Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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1. No início do século XX, A. Loisy fez uma afirmação que é decisiva para a compreensão dos problemas dramáticos por que passa a Igreja: “Jesus anunciou a vinda do Reino de Deus, mas o que veio foi a Igreja”. Realmente, não se pode dizer que Jesus fundou a Igreja. Jesus é o fundamento da Igreja, mas não o seu fundador.
Jesus anunciou o Reino de Deus. E o que é o Reino de Deus? O próprio Jesus, na sua pessoa, na sua palavra, na sua vida, na sua morte e ressurreição. Ele é o Vivente em Deus para sempre. O que é que anunciou? Que Deus é Abbá, querido Pai, e também podemos e devemos dizer que é Mãe, Mãe querida. Como Pai e Mãe, Deus quer o bem, a alegria, a felicidade, a realização plena de todos os seus filhos e filhas e nem na morte os abandona: na morte, não se cai no nada, entra-se na plenitude da Vida. Foi essa fé que moveu Jesus, realizando, por palavras e obras, o Reino de Deus, o Reino da fraternidade, da paz, da solidariedade e da verdadeira liberdade, para todos, a começar pelos mais frágeis, abandonados, pobres, aflitos, marginalizados, desprezados, desvalorizados... Para Deus, todos valem infinitamente.
Muitos acreditaram em Jesus, cada vez mais homens e mulheres, através dos primeiros discípulos, foram acreditando nEle e, através dEle, em Deus, no Deus de Jesus. E foram surgindo comunidades cristãs fraternas no mundo inteiro, realizando o Reino de Deus. Nelas, o amor era a lei suprema: “vede como se amam”, diziam os pagãos.
Evidentemente, com o tempo, foi-se impondo a necessidade de uma organização mínima para essas comunidades, a que chamaram Igrejas, e, depois, para a Igreja toda, espalhada pelo mundo. Aí, foi-se instalando o perigo maior: a Igreja como organização foi sucumbindo, concretamente a partir de Constantino, à tentação de tornar-se uma instituição de poder cada vez mais poderosa, dominadora, centralizada, imperial. Contrariando a vontade de Jesus que tinha dito: “sois todos irmãos”, “quem quiser ser o maior torne-se servidor de todos”, seguindo o meu exemplo: “não vim para ser servido mas para servir”, a Igreja afirmou-se como hierarquia, com duas classes: clérigos e leigos, os que mandam e os que obedecem. A situação agravou-se com a reforma gregoriana e a romanização, como se lê no famoso Dictatus Papae, do Papa Gregório VII (século XI): “A Igreja romana foi fundada só por Jesus Cristo. Por isso, só o Romano Pontífice é digno de ser chamado universal. Só ele é digno de usar insígnias imperiais; ele é o único homem cujos pés todos os príncipes beijam.” Com esta concepção imperial surgiu também a corte, o fausto, as vestimentas de luxo (ainda hoje os cardeais são chamados os purpurados) e dignidades e títulos que Jesus não reconheceria: Eminência, Excelência Reverendíssima, Monsenhor, etc. E as celebrações da Eucaristia, que deveriam ser celebrações de família e em família, foram em parte substituídas por Pontificais, nos quais há muito dos rituais das cortes dos reis... O clericalismo e o carreirismo avançaram em crescendo e foi-se impondo um hierarcocentrismo, já que, como escreveu o Papa Pio X, fora da hierarquia, dos clérigos, o resto dos fiéis tem como única missão “aceitar ser governado e obedecer”.
2. O Concílio Vaticano II foi um dos acontecimentos mais importantes (para De Gaulle, o mais importante) do século XX, ao recentrar a Igreja em Jesus e no Evangelho. Mas essa Primavera foi curta, já que rapidamente veio o Inverno.
