Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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188. BEM COMUM E CONFIANÇA NA CRIATIVIDADE NATURAL HUMANA
1. Na Fábula das Abelhas, de Bernard Mandeville, há uma colmeia onde todas as abelhas viviam em paz, produzindo de tudo, com vida próspera e trabalho para todos, apesar de, no seu dia a dia, sempre se cometerem delitos, haver corrupção e fraudes, em que os vícios dos particulares contribuíam para a prosperidade e felicidade pública.
Reclamaram e protestaram as abelhas moralistas, implorando aos deuses que acabassem com os comportamentos fraudulentos e viciosos, o que conseguiram, todos passando a assumir uma conduta virtuosa.
As consequências não tardaram: baixa no preço de produtos e serviços, gerando o bem-estar geral; bares, quiosques, lojas e fábricas de bebidas encerraram, pois não se consumiam bebidas; os tribunais ficaram sem serviço, pois ninguém cometia crimes e todos pagavam as suas dívidas, incluindo as esquecidas ou prescritas; prescindiu-se dos polícias, dado ter deixado de haver insegurança; os bancos fecharam, dada a ausência de empréstimos ou poupanças; dispensaram-se muitos funcionários públicos e privados, pois todos trabalhavam e não havia lugar para todos, e assim sucessivamente.
Como todos consumiam o estritamente necessário, não havia consumismo em excesso, nem dinheiro para diversões ou vícios, pelo que a maioria das atividades e indústrias paralisaram e não empregavam trabalhadores, concluindo o autor que uma sociedade próspera não funcionará se depender da bondade de cada um, não resultando o bem comum da virtude das pessoas, mas sim do seu egoísmo e vícios individuais, sendo o interesse próprio que nos impulsiona a ir em frente.
Porém, se os vícios eram importantes por estimularem a economia, os excessos tinham de ser censurados e proibidos, pois aqueles que exagerassem, cometendo crimes, deviam ser punidos.
2. Interpretando à letra o sentido literal da mensagem virtuosa das abelhas moralistas, há quem aceite e defenda a necessidade de um “decrescimento” económico, uma vez vivermos numa aparência de bem-estar geral, que predomina quando o poder económico, que conduz a uma sensação de satisfação generalizada, se constitui como o centro nuclear à volta do qual gira a sociedade, coisificando o ser humano e passando a reinar a cultura do descarte.
A este apego ao sucesso económico de um aparente bem-estar geral, há quem adicione uma alegada procura do bem comum, baseada no pressuposto de que todos os membros da sociedade, públicos e privados, se norteiam por princípios éticos, o que não é verdade. Se assim fosse excluía-se a política, enquanto organização do poder, dado que na nossa vida societária não podemos prescindir da norma jurídica, nem da ética, tendo como fim garantir a defesa do bem comum. Não há uma política ética, apenas pessoas éticas ou não na política ou fora dela.
Sabemos que, no essencial e maioritariamente, as pessoas são egoístas, no sentido de que se preocupam, antes de mais, em melhorar a sua condição pessoal e a dos que lhe estão próximos.
Também no decurso de toda a nossa existência, pelo que sabemos, a natureza humana nunca mudou, assumindo caraterísticas de permanência, entre vícios e virtudes, o que será impossível de alterar, dada a sua imperfeição.
Mas é possível melhorar, contendo e refreando a nossa natureza conflituosa e imperfeita, orientando-a no caminho do bem comum.
Uma economia só economicamente próspera, com dinheiro, hedonismo e sucesso, não é sustentável ou vencedora se ignorar a vertente ética e humana, o pressuposto de que todos os humanos são iguais na sua dignidade ontológica, social e existencial.
O que não significa ter de haver “decrescimento”, antes sim uma reorientação do crescimento, confiando na criatividade natural do ser humano, como o exemplifica o consumo de energia de fontes renováveis. Travar a criatividade e não inovar não promove o bem comum e auxilia a apressar o falhanço.
Nunca tivemos tanto acesso à informação. Também nunca houve tantos meios de acesso, a ponto de aquilo que é um benefício poder tornar-se um verdadeiro desastre, como muitos especialistas chamam a atenção.
