Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CREIO NA IGREJA?


Quando se recita o “Credo” (nele, encontra-se o núcleo da fé cristã), é necessário estar prevenido contra perigos mortais.


Por exemplo, diz-se: “Creio em Deus Pai, em Jesus Cristo, no Espírito Santo”. Em português, também se diz “Creio na Igreja”, como se esta estivesse ao mesmo nível de Deus. Na realidade, não pode ser nem é assim. Aliás, o latim faz a distinção essencial, pois diz: “Credo in Deum...”; porém, não diz “Credo in Ecclesiam”, mas “Credo Ecclesiam”. A diferença essencial está naquele “in”: Creio “em” Deus, que significa: entrego-me confiadamente a Deus, mas não creio “na” Igreja. A diferença aparece também noutras línguas: por exemplo, em francês, distingue-se entre “Je crois en Dieu” e “Je crois à l´Eglise”, em alemão: “Ich glaube an Gott” e “Ich glaube die Kirche”.


Voltando à diferença na formulação latina — “Credo in Deum...”, mas “Credo Ecclesiam” —, o que lá está não é “Creio na Igreja”, mas: em Igreja, como Igreja, isto é, como membro da Igreja enquanto comunidade de todos os baptizados, creio em Deus Pai, em Jesus Cristo, no Espírito Santo, e espero a ressurreição dos mortos e a vida eterna... Como explica no seu Credo o famoso teólogo Hans Küng,  “a Igreja é a ‘assembleia’, a ‘comunidade’ dos que crêem que Jesus é o Cristo, dos que fizeram sua a causa de Jesus e  dela dão testemunho como esperança para todos.”


Como habitualmente se coloca tudo no mesmo plano, dizendo “creio na Igreja”, é fácil interiorizar a ideia de que se acredita na Igreja enquanto instituição, e instituição divina, com todas os enganos e desastres que se sucedem. Aliás, quando, na linguagem comum, a Igreja é publicamente referida, dizendo, por exemplo, “a Igreja diz sobre este tema isto e aquilo...”, pensa-se não na Igreja Povo de Deus, mas na hierarquia, no Papa, no Vaticano, nos cardeais, nos bispos, nos padres...


Ora, Jesus queria a Igreja enquanto Povo de Deus, não uma Igreja instituição de poder e clerical, com duas classes: de um lado, a hierarquia, o clero, que ensina e que manda em nome de Deus, e, do outro, os leigos, os que obedecem. Veja-se o significado da palavra leigo no linguajar comum: sou um “leigo”, com o sentido de incompetente, um ignorante. Ou a expressão referida aos padres, quando lhes é retirado o ministério: “foi reduzido ao estado laical”, com o sentido implícito de ter perdido o privilégio de clérigo. Na Igreja, segundo Jesus, há ou deveria haver uma igualdade radical e, consequentemente, nela deve reinar a fraternidade, a igualdade e a liberdade. Evidentemente, uma vez que há muitos, terá de haver alguma organização, mas a instituição tem de estar ao serviço da Igreja Povo de Deus, e não hipostasiar-se, sacralizar-se, dando a si mesma atributos divinos. Aliás, Jesus disse: “Eu vim não para ser servido mas para servir”. Na Igreja, há serviços, funções, ministérios.


Questão essencial é sempre o clericalismo, como tantas vezes o Papa Francisco tem sublinhado. Repito: clericalismo vem de clero, que implica a ordenação sacerdotal e com ela o poder sacro e o sacerdote como outro Cristo. Jesus tinha dito: “sois todos irmãos”, mas, com a ordenação sacerdotal apareceu, repito, uma Igreja com essas duas classes: clero e leigos. Segundo o Novo Testamento, sacerdote só Jesus e o povo cristão, que é sacerdotal. Assim, dois eminentes teólogos actuais, jesuítas como Francisco, exigem como urgente a necessidade da dessacerdotalização dos ministérios. Jorge Costoad escreveu: “A versão sacerdotal do cristianismo converteu-se  numa expressão patológica do mesmo.” González Faus pede que “desapareça toda a conotação ‘sacerdotal’ no ministério... A rica teologia dos Evangelhos  sobre o pastor, o padre (pai), pode dar perspectivas muito mais cristãs do ministério do  que essa espécie de ‘divinização’ que o termo sacerdote sugere.”


Portanto, o que se passou e passa é que a hierarquia, padres e bispos, sacralizaram-se, atribuindo-se a si mesmos privilégios sacros ao serviço dos quais estaria o próprio celibato. Eles trazem Cristo à Terra na Eucaristia, só eles perdoam os pecados, e formam uma espécie de casta à parte, como diz a própria palavra clero, são ministros, mas ministros sagrados... O padre foi considerado “alter Christus” (outro Cristo). Isso foi de tal modo interiorizado pelo comum dos católicos que há constantemente o perigo da deriva para o clericalismo, como diz o padre Stéphane Joulain, psicoterapeuta: “Considerar que, porque se foi ordenado, se tem direito a uma forma de reverência é um erro, de que alguns não hesitam em abusar... A cultura de um país, a sua história desempenham um papel nisso: nos Estado Unidos, mas também na África, os leigos encontram-se numa grande submissão aos padres. Alguns fiéis, citados no relatório judicial da Pensilvânia, contam que, quando um padre os visitava, era como se o próprio Deus entrasse em casa...”.


Mais: neste contexto, também se entende que o perigo máximo consista em defender e proteger a instituição, mesmo à custa daqueles que verdadeiramente deveriam ser defendidos e protegidos: as crianças e os mais frágeis, no caso dos abusos. O encobrimento para defender a Igreja-instituição no seu poder e prestígio! E foi a tragédia que se conhece.


Perante uma das piores crises da História da Igreja, importa refundá-la, indo ao encontro do Evangelho. É nisso que trabalha afincadamente o Papa Francisco, que não se cansa de repetir que “a Igreja somos nós todos”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 18 de fevereiro de 2023

"CREDO"