Para retomar a Primavera, chegou o Papa Francisco, um Papa cristão e um líder político-moral global, um dos mais influentes e mais amados, se não o mais amado. Não se esqueceu dos pobres; anuncia e faz caminhos a favor da justiça, da fraternidade e da paz, dos “três T”: tecto, terra, trabalho; combate o capitalismo desenfreado e desregulado, o ídolo que mata; é simples, humano, dá risadas, beija, consola, vai ao encontro dos desafortunados e entrega-lhes a esperança; insiste no diálogo ecuménico e inter-religioso; não condenou teólogos nem tolheu a liberdade de pensar a fé; não tem medo nem sequer da morte, porque tem fé e sabe que é amado por Deus... Anuncia por palavras e obras o Reino de Deus, a Boa Nova de Jesus, e quer que a Igreja — a Igreja são todos os baptizados — faça o mesmo. Por isso, declara que a corte, o clericalismo e o carreirismo são “a peste” do papado e da Igreja. Uma reforma funda da Cúria está a caminho, o mesmo acontecendo com o Banco do Vaticano.
Nuclear para a sua revolução são a descentralização e o caminho sinodal (caminhar juntos e em conjunto) da Igreja local e universal. Aí está o Sínodo para a Amazónia, um mini-Vaticano II, que abre hoje em Roma e estará activo até 27 deste mês. Dada a sua importância decisiva, pois será marca determinante deste pontificado, dedicar-lhe-ei a crónica do próximo Domingo.
É natural que Francisco tenha adversários, opositores e mesmo inimigos, dentro e fora da Igreja, que o acusam até de heresia. Forçam as acusações para que ele se demita. Mas ele não tem medo e não resigna. E também não há razões para temer um cisma. Como disse recentemente numa entrevista o cardeal alemão Walter Kasper, teólogo eminente, grande amigo e defensor de Francisco — “Eu estou encantado com este Papa. Penso que ele é o Papa preciso para este momento da história do mundo” —, “os que agitam o espantalho do cisma são pequenos grupos que estão abertamente contra o Papa, mas é preciso saber e ter em conta que são poucos, muito poucos, embora façam muito ruído”. Acrescentou: “O Papa continua a ter muitíssima força. Tem um dinamismo interior que o empurra para seguir adiante e não tem medo das críticas que circulam contra ele, inclusivamente dentro do mundo católico. Segue o seu caminho e está muito bem, mesmo fisicamente, para um homem de 82 anos. E a prova está em que continua a trabalhar incansavelmente.” E não há o perigo de voltar atrás?, perguntou o jornalista José Manuel Vidal. Resposta: “Penso que no próximo conclave não se pode eleger um Papa contrário. As pessoas não aceitariam. Não é possível a marcha atrás, não é possível. As pessoas não aceitariam isso, porque querem um Papa normal, humano e não um Papa imperial.”
Neste contexto, deve-se sublinhar a importância da criação, ontem, de novos cardeais, incluindo o português José Tolentino Calaça de Mendonça. Com essa criação, Francisco assegura a sua sucessão. De facto, a partir de ontem, a maioria dos cardeais eleitores foram nomeados por ele próprio: há agora 128, 67 criados por ele, 42 por Bento XVI e 19 por João Paulo II. Só que é decisivo, digo eu, que não se deixem levar por lóbis (o Papa também não gosta de lóbis) e sigam o bilhete de identidade dos cristãos, descrito por Francisco na igreja de Rakovski, Bulgária, num diálogo com crianças que tinham acabado de receber a Primeira Comunhão. Disse então: “o nosso documento de identidade” é este: “Deus é nosso Pai, Jesus é nosso Irmão, a Igreja é nossa família, nós somos irmãos, a nossa lei é o amor. E o nosso apelido é cristãos:”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 6 OUT 2019
Continuando o rosário de observações e lembranças encetado em textos anteriores, acrescentarei mais algumas que, tal como sempre, procuro tornar mais propostas de curiosidade e interrogações do que afirmações conclusivas ou referências dogmáticas. Aliás, nem pretendo escrever história, o título destas crónicas é o de um livro que vos convido a ler, sendo, para mim, uma interrogação sobre como me (nos) poderei (poderemos) tornar mais cristão sendo mais católico.
