Freyre a Cabo Verde, considerando superficiais as suas observações sobre a realidade local, denunciando alguma repulsa à cultura material e imaterial cabo-verdiana, à culinária local e ao crioulo.
Um dos aspetos que mais o chocou foi o modo como o sociólogo brasileiro abordou a questão do crioulo, secundarizando o seu valor literário, ao contrário de Lopes que o via como uma verdadeira afirmação de independência regional e como um instrumento literário cheio de possibilidades.
Censura-o ainda por não se ter apercebido da originalidade da mestiçagem de Cabo Verde que tem como anterior à que se veio a realizar em grande escala no Brasil., acusando Freyre de ter sucumbido a uma perceção eurocêntrica.
Boxer, por sua vez, em 1962, em lições prestadas na Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, ensina que as relações raciais no império colonial português não correspondiam, no essencial, a uma integração harmoniosa que o luso-tropicalismo faria supor e o governo português de então aproveitava. No período compreendido entre os séculos XV e XIX os portugueses, à semelhança de outros colonizadores europeus, foram marcadamente racistas. As exceções, poucas, confirmam a regra.