6. ET VERITAS LIBERABIT VOS
 

Em meados dos anos 80 do século passado, a minha filha mais velha estudava na Columbia University, uma das universidades incluídas na prestigiosa Ivy League norte-americana. Apesar de morarmos em Scarsdale, ali à beirinha de Manhatan, entendemos que seria preferível a Teresa residir no campus universitário, participando otimamente nas atividades circum-escolares, e vindo a casa de sábado ao almoço até 2ª de manhã... Partilhava o apartamento que lhe fora atribuído na Columbia (dois quartos, uma sala, cozinha e casa de banho) com três colegas americanas: uma católica e duas judias ortodoxas, todas excelentes alunas, dando-se bem e distribuindo entre elas as tarefas domésticas. Aos sábados, as católicas preparavam o pequeno almoço e arrumavam tudo, antes de todas saírem para as respectivas famílias. E uma delas tocava ainda no botão de chamada do elevador, pois mesmo essa tarefa estava interdita às outras duas em dia de sábado. Por isso não me surpreendi quando, anos mais tarde, li numa revista internacional que, em Israel, o desenvolvimento da aplicação de sensores electrónicos facultara a instalação de "Sabath lifts " ou elevadores de sábado, que dispensam carregar em botões... Estas lembranças despertam-me para uma reflexão sobre as tradições religiosas, a autenticidade e a hipocrisia, o conservadorismo e o progressismo, a tolerância e a aculturação. Procurarei partilhar essa reflexão  -  que necessariamente se processará em vários registos  - com quem tiver paciência para me ler. O título cobertor que lhe dou (A Verdade vos libertará) não tem qualquer intuito apologético ou prosélito da minha ou outra fé religiosa : significa simplesmente que todos e cada um de nós  -  desde o ateu mais decidido a qualquer crente mais ortodoxo  -  quando se interroga sobre quem sou? donde venho? para onde vou? finalmente procura a Verdade que o libertará.  A sua verdade, independentemente de ele acreditar, ou não, que a sua verdade é ontológica. Acrescento que não pensarei aqui nas religiões como sistemas teóricos ou doutrinais, mas antes enquanto comunidades de crentes que, agora e ao longo da sua história, têm de co-habitar a terra dos homens. Delas podemos dizer, parafraseando Ortega, que cada fé é ela e a sua circunstância temporal e cultural. E já que não vamos olhar para elas como ideias abstractas, mas como existências nas e pelas comunidades que as suportam  -  ou seja, como profissões e confissões, organizações e comportamentos  -  teremos de atender, não só às respectivas evoluções , mas ao modo como estas são percebidas, por vezes diferente ou mesmo contraditoriamente, pelos seu próprios seguidores... E, ainda, à percepção de cada uma pelo outro, isto é, pelos que estão de fora. O que nos levará a propor, para este tempo de medos e aversões, em que se badalam fobias e choques de culturas e civilizações, o culto comum da interculturalidade, em que o diálogo religioso transcenda a mera verificação da multiculturalidade, pois esta tanto poderá resignar-se com a coexistência como conduzir a confrontos agressivos, logo que o sentimento de diferença levar à afirmação autista da superioridade de uma fé sobre as dos outros. É claro e natural que eu considere a minha religião (ou o meu ateísmo) como a verdadeira, acima de todas as outras, por isso mesmo a professo. Mas também devo reconhecer esse direito a cada um dos outros.  A verdade comum que nos deverá libertar a todos, é a da fé como substância das coisas que devemos esperar, a comunhão final do amor. Para um cristão, o Verbo de Deus incarnado, cheio de graça e de verdade é o amor de Deus entre os homens. Quando confesso crer na Igreja única, santa e católica, professo a minha pertença à comunidade dos crentes no corpo místico de Cristo, sabendo ainda que essa Igreja é também sacramento da humanidade inteira  -  passada, presente, vindoura  -  abraçada pelo amor universal de Deus... Todas as tradições religiosas se desenrolam sob tensões entre o fundamentalismo e o vanguardismo, o conservadorismo e o progressismo, que tanto podem gerar uma dialéctica legível por critérios hegelianos (tese-antítese-síntese, etc.), como originar cismas, seitas e heresias. Basta pensarmos, como nos recorda Odon Vallet, doutorado em ciência das religiões e professor na universidade de Paris (Panthéon e Diderot), que, de um ponto de vista histórico objectivo, não teológico e confessional, o Buda, Jesus ou Maomé surgem mais como reformadores do que como fundadores de religiões...  ... O Buda era um reformador do vedismo. Achava excessivo o poder dos brâmanes, tal como Jesus teve de discutir com os sacerdotes do templo de Jerusalém...  ... Este foi um judeu que quis reformar a sua religião, sem todavia a renegar...  ... Maomé situa-se na filiação de Abraão, de Moisés e de Jesus, e penso que a religião muçulmana nada tem de revolucionário...  ... com a sua ética moderada... seduz pela simplicidade... exigindo orações e jejum, adapta-se todavia à fraqueza humana...  ... Quanto a Moisés, pouco se sabe, nem sequer a época em que viveu, se é que realmente existiu...  ... A personagem de Moisés surge, antes de mais, na Bíblia, como libertador do povo hebreu, mais do que como fundador de religião, dado que o texto sagrado o situa num tempo bem posterior a Abraão... Seja como for, o judaísmo aparece sobretudo como religião de um povo e, apesar de nas suas escrituras incorporar mitos e relatos procedentes de outras regiões, como o Egipto ou a Mesopotâmia, funciona como aliança de uma nação com o seu Deus, percorrendo uma história cheia de vicissitudes, que, curiosamente, o torna simultaneamente nacionalista e portador de uma vocação universal. Só regressando às origens do povo de Israel poderemos entender o nacionalismo feroz do nosso contemporâneo movimento sionista e a sua concomitância com uma diáspora que, mesmo quando não se converte a outras confissões religiosas, se acomoda de outras nacionalidades e culturas. Em conversas correntes, quando hoje dizemos de alguém que "ele é judeu", tanto podemos estar a falar de um cidadão israelita, como de qualquer outra pessoa que professe a religião judaica  -  seja esta um judaísmo ortodoxo ou reformado, neo-ortodoxo ou simplesmente conservador, ou ainda o hassidismo, incluindo o movimento habad, etc...  - ou que seja ateu ou agnóstico, católico ou protestante, mas de família judia... Até acontece apelidarmos de judeu alguém que nasceu e cresceu fora da esfera religiosa do judaísmo, longe de qualquer comunidade judia, só porque o nome que usa se encontra em registos seculares de cristãos-novos, como se estes, ao serem baptizados, não tivessem recebido também, além do seu onomástico, um apelido de família escolhido de entre os de cristãos-velhos... Todavia, não chamamos portugueses aos milhões de cingaleses, indianos, malaios, indonésios, africanos, americanos que, mesmo não tendo qualquer ascendência lusitana, e pertencendo a várias etnias, em virtude da conversão, simples adopção, ou ainda emancipação da condição de escravo, de quaisquer antepassados, hoje são portadores de apelidos, por vezes ilustres, de famílias portuguesas.  Também pensamos repetidamente nos judeus como sendo uma raça, um grupo étnico : mas não são, pois há judeus de origens distintas, e talvez entre eles se encontrem hoje tantos ou mais de origem caucasiana do que semitas... Contudo, o conceito de anti-semitismo aplica-se ao repúdio ou perseguição de judeus, nunca de árabes que, esses sim, são também uma etnia semita. Mas também não confundimos muçulmanos com árabes, apesar de o islamismo ter nascido na Arábia ; sabemos bem que o islão abraça muitos outros povos, desde eslavos a egípcios, sírios e persas, de turcos a malaios e indonésios, de beduínos a fulas e outros da África sub-sahariana, etc... E se as mesquitas e orações muçulmanas em todo o mundo se fazem viradas para a Meca  -  tal como na tradição judaica as sinagogas (casas de reunião, leitura da Bíblia hebraica e oração) se orientam para Jerusalém  -  e apesar de o  islamismo se ter erguido na circunstância de uma guerra de conquista cujo objectivo era constituir um estado político, a ideia que dele temos não é, como no caso do judaísmo, essa de uma união  - que eu diria ontológica  -  de uma religião e um povo. Que se verifica em Israel como na diáspora... Muito embora a tentação de tornar o estado de direito democrático em teocracia se faça sentir em certos sectores mais "sionistas" da sociedade israelita, tal não parece possível, dada a cultura política de uma população que veio de experiências ditatoriais no leste europeu, isto é, negativas, ou de democracias ocidentais em regimes não confessionais. Nem tampouco se inscreve na história e tradição do povo hebreu, pois muito embora a religião judaica fosse nacional, não se confundiam as funções políticas com as sacerdotais. Nos países islâmicos, todavia, o debate, até ao afrontamento violento, entre correntes teocráticas e laicas, não parece ter um resultado unanimemente  previsível. Curiosamente, o estado mais teocrático (Irão), de tradição chiíta , que remonta aos califas descendentes do Profeta, opõe-se ao propósito (utopia?) de constituição de um califado expansionista, sendo que este é promovido por sunitas marginais....cujo centro geopolítico são franjas da Síria e do Iraque. Não cabe nesta reflexão qualquer análise política do que por aí se vai passando, nem sequer tocar na violação de determinações das Nações Unidas por Israel...   Estamos, por agora, noutro registo, mais virados para a vontade de entendimento  do que nos diferencia, para melhor compreendermos  -  como ensina S. Tomás de Aquino  - aquilo que nos aproxima.  Não será fácil definir sempre com clareza as fronteiras de um povo, um reino, uma civilização, visto que se desenrolam no decurso da história : mudam-se os tempos, mudam-se as vontades...  ...todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades. As religiões existem em sociedades humanas que se vão transformando no tempo, as palavras que as dizem sofrem evoluções semânticas, os conceitos que as sustentam vão sendo circunstancialmente entendidos e proclamados. Assim essa ideia de povo de Deus  -  Israel, Igreja, Umma  -  é inicialmente diferente para judeus, cristãos e muçulmanos, mas para cada uma dessas categorias de fiéis também não significou sempre o mesmo, sendo ainda certo que, em qualquer dessas religiões, sofreu apelos nacionalistas e universalistas, primitivistas e evolucionistas.