Assim, quanto à construção teológica e canónica do sacramento da ordem - sobretudo no tocante aos poderes que atribui e à sua exclusividade sacra -, ocorrem-me algumas perguntas radicalmente ligadas ao conceito de sagrado no cristianismo. Parto do princípio de que o leitor conhece, tal como eu mesmo ou qualquer leigo interessado, a chamada "doutrina do magistério eclesial"(ou, melhor dizendo, eclesiástico), pelo que procederei sem a invocar, limitando-me a formular interrogações advenientes. Todavia, não deixarei de recordar trechos da tradição da fé cristã, bem como passos dos textos neotestamentários que parecem melhor enquadrar as minhas propostas de reflexão.
Há muito que pensossinto que o conceito inspirador do Corpo Místico é fulcral para o entendimento, não só do cristianismo original, como da sua evolução ecuménica e católica, designadamente através da diáspora judaica e helenística. Mais ainda: ele finalmente ilumina e anima, por um percurso de séculos, a orientação fundamentalmente mais cristã da Igreja, entendida como a comunhão de todos os fiéis (dos que têm fé). Compreendamo-lo lendo este trecho da epístola de S. Paulo aos Efésios (4, 11-16) : E Ele próprio providenciou que uns sejam apóstolos; outros, profetas; outros, anunciadores da boa nova; outros, pastores e professores, com vista ao aperfeiçoamento dos santos [assim eram designados os fiéis, na tradição judaica], até que atinjamos todos a unidade da fé e o conhecimento do filho de Deus e até que atinjamos o estado de homem realizado e a medida da estatura da plenitude de Cristo, para que já não sejamos crianças, batidos pelas ondas e levados por todo o vento da doutrina na batota das pessoas, na iniquidade com vista ao planeamento do equívoco; porém, ao sermos verdadeiros em amor, cresçamos em direção a ele em relação a todas as coisas, Ele que é cabeça, Cristo, do qual todo o corpo, ajustado e unido através de todo o ligamento da provisão (segundo a eficácia na medida de cada membro), efetua o aumento do corpo com vista à sua própria edificação em amor. A tradução, do grego, é de Frederico Lourenço.
A celebração eucarística da comunhão de todos com Cristo, por Cristo e em Cristo é efetivamente o sacramento essencial da morte e ressurreição de Jesus, a reconciliação da humanidade consigo mesma e com Deus, de que a Igreja é memória, testemunho e corpo. E tal celebração é sempre o ato sacerdotal por excelência, o próprio Jesus Cristo convida a comunidade inteira a realizar com Ele. Quando, na epístola aos hebreus, se afirma que por conseguinte, tendo nós um grande sumo sacerdote que atravessou os céus, Jesus, o filho de Deus, fortaleçamos a fé professada. Pois não temos um sumo sacerdote incapaz de se compadecer das nossas fraquezas: foi provado em todas as coisas à nossa semelhança, excetuando o pecado. Aproximemo-nos, portanto, com liberdade do trono da graça, para que recebamos misericórdia e encontremos graça para uma ajuda em boa hora. (Hebreus, 4, 14-16). Ou ainda: Este é o sumo sacerdote que nos convinha: santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores e elevado acima dos céus, que não tem necessidade, como os outros sumos sacerdotes, de oferecer vítimas todos os dias, primeiro pelos seus próprios pecados e depois pelos do povo. Pois ele fê-lo de uma vez por todas, oferecendo-se a si mesmo. A lei institui como sumos sacerdotes homens detentores de fraqueza, mas a palavra do juramento, que veio depois da lei, constitui o filho perfeito para sempre. (Hebreus, 7, 26-28)
