Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Arquílico, antigo poeta grego, escreveu: “A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe apenas uma grande coisa”, metáfora que abre o livro “O Ouriço e a Raposa - Ensaio sobre a Visão da História de Tolstói”, de Isaiah Berlin.
Impactante pela sua simplicidade, eficácia e representação, há várias interpretações sobre o seu significado, indiciando-se que agarra mais de perto o seu fim a de que a raposa, apesar de toda a astúcia, malícia e manhas, desiste de ferir e trespassar o ouriço, pelo único e definitivo recurso de defesa que ele tem: os espinhos.
Em sentido figurado, divide-se os humanos entre ouriços e raposas: os primeiros, de ideias centrípetas, são associados a uma visão central e única, a um só princípio organizador universal, procurando explicar a diversidade do mundo por referência a um sistema monista, a partir do qual se compreende, pensa e sente; os segundos, de ideias centrífugas, pensamento difuso e disperso, são pluralistas, sabem que há vários fins, nem sempre compatíveis entre si, apreendendo-se a essência de uma heterogeneidade de experiências e objetos, sem se determinarem por uma visão dominante e essencial, onde a variedade do mundo não valida um só sistema explicativo.
Esta categorização ampla de uma procura de saberes abrangentes e uma visão global do mundo (raposas), de uma grande coisa que dê unidade formal à nossa realidade para nos reconciliarmos com o universo (ouriços), mesmo que redutora e simplista, se bem contextualizada, pode servir de guia e meio instrumental a nível ideológico, político, empresarial, intelectual e outros.
Para Isaiah Berlin, por exemplo, são “ouriços” Platão, Dante, Pascal, Hegel, Dostoévski, Marx, Nietzsche, Ibsen e Proust. Heródoto, Aristóteles, Shakespeare, Montaigne, Erasmo, Molière, Goethe, Púchkin, Balzac e Joyce são “raposas”.
Entre nós, referimos o padre António Vieira, Antero de Quental e Teixeira de Pascoaes como “ouriços”, Eça de Queirós, Fernando Pessoa e Eduardo Lourenço como “raposas”.
Ao dividir os intelectuais entre ouriços e raposas, acabou por criar dois tipos de personalidade distintivos presentes na história intelectual do Ocidente, que pode ser extensiva e adaptada a outras grupos, como a separação entre platónicos e aristotélicos, autocracia, ditadura, totalitarismo e democracia, pluralismo, liberalismo, especialistas e generalistas, tudo indiciando encaminhar-se, perante esta dicotomia, que uma liderança financeira ou empresarial de sucesso cabe preferencialmente aos “ouriços”.
Também há os que são naturalmente raposas e acreditam ser ouriços, e o inverso, exemplificando-o Isaiah Berlin com Tolstói que, segundo ele, foi “por natureza uma raposa, mas por convicção um ouriço”.
Quem é mais feliz?
Em face das consequências de um pensar aparentemente inócuo, há que viver, interrogando-nos e conciliando-nos, o que será tema vindouro.
Se filosofar é uma formulação de porquês geradora de outros porquês, um refletir sobre nós, a vida e a morte, questionar as coisas, escrutinando em permanência o que temos por adquirido e se a filosofia, em paralelo, interpela a incerteza, o desconhecimento, o amor pelo saber experimentado pelo ser humano consciente da sua ignorância, não surpreende que esta realidade seja tida por estimulante, para uns (democracias), e perigosa, para outros (ditaduras e totalitarismos).
Não reunindo um conjunto de verdades absolutas e pondo em causa o que sabemos, todos podem filosofar, mas nem todos querem fazê-lo, pois é mal visto, por muitos, o ato de pensar e de refletir sobre as coisas.
Quem somos? De onde viemos? Que queremos? Que é o ser humano e quem o rodeia? Para onde vamos? Questões permanentes que permanecem desde sempre.