Por exemplo, no seu recente livro El arte de la felicidad, o médico e teólogo Alfred Sonnenfeld, escreve que nesta “era da distracção” corremos o risco de saltar de uma informação para outra sem reflectirmos nos conteúdos. Vivemos na sociedade do “ruído mental”, com bombardeamentos constantes de informações e publicidade, e tudo isto nos impõe um “estilo de vida no qual faltam a atenção e a concentração”. Se não houver capacidade de distanciamento, o risco é “perdermos as capacidades mais valiosas do pensamento humano: a criatividade, a reflexão e o pensamento crítico”. O neurocientista Michel Desmurget, no seu recente livro A fábrica de cretinos digitais, mostra inclusivamente que, por causa da cultura do ecrã e do dedar constante, se está a registar uma diminuição do Quociente de Inteligência (QI).
Aqui chegados, e perante a incapacidade de distinguir o essencial do superficial, impõe-se o apelo de Hannah Arendt: “Pára e pensa”. E há coisa mais essencial do que perguntas como estas: Donde vimos? Para onde vamos? O que é que verdadeiramente vale? Qual o sentido da existência, Sentido último?
É do essencial que a Páscoa trata. E lá está Pascal: “Jesus estará em agonia até ao fim dos tempos; é preciso não dormir durante esse tempo.”
Na Paixão, estamos todos. Jesus não morreu vítima de Deus, que precisaria da sua morte para aplacar a Sua ira e assim poder reconciliar-se com a Humanidade. Pelo contrário, Jesus foi vítima da religião oficial e do poder imperial romano, porque a Sua mensagem, por palavras e obras - Deus é bom, Pai e Mãe de todos, a começar pelos mais pobres, abandonados, explorados, pecadores – punha em causa os seus interesses. Aí está o perigo do poder religioso e político, quando estão ao serviço da exploração. Lá estão os discípulos, que fugiram. Lá está Pedro, o amigo generoso, mas cobarde: bastou uma criada suspeitar que ele também era discípulo e logo negou; depois, arrependeu-se e chorou amargamente. Lá está Judas. Lá está Pilatos, que lavou as mãos. Lá está o cireneu, que ajuda. Lá estão os dois ladrões (talvez terroristas): um converteu-se, o outro continuou a blasfemar. Lá estão as mulheres, as únicas que não fugiram e acompanharam Jesus até à morte. E Jesus perdoou até àqueles que o matavam. E rezou aquela oração, uma pergunta que atravessa os séculos: “Meus Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?”. Mas continuou a confiar: “Pai, nas tuas mãos entrego o meus espírito”…
Jesus morreu na cruz, a morte horrenda que os romanos davam aos rebeldes e aos escravos. Aparentemente, foi o fim. O enigma histórico do cristianismo é que, pouco tempo depois, os discípulos voltaram a reunir-se e foram anunciar ao mundo que aquele crucificado é realmente o Messias, o Salvador. Fizeram a experiência avassaladora de fé, a começar por Maria Madalena, de que Jesus, que morreu para dar testemunho da Verdade e do Amor, está vivo em Deus para sempre, como desafio e esperança para todos. E deram a vida por essa fé, que chegou até nós.
Quando olhamos para a História, com todas as lutas, amores, sonhos, realizações, fracassos, esperanças, que a atravessam, ergue-se, do mais fundo, a pergunta: Foi tudo para nada? E há as vítimas inocentes que clamam por justiça, e quem pagará a dívida da História para com elas? Neste contexto, o agnóstico Jürgen Habermas, o maior filósofo vivo, escreveu, citando J. Glebe-Möller: “Se desejarmos manter a solidariedade com todos os outros, incluindo os mortos, temos de reclamar uma realidade que esteja para lá do aqui e agora e que possa vincular-nos também para lá da nossa morte com aqueles que, apesar da sua inocência, foram destruídos antes de nós. E a essa realidade a fé cristã chama Deus.”