Para entendermos o que é o goy kadosh, o Povo Eleito, talvez tenhamos de olhar pela perspectiva, profética e messiânica, do povo e do reino de Israel. Ou de refectir sobre o dilúvio universal e a arca de Noé, em que se salvam os que Yahvé escolheu da destruição que eliminará todos os outros descendentes de Adão e Eva. Mais tarde, Abraão será pai de todos os povos, mas a Terra Prometida caberá a Isaac, filho de sua mulher Sara, pai de Jacó-Israel. Ao filho da escrava Agar, Ismael, será atribuída a linhagem árabe... Assim, o reshit  --  origem e princípio do Povo Eleito  --  é separado do resto da humanidade e consagrado a Deus, e o que dele resta, o sheerit, pertencerá ao homem, muito embora venha a beneficiar da redenção adveniente nos tempos messiânicos, quando finalmente terminar o exílio de Israel. E este Israel, portanto, concebe-se como a parte da humanidade que Deus escolheu para se revelar e manifestar, sendo ,simultaneamente, acima dos outros, o povo sacerdotal, que está entre Deus e os homens todos. Shmuel Trigano, professor de sociologia na Universidade de Paris-Nanterre e director-fundador do Colégio de Estudos Judeus da Aliança Israelita Universal defende, no seu Le judaïsme et l´esprit du monde (Grasset, Paris, 2011), que o cristianismo e o islão se erigiram em outros Israel, como seus substitutos, seus sucessores, e edificaram monoteísmos libertos do interdito de representação que comandava o lugar vazio ao lado de Israel real. Dessas construções nasceram universos fronteiros a Israel, não contrários, mas antitéticos. Jesus é Deus, Maomé o único representante de Deus. O poder decorre deles. O seu interesse vai ao outro mundo e a verdade absoluta que representam. O messias ou o profeta são hierarquicamente colocados acima dos homens, e consigo necessariamente trazem impérios. A sua autoridade, todavia de Deus, não decorre de uma aliança  -  no sentido político do termo  -  mas de um elo metafísico, não textual nem deliberado : a fé em Jesus que morre para salvar o homem é o modo de entrar na aliança. A submissão (que se diz islão) à mensagem de Maomé governa a entrada na verdadeira umma... Eu diria que o cristianismo surge como sucessor do judaísmo, mas no sentido de seu continuador no cumprimento da promessa messiânica : a Igreja de Cristo é o novo Israel. Porque o próprio Deus tomou a condição humana, o povo eleito já não é separado, nem pode ser percebido como sectário, mas é testemunha da Boa Nova, sacramento da redenção e vida em Jesus Cristo e por Cristo oferecidas à humanidade inteira. É facto que, desde Constantino, a Igreja nem sempre resistiu à tentação mundanal do poder temporal, quer concebido como direito divino dos soberanos cristãos submetidos ao papa (que aliás a sujeitou a guerras intestinas, entre guelfos e gibelinos, p. ex., e muitas outras, durante séculos), quer na soberania directamente exercida nos estados pontifícios, quer na motivação de cruzadas e outras expedições militares e políticas... Esquecia-se de que "o meu reino não é deste mundo"... E, concomitantemente, refugiava-se  -  à moda de Lutero, p. ex.  -  na teologia dos dois mundos, dessa vez esquecendo que a Igreja é anúncio, fermento e sal da terra, que o testemunho da Jerusalém celeste, da cidade de Deus, também é devido pela pregação e acção pela justiça e a paz na cidade dos homens.

É certo que o Corão chama grande jihad ao esforço que o crente deve fazer como peregrinação interior de conversão, sendo a jihad menor (al-jihad al- asghar) a guerra defensiva, aquela que se move em nome e defesa de Alá, em legítima defesa do seu culto ou dos estados muçulmanos, em caso de violação de juramentos e acordos, de recusa do pagamento dos tributos devidos pelos infiéis que neles vivem... A guerra de agressão é condenada, sobretudo se feita com vista ao enriquecimento temporal e material. Seja como for, o muçulmano, aquele que se submete à vontade de Alá, tem o direito e o dever de combater os seus inimigos, em caso de agressão ou desrespeito. Há, portanto uma justificação religiosa para a guerra. Talvez por isso, o nome de Deus seja sempre invocado para o efeito, mesmo no confronto entre filhos e reinos do Islão. Até em curiosas situações de alianças entre muçulmanos e cristãos, contra...muçulmanos e cristãos! Pense-se, p. ex., no califa Abássida Harum al-Rachid que, de Bagdad, cidade capital ordenou a igualdade de todos os muçulmanos, pelo que a umma deixou de se limitar aos árabes, e era aliado do imperador Carlos Magno, opondo-se, por amizade a este, ao império cristão de Constantinopla, enquanto o imperador franco do ocidente se opunha aos Omíadas, rivais dos Abássidas, instalados na Península Ibérica... Todavia, a ideia de Islão, mesmo na vigência de regimes políticos muçulmanos tolerantes de outras religiões, tendeu sempre a abranger a religião e o estado.

Tal conceito cripto teocrático também não foi estranho à cristandade que, já no sec. VIII instaurava um estado no Vaticano, que ainda hoje existe, que chegou a atingir alguma expressão territorial e, durante séculos, não só manteve a afirmação da supremacia e primazia papal sobre os soberanos temporais, como participou em variadíssimos conflitos políticos. A surata primeira do Corão, como quase todas as outras, começa Em nome de Deus clemente e misericordioso, e continua assim:                          

  1. Louvor a Deus, soberano do universo,

                            2. O clemente, o misericordioso,

                            3. Soberano no dia da retribuição

                            4. É a tfi que adoramos, a ti que imploramos socorro

                            5. Guia-nos pelo caminho recto.

                            6. Pelo caminho daqueles que cumulaste de bens

                            7. Daqueles que não incorreram na tua cólera e não se perdem. Amen

Qualquer judeu ou cristão não hesitará em proferir esta oração. Como nenhum judeu ou muçulmano discordará de S. Tomás de Aquino quando escreve na sua Summa Theologiae:                     

     A misericórdia efectiva é o que de melhor podemos dizer de Deus.

Todos concordarão em que dar testemunho de Deus é praticar a misericórdia efectiva, que é justiça e paz. Para além de sobejos erros históricos e da permanente tentação da própria eleição de cada uma e da respectiva supremacia sobre as outras, cada religião sabe que a verdade única que nos libertará deve estar na fé de todos na misericórdia de Deus, uns com os outros partilhada.                     