Os estudantes peripatéticos, da escola aristotélica, há mais de dois milénios, filosofavam e refletiam enquanto caminhavam, valorizavam o valor do tempo lento, silencioso e do saber, o que hoje, em geral, é tido como mais inútil que útil, um interessante percurso sem saídas.
Há quem entenda que a filosofia e o filosofar é uma maneira de ensinar as pessoas a desaprender a aptidão natural das coisas e da vida, uma especulação sobre aquilo que a natureza nos dirá que fazer no momento adequado e à revelia do nosso pensar, desempenhando-o ela por nós, não tendo que nos preocupar nem refletir.
Nesta perspetiva, não nos preocuparmos nem refletirmos sobre a morte é um ato de libertação que nos permite simplesmente viver sobrevivendo, mesmo que se tenha como mais difícil.
Para Cícero e Montaigne, por sua vez, filosofar é aprender a morrer:
“Cícero diz que filosofar nada mais é do que aprender a morrer. Isto porque o estudo e a contemplação puxam até certo ponto a nossa alma para fora de nós e mantêm-na ocupada à margem do corpo, o que constitui uma espécie de aprendizagem e de semelhança com a morte; ou antes, porque toda a sabedoria e todos os pensamentos do mundo culminam neste ponto: ensinar-nos a não ter medo de morrer” (Montaige, Ensaios).
Pode-se filosofar sendo hedonista ou moralista, mas há que ter sempre presente que temos que antecipadamente nos convencer que não podemos alcançar ou ter tudo, e que privarmo-nos de alguma coisa faz parte da vida, assim como filosofar é pôr tudo em questão, e mesmo ter dúvidas sobre o universal “só sei que nada sei”, tal como em relação à morte.
“Triste de quem vive em casa, Contente com o seu lar, Sem que um sonho, no erguer de asa, Faça até mais rubra a brasa Da lareira a abandonar!
Triste de quem é feliz! Vive porque a vida dura. Nada na alma lhe diz Mais que a lição da raiz Ter por vida a sepultura.”
(Mensagem, Fernando Pessoa)
Estes versos pessoanos têm uma dimensão e interpretação pluricultural e transversal que transcende a mensagem específica a que aludem (“O Quinto Império”), chamando-nos a atenção para a futilidade de uma vida homogénea horizontal, sem razão de existir que não seja a do dia a dia.
O sonho é um meio de nos transcendermos, ter asas para voar, ir mais além do que é elementar e trivial para sobreviver, afastando a rotina, o aborrecimento, o tédio, mesmo se vitais para a nossa segurança.
Sem espírito de missão, de transcendência e espiritualidade, a nossa passagem terrena está incompleta, caindo-se na mediocridade da mera subsistência, sendo insuficiente deixar aconchegados os filhos, casando-os bem, com casa, seguro, automóvel, termos descendentes e, depois, vem a senhora dona morte e … morremos!
Para Pessoa, foi o saber sonhar, o espírito de missão e de aventura que nos fez voar e transcender, que nos levou a todo o mundo, ficando desses tempos idos uma língua global, património comum da humanidade, tantas vezes por opção voluntária de quem a fala e a tem como imperialista e neocolonialista.
Será que sonhar e transcendermo-nos é só para alguns? E em certas épocas?
Pode ser para todos, em qualquer época, pois se o sonho comanda a vida, é uma maneira de nos transcendermos, materializando-o e procurando-o em vários interesses, pela criatividade, descendência, vontade, persistência e eternizando-o, por exemplo, pela escrita, pelas artes, ciência, tecnologia, digitalização e testemunhos perenes, como modo de lutar contra a angústia de se ser mortal superando-a e concretizando na Terra um ideal abstrato e pensado que esvoaça e se sustem imaterialmente.
Balanços, soma de rotinas consagradas por costumes, tradições, hábitos ou normas que devem ser executadas, de modo useiro, uma vez por ano.
À meia-noite da passagem de ano, arremessasse mentalmente o futuro pensando doze desejos ingerindo, por exemplo, outras tantas passas, uma por cada mês.
Há quereres, promessas de mudança, aspirações a outra vida para viver, organizar melhor o que está sempre em construção ou num caos permanente.
Votos assumidos de metamorfose, tentando saciar uma necessidade de mudança de vida, individual ou em comunidade, festejando rituais em que é preciso acreditar ou fantasiando admiti-lo.
Queremos ser arquitetos da nossa vida, no que depende da nossa vontade, sabendo não o conseguimos sós, porque interdependentes.
Num sentido figurado rituais são rotinas, mesmo uma só vez por ano.
Segundo Yuval Noval Harari, num tom erudito, são passos de magia que tornam o abstrato concreto e o ficcional real.
Queremos estar em permanente mudança, a todo o tempo em construção, suportando voluntariamente uma dose considerável de formalidades, etiquetas, cerimoniais, presumindo ou julgando-as necessárias, em conjugação com o gradual progresso da natureza, sob pena de, se incapazes para tal, nos divorciarmos dos impulsos vitais do ambiente com que interagimos, quais flores que murcham.
Como num permanente ritual e querer de que “Este ano vou mudar, prometo!”, mesmo se apenas vontade de sentir que há esperança de mudança e nada se altere, tendo como adquirido que um quinhão aceitável de aborrecimento ou rotina do dia a dia é parte do nosso viver.
A morte do livro foi anunciada com o digital, às mãos do e-book.
Enganaram-se. O livro persiste, o que é bom, uma boa notícia.
Ler livros não é um mero prazer estético.
Também é um prazer tátil único. Entre outros prazeres…
Tem as vantagens do analógico sobre o digital, pode ser dobrado, guardado no bolso, na mala, na pasta, leva-se para qualquer lugar, não consome energia elétrica, é mais funcional e pessoal de anotar, sublinhar, pode ser lido e relido a todo o tempo à luz do dia, da vela e do candeeiro de tempos idos, à luz artificial atual, adaptando-se à nossa dimensão física e humana e ao tempo e espaço de cada época.
Há um milhão de leituras se um livro for lido por um milhão de pessoas diferentes.
Ler é ser livre, com a nossa imaginação e memória navegando, sonhando e voando.
Os livros não envelhecem, são firmes e leais, são amigos úteis, o que dizem hoje, dirão amanhã, daqui a anos ou séculos.
O hábito de ler e ver, dia a dia ou amiudadas vezes um livro, faz com que acabemos por lhe ter amizade. À força de se nos tornarem familiares, os livros acabam por se tornar nossos amigos, em que um instintivo e estranho animismo nos leva, por vezes, quase a atribuir alma às coisas inanimadas.
Há livros que são transformadores, contagiantes, podendo salvar-nos ou marcar o nosso destino, que nos fazem leitores, provocando uma sensação gratificante de não estarmos sós, amigos inalteráveis e constantes na saúde ou na doença, no trabalho ou no ócio, uma companhia com o seu não ruído em silêncio.
Estimulam a aquisição de conhecimento, o aumento e enriquecimento de vocabulário, o perguntar, interrogar, questionar, uma imaginação e um sonho que nos liberta, um escape, uma fuga, uma compensação.
Quem lê e ama os livros tem espaço e mentalidade para pensar, refletir, questionar, para nos transcendermos, ter asas para voar, ir mais além daquilo que é tido como básico, diário, quotidiano, afastando a lassidão e a rotina, mesmo que esta seja vital para o nosso conforto.
Sem esquecer o arrumar da biblioteca pessoal que conta a história das nossas vidas, o enriquecimento da associação livre de grupos de leitura, as edições de autor e a partilha do seu testemunho, uma liberdade de escolha e de leitura que não nos limita, desde os livros que devoramos, saltamos páginas ou paramos de ler.