A fé é um combate, como deu testemunho também o teólogo rebelde Hans Küng, ao aproximar-se do seu próprio fim – morreu em Abril de 2021. Confessou que uma das suas irmãs lhe perguntou com toda a seriedade: «Acreditas realmente na vida depois da morte?» E ele: «Sim”, respondi com convicção. Não porque tenha demonstrado racionalmente essa vida depois da morte, mas porque mantive a confiança racional em Deus e porque na confiança no Deus eterno também posso confiar na minha própria vida eterna. Devo ou não ter esperança em algo que seja a ultimidade de tudo? Uma vida eterna, um descanso eterno, uma felicidade eterna? Isso é problema da confiança, mas de modo nenhum de uma maneira irracional, mas de uma confiança responsável. É irracional a confiança em Deus? Não. A mim parece-me a coisa mais racional de tudo quanto o ser humano pode ser capaz. O que me parece absurdo é pensar que o ser humano morre para o nada. A passagem à morte e a própria morte são apenas estações a que se segue um novo futuro. A vida é mais forte do que a morte e o ser humano morre entrando na Realidade primeira e última, inconcebível e inabarcável, que não é o nada, mas sim a Realidade mais real. A vida transforma-se, não acaba. Eu defendo uma fé cristã em Deus e na vida eterna. Sem Deus, a fé na vida eterna não teria razões, careceria de fundamento. E vice-versa: a fé em Deus sem fé na vida eterna careceria de consequências, não teria um objectivo».
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 8 de abril de 2023
A criatividade é uma característica intrinsecamente humana e traz vida.
'Civilisation is only sustained by the degree of wisdom in it; progress, as it is called, cannot sustain it.', Cecil Collins
Arte oferece ao homem intuição e memória emocional mas também compreensão intelectual.
Cecil Collins escreve que o artista (tal como o santo) é o símbolo dos perdidos ou solitários deste mundo, destinados à vida eterna. A arte, tal qual a religião, permitem a comunhão entre o visível e o invisível. E a arte ao ser feita acorda outros artistas.
'And wisdom is vision and perception of life, created out of quality of spirit. Wisdom has many forms; in Religion it is the development and culture of Charity in the human soul. In Art, wisdom is the passion of Beauty. The culture of Charity and the passion of Beauty are blended in the wisdom of the Fool. (ver aqui)', Cecill Collins
A experiência da arte implica estar atento, implica reflexão, implica romper com os hábitos da vida quotidiana. Nos dias de hoje, é preciso reforçar que a criatividade é um valor, uma qualidade e uma característica intrinsecamente humana e que traz vida. A criatividade (como oposto da passividade) contribui para um bem estar natural, para uma harmonia interna e externa - ideia e matéria fundem-se, o conhecido confronta-se com o desconhecido, pensamento e ação encontram-se numa só superfície, abre-se a possibilidade de diálogo com o outro e com o mundo que nos rodeia.
Na verdade, o homem só encontra o sentido da sua alma e assim contribui para uma sociedade mais aberta ao criar, ao fazer, ao cuidar, ao dar-se ao silêncio, ao contemplar, ao estar concentrado (onde corpo e espírito se sintonizam), ao manipular a matéria, ao concretizar ideias, ao ser sensível à vida e ao eterno.
'Art is a cosmic folly by which purity of consciousness can be attained.', Cecil Collins
No texto do pintor Graham Crowley 'I don't like art' lê-se que é, sobretudo, através da arte que se abre a possibilidade do homem (que a produz e que a contempla) se tornar melhor - não porque traz uma recompensa mas porque todo o processo envolve mais empatia, mais reflexão, mais tolerância, respeito e generosidade.
'I regard the triumvirate of celebrity, capital and media as threat to an open and creative society.', Graham Crowley
A criatividade é sobretudo a ideia nova da curiosidade
A fome da experiência diferente existe. O excesso que quebra o entorpecimento e nos faz sentir a necessidade de espreitar pela janela, é em si, uma abordagem da consciência sem medo das emoções: a raiz da força da ideia nova.
Pelos canais das intuições, as empatias do entender o fundo que se não mostra, separa-se mesmo dos outros sentidos, e, dão o salto sozinhas, num processo interno de diálogo e de recolha interpretativa à precisão das nossas perceções. Este um dos caminhos da intensidade e das razões por que ocorre; este um processo vivo de interatividade que até pode ser doloroso, insuportável mesmo, face à decisão do que fazer com a nova informação. Como reagir à nova cor? À nova palavra? Ao novo som? Como criar a nova substância, face ao que existia, quando em peças isoladas a intuímos?
Não é fácil. Há que abrir passagens na própria barreira das nossas emoções. Há que ter aprendido a necessidade da curiosidade, aprendizagem que sempre se iniciará e acabará no nosso coração, nem sempre generoso ao trabalho de sapa que nos leva às razões.
Criar é também tornarmo-nos fluxo e refluxo do nosso próprio entender, e expô-lo a interagir, e, por aqui, quantas vezes, enrolados nós até aos outros, e a luz do mapa que percorremos e que afinal não foi suficiente. Ainda assim a criatividade vai decidir como proceder para alterar esta situação e afinar desculpa, corrigindo o processo energético desperdiçado num saber que o não chegou a ser, ao menos pela diferença da criatividade e da curiosidade, ambas, quantas vezes, sem libertação suficiente para a todos convidar ao mais longe possível, por onde sempre podemos começar um décimo segundo passo, no validar da criatividade, atributo de uma curiosidade fértil e atenta e responsável.
Também dentro do ato criativo, dentro e bem dentro da curiosidade imparável, existe uma hospitalidade universal em nós, que significa um direito do que é estrangeiro e que chega até nós - sua nova morada - e não invoca acolhimento, antes visita, e nos convida a ir até ao outro lado da terra prometida sem qualquer mapa que nos oriente.
'The creation of something new is not accomplished by the intellect but by the play instinct acting from inner necessity. The creative mind plays with the objects it loves.', C. G. Jung
Criar possibilita ao homem ligar o universal ao individual, o divino ao terreno, a parte ao todo, o processo à estrutura, o gesto à razão, a ideia à matéria.
Criar é uma das funções primordiais da vida humana. Ao criar, o homem pode encontrar-se com a sua identidade única e expandir o seu campo de ação singular.
No livro 'Free Play. Improvisation in Life and Art.' de Stephen Nachmanovitch, lê-se que a criatividade permite aproximar determinados elementos outrora separados (o natural ao social; a verdade à ilusão; o subjetivo ao objetivo; a ordem ao acaso); liberta o homem em relação a determinadas restrições; aumenta a capacidade de adaptação, flexibilidade e abertura do homem ao seu contexto e condições; e possibilita uma reinterpretação constante da realidade.
Hegel em 'Estética' afirma que o homem cria em virtude de ter um espírito, de ter consciência de si próprio e de ter capacidade reflexiva sobre o seu próprio pensamento. A verdade que o homem busca/cria está em si mesmo. A criatividade traz ao homem a possibilidade de se encontrar simplesmente através do ato de fazer - aqui a procura é mais importante que a descoberta, o processo é mais importante do que o que se produz.
Sendo assim, avança-se sucintamente a hipótese de que o processo criativo se constitui através dos seguintes elementos:
Mente: a predisposição ao temperamento melancólico permite associar o macro ao microcosmos - 'La natureza del humor melancólico sigue la cualidad de la tierra que nunca se dispersa tanto como los demás elementos, sino que se concentra más apretadamente en sí misma... tal es también la naturaleza de Mercurio y de Saturno, en virtud de la cual los espíritus, acumulándose en el centro, llevan el alma de aquello que les es extraño a lo que les es proprio, la fijan en la contemplación y la preparan para penetrar en el centro de las cosas.', M. Ficino ('Theologia platonica de animarum immortalitate')
Existência: o homem é o seu contexto/realidade/experiência com determinado gosto (capacidade de julgar o belo - que não é uma qualidade mas uma sensação que depende de um conhecimento cultural e de um determinado modo de vida).
Intuição: permite a aproximação ao conhecimento sensível (todas as coisas têm uma alma e diferentes níveis de profundidade). Existe uma inexplicável necessidade inata para o homem criar. A intuição procede de tudo o que o homem sabe e de tudo o que o homem é. Steiner em 'How to know higher worlds' declara que através da intuição o homem procura unidade com as forças criativas do cosmos sem perder a sua consciência individual.
Matéria: é a extensão do corpo/mente. É a ideia concreta.
Forma e expressão: a criatividade configura e constrói coisas. Formar é dotar a matéria de espírito, é aproximar o sensível ao racional, é revelação, é novidade.
'But what we learn from our newly improvising body is that it can be debilitating to depend on the creativity of others. When this creative power that depends on no one else is aroused, there is a release of energy, simplicity, enthusiasm. The word 'enthusiasm' is Greek for 'filled with theos' - filled with God.', S. Nachmanovitch