                          
Camilo Martins de Oliveira

"CREDO"


5. SONETO PARA TODAS AS IDADES

Adiante falarei mais da minha fé, e mais dela no concerto das pessoas e das sociedades. A fé, como a razão, são apanágio dos seres humanos que somos. E este ser humano é necessariamente um ser em relação, função de uma cultura. E deverá ser, dentro e fora dela, participante num diálogo. Sinto-me, muitas vezes, mais próximo dos outros do que dos "meus". Quiçá porque não tenho clube nem classe, e sou simplesmente um marginal, irritam-me as pretensões dos que sabem tudo e nada querem interrogar, tanto ou mais do que as dos que pouco sabendo tudo entendem igualmente. A Summa Theologiae de frei Tomás de Aquino estará hoje, em vários pontos, antiquada, até no método da sua construção. Mas continua a ser uma escola primária do pensamento. Sobretudo quando sentimos que o pensamento deve ser humilde, interrogador. Ser insistente na interrogação é ser infinitamente humilde... Humilde ao ponto de, concluindo uma obra gigantesca, em que nada é afirmado sem antes ser analisado, confrontado e debatido, o seu autor dizer que é palha tudo o que escreveu. A 6ª memória deste meu «No Princípio era o Verbo» será a de um passeio pelos povos das religiões monoteístas, suas vocações universais e tentações nacionalistas e sectárias. Mas esta manhã, acordei a pensarsentir as fúrias que me assaltam quando vejo que, na minha própria igreja, que sempre amei e desejei universal e acolhedora, tantas vezes se levantam dogmas e normas como muralhas ou armas de arremesso para a exclusão de outros... Não é fácil ser fiel e aberto ao abraço, e ser católico passa também por ser-se quem se refugia para abrir mais... Rezei assim:


Vim, meu Senhor, buscar o teu resguardo,

recolher-me ao silêncio de que és feito,

calado apagar as fúrias em que ardo,

e adormecer no escuro do teu peito...

 

Violentos são os lumes que ardem fora

da pura luz que a tua paz acende

no cantinho de mim onde já mora

a mansidão que dás e que me prende...

 

Em tua prisão fico e me aconchego :

menino já tão lindo de sossego,

descanso no calor da tua mão...

 

Esqueço males e raivas que ferveram

dentro de mim, mas por meu bem fizeram

que em Ti por fim pousasse o coração...

 

Camilo Martins de Oliveira

"CREDO"


«Ecce Homo» Nuno Gonçalves


4. MAGNIFICAT ANIMA MEA DOMINUM
 

No 1º Livro de Samuel, conta-se como a mãe deste assim o chamara porque, sendo ela estéril, Yahvé todavia lho dera. E quando, com seu marido Elqana, ela, Ana de seu nome, consagra a Deus o  filho do casal, recita uma oração de acção de graças que começa assim: O meu coração exulta em Yahvé! E a razão dessa alegria é o poder de Deus que inverte a ordem mundana das coisas, tira os fracos do pó, e do fumeiro levanta os pobres, e lhes dá um lugar de honra... Semelhante será o tema do hino de Maria, Mãe de Jesus, que S. Lucas inclui no seu relato da visitação a Sta. Isabel, e cujo primeiro verso serve de título a esta minha confissão: A minha alma exalta o Senhor e o meu espírito estremece de alegria em Deus meu salvador, porque se dignou olhar para a sua humilde serva... Santo é o seu nome, e a sua misericórdia estende-se de idade em idade sobre aqueles que o temem. Exerceu a força do seu braço e dispersou os homens de coração soberbo. Derrubou os potentados dos seus tronos e levantou os humildes. Saciou de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias... Tal como Samuel, Isaac, filho que Abraão tem de Sara, e João Baptista, o menino que exulta no ventre de Isabel, quando esta percebe que sua prima Maria, que a visita, espera Jesus, o Salvador, são também filhos de mães estéreis. E o próprio Cristo nasce de uma virgem. E a vontade poderosa de Deus - que assim contraria a ordem conhecida - anuncia por tais sinais uma ordem nova, em que tudo o que consideramos valoroso e superior - o dinheiro, o poder, a glória deste mundo - será substituído pelas coisas humildes que menosprezamos. No evangelho dos sinais messiânicos, o de S. João, a narrativa da paixão de Cristo - conducente à sua morte e ressurreição, que dão todo o sentido ao Credo cristão - começa por nos contar a lavagem dos pés que Jesus faz aos seus discípulos, sinal dessa subversão dos valores do mundo. Sinal bem forte: o próprio Deus se humilha perante os homens, e por aí lhes diz que assim também eles deverão proceder uns para com os outros. Nos evangelhos de Mateus e Lucas, quando as multidões vão crescendo a seguir Jesus, para assistirem e, quiçá, beneficiarem dos seus milagres, Ele ensina-lhes as bem-aventuranças: Felizes os pobres, porque deles é o reino dos céus! Felizes os mansos, porque possuirão a terra, os aflitos, porque serão consolados, os famintos e sedentos de justiça, porque serão saciados, os misericordiosos, porque obterão misericórdia, os corações puros porque verão a Deus, os artesãos da paz porque serão chamados filhos de Deus, os perseguidos por amor da justiça porque deles é o reino dos céus... E se S. Lucas regista, a seguir, a maldição dos que são ricos e poderosos pela ordem deste mundo, logo insiste no apelo ao amor, até dos próprios inimigos... E S. Mateus mostra como os chamados à bem-aventurança devem ser, desde já, o sal da terra, a luz do mundo. Estes textos - o Magnificat e os outros que acima refiro - são outros tantos textos fundadores de uma reflexão mais profunda sobre a minha fé. Já antes disse que quando, perante a existência do mal, sinto angústia e revolta, recuso pensar o absurdo como logos, pois a explicação ou o entendimento não pode esgotar-se na perplexidade; perante o absurdo e a minha incapacidade de o entender, recorro ao Logos, Verbo de Deus, para iniciar