Chegamos aqui a um ponto de reflexão que muitos dos meus leitores poderão achar insólito, talvez despropositado: que terá a ver o sagrado com a religião cristã? Fará sentido haver, nos templos cristãos um "santo dos santos", um lugar sacro, apenas habitado pela divindade, e em que só pessoas autorizadas podem privar? Será o sacerdócio uma ordem - tal como era no judaísmo e noutras religiões - ou será, antes, próprio do povo dos fiéis, por união ao único sumo sacerdote, no corpo místico? Sou levado a refletir na hierofania (ou manifestação do sagrado), no cristianismo, como celebração de uma memória, algo, aliás, alheio a qualquer magia. Na nascente da religião cristã está a memória da encarnação, morte e ressurreição de Jesus, desse ato único da presença de Deus na história da humanidade, em que o Santíssimo (solus sanctus, hagios) vem revestir-se da nossa condição e para sempre permanecer connosco no seu Corpo Místico, e pela ação do Espírito Paráclito. O sagrado (sacer, hieros) habita entre nós, não por obra ritual, nem sacrifício, nem magia do poder de qualquer ungido - mas apenas em virtude do único sacrifício redentor que é a morte e ressurreição de Jesus Cristo, que incessantemente comemoramos na celebração da eucaristia, ceia sempre festiva da reconciliação e da partilha do pão da vida, por todos, pois por todos Jesus ofereceu o corpo e a vida, vencendo finalmente a morte.
O sagrado, em muitas religiões, como na aceção geral, tanto convoca a adoração como a interdição, o tabu. Tocar no sagrado é, então, algo que vai da blasfémia à profanação. Profanar é tornar profano, dessacralizar ou, mais correntemente, macular o inefável.
Mas também será possível alguém profanar-se, no sentido de tocar algo de interdito, porque maculador: por exemplo, um cadáver.
Não necessariamente humano, como nos conta o estatuto de pária, a que são reduzidas pessoas ostracizadas por lidarem com o abate de animais ou o aproveitamento da sua pele (caso dos curtidores), etc. No Japão futurista, por exemplo, ainda hoje há quem conserve registos de pessoas e famílias que exercem ou exerceram essas profissões, para as banirem de qualquer possível relação familiar ou laboral; a esses excluídos se chama burakumin. Casos semelhantes se encontram noutras regiões e religiões da Ásia.
Reiterando lembrança de que não pretendo fazer nem ciência nem doutrina, mas tão somente acordar ou estimular reflexões, direi que, da minha leitura dos textos neotestamentários, ressalta que o cristianismo mais próximo do ensino de Jesus Cristo, me parece o mesmo ser uma dessacralização - se assim, ainda que em termos pouco hábeis, me posso exprimir - da religião enquanto relação do humano ao divino. O Evangelho, a Boa Nova, é a do regresso do Verbo inicial, a vinda de Deus, em Jesus Cristo, para o meio de nós, simultaneamente anúncio do advento final do fim dos tempos, quando cada um será julgado, não conformemente a qualquer código de ritos ou obrigações canónicas, mas em função do seu esforço de proximidade àqueles a quem deu de comer e beber, visitou e consolou na aflição, acompanhou e fortificou na paz... O sagrado, memória e construção do Corpo de Cristo, é, afinal, obra de todos nós em comunhão com Ele, e em cumprimento do único mandamento, o tal que tudo encerra: amai-vos uns aos outros, como eu vos amei, e será perfeita a vossa alegria.