E há os amorosos do livro para os quais é uma coisa imprescindível à vida, tendo-o como parte de si mesmos.
Porém, os não amorosos e indiferentes excluem-no de fotos e vídeos para compra e venda de casas endinheiradas exemplificando-o, quase sempre, o sua não visualização nas respetivas buscas via internet, como sinal de declínio, e não prestígio, dominando o culto do dinheiro, ao invés do saber acumulado por milhares de anos de leitura.
Há quem só navegue na net para os ler, quem se recuse, ou faça ambas as coisas, sendo bom saber que o livro sobrevive ao digital, nem sempre este sendo o ideal, pois sendo nós analógicos (não biónicos ou digitais) aquele agarra mais de perto os nossos sentidos que se manifestam em sentimentos e hábitos não substituíveis pelo e-book.
Se perdurou, no decurso de séculos, a ditaduras que inúmeras vezes o tiveram como transgressor e perigoso, espera-se que também resista à digitalização progressiva e seus inconvenientes de fiscalização automática, sendo mais durável e menos sujeito, até agora, a danos físicos do que os dispositivos ou materiais eletrónicos de acessibilidade mais remota.
128. A NÃO-BANALIDADE E A SOLIDÃO NOS HOMENS DE BEM
Não se adequa aos parâmetros tradicionais quem resiste a saber poder ser vítima de violência extrema, não hesitando, mesmo assim, em salvar do sofrimento ou morte pessoas de ideologias, religiões, etnias e nacionalidades diferentes, entrando em rutura com o regime estabelecido, de que foi, por vezes, seu seguidor.
Recusando-se a obedecer a ordens que pressupunham o abandono dos mais vulneráveis a um fim que se sabia ter como destino a morte, houve os que, em tais circunstâncias optaram, em consciência, pelo bem, repudiando o mal, a indiferença e o medo da maioria, sendo tidos por “Justos”, muitos por “Justos entre as nações”.
São pessoas de rutura e de solidão que não encaixam na disciplina então e ora vigente, provando haver em cada ser humano uma consciência que incomoda e questiona a nossa capacidade de autoquestionamento a qual, se anulada ou proibida, conduz à alienação da liberdade. Se esta alienação é comum à maioria, não o é com todos.
Uma minoria de homens e mulheres, à revelia do “espírito e lei da época”, soube distinguir entre o bem e o mal e o agir em conformidade. Em tempos negros e sombrios de escuridão, tiveram liberdade de pensar e de julgar, sem se agarrarem a ideologias, comodismos e medos pessoais, numa atitude muito difícil, corajosamente ousada e humana, num ato de enorme e terrível solidão, mas de vital necessidade, sabendo resistir e dizer não.
Há quatro portugueses reconhecidos como “Justos entre as nações”: Aristides de Sousa Mendes, Carlos Garrido Sampaio, Joaquim Carreira e José Brito Mendes.
Os pressupostos para receber tal título são: “envolvimento ativo no salvamento de um ou mais judeus da ameaça de deportação para campos de concentração ou morte; risco para a vida, liberdade ou posição do salvador; motivação inicial ser ajudar judeus perseguidos, isto é, sem pagamento ou outra recompensa; a existência de testemunho de quem foi ajudado ou documentação inequívoca estabelecendo a natureza do salvamento e as suas circunstâncias”, recebendo os agraciados uma medalha e um certificado de honra, estando o seu nome inscrito no muro de honra do Jardim dos Justos do Yad Vashem, em Jerusalém.
O português mais conhecido é Aristides de Sousa Mendes, que desobedecendo a Salazar, de quem fora servidor, entra em rutura com tudo aquilo que foi o seu mundo, salvando ou ajudando a salvar vários milhares de pessoas, sem a solidariedade do Estado Novo e seus apoios, incluindo a Igreja, nem opositores, da esquerda à direita, a movimentos antifascistas ou tidos por progressistas, sendo a voz de um homem só, pois nenhuma outra se ouviu ou levantou para o defender, pela coragem e humilhação que sofreu ao seguir a sua consciência.
Não obstante, desde sempre, ser um herói para Israel, onde recentemente foi inaugurada oficialmente uma praça com o seu nome (em Jerusalém), persistem vozes que condenam a sua reabilitação, tendo-o como a invenção de um mito, que nunca salvou ninguém, nem foi perseguido por Salazar, deturpando-se e ocultando-se factos históricos, a começar pelos testemunhos de quem salvou, a favor de teses que sustentam o revisionismo e negacionismo do Holocausto. O que reforça a ideia de que para além de homem bom, de bem e justo, é um homem só, que não se enquadra na norma dos cânones usuais e do politicamente correto, com que entrou e continua em rutura.
Urge ainda lembrar nomes como Oskar Schindler, Irena Sendler, Corrie Tem Boom, Franz Jagerstatter, Bernhard Lichtenberg, entre outros, que não aceitaram a sua morte ética e moral, contrária ao mandamento cristão de amar o próximo, como justificativa para a participação em atos criminosos, mesmo sabendo que as sociedades se regem pela lei e esta pode estar do lado errado da História.
O que fizeram em benefício da não-banalidade do bem e em solidão extrema.
127. A CONSCIÊNCIA DO BEM E DO MAL EM TEMPOS DE ESCURIDÃO
Para além da disciplina, há a consciência em cada ser humano.
Quando entram em conflito, cada um de nós tem liberdade de escolha.
O que é determinante em tempos de trevas, ao ignorar ou ser indiferente à anulação da capacidade de autoquestionamento, alienando a liberdade.
Em favor da tese da disciplina, há o argumento da obediência burocrática, segundo o qual aos funcionários integrados numa estrutura administrativa baseada nos princípios da autoridade absoluta, hierarquização rígida e da dependência acrítica, apenas lhes resta obedecer, retirando-lhes a sua capacidade de livre arbítrio, sendo o burocrata exemplar a primeira vítima, reduzido a uma peça burocrática que facilmente se transforma num instrumento do mal. Para Hannah Arendt: “Um funcionário, quando não é nada mais que um funcionário, é alguém muito perigoso”.
Recorre ao argumento de defesa de Eichmann, no seu julgamento, em Jerusalém, em 1961, quando acusado pelo encaminhamento para a morte de centenas de milhares de judeus, onde foi culpado e condenado.
A ideia de que há pessoas que em circunstâncias excecionais foram obrigadas a ter um estatuto sub-humano, transformando-as em monstros e negando-lhes a sua condição moral, legitimando a sua participação em atos criminosos, não é aceitável se estivermos cientes que são seres conscientes, que distinguem entre o bem e o mal, não podendo invocar a sua fuga e morte moral como justificação, por maioria de razão em crimes contra a humanidade.
Pondo de lado questões pendentes e não resolvidas sobre a ação moral, o juízo e o pensar, qual o pensamento que pode e não pode impedir catástrofes e malefícios quando pensamos, se há algo no pensamento que pode impedir as pessoas de fazer o mal (e incitá-las para o bem), a relação intrínseca que há entre capacidade de pensar e mal (e bem), chegamos a uma encruzilhada em que nos interpelamos: como se comportaria cada um de nós se tivesse vivido naquela época e naquelas circunstâncias?
Mesmo tendo presente, em permanência, que as sociedades se regem pela lei e não pela moral (da época), sendo a norma legal mais redutora, mesmo que se defenda que quem mata outras pessoas tende a estar consciente de que é errado.
É uma temática que ultrapassa o totalitarismo nazi (e soviético, entre outros), interpelando toda a Humanidade, incluindo saber se o Holocausto (e outros crimes ao longo da História) é fruto de uma elite e bando de psicopatas arianos ou também da cumplicidade e indiferença de milhões de seres humanos normais e indispensáveis.
Excluindo a teoria da culpa coletiva, que não aceitamos e é excessiva, sempre houve honrosas e louváveis pessoas que, naquela época e circunstâncias de tempos sombrios e de escuridão, souberam distinguir o bem do mal, sem se agarrarem a ideologias, recusando-se a obedecer a comandos que implicavam a negação da dignidade humana e o direcionamento para a morte dos mais expostos e muitos inocentes.
Sendo por natureza o mal radical, não pode ao mesmo tempo ser banal. Classificar o mal como banal é perigoso, podendo dar a ideia de ser algo sem gravidade. Uma suposta banalidade do mal normaliza-o, havendo que o não vulgarizar, em paralelo com a não-banalidade do bem que também não pode ser banal, porque, de igual modo, radical.
Tal conclusão, em jeito de síntese, vem a propósito da controvérsia gerada (que perdura) aquando da exibição do filme Hannah Arendt, de Margarethe Von Trotta, ao remeter para uma presumível atuação “banal” de Adolf Eichmann (AE) que, quando julgado, se defendeu alegando que se limitou a cumprir ordens sem saber ou sentir que agia mal, o que, numa perspetiva crítica, nos leva a concluir que os crimes contra a humanidade são obra de milhares ou milhões de seres humanos “normais” ou “vulgares”, com a cumplicidade de outros, num ambiente de generalizada indiferença, em que o acusado era um mero burocrata ou peça de toda a engrenagem conducente do Holocausto (argumento da obediência burocrática).
O que é mais surpreendente ao sabermos que AE provou, em julgamento, ter conhecimento do imperativo categórico de Kant, tido como necessário, incondicional e não subordinado a nenhum fim, porquanto a imperfeição da vontade humana exige um princípio objetivo obrigante, expresso do seguinte modo: “Age apenas segundo aquela máxima que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”.
A questão da “banalidade do mal”, fulcral no filme, é polémica, pois sendo o mal radical não pode ser banal, por remeter para interrogações não resolvidas sobre a capacidade e a liberdade de pensar, de julgar, de distinguir entre o bem e o mal, sendo tal expressão pedagogicamente infeliz, indesejável e insegura, colocando os verdadeiros criminosos e cúmplices numa situação aconchegante de “impossível escolha”.
Tanto mais que se tratava de um mal banal não comum, causa de uma nova tipicidade criminal e legal, os crimes contra a humanidade.
Também não se pode falar em banalidade do bem, porque também per si radical, por confronto com a constatação de que no tempo nazi, em que viveu AE, houve quem não aceitasse ser um Eichmann, o que nos remete para a capacidade e liberdade de pensar e julgar, entre o bem e o mal, em tempos sombrios e de escuridão.
125. FOCOS DE RESISTÊNCIA À NORMALIZAÇÃO QUE NORMALIZAM
As manifestações da liberdade de expressão, implementadas pela criação de regras estruturantes de um novo tipo de confronto verbal de opiniões, não existem para ser agradáveis, concordar e dizer bem, fazendo mais falta quando geradoras de discussão, podermos opinar e ser informados sobre temas chocantes, polémicos, não elogiosos, inconvenientes, que abominamos e magoam, protegendo quem discorda de nós, cujas ideias não aceitamos, refutamos ou odiamos.
Nos Estados Unidos da América, onde é mais ampla e irrestrita, são lícitas opiniões e discursos agressivos, cortantes, deploráveis, indecorosos, vergonhosos, de mau gosto, ofensivos, provocadores, violentos, não moralistas, racistas, antirreligiosos, antissemitas, chauvinistas, xenófobos, negacionistas do holocausto, não sendo as exceções determinadas pelo teor das expressões proferidas, mas sim se houver um risco inequívoco de algo grave ou muito grave, se se souber da falsidade dos dizeres ou textos, só sendo ilegal o incitamento à prática de crimes se existir um risco manifesto de ocorrerem e na sequência do que se expressou.
Esta liberdade de expressão permite encontrar um vencedor, um vencido, não haver vencedores nem vencidos, ficarem uns mais convencidos que outros, escrutinando-se, criticando-se, ouvindo-se via contraditório, mesmo que gritando, fazendo demagogia, substituindo insultos verbais primitivos e uma violência física tribal por uma compensação que é sublimada por uma liberdade que quer normalizar o tido por saudável a nível da expressão, do pensamento, da criatividade e da informação.
Em paralelo com as grandes manifestações desportivas, ao permitirem encontrar um vencedor e um perdedor sem agressões físicas, derramamento de sangue ou mortes, aceitando certas condutas de grupo em estádios como uma fuga ou compensação para antiquados atos de violência tribal sublimados por gritaria, berraria, ruído e insultos verbais emergentes da multidão e por ela atenuados e abafados.
Soma-se à verdade de um argumento tido por antropológico e sociológico, a de um tido como evolutivo e civilizacional, em dois exemplos de focos de resistência à normalização que com o seu escapismo consentido e legal acabam por normalizar o que ab initio nem sempre se presume ou se tem como adquirido.
Para Maquiavel se queres ter êxito na vida passa por cima dos outros, pelo que, em termos de poder e autoridade, tudo é lícito para o conseguir e manter, usando a astúcia, a hipocrisia, a crueldade, a má fé, a mentira, o crime e a violência. Não é censurável alcançar o poder e o sucesso de modo pouco honroso, desde que se chegue onde se quer. Não importa quem governa, mas como se governa. Os interesses dos governantes, conhecidos por razões de Estado, estão acima do bem comum dos governados, podendo o governo recorrer, lícita e legitimamente, à crueldade e ao engano, sendo admissível o Estado infringir as suas próprias leis, sem limites, se necessário, para sobreviver.
Passou a chamar-se maquiavélica a política caraterizada pela ausência total de escrúpulos morais e éticos com que eram aconselhados os políticos e governantes a atuar, justificando-se o fim por todos os meios.
Realista a têm tido, até hoje, os políticos, que jamais a deixaram de estudar, meditar ou pensar, por mais pérfida que seja, ao invés da sociedade ideal, perfeita, romântica e sonhadora, que vive numa ilha longínqua, que não existe em lado algum, chamada “Utopia”.
Embora clássica e atual, esta lógica maquiavélica tem algo de primitivo e tribal por confronto com os políticos e militares fabricantes do poder e terror absoluto emergente do nuclear, face ao qual a ambição desmedida, o erro, a estupidez, o mau senso, a criminalidade e a violência, podem destruir a humanidade.
Uma certa ciência, anteriormente símbolo e sinónimo de progresso, é hoje progresso e retrocesso. Quando perdeu e perde o sopro humano inspirador do humanismo, tornou-se e torna-se amoral.
Tradicionalmente argumenta-se que a responsabilidade dos cientistas existe só para com a verdade científica, não para com a verdade moral, ética ou social, o que os torna especialistas indiferentes aos malefícios das suas invenções e à sorte dos homens daí resultante, tornando-se a ciência, por vezes, uma atividade imoral.
Há que contrariar e condenar este caminho que nos conduz ao poder e terror absoluto que leva à morte total e à aniquilação de toda a esperança. Há que enriquecer a vida e o progresso humano espiritual, ao invés de uma hipotética ingenuidade de Einstein e outros cientistas ao tentaram suspender a explosão atómica e se deram conta do perigo de uma corrida permanente às armas nucleares que, por certo, prepararia uma guerra que poderia ser o fim do mundo que conhecemos e da nossa espécie, desacompanhado da consciência de qualquer responsabilidade moral ou ética, mesmo que validada juridicamente por seres medíocres e indecisos detentores do poder e terror absoluto que querem para comando da História.