um caminho de contemplação do mistério de tudo. Que logo me leva a entender, com S. Tomás de Aquino, que a vida contemplativa consiste numa certa liberdade da alma : "A vida contemplativa, diz S. Gregório, porque não se aplica às coisas temporais, mas às eternas, faz-nos entrar na liberdade do espírito." E também Boécio: "As almas humanas tornam-se necessariamente mais livres quando se põem na contemplação da inteligência divina, do que quando se dispersam pelo mundo corporal"... Assim entrego ao pensamento de Deus aquilo que não entendo ainda, mas sobre isto e a revelação divina, não posso nem devo deixar de me interrogar. Também o Ser Amor -  como Deus se revela  -  me deverá conduzir desde já às tarefas de justiça, bem-querer e paz com que se construirá na terra, nem que apenas ainda como sinal, a substância das coisas que esperamos. E ocorre-me citar Santo Agostinho nas Enarrationes in Psalmos : Dois amores fizeram duas cidades: o amor de Deus cria Jerusalém; o amor do século cria Babilónia. No livro XIV, 28, de A Cidade de Deus, escreve: Dois amores construíram, pois, duas cidades: a da terra, pelo amor de si até ao desprezo de Deus; a do céu, pelo amor de Deus até ao desprezo de si... E dirá mais tarde, quase na hora da morte: Assim, estes vinte e dois livros têm todos por assunto ambas as cidades, mas o título de todos eles vem da melhor  delas : por isso lhes chamei A Cidade de Deus... Pessoalmente, sintopenso esta cidade de deus fora do contexto maniqueu, donde muitas vezes parte o Bispo de Hipona. Antes a situo na perspectiva da vocação cristã à procura do Reino de Deus, que pressupõe o entendimento de que a ordem terrena da grandeza, poder e riqueza, tudo aquilo de que nos queremos apropriar - pelo amor de nós até ao desprezo de Deus - deverá ser subvertida pelo amor de Deus que é, necessariamente, amor dos outros, justiça e paz: a fé é a substância das coisas que esperamos. Esta nossa conversão leva-nos à denúncia da injustiça entre os homens, à comunhão no sofrimento dos desvalidos, como a de Cristo na nossa condição. Princípio de vida, que não pode nem deve ser esquecido, muito embora sejam múltiplos os dons e as opções de cada um na busca da caridade, esta sendo , não uma esmola, mas justiça para todos. Assim também, se pensar em revoluções sangrentas ou geradoras de novas injustiças, deverei lembrar-me do que frei Tomás de Aquino escreveu - em texto da Summa que já citei e aqui acrescento: ... a prudência, ou virtude política, é serva da sabedoria, porque lhe prepara o caminho, como um servo ao seu rei... a prudência considera os meios de chegar à felicidade, enquanto que a sabedoria considera o próprio objecto da felicidade, que é o supremo inteligível . Assim, se o conhecimento que a sabedoria dirige para o seu objecto fosse perfeito, a felicidade perfeita consistiria no exercício da sabedoria; mas como o exercício da sabedoria nesta vida é sempre imperfeito relativamente ao seu principal objecto, que é Deus, o acto da sabedoria é uma espécie de esboço ou de participação da felicidade por vir, que, enquanto tal, se aproxima mais da felicidade do que a prudência. Quando atrás fiz referência ao maniqueísmo, lembrava-me da ideia de pecado originalque, vezes demais, serviu para que se generalizasse o equívoco de que, para o cristianismo, o ser humano é inerentemente mau e só um qualquer castigo, sobretudo auto infligido, o libertará do maligno. Costumo dizer que, na recitação do Credo, confesso que creio na remissão dos pecados, e não que o pecado seja fé minha... Quero com isto significar que o amor de Deus - que praticamos na caridade entre os homens - não é, nem pode ser, desprezo ou menosprezo da nossa humanidade, antes pelo contrário: esta tem o valor divino que o Verbo incarnado e ressuscitado lhe trouxe. A minha fé está no evangelho (boa nova!) da alegria. Sejam pois sempre interpretadas a esta luz expressões que contrastem o amor de Deus com o amor humano. Até para não cairmos nas tentações de Nietzsche... Retenho apenas alguns dos seus juízos sobre (ou contra) o cristianismo, que me parecem ter mais relação com o que nesta folha trato. Na sua última obra, Ecce Homo, o filósofo da "morte de Deus" explica assim a acusação que, no seu O Anticristo, ao cristianismo faz de arrogância idealista: até onde for a fabricação de um mundo ideal, se vai retirando à realidade o seu significado, valor e verdade... É nessa diatribe anterior que Nietzsche acusa a religião cristã - tal como ela decorre da apresentação feita pelo clero das diversas igrejas - de promover o horror e ódio de si, e à natureza, seus instintos e pulsões (designadamente sexuais), ameaçando de castigos eternos os pecadores que não se queiram redimir através dos padres ou pastores... Tendo morrido, já louco e confinado à Villa Silberblick, em Weimar, em 1900, ele não terá tido vida e reflexão sobre os movimentos sociais cristãos subsequentes à pregação de Lacordaire e à Rerum Novarum de Leão XIII, nem sei se isso serviria outras ideias de um filósofo que também acusava o cristianismo de destruir o espírito aristocrático que diferencia as pessoas, já que o evangelho dos humildes torna as coisas mais baixas. E que lhe apontava a hipocrisia da mensagem fundadora de Jesus, que chamaria amor à ameaça do escravo contra os poderosos que correm o risco de serem condenados ao fogo do inferno... Pessoalmente, sempre me desgostou a obsessiva insistência eclesiástica no chamado pecado da carne (sexo), e sempre me sentipensei com pouco mérito mas grande alegria na comunhão de uma Igreja, em que tantos fiéis, pela sua acção, testemunham a boa nova anunciada aos pobres, cuja substância são as coisas que esperamos.


Camilo Martins de Oliveira

"CREDO"

Osamu Nishitani


3. PATER NOSTER

A fé que procuro viver no dia a dia busca essa comunhão com Deus que é, necessariamente, comunhão com os homens. Enquanto acto de inteligência e vontade, exprime-se, não pela afirmação de dogmas nem pela repetição insistente de pedidos pessoais, mas, de modo mais procurado no Evangelho, pela oração que o Senhor nos ensinou: Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome, venha a nós o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como nos céus... O Verbo, o Filho consubstancial ao Deus incarnado, o mesmo que nos ensinou a não rezar como os pagãos - que esperam recompensa de sacrifícios e dádivas - também exclamou, na véspera do seu sacrifício na cruz: Pai, se for possível, afasta de mim este cálice! Mas seja feita a tua vontade! Jesus conhecia a vontade de Deus, e o homem que era assim teve de a aceitar. Nós não sabemos - nem para nós nem para os outros - qual é a vontade de Deus. Ao rezarmos, apenas sabemos que damos graças, porque tudo é graça, porque o nosso sofrimento subiu já ao céu, no sofrimento voluntário de Cristo! Como é possível, então, que em proclamados "santuários", se motivem as pessoas a repetirem infindáveis rosários de jaculatórias, e não a entenderem a gratuidade fundamental da sua relação mística com Deus? A verdade da oração de graças é só uma: seja feita a Tua vontade... Ocorre-me um paralelo ao que disse Osamu Nishitani, um pensador japonês nosso contemporâneo, sobre a filosofia, de que é professor: Digo que o pensamento não salva, porque o pensamento, como a sabedoria, não é remédio para qualquer doença, não é um medicamento... Podemos pensar por motivos pessoais, em busca de uma solução para uma doença, um problema nosso... Mas devo pensar para organizar a relação entre mim e os outros... E pretenderá  -  quiçá porque é essa a ideia que se transmite da nossa religião  -  que a salvação é assunto para a religião.. e a religião não é pensamento... A salvação espiritual, a salvação religiosa, é uma satisfação num meio fechado, num mundo separado, comunitariamente agrupado, mas essa comunidade é restrita. Facultará um certo conforto com a existência, mas, no fundo, funciona como rejeição. Pensar é mais aberto e arriscado. Não é safar as pessoas de sofrimentos ou becos. Antes será levá-las a caminhar de modo diferente, ajudá-las a encontrar um caminho, por vezes perigoso... Atrevo-me, neste exercício tão íntimo de me interpelar sobre a minha fé - e que partilho com quem me lê, porque amigos me incentivaram a fazê-lo - a substituir pensamento por oração, pensar por rezar, e direi então: a oração, como insistência precatória de benesses neste mundo, não salva, porque a oração não é remédio para doenças, não é medicamento. Rezo para encontrar a minha relação com Deus e os outros, porque a salvação não é contentamento pessoal, nem sintonia de grupo restrito e fechado a outras vozes. Em tal não encontro conforto, percebo rejeição. Rezar é uma abertura ao mistério de Deus, para ir buscar o caminho da fé. Por isso pedimos que venha a nós o teu Reino, o amor que esperamos encontrar, e em cujo sinal nos devemos, desde já, reconhecer. Dá-nos hoje o pão nosso de cada dia, a nós todos, não só a mim... Pois se olhamos para os lírios dos campos, e não há maior nem mais rica beleza do que a que Deus lhes providencia, porque haveremos de procurar tantas razões políticas, sociais, económico-financeiras, para justificar a nossa injustiça, quando nos povos do mundo, em todos eles, incluindo os nossos próximos pobres, não recebem o pão que, dia a dia, o Pai que está nos céus a todos dá? Será de Deus a culpa, a má gestão e distribuição dos bens, ou será nossa? No evangelho, o pão que Jesus manda dar às multidões famintas que O escutam, multiplica-se sempre. Quanto mais se partilha mais rende, quanto mais se deu mais se recebe e há para dar. Será essa a nossa lógica? A chamada Última Ceia, essa que foi a primeira de muitas missas, em que a acção de graças - que é o louvor absolutamente verdadeiro da união de todos com Deus e os outros - acontece nesse sinal sacramental do pão partilhado como comunhão no Corpo de Cristo, factor e função de reconciliação. Por isso mesmo rezamos ainda: perdoa-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. E já nos fora feito o desafio de atirar, à mulher adúltera, a primeira pedra se nunca tivéssemos pecado, como nos fora prescrita a obrigação de nos reconciliarmos com irmãos desavindos, antes de levarmos ao altar a nossa oferta. Não quero o sacrifício, quero a misericórdia... E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal. O Mal, essa ânsia obscura de destruição, ou mesmo só de diminuição, que nos habita, é um mistério inicial (e iniciático, infelizmente, em tantas seitas de que ouvimos falar), mas que, nas suas variadas designações de diabo, demónio ,satanás, etc., nos conduz sempre à ideia de divisão, separação, inimizade. Estão as mitologias cheias de deuses ferozes, sedentos de sacrifícios humanos, e até o Antigo Testamento nos fala de um Deus totalitário, ciumento e vingativo. O Mal tem tanta força, que até chegámos - nós, homens de diferentes religiões e culturas - a identificá-lo só com os outros, os diferentes de nós, talvez mesmo nossos inimigos, esquecendo-nos de que, quando assim nos persuadimos de razão, quiçá estejamos a ser, nós também, forças do mal...