Nicole Lemaître é professora de História Moderna na Universidade de Paris I-Panthéon-Sorbonne e, ainda, docente no Institut Catholique de Paris. Como comentário e aditamento ao meu texto anterior - cujo título e tema este agora presente retoma - traduzo passos do que ela escreveu sobre o tema do Padre. Será longa a citação, mas os trechos seguintes certamente nos ajudarão a ter uma visão mais abrangente da temática e problemática do sacerdócio na Igreja:
O padre torna-se celibatário e modelo de cristão a partir do século XI. Toda uma defesa ideológica da sua perfeição pessoal acompanha periodicamente tal ser posto à parte, particularmente nos séculos XVI e XVII, quando a figura do padre se constrói por oposição aos pastores cismáticos e, posteriormente, entre 1800 e 1950, na peomoção eclesial duma sociedade perfeita. Mas no primeiro milénio as coisas não eram assim tão claras. Na origem, o enquadramento das comunidades era assegurado por ministros diversos, e o ministro encarregado dos serviços materiais e da assistência (diácono), servidor de todos, exercia um verdadeiro apostolado, e em caso algum era um «separado». Mas as primeiras comunidades também são hierárquicas: têm anciãos (presbíteros) à cabeça. São eles que guardam cada igreja e têm por missão apascentar o rebanho de Deus. Passadas as primeiras gerações, uma hierarquia a três filas é instalada: um bispo (epíscopo), pastor e presidente da comunidade, rodeado de presbíteros que os diáconos assistem. Mas não é necessário passar por todas essas etapas - São Cipriano tornou-se bispo sem nunca ter sido padre nem diácono: na verdade, o ministério põe-nos a todos ao serviço do sacerdócio de Cristo e, enquanto sucessores dos apóstolos, a todos qualifica para serem intendentes de Deus. Embora recebam a imposição das mãos, prosseguem todavia a sua vida normal, casam-se e exercem um ofício.
Não é meu propósito comentar sequer aquela instituição de "separado" ou "posto à parte" que, por outras palavras, se pode dizer "sectário". Ou ainda, no seio da mesma sociedade, "pertencente a uma casta". Todos poderemos entender como, em sociedades maioritária ou crescentemente cristãs, que procuram reorganizar-se depois da queda do Império Romano, e no advento de um mundo de senhores feudais, se pretendesse assegurar a independência das comunidades e autoridades religiosas pela invocação de inspirações, princípios e normas que acentuassem o carácter eminentemente religioso e divino dos mandatos das autoridades eclesiásticas em circunstâncias fás ou nefas, como, em contextos bem diferentes, diria o Embaixador Franco Nogueira. Na preocupação com o reforço do poder espiritual ou eclesial face ao político, numa cristandade que evolui em tempos e modos novos, a maior legitimidade divina do primeiro é princípio que conveniente e evidentemente se impõe, até como justificação da sua independência própria. Assim, a afirmação de um estatuto sacerdotal distinto e marcado será fator de existência política. A par dos ritos de iniciação e ordenação, dos sinais sacramentais e paramentais desenvolvidos, a exigência do celibato (não simplesmente da castidade, que é coisa também própria das relações matrimoniais) torna-se constitutiva da pessoa e da classe sacerdotal.
Paralelamente se irá desenvolvendo uma espiritualidade condizente, acentuadamente induzida pela ideia de vida consagrada ao serviço exclusivo das coisas de Deus. Tal sentido de serviço da caridade, incarnada em vidas como as do santo cura d’Ars - e tantas outras, ao longo de séculos e hoje ainda - ou em ficções tão profundamente inspiradas e tocantes, como Le Journal d´un Curé de Campagne, do Georges Bernanos, para falarmos só de casos de padres inseridos no drama das vidas quotidianas da gente comum (que todos nós somos), tal sentido do serviço evangélico e fraterno foi sendo a boia de salvação de uma Igreja que o clericalismo teimou entregar nas mãos da vaidade temporal e do autoritarismo soez. Recentemente, a canonização de frei Bartolomeu dos Mártires, o arcebispo peregrino das serranias nortenhas e suas gentes perdidas num Portugal esquecido, aviva-nos a memória da consciência cristã.
Mas todas essas espirituais exceções também nos convidam a repensar as regras de que se distinguiram. Fica para outra conversa.
O título deste texto é a tradução literal do que a professora da Sorbonne Marie-Françoise Baslez deu ao seu último livro, editado este ano pela Tallandier: Comment les Chrétiens sont devenus Catholiques (1er-5ème siècle), obra cuja leitura recomendo a quem se disponha a refletir, em tempos interrogadores, sobre o nascimento e o(s) desenvolvimento(s) da Igreja Católica e a consciência da sua identidade própria. A história, isto é, a vivência do cristianismo inicial descobre-se fundamentalmente nos escritos do Novo Testamento que constituem os textos das epístolas apostólicas e dessa crónica coeva a que chamamos Atos dos Apóstolos, existindo ainda outros testemunhos na correspondência trocada e conservada pelas várias igrejas ou assembleias daquele tempo, bem como nos registos de documentos administrativos e cronistas exteriores às comunidades cristãs. Muito de todo este acervo foi redigido em cima dos acontecimentos e em virtude deles, sendo, aliás, anterior à redação dos Evangelhos (canónicos e apócrifos) que são sobretudo memórias da vida e dos ensinamentos de Jesus, guardadas e transmitidas pelas tradições de diferentes pregões e movimentos do apostolado e das igrejas consequentes à mobilização do Pentecostes.
Por mim, entusiasmo-me sempre com essas narrativas de uma vida espiritual e religiosa que é essencialmente social, comunitária, contos velhinhos da juventude do abraço de Deus à reunião dos homens no amor, pela intercessão redentora de Jesus e o sopro incessante e livre do Espírito Santo. Aí encontro uma porta aberta sobre o mistério criador do cristianismo - que não é uma doutrina, nem ideologia, nem qualquer código, mas uma mensagem apenas: amai-vos uns aos outros como Deus vos amou e ama, para que seja completa a vossa alegria. Na verdade, peça-se à volta deste mundo, seja onde for, uma definição do amor e tal terá sempre um denominador comum: Amor é o que dá sentido à vida. Nada mais. É edificante observarmos como a Igreja cristã não surge como instituição divina, pré formada e organizada por Cristo, como tantas vezes alguns pretendem fazer-nos crer. E é lapidar a análise da Prof.ª Baslez:
Os textos fundadores do Novo Testamento não puderam servir sozinhos para fundamentos teológicos de qualquer modelo organizacional que seria suficiente repetir, pois de modo algum se interessam pela questão das estruturas eclesiais. No princípio, não há doutrina, mas uma mensagem, um «evangelho» que comunidades recebem e meditam desenvolvendo uma consciência eclesial prévia a qualquer institucionalização. A primeira Igreja de Jerusalém, figuradora da Igreja Universal e projetora da Jerusalém celeste está definida nos Actos dos Apóstolos como «comunidade do múltiplo» (plethos), sem mais nenhuma referência estruturante além da lei da maioria.
Foram as assembleias das Igrejas o berço das Escrituras. Os relatos de batismos e de refeições circulavam, como demonstra Paulo quanto à «refeição do Senhor», em texto bem anterior aos evangelhos. [Cf. Coríntios I, 11, 23-25: Pois eu recebi do Senhor o que também vos ofereci: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou pão e, tendo dado graças partiu-o e disse : «Isto é o meu corpo que é para vós; isto fazei para a minha memória.» Do mesmo modo, também o cálice tomou depois da ceia, dizendo: «Este cálice é a nova aliança no meu sangue; isto fazei - quantas vezes o beberdes - para a minha memória.» Pois quantas vezes comerdes este pão e beberdes este cálice, a morte do Senhor anunciais, até que ele venha. Tradução do trecho paulino por Frederico Lourenço.]
Naquele tempo, era comum, na diáspora judaica, as comunidades ou sinagogas reunirem-se, para a celebração de festas ou em dias de preceito, numa casa escolhida para o efeito, e juntarem aos ritos religiosos a participação dos fiéis num repasto comum. Tal prática, aliás, também se realizava entre outras assembleias, designadamente nas cristãs, onde a ação de graças, ou eucaristia, se fazia como memória da Ceia do Senhor, atualização sacramental da Nova Aliança, isto é, da reconciliação de Deus com a humanidade inteira, com Cristo, por Cristo, em Cristo. A partilha do pão e do vinho entre todos e por todos significava assim substancialmente o sacrifício redentor de Jesus e a presença contínua do Senhor Ressuscitado entre nós: "Sempre que estiverdes reunidos em meu nome, eu estarei no meio de vós". A comunhão eucarística surge assim como união dos batizados no Corpo de Cristo, em ação de graças e como resposta efetiva à vocação da humanidade para a construção da nova terra e dos novos céus.
Pela propensão obsessiva a defender o "Santíssimo Sacramento" como presença real do Corpo de Jesus, no sentido de um gesto de magia sagrada ter fisicamente transformado pão e vinho em carne e sangue, muita pregação eclesial e devota também vai encobrindo a realidade mística - realidade, sim, em sentido pleno - do Corpo de Deus como sacramento do sublime sacrifício de Cristo, pelo qual toda a humanidade se encontra reconciliada em Deus e com Deus. Os primeiros cristãos, aqueles que testemunhavam a Palavra e reproduziam os gestos do Senhor, celebravam a eucaristia como momento comunitário, não dispunham de sacerdote algum para consagrar o pão e o vinho, essa consagração fazia-se pela união dos batizados em torno da memória de Jesus Cristo. Aliás, por alguma razão, nos escritos neotestamentários, "sacerdote" é termo exclusivamente referido apenas ao Povo de Deus, jamais a alguém em particular. O conceito atualmente corrente de "sacerdote" data apenas do 2º milénio do cristianismo, surge na Idade Média e fixa-se, com o direito canónico, no século XII, quando se regulamenta que sacerdote é quem recebeu o sacramento da ordem e, por este, o poder divino, transmitido pela Igreja hierárquica, de batizar, abençoar, celebrar a eucaristia e perdoar os pecados. Tal estatuto foi gerando muitos e vários privilégios, desde as imunidades do foro eclesiástico à atribuição de funções e competências para as quais nem todo clero estava evidentemente preparado. Está aí a raiz histórica do clericalismo - mal ainda hoje viral na Igreja - que, todavia, não tem qualquer fundamentação teológica aceitável mas, muito pelo contrário, encontra nos próprios textos evangélicos palavras de repúdio e condenação por parte de Jesus.
Não sei se estamos hoje no limiar de um novo período de avanço das comunidades cristãs para a catolicidade, mas o dinamismo atual dos movimentos ecuménicos, bem como sinais de abertura e progresso por parte de vários sectores da hierarquia eclesial, deixam-me esperar que sim. Vejamos a notícia da eleição do novo superior provincial dos frades capuchinhos de Mid America (EUA), um irmão leigo (isto é, sem ordens sacras, mas professo, ou seja, tendo já pronunciado os votos de obediência, pobreza e castidade exigidos pelo regulamento da Ordem dos Frades Menores). Eleito pela maioria absoluta dos seus irmãos em São Francisco de Assis (que tampouco era "sacerdote") viu a validação desse ato rejeitada pela Congregação da Santa Sé para os Religiosos, no Vaticano, com o fundamento de não ser ordenado, conforme exigido pelo artº 129-1 do Código de Direito Canónico: "Quem recebeu a ordem sagrada é capaz, segundo as normas do direito, do poder de governo que, por instituição divina, existe na Igreja, e que também é chamado poder de jurisdição". Mesmo que o pretensiosismo soez e desajeitado deste preceito canónico, nos faça sorrir, não deixa o mesmo de ser revelador da pobreza intelectual do clericalismo e seus defensores, com alguma confusão entre disposições canónicas e instituições divinas... Mas os capuchinhos americanos recorreram para o Papa, que anulou o veto e promulgou a eleição. É bom que se vá lembrando à Igreja como todos somos filhos de Deus através da fé em Jesus Cristo. Todos os que fomos batizados para Cristo estamos vestidