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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


152. ALEGRIA NA ARTE GÓTICA E RECOLHIMENTO NA ARTE ROMÂNICA


A infância, juventude e a idade adulta plena precisa de expandir-se, correr, gritar, perguntar, rir, saltar, indagar mil e uma coisas, numa curiosidade gradual e permanente, num sucessivo otimismo alegre, em paralelo com a visualização de contentamento e abertura que inspira igrejas, basílicas e catedrais góticas, apelativas e monumentais, chamativas e majestosas, glorificando o divino e a criatividade humana, em deslumbramento e magnitude, num processo engenhoso de requintado gosto e leveza, com rosáceas radiantes e pináculos esguios a encimar torres e flechas pontiagudas, querendo rasgar o azul do céu, em vozes e preces flamejantes.


A terceira idade e velhice (“a melhor idade”?) apela ao recolhimento, descanso, silêncio, fuga ao ruído, dada a sua longevidade, maturidade e experiência de vida, menor responsabilidade familiar e social por objetivos já cumpridos, em paralelo com o minimalismo, simplicidade, devoção e ambiente fechado que inspira igrejas, basílicas e catedrais românicas, recorrendo a uma maior espiritualidade e proximidade com o sagrado, o transcendente, dadas as suas caraterísticas mais intimistas, convidando ao meditar e à prece num espaço de familiaridade, numa certa obscuridade interior alheia ao deslumbramento. 


As góticas espalharam-se pelas cidades, onde viviam as pessoas mais ativas e empreendedoras, na idade mais criativa da vida, as românicas pelos campos e espaços rurais em sinal de recolhimento e oração, tendo como referência as ordens monásticas da época, num sentido menos alegre e otimista da vida terrena no seu fim. 


A arte românica, como arte séria, quiçá pesada, com a sua funcionalidade de fim religioso, apela à meditação e ao recolhimento, que as sombras crepusculares do interior dos seus templos acentuam, onde os crentes podiam ler, meditar, orar e comunicar com o divino, através da “bíblia dos pobres”, mesmo ignorando o alfabeto, lembrando o crepúsculo e o poente da vida, o seu entardecer e anoitecer.


A arte gótica, cheia de luz, incluindo os seus vitrais litúrgicos, presta-se à contemplação e à observação, à plenitude e força, cuja monumentalidade, possibilitada pelo florescimento comercial europeu e urbano, apela ao florescer, maioridade e inteira maturidade da vida.     


Sem esquecer que apesar da sua desunião religiosa, a Europa conservou sempre a sua unidade cultural, sendo certo que além das funções religiosas as catedrais também desempenharam funções civis, aí funcionando escolas de música, leitura, escrita, gramática, lógica e retórica, exercendo-se a justiça nos seus átrios, gozando os seus pórticos do direito de asilo.           


Entre teocentrismo e antropocentrismo, entre uma conceção espiritualista em que o Divino é o centro do universo e o Homem circula em seu redor, e uma conceção materialista em que o Homem se endeusa como a mais perfeita criatura divina e obra suprema de Deus, sendo o centro de tudo, o mesmo sucede, em similitude, com o românico e o gótico.         


Era, e é, a arte, a um tempo simbólica e realista, entrelaçada à vida e aos sentimentos humanos, em coexistência com a religião e as fases da nossa existência terrena e incertezas que permanecem após a morte cujo significado, em absoluto, desconhecemos.


29.08.23
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


151. A ORALIDADE, A LITERACIA E O VISUAL 


No princípio era o verbo e a oralidade da palavra falada foi anterior à escrita e ao visual.

Na sua oralidade, a palavra falada é um fenómeno natural, instantâneo, um produto da nossa evolução biológica, podendo nós, humanos, viver sem ler e escrever, por isso mais abrangente que a escrita e o visual.

A palavra escrita e o visual são fenómenos culturais, exigem instrução, destinam-se e propõem-se a vencer o tempo e o espaço, nomeadamente através da imprensa, do livro, do cinema, filmes, séries, documentários.   

Se sempre se entendeu que para se ser civilizado tem de se saber ler, escrever e contar, sendo insuficiente a oralidade, qual o papel que o visual aí desempenha em termos civilizacionais?

Vivendo numa sociedade que converte a vida das pessoas em espetáculo, numa espécie de ecrã global em que a maioria quer aparecer a qualquer custo, projetando o que são na imagem “se não te mostras, não existes”, partilhando a sua vida com todos, via redes sociais, é legítimo questionarmo-nos sobre este modelo societário que secundariza a privacidade em benefício de um narcisismo hedonista e universal, segundo o qual todos têm de estar informados sobre a nossa família, o que comemos, onde estamos, ao sabor do instante num mundo do imediatismo. Porquê? Porque é obrigatório todos terem de estar informados sobre o que fazemos e, cada vez mais, em tempo real?     

Em contra-corrente há o predomínio do intimismo e da privacidade, fomentado pelo aparecimento dos vídeos, dvds, internet, visualizando em casa aquilo que, em tempos idos, só podia ser visto no teatro, no cinema, num ato coletivo e de grupo.

Há que fazer opções, parar e indagar se a vida é vista e memorizada apenas através de uma câmara, se com os olhos e todos os sentidos, se em harmonia e conjugação de esforços recíprocos, tirando proveito do que o real, a memória interiorizada e a matéria memorizada nos ensinam. 

Mas se, na atualidade, o que predomina é o visual, será desejável que haja uma interação permanente entre ele, a oralidade e a literacia, dado que a humanidade começou com a oralidade, dela transitou para a literacia a que acresce, de momento, o visual, em obediência às regras do princípio da totalidade, imprescindibilidade e valores civilizacionais que integram.   

E em abstrato quem vence? Oralidade, literacia, visual?   

Talvez todos e nenhum, na sua autonomia e interdependência recíproca.   

Mas sem escrita, não existiria este texto, pelo que, aqui e agora, neste contexto, vence a palavra escrita.            


22.09.23
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


150. INTERROGAÇÕES CULTURAIS


Se tomarmos como referência um modelo antropológico, a cultura não é um bem de primeira necessidade, por confronto com o ar que respiramos, a água, a alimentação, o vestuário, a saúde, tidos como bens primários e de sobrevivência, pelo que, nesta perspetiva, podemos viver sem ópera, cinema, teatro, bailado, literatura, as letras e as artes em geral, embora haja a tradição de ser-se tanto mais civilizado quanto mais culto, de que não há civilização sem cultura, sob pena de vivermos em barbárie. 

Se se aceita, em termos antropológicos puros, que se pode sobreviver sem a cultura erudita, também podemos permanecer vivos, pelo mesmo critério, sem escrita e a palavra falada, sem educação, sem medicina, sem justiça, por exemplo, embora não possamos ter educação e saúde sem o saber associado ao culto do estudo, da investigação, da criatividade, da invenção, o que implica não excluir a escrita, a fala, a linguagem especializada, a ciência e a técnica, incluindo as humanidades e as artes.  

É inexequível positivar a realidade que apelidamos de cultura, dada a sua adaptabilidade, flexibilidade e elasticidade, sendo um universo escrutinado e questionado em permanência, englobando tudo o que a natureza não produz e lhe é adicionado pela criação e espírito humano, desde uma definição mínima e seu sentido restrito, a um significado intermédio e uma interpretação mais ampla, numa desconstrução e refazer permanente, negando determinismos e purismos.

Nesta sequência, é redutor não ter a cultura como um bem de primeira necessidade, por maioria de razão se pensarmos que tudo é passageiro e só fica a escrita, o património histórico, a fotografia, o audiovisual, a digitalização, sem os quais não há “eternidade”, mesmo que os seus autores, em vida, não tenham tido o poder de mandar, mas sim o de imortalizar do esquecimento histórias e biografias de poderosos que não sobreviveram à lei da morte, definindo a Cultura a História e a memória coletiva duma civilização  post mortem e dos que nela foram seus intervenientes.       


15.09.23
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


149. INTERDEPENDÊNCIAS DAS VÁRIAS VERTENTES DO CONHECIMENTO


Sobressai a ideia de haver uma interação virtuosa de todas as vertentes do conhecimento, baseada num novo paradigma científico, que inclui tanto as ditas “ciências duras” (aplicadas ou exatas), como as chamadas “ciências puras” (ciências humanas e sociais), por oposição à ideia segundo a qual as artes, humanidades e ciências sociais são subsídio-dependentes, enviesadas de subjetividade e, em última análise, “inúteis”.    

Contrariando uma versão restrita e simplista, que tem o cerne da “funcionalidade” e “utilidade” de todas as ciências no ganho económico imediato e a curto prazo no mercado, tem-se vindo a alargar a valorização da criatividade e da intuição no núcleo duro do pensamento científico, como elementos essenciais de inovação, em que, por exemplo, recentes progressos da neurociência demonstram que as circunvalações cerebrais ligadas à perceção auditiva não são estáveis, reconfigurando-se caso a caso pelos vários padrões que condicionam essa experiência, em que o hardware cerebral é, impreterivelmente, reformatado pelo software da experiência artística, havendo uma interdependência dinâmica da ciência e da cultura.

Retornando às neurociências e à distribuição dos processos cognitivos entre os dois hemisférios cerebrais, conclui-se que o pensamento linear, a sequenciação lógica, a formulação de modelos simétricos e a aquisição e gestão sistemáticas de informação estão no hemisfério esquerdo, enquanto a criatividade, a descoberta, a invenção, a surpresa e a associação instintiva se localizam no hemisfério direito, provando a interpenetração entre ambos os hemisférios e, concomitantemente, entre as ciências aplicadas e “duras” e as humanas e sociais, sendo erróneo maximizar as funções cerebrais do lado esquerdo face às do lado direito.

A própria lei da oferta e da procura e o valor de mercado de cada novo produto não depende apenas da sua estrita funcionalidade e utilidade, mas também de um conjunto de fatores relacionados com a criatividade, mais-valia e valor acrescentado gerados por várias dimensões contextuais e simbólicas, como a história, os costumes e a tradição renovados, a estética, a empatia, o design, o cromatismo, o jogo, a mensagem, o significado.  

Nas sociedades mais desenvolvidas e inovadoras, é cada vez mais notório que não há ciências “duras” sem Ciências “puras”, havendo uma permanente interação entre ambas, não havendo indústrias culturais dinâmicas sem anterior experimentação estética de topo, patentes comerciais sem prévia investigação que as viabilize. 

Muitos, se não mesmo a maioria, dos mais prestigiados protagonistas do mundo da ciência e da tecnologia caraterizam-se por terem tido, em paralelo com a sua atividade e saber estritamente científico, uma grande curiosidade, estima e dedicação pela criação artística e literária, pelas humanidades e artes em geral, incluindo o social, desde Leonardo de Vinci, Copérnico, Galileu, Kepler, Morse, Einstein (entre nós, por exemplo, Pedro Nunes e Damião de Góis, alargando e modificando o conhecimento, com o espírito e consequências científicas dos descobrimentos), tendo-se o pensamento criativo e crítico como transversal a toda a ciência e cultura.

“Um homem apenas médico, não é médico”, eis uma afirmação do médico, professor e investigador Abel Salazar, que sintetiza bem a interação das diversas facetas do conhecimento.


08.09.23
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

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148.   A CRISE DAS CIÊNCIAS HUMANAS

 

Aquando de uma recente estadia em Lisboa, para participar numa conferência na Faculdade de Letras, o académico e teórico norte-americano Stanley Fish, em entrevista ao Público, manifestou a sua descrença nas ciências humanas, nos seguintes termos:

“Pergunta:  - Outro dos temas acerca dos quais tem escrito bastante é sobre a crise das ciências humanas. Acha que é possível, depois de tudo o que temos assistido, recuperar de alguma forma a confiança nas humanidades?

Resposta: - Não me parece. Antes, pensava-se que aqueles que desejavam ser bem-sucedidos no mundo dos negócios, no mundo jurídico, que queriam ser líderes ou ter uma participação forte em qualquer dessas conversas teriam de saber reconhecer uma citação de Shakespeare ou Sartre. Para serem reconhecidos, tinham de frequentar o mesmo tipo de escolas e divertirem-se nos mesmos tipos de jantares. A chamada língua franca dessa elite era a partilha de um quadro de referências culturais. Isso desapareceu. Não se ganham pontos fora da academia por se citar um poeta ou uma figura mitológica, por se remontar a algo dito por Platão, por Sócrates ou por Aristóteles. Quem esperar isso vai ser olhado como um lunático. (…)

Pergunta: - O que veio substituir isso?

Resposta: - A competência tecnológica, a capacidade de efetuar operações difíceis no mundo da estatística e dos computadores. Aquilo a que nos EUA se chama “tech savvy” substituiu o valor cultural de estar profundamente enraizado nas velhas transições de aprendizagem e não vejo, de momento, como inverter isso, e com todo o discurso à volta da inteligência artificial acho que vai simplesmente ficar fortalecido.”

Este discurso pessimista, consciente ou não - mesmo não o referindo em termos explícitos - tem a utilidade económica imediata e a empregabilidade potencial como critério preferencial do que é útil ou inútil, indo de encontro aos que têm tais ciências   como antiguidades, tempos idos perdidos que não voltam, atividades de mera autocontemplação e gratificação, elitistas e subsídio-dependentes, desprovidas de valor social e não geradoras de patentes potencialmente lucrativas.

Pretende-se reimplantar a ancestral hierarquia dos saberes a partir de raciocínios fundados numa pretensa utilidade económica, priorizando essencialmente ou apenas as ciências aplicadas, com prejuízo estrutural e sistemático das ciências humanas ou “puras” tidas, por definição, nesta perspetiva, um fim em si mesmas e, como tal, economicamente improdutivas.

Devem privilegiar-se as “indústrias culturais” de impacto público, geradoras de dividendos económicos e mais-valias e não as vanguardas artísticas experimentais?

Será que as ciências, no seu todo, incluindo as aplicadas, humanas (sem excluir as sociais), “puras” e “duras”, não são transversais à reflexão, criatividade e interação?

 

(Continua …)

01.09.23
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

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147.   INTERROGAÇÕES EM DEMOCRACIA

 

Se, por exemplo, considerarmos que a liberdade de expressão é, no essencial, uma vantagem cívica e social das elites e dos mais ricos, dado terem as suas necessidades básicas satisfeitas, sendo natural que os direitos cívicos (como a liberdade de expressão) sejam mais relevantes que os direitos sociais, ao invés dos mais pobres para quem relevam mais os direitos sociais (e não os cívicos), há que questionarmo-nos se a dicotomia entre direitos cívicos e sociais não é um modo rudimentar de abranger a complexidade do ser humano.

 

Nas democracias onde tendencialmente as desigualdades sociais são maiores, os cidadãos não partilham preferencialmente a visão eleitoral e meramente liberal, tendo as eleições e direitos cívicos como insuficientes, partilhando essencialmente uma democracia inclusiva a nível dos direitos sociais, reclamando condições substantivas que lhes deem condições sociais iguais para expressarem e formularem as suas preferências. Daí que, vocacionalmente e em países como o nosso, a maioria da população prefira a segurança em desfavor da liberdade, sendo sabido que quando as pessoas começam a abdicar dos seus direitos cívicos e fundamentais em troca da seguridade, isso nos conduz a um plano inclinado muito perigoso de ditaduras e totalitarismos.

 

Direitos cívicos e sociais são ambos parte integrante dos direitos humanos, havendo que, nesta perspetiva, os descaraterizar ideologicamente, não podendo acantoná-los a uma mera relação entre o indivíduo e o Estado, pois são mais que isso, antecipando-se e estando acima do poder estadual, limitando-o na sua discricionariedade.

 

Nesta sequência, conclui-se que quanto maior uma igualdade cívica, política e social entre todos os cidadãos, quanto mais significativa, forte, instruída e predominante uma classe média, mais rica a esmagadora maioria da população e, por certo, mais adequada, proporcional e razoável será uma partilha entre direitos cívicos e sociais, entre a liberdade e a segurança, o que acarreta a reconfiguração, o desaparecimento gradual e a extinção de forças populistas ou partidos que têm como base da sua sobrevivência a pobreza de muitos, cuja existência os carateriza ideologicamente, alimenta e sustenta, embora não o assumam.

 

25.08.23
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

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146.   ENTRE O REAL E O IDEAL E O IDEAL E O REAL

 

O florentino Maquiavel e o inglês Thomas More são dois vultos permanentes em política e sociologia.

Maquiavel, confrontado com as guerras e lutas civis que gangrenavam a península itálica, procura uma maneira de a salvar, colhendo e adaptando os ensinamentos da história de Roma e da “Política” de Aristóteles, escrevendo “O Príncipe”, onde César Bórgia, senhor de Florença, de quem foi favorito e secretário de chancelaria, é tido como uma referência de governante, a quem atende, aconselha e se dirige.

Não sendo os poderosos, por natureza e princípio, mais inteligentes e justos que os outros, defende que chegaram onde estão porque são mais astutos, demagogos, hipócritas e pérfidos, podendo usar a crueldade, a tortura, a mentira, a má fé, o crime e a violência para manter o poder. Se para teres êxito na vida tiveres de atropelar e passar por cima dos outros, não hesites, sendo irrelevante que alcances o êxito sem honra ou modo pouco honroso. O fim justifica os meios, mesmo que condenáveis em si, desde que chegues onde queres, estando as razões de Estado acima de tudo, para alcançar o bem geral, identificado com o interesse de quem governa.

Os Estados, evoluindo ao sabor das leis naturais que gerem as sociedades, adaptam-se e reformulam-se consoante os tempos, de monarquias eletivas, hereditárias, tirânicas e decorativas, a repúblicas, autocracias, ditaduras, democracias liberais ou iliberais, e por aí adiante, num equilíbrio instável, em progressos e regressões.

Tomás Moro, inspirado na “República” de Platão, foi autor da “Utopia”, que significa “o que não existe em lado algum”, imaginando uma sociedade ideal, perfeita, quimérica, habitando uma ilha idealizada e longínqua, que o navegador português Rafael Hitlodeu conhecera, onde os bens são comuns, os governantes eleitos pelos utopistas, estes consultados sobre o que é relevante, quem governa fixa planos de produção e dirige a economia, todos vivendo felizes com o que têm, e cada um com o que precisa, idealizando uma coletividade com base na razão humana, balançando entre um real que se censura e rejeita e o ideal que se almeja e sonha.

Os utopistas deviam ajudar os vizinhos a transformar-se em Estados utópicos, passando a protegê-los, tendo-se como precursores do humanismo.

Este balancear do real para o ideal (Maquiavel e Tomás Moro) e do ideal para o real (Tomás Moro e Maquiavel), continua a guiar-nos, nomeadamente os políticos, sendo tidos por realistas e idealistas consoante seguidores de Maquiavel ou de  More, chamando-se maquiavélica a política caraterizada pela ausência de escrúpulos para governar e tomar o poder, e idealista a que se baseia numa sociedade que não existe mas se deseja que exista, mesmo que alimentada pela fantasia, fuga e sonho de um mundo tido como irreal.

Em qualquer caso, o Estado é um ente sempre presente, quer infrinja as leis para se manter e disponha das nossas vidas sem limites, quer se assuma como paternalista, qual messias ou salvador, rumo à sociedade ideal.

Predominando, entre os políticos e grandes estrategas os realistas (realpolitik), que nunca deixaram de ler e meditar sobre a doutrina de Maquiavel (tendo como subjacente os interesses práticos e primordiais do Estado e que as relações de poder tendem a minar as pretensões de fundamentação moral), deduz-se ser esta a política que agarra mais de  perto a realidade atual, devidamente adaptada ao contexto em que vivemos, teoria que tem como intrínseca a imperfeição da condição humana, com o seu clímax em todas as ditaduras e totalitarismos.

Porém, embora constitutivamente finitos e imperfeitos, também aspiramos, constitutiva e estruturalmente, a fazer sempre melhor, rumo a uma sociedade superiormente aperfeiçoada, num misto entre o real e o ideal e vice-versa, mesmo que agora utópica e uma democracia escrutinadora e pluralista, per si, possa ser vulnerável e insuficiente.

 

18.08.23
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


145. NÃO SOMOS A MEDIDA DE TODAS AS COISAS (II)


O que é mais poderoso que o homem é tradicionalmente associado ao nome de Deus. Nesta perspetiva, sendo omnipotente e o criador de todas as coisas, e Job um homem bom, piedoso e justo, interrogamo-nos porque se manteve Deus mudo perante o seu sofrimento, exercendo sobre ele, que não fora mau, o seu poder implacável, apesar da sua fidelidade, aflição e humildade, acabando por lhe endereçar uma das mais pertinentes interpelações do Velho Testamento (ver texto anterior).

Enquanto as vozes e lamentos de Job não chegavam ao céu, sendo vítima de sucessivas provações que o levaram a amaldiçoar o dia em que nasceu, a sua agonia e humilhação é, para muitos, bárbara, cruel e mesquinha, um momento injustificável da ausência e do silêncio de Deus, levando-os a não crer num Deus do bem e misericordioso, antes sim num Deus inflexível, punitivo e mau que, podendo, não elimina o mal.  

Esta apatia de Deus à dor, esta omissão e indiferença na relação que devemos ter com o outro, que deve ser o centro do nosso olhar e compaixão quando sofre, conduz muitas pessoas a questionarem-se se se pode acreditar em Deus, concluindo que não e tornando-se ateus. O mesmo perante os horrores do holocausto, a iniquidade de Auschwitz e do Goulag, os males da guerra e a pedofilia. Se Deus é infinitamente bom e criador do universo, porquê um Deus castigador, vingativo e sacrificial? Recordo, da minha infância, uma catequista ter justificado com a ira de Deus o afundamento do Titanic, provocado por um icebergue, dada a soberba humana de o ter como inafundável, sendo um exemplo de arrogância, vaidade e luxúria (pecado mortal).

É uma, entre várias, interrogações e interpretações, todas legítimas, em paralelo com a de que o universo é mais poderoso que nós, seres humanos frágeis e mortais, limitados na nossa finitude e imperfeição, portadores do bem e do mal, daí o afirmarmos, amiúde, que ninguém é perfeito, embora perfectíveis. 

Pode compreender-se, assim, que quando Job reclamou de Deus que lhe explicasse o facto de ter permitido que a sua vida se transformasse num acumular de sofrimento, apesar de ser um homem bom, a resposta se baseasse em chamar-lhe a atenção para as leis dos fenómenos naturais, que nos ultrapassam, como os rios, oceanos, relâmpagos, trovão, chuva, orvalho, granizo, neve, astros, céus, a que podemos adicionar a imensidão e o esmagamento de glaciares, icebergues, desertos, montanhas, dado que o universo é maior que nós, não estando ao nosso alcance saber a que lógica obedece, não admirando que Job não compreendesse o porquê do que de ilógico, em termos humanos, lhe acontecera, o que não demonstra que o universo seja ilógico per si.   

Há inúmeros fenómenos no universo que diminuem a nossa dimensão, que nos fazem sentir a nossa pequenez e fragilidade, que indiciam e transportam em si uma força, grandeza e monumentalidade maior, que nos ameaçam e desafiam, provocando-nos admiração e respeito, mesmo se humilhados porque mais poderosos que nós, o que se pode combinar com um desejo de adoração ou exclamação diante do ilimitado e sublime, lembrando-nos que a nossa vida (e a razão) não é a medida de todas as coisas, o que não implica aceitar, sem mais, a indiferença e a resignação.  


11.08.23
Joaquim M. M. Patrício 

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


144. NÃO SOMOS A MEDIDA DE TODAS AS COISAS (I)


O início do Livro de Job, texto da Bíblia, diz que Job, da terra de Us, era um homem bom, rico, justo e temente a Deus, afastando-se do mal. Tinha sete filhos, três filhas, sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois, quinhentas jumentas e uma grande quantidade de escravos. As suas ordens eram cumpridas e as suas virtudes recompensadas. Um dia foi atingido pela desgraça e sujeito a provações. Os sabeus roubaram-lhe os bois e as jumentas, passando os servos a fio de espada. Os raios reduziram a cinzas as suas ovelhas e pastores. Os caldeus ficaram com os camelos. Um furacão, vindo do deserto, assolou a casa do seu filho primogénito, matando-o, e aos seus irmãos e irmãs. O corpo de Job cobriu-se de uma lepra maligna e, sentado e meditando entre ruínas, limpava as feridas e abandonou-se ao pranto. A mulher disse: “Persistes ainda na tua integridade? Amaldiçoa a Deus e morre de uma vez!” Respondeu-lhe Job: “Falas como uma insensata. Se recebemos os bens da mão de Deus, não aceitaremos também os males?”. Os amigos tinham como resposta para tamanho sofrimento os seus pecados. Deus não poderia ter dado a morte aos seus descendentes sem que estes e o pai tivessem agido mal: “Deus não abandona o homem íntegro, nem dá a mão aos malvados”.

Job rejeitou estas alegações, que considerou de charlatães e fazedores de mentiras. Se nunca fora um homem mau, qual o porquê deste infortúnio?    

Após várias interpelações dirigidas a Deus, eis que: “Então, do seio da tempestade, o Senhor respondeu a Job e disse:  

Quem é esse que obscurece os meus desígnios com palavras insensatas?

Cinge os rins como um homem; pois vou interrogar-te e tu responder-me-ás.

Onde estavas, quando lancei os fundamentos da terra?

Diz-mo, se a tua inteligência dá para tanto. 

Sabes quem determinou as suas dimensões?  

Quem pôs diques ao mar, quando, impetuoso, saía do seu seio materno?...

Alguma vez, na tua vida, deste ordens à manhã e indicaste o seu lugar à aurora, para que ela alcançasse as extremidades da terra e expulsasse dela os malfeitores?  

De que lado habita a luz? Qual o lugar das trevas? …  

Qual a maneira como se divide o relâmpago e por onde se expande o vento leste pela terra? 

Quem abre o caminho aos aguaceiros e as rotas ao trovão? …  

Terá a chuva um pai?   

Quem gera as gotas do orvalho?

De que seio sai o gelo?  

Conheces as leis do céu? A tua ordem faz surgir os relâmpagos?

És tu que dás força ao cavalo? … É pela tua sabedoria que o falcão levanta voo? … Acaso é à tua ordem que a águia levanta voo? …    

Queres condenar-me para te justificares? Tens um braço forte como o braço de Deus?”.   

Trata-se de um pequeno excerto de um livro do Antigo Testamento, causa de várias interpretações, desde a censura ao implacável poder de Deus, passando pela ética da compaixão, até à aceitação da nossa pequenez perante o que é mais forte, incluindo a incapacidade de justificar e superar acontecimentos que escapam às leis atuais do conhecimento humano. Desafiando-nos e podendo provocar ira, ressentimento, fragilidade e resignação (qual Prometeu e Sísifo), há que o interpretar e compreender, o que tentaremos.


04.08.23
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


143. SÍSIFO E A ACEITAÇÃO DA ORDEM ESTABELECIDA


A mesma rotina diária: acordar, levantar, higiene pessoal, vestir, pequeno almoço, adquirir legumes, fruta, flores, plantas, abrir e montar a banca, pôr tudo à vista, para comerciar e vender, vender, vender. Almoçar, a meio do dia. No fim, arrumar o que sobra, desfazer a banca e fechar. Nos dias seguintes, a mesma coisa.   


Em casa, ao serão, após o jantar, ouvem-se as notícias, vê-se desporto, novelas, filmes ou séries, o sono chega, cai-se na cama, até outro dia, em que há que sair cedo, retomando-se a habitude de trabalhar, trabalhar, trabalhar.   


O essencial de uma vida, transversal a todas as vidas e profissões, a lembrar Sísifo, que recebeu de Zeus o castigo de todos os dias recomeçar de zero a sua tarefa, condenado para toda a eternidade por desafiar os deuses, como sucedera a Prometeu.


Este trabalho monótono, cansativo e repetitivo conduz-nos ao mito de Sísifo, punido e condenado a um trabalho enorme e sem fim, empurrando uma pedra até ao cimo de uma montanha onde, aí chegado, lhe fugia das mãos e rebolava daí abaixo. E recomeçava, impedindo Sísifo de ter tempo para pensar em novos interesses, evasões, afastando-o de malefícios e pensamentos suicidas.


Estas nossas vidas entediantes levaram Camus a defender que o absurdo está em interrogarmo-nos e tentar compreender se a vida faz sentido, pois é impossível ter uma resposta, pelo que quem aceita o absurdo vive bem com ele, aceitando que não faça sentido, aprendendo a viver com a sua ininteligibilidade neste oceano de perguntas sem respostas, o que não implica apatia e capitulação.


Mas há dias de não acatamento e submissão a uma vida de Sísifo, dando azo a tempos livres para escrutinar, meditar, pensar, passear, contemplar, saborear a natureza, um dia solar, bem diferente de nunca trabalhar ou não suportar o ócio e o tédio.


Sucede que o enfado, fastio e vazio se não superado pelo ritual do labor diário (mesmo que preenchido sob a forma de uma pluralidade de interesses), leva-nos a  concluir que uma vida sem trabalho não serve para nada, acabando por ser um favor o pretenso castigo que Sísifo recebeu e, por arrastamento, nós os mortais, somos obrigados a reconhecer eternamente a nossa condição como meros servidores de uma ordem previamente estabelecida, como humanos não imortais incapazes de superar aquilo a que não somos capazes de dar sentido.


28.06.23
Joaquim M. M. Patrício