    
Camilo Martins de Oliveira 

"CREDO"


Santa Hildegarda von Bingen

 

2.FIDES EST SUBSTANTIA SPERANDARUM RERUM  

 

Esta citação de S. Paulo (Hebreus, XI,1) serve, a S. Tomás de Aquino, no Prooemium da sua Expositio in Symbolum Apostolorum, para com força resumir o que é isso a que chamamos Credo: a fé é a substância das coisas que esperamos. A meio da sua sétima década de vida, que coisas poderá esperar um homem tão banal como eu? Há quem creia que revive invocando saudades e cenas do seu passado mais gostoso ou prazenteiro, ou tentando irremediavelmente reconstituí-las na decadência de si, como o velho tonto do Foten Roji Nikki do Tanizaki, diário de um ancião que teima em agarrar-se a médicos e delícias... Outros há que procuram esquecer e deslizar mansamente para o sono... Outros ainda se sentirão invadidos pelo terror de recordações, arrependimentos tardios e temores do inferno... Alguns pedirão a algum deus esquecido uma oportunidade de reparação, uma qualquer indulgência, mesmo dessas que antigamente se vendiam por preços estabelecidos em espécies que variavam da moeda sonante à repetição apressada e longa de locuções precatórias... Quantos se lembrarão simplesmente da fé? Como diz frei Tomás de Aquino, nesse texto que referimos, per fidem inchoatur in nobis vita aeterna: nam vita aeterna nihil aliud est quam cognoscere Deum. Isto é: pela fé começa em nós a vida eterna: nem a vida eterna está alhures, senão no conhecimento de Deus. Mas esse não o temos já aqui, apenas nos é dado acreditar que veremos a Deus, que essa esperança será cumprida. Ou, quiçá, a visão de Deus seja já antecipada por sinais... Não me refiro a visões, aparições ou quaisquer ilusões. Penso simplesmente no ensinamento de Jesus: amai-vos uns aos outros, por esse sinal vos reconhecerão. Ou ainda no que S. Paulo diz do amor, quando refere que é ele a maior das virtudes : a fé e a esperança morrerão connosco, o amor durará eternamente. Assim sendo, se a fé é a substância das coisas que esperamos, a substância da fé é o amor. Volto a Feuerbach, tantas vezes apontado como um dos filósofos da morte de Deus... Eu mesmo assim o entendi, até ter percebido que é, muitas vezes, um certo pretenso rigor "fundamentalista" cristão que, afinal, esconde o sol da fé, que é o amor de Deus. Passou-se de um credo apostólico, dessa simples confissão das testemunhas da vida, paixão, morte e ressurreição do Verbo incarnado, para uma "fé" cada vez mais codificada, enchendo-se de dogmas adventícios, conformes aos receios, combates e devoções dos tempos que iam passando... Deu-se à Igreja, una, santa, católica e apostólica, uma aparência de seita, sujeita a uma hierarquia clerical legiferante e ciosa de saberes e poderes que não são legitimamente seus sem o consenso das assembleias dos fiéis em comunhão. Quiseram fechar  o Corpo Místico de Cristo num palácio monárquico, surdo às vozes do Povo Sacerdotal. Na sua Expositio in  Symbolum Apostolorum, o Doutor Angélico diz claramente: Sicut videmus quod in uno homine est una anima et unum corpus e, todavia, tem vários membros, assim também a Igreja é um corpo com diferentes membros, sendo o Espírito Santo a alma que lhe dá vida. E adiante enumera as qualidades da Igreja: una, santa, católica (i. e. universal), forte e firme. Sempre me detive nos fundamentos que S. Tomás aponta para a unidade da Igreja: a unidade na fé, a unidade na esperança da vida eterna, a unidade na caridade, ou seja, a união no amor de Deus e no amor mútuo. E insiste nesse amor que reúne pela compaixão e cuidados recíprocos, concluindo: cada um deve servir o próximo com a graça que lhe tiver sido dada por Deus. Portanto ninguém despreze nem permita ser afastado ou excluído dessa Igreja... A Igreja é a comunhão dos crentes no amor de Cristo, Deus incarnado, e por isso mesmo é sinal da fé, cuja substância é a esperança das coisas que esperamos. E o que todos esperamos é a plenitude do amor, a eternidade da paz, em graça e em verdade. Assim deverá a caridade ser o cimento da comunidade eclesial, e esta o sinal, o anúncio a todos, de que é universal, no tempo e no espaço, a vocação do amor de Deus. Tal anúncio da boa nova, não é para ser imposto coercivamente, nem deverá ser pretexto de afastamento ou repúdio de outros e suas crenças, mas é, em virtude da sua própria razão essencial, testemunho de que a verdade de Deus é o amor. S. Bernardo, monge reformador da Ordem de S. Bento, fundador dos cistercienses, grande amigo e protector da mística abadessa Stª. Hildegarda von Bingen, autora literária e musical, defensora da dignidade das funções eclesiais das mulheres, também pregou uma cruzada... No seu sermão 66 (cf. Super Cantica) diz: Fides suadenda est, non imponenda, a fé deve ser persuadida, não imposta. Mas era homem do seu tempo, numa cristandade europeia, rodeada por mouros, a sul, alguns ocupando mesmo largo território da Península Ibérica, enquanto a sudeste o Islão também já ameaçava o Império Romano do Oriente... Contra infiéis e hereges, diria pois: quamquam melius procul dubio gladio coercerentur... mas talvez seja melhor coagir pela espada do que facultar a alguns a propagação dos seus erros! Todos nós, de quando em vez, sofremos a tentação de instintivamente confundirmos a prudência com o medo. Para S. Tomás, a prudência é serva da sabedoria (sendo esta um esboço ou prévia participação na felicidade por vir), leva-nos a ela, preparando-lhe o caminho.  Na Summa (2ª parte, II, quaestio 47, art. 1º) retoma, citando-a, a definição de Stº. Agostinho: A prudência é o amor que escolhe com sagacidade. E creio que a escolha do amor é a alegria do testemunho da fé, antes e acima de qualquer agressiva afirmação sectária ( i.e., que divide, separa) daquilo que pensamos ser  verdade nossa. Termino esta página, com referência a Ludwig Feuerbach. Sobre ele já falei e escrevi noutra ocasiões, a sua Das Wesen des Christentums certamente me ajudou - tal como a consideração de outras religiões e filosofias, incluindo reflexões pertinentes ao pensamento católico - a interpelar-me acerca da minha fé, cuja substância são as coisas que esperamos, quiçá esse Deus que todos chama e a quem cada um vai respondendo consoante a graça que lhe for dada: não fostes vós que me escolhestes, mas Eu que vos escolhi. O amor sendo a própria substância da minha fé, não acredito que Deus deixe alguém de fora... No prefácio à sua bela tradução de A Essência do Cristianismo (2ª edição, Lisboa, Gulbenkian, Outubro de 2001), a Profª. Doutora Adriana Veríssimo Serrão diz muito bem aquilo que também penso: E se a meditação de Feuerbach exalta a religiosidade genuína e sincera da fé viva, ao contrário das doutrinas em que Deus é metafisicamente concebido como primeiro princípio do mundo ou como abstracta ordem moral, o mesmo não sucede quando a fé se cristaliza numa visão do mundo que ultrapassa o indivíduo para se tornar um corpo institucional rígido e um instrumento de dominação. A severa crítica da teologia é simultaneamente uma advertência  ao caminho que conduz da crença inofensiva intimamente praticada à separação violenta dos homens em sectores inimigos, e que acontece sempre que a fé se converte em dogmática, e esta na intolerância e no fanatismo que transformam o bom princípio da união no mau princípio da divisão e da exclusão... Comentando The Heart of the Matter , de Graham Greene, a escritora britânica Lesley Hazleton diz que a dúvida é essencial à fé: aboli as dúvidas, e ficareis apenas com convicção pura, fonte da arrogância e de todos os fundamentalismos... Relendo o enunciado, ocorre-me que qualquer palavra é sempre ela e a sua circunstância... (E aqui lamento não ter ganho mais tempo a estudar caracteres chineses, esses que os japoneses chamam kanji, para perceber melhor como a localização de um ideograma lhe pode mudar o significado...). Isto é: há dúvidas e dúvidas, há, por exemplo, interrogações e desconfianças, e, entre umas e outras, quase sempre, só o amor que temos ao sujeito ou objecto da nossa interpelação definirá a diferença. E é neste ponto preciso do que agora digo que me encontro com a análise crítica desse passo de Feuerbach: A essência secreta da religião é a identidade da essência divina e da essência humana - mas a forma da religião, ou a sua essência manifesta e consciente é a diferença. Deus é a essência humana, mas é percebido como uma essência diferente. O amor é o que revela o fundamento, a essência oculta da religião, mas a fé o que constitui a sua forma consciente. O amor identifica o homem com Deus, Deus com o homem e, por isso, o homem com o homem; a fé separa Deus do homem e, por isso, o homem do homem, e então Deus mais não é do que um místico conceito genérico de humanidade, por isso a separação de Deus e do homem é separação entre o homem e o homem, a dissolução do vínculo comunitário. Pela fé, a religião entra em contradição com o sentido ético, com a racionalidade, com o sentido simples e humano da verdade... Mas, pelo amor, ela volta a opor-se a esta contradição. A fé isola Deus, faz dele um ser particular diferente,  mas o mor universaliza, faz de Deus um ser comum, cujo amor coincide com o amor humano... O amor tem Deus em si, a fé tem-no fora de si. O que eu quero dizer, falando da minha fé, é que, apesar da análise de muitos tratados e doutrinas, afirmações erga omnes de diversas instituições religiosas, incluindo discursos oficiais da Igreja Católica, nos levarem muitas vezes a concluir que faz todo o sentido essa afirmação de que a fé tem o amor fora de si, por não reconhecerem que tantos daqueles ateus, agnósticos, hereges ou infiéis - que tanto bem querem e fazem aos outros - são membros do Corpo Místico de Cristo, eu acredito que o amor é o modo permanente da fé. E assim os sinto comigo, a esses estrangeiros, na presença de Deus. Todas as vocações totalitárias - católicas, islâmicas ou marxistas,  "fundamentalismos" nascidos da carne e do sangue, da vontade dos homens - caem na armadilha da religião como forma, na definição necessária de uma "fé" militante e exclusiva. Que divide e antagoniza os homens e os afasta da Fé, dessa cuja substância é o amor de Deus, a speranda res, aquilo que devemos esperar.

                                                                                             
Camilo Martins de Oliveira 

"CREDO"


S. Jerónimo de Duhrer (MNAA)

 

1. IN PRINCIPIO ERAT VERBUM

Assim começa, na Vulgata ou versão latina de S. Jerónimo, o Evangelho segundo S. João. Nos meus tempos de rapaz, antes das reformas litúrgicas do Concílio Vaticano II, nessa língua se lia, a encerrar todas as missas, o prólogo desse Evangelho. Talvez por isso me tivesse familiarizado tanto com ele, ao ponto de o ter decorado no texto grego original... E ainda hoje o considero um dos mais importantes de toda a literatura mundial, e indubitavelmente fundador, não só da formulação da fé cristã, como do seu pensamento teológico. Na verdade, ali se afirma que no princípio era o Verbo  -  como, em título, escrevemos em latim  -  en arcsi in ó Logos -  em grego assim transcrito em caracteres latinos ... Ambos os termos  - Verbum e Logos  -  são traduzidos em português por Verbo ou Palavra, o que talvez nos reduza a compreensão do que o texto original quer dizer : pois Logos não diz só palavra, mas também causa, motivo, razão, e até promessa; e Verbum estende a palavra a dizer expressão, discurso que explica. Hoje, quem não se entendeu um pouco com as línguas clássicas, perceberá melhor o que se quer dizer, pensando em expressões como "tem lógica" (percebe-se, faz sentido) ou farmacologia ( a logia sendo aí a explicação ou o entendimento dos fármacos). No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Estava Ele no princípio com Deus. Tudo por Ele foi feito, e nada de quanto se fez foi feito sem Ele. N´Ele estava a vida, e a vida era a luz dos homens; e a luz brilha nas trevas, e as trevas não a receberam. Houve um homem enviado por Deus, chamado João, o qual veio como testemunho, para dar testemunho da luz, a fim de que todos acreditassem por via dele. Não era ele a luz, mas veio para dar testemunho da luz. Era a luz verdadeira que ilumina todo o homem que vem a este mundo. Estava no mundo, e o mundo foi feito por Ele, e o mundo não O reconheceu. Veio para o que era seu e os seus não O receberam. A todos, porém, quantos o receberam, deu Ele o poder de se tornarem filhos de Deus, quer dizer, àqueles que crêem no seu nome, que nem do sangue, nem do desejo da carne, nem da vontade do homem, mas só de Deus nasceram. E o Verbo se fez carne e veio habitar entre nós; e nós vimos a sua glória, glória do Filho Unigénito do Pai, cheio de graça e verdade... Assim, do século XVI (Concílio de Trento) à  segunda metade do século XX (Vaticano II), ouviam os fiéis o relato joanino, evangélico, histórico e teológico, do mistério da Incarnação de Deus, início da história e economia da Redenção que terminará no apocalipse final da glória cheia de graça e verdade. Cabe aqui notar que o nome de missa - que se popularizou na Igreja Latina como designação do que a Igreja Oriental, de língua grega, sempre designou por Santo e Divino Sacrifício - vem da locução Ite, missa est! (Ide, sois enviados!) com que, até ao sec.IV, se despediam, depois das leituras bíblicas, homilia e recitação do Credo, os catecúmenos, reservando-se para os já batizados a liturgia da consagração e comunhão. A expressão acabou por generalizar-se, e talvez isso explique a introdução mais tardia da profissão joanina: a confirmação da fé antecedia o envio para a missão. Não sendo eu historiador, nem hermeneuta, nem exegeta, nem sábio seja em que ciência for, não me compete analisar nem debater hipóteses sobre a identidade de João Evangelista: seria ele filho de Zebedeu e, com seu irmão Tiago, pescador e discípulo da primeira hora...ou antes seria membro da alta aristocracia de Jerusalém, da família de sumos sacerdotes judaicos, homem culto e rico, em cuja casa terá tido lugar a Ceia do Senhor? Muitos peritos em escrituras , história e sociedade daquele tempo, inclinam-se hoje para esta probabilidade. De si mesmo, o evangelista diz que era "o discípulo que Jesus amava", aquele que, sobre o ombro do Mestre reclinou a cabeça. e a quem Ele, do alto da cruz, confiou a Senhora sua mãe. Os sábios nossos contemporâneos que, na esteira de Jean Colson (L´Énigme du Disciple que Jesus aimait, Paris,1969) seguem a tese de que era um patrício de Jerusalém, identificam-no também por um testemunho do século II, assim referido pelo historiador Jean-Christian Petitfils no seu magnífico Jesus (Paris, Arthème Fayard, 2011): Mas o testemunho essencial sobre a identidade do autor do quarto evangelho é o de Polícrato, bom conhecedor das tradições de Éfeso, de que foi bispo, como foram cinco membros da sua família antes dele. O testemunho é de peso. Invocando, em carta ao papa Víctor, de 190 a 198, "as grandes luzes" que se tinham extinto na Ásia, cita Filipe, « um dos Doze, que falecera em Hierápolis» e «João, que repousara a cabeça sobre o peito do Senhor, que foi hiéreus (sacerdote) e, a esse título usara o pétalon ( pétala de ouro), testemunha e  didaskale (docente). Faleceu em Éfeso ». Muitos autores contemporâneos, católicos, protestantes e não só, reconhecem, para além da sua evidente singularidade, ao Evangelho de S. João, frente aos outros três (os sinópticos),  características que, resumindo a descrição delas por Petitfils, podemos enumerar assim: "unidade literária, homogeneidade de estilo, de pensamento e de visão teológica... uma arquitectura narrativa extremamente complexa, revelando notáveis conhecimentos, não só da Bíblia hebraica, mas da organização do Templo, das festas e da vida em Jerusalém...  um pensamento típico do judaísmo do primeiro século da nossa era...  a oposição entre o bem e o mal, a luz e as trevas, como a que encontramos em Qumrân...  João insiste na Incarnação e na carnalidade da Ressurreição (S. Tomé é convidado a pôr o dedo nas chagas de Jesus)... " Por mim, que apenas escrevo para dar testemunho da minha fé, direi que, apesar de ler os sábios, e de com eles me interrogar sobre o maior ou menor rigor da fixação ou interpretação de um texto, sou sempre intimamente surpreso e preso pela força da sinceridade de João Evangelista, e acredito no que ele nos diz na sua primeira epístola (1, 1-3): O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos apalparam acerca do Verbo da Vida - porque a Vida manifestou-se, e nós vimos e atestamos, e vos anunciamos a Vida eterna, que estava junto do Pai e nos foi manifestada - o que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos igualmente a vós, para estardes, vós também, em comunhão connosco; e a comunhão que temos é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo. E escrevemos isto para a nossa alegria ser completa. A minha fé cristã é a fé da alegria.  Foi-nos dada uma boa nova, que brilha no coração das nossas trevas: tomando, pelo seu Verbo  -  que está com Ele e é Ele, centro criador do mundo e seu motor - a nossa condição, Deus faz-se carne , sofre, morre e ressuscita. Para que assim nos aconteça também, no termo desta cosmogénese de que somos parte. A presença ubíqua do mal, que a nossa consciência humana angustiadamente sente como existência absurda,  encontra novo sentido, ao descobrirmos o sofrimento pela perspectiva do amor misericordioso de Deus. Madre Teresa de Calcutá  -  que, tal como as suas irmãs e seguidoras, as Missionárias da Caridade, dedicou a sua vida ao acompanhamento da morte dos mais pobres  -  escreveu : God is everywhere and in everything and without Him we cannot exist, A fé cristã é a fé da alegria no sofrimento, no nosso sofrimento identificado com o sacrifício de Cristo, até à morte e à ressurreição. Deus está em toda a parte e em todas as coisas, não podemos existir sem Ele, até no nosso sofrimento está presente. Infelizmente, a meu ver, este sinal redentor do sofrimento como promessa de ressurreição e vida também deu azo a correntes de tendência masoquista no cristianismo, aliás conducentes à prática de sacrifícios ou renúncias muitas vezes entendida como preço a pagar pela obtenção de especiais favores divinos, ou ainda à auto inflicção de castigos corporais pesados. Todavia, nem sempre aos crentes ocorria reflectir no sofrimento imposto a multidões humanas, quer por calamidades naturais, quer  -  e bem pior ainda  -  por descuido, desleixo, aborrecimento ou crueldade de outros homens. E bem podia ser que, pensando na obrigação de levar a terceiros o alívio ou a consolação possíveis, melhor entendessem o que o Senhor Deus significa quando diz que não quer o sacrifício mas a misericórdia. Sintopenso muito que a Igreja - de que Cristo é a cabeça, e os fiéis a presença visível do Verbo neste mundo - nem sempre cumpre como devia - e contra mim falo também - a sua missão de anunciar a boa nova aos pobres, estando mais com eles, e contra o poder maligno que gera ódio e guerra, injustiça e desespero. Porque, na verdade, nem eu, nem fiel algum, nem tampouco milagre há capaz de mudar, da noite para este dia nosso, o mal em bem, o sofrimento de miríades de seres humanos em súbito bem-estar. As obras de misericórdia e caridade, esses pequenos gestos que fazemos com boas intenções, servirão muitas vezes -  para os que menos razão de queixa tenham da vida, da vida tal como neste mundo se publicita a felicidade - servirão, digo, ou talvez sirvam, para consolar as nossas próprias almas aflitas... Quando, à noite, finalmente o silêncio nos envolve a escuridão e lhe dá luz, pensossinto que a minha circunstância não é só essa que, no dia a dia, faz parte de mim, mas outra, maior, muito maior ainda, comunhão universal, em todos os tempos e modos, da alegria que é dor, onde tudo é graça, desse Deus incarnado no sofrimento da nossa condição. Para o cristão, o mal não é desejável, nem sequer aceitável, combate-se. E combatê-lo é opor-lhe o bem, o bem que, pela graça de Deus, cada um de nós fizer, conforme os seus dons, talentos e possibilidades. O sofrimento que o mal nos causa, esse é redentor sempre que transformamos a negação de um bem, que ele traduz, em força positiva, em esperança. Todos conhecemos a história de Job, narrada no livro com esse nome, no Antigo Testamento: num ápice, perdera tudo, bens e família, ao ponto de poder dizer Saí nu do ventre de minha mãe e nu para ele voltarei...  Mas profetiza assim: Eu sei que o meu Redentor está vivo e no último dia se levantará sobre a terra. Revestido da minha pele, estarei de pé; na minha carne verei a Deus. Eu mesmo O verei, meus olhos O hão-de contemplar. Dentro de mim suspira o meu coração.

 
Camilo Martins de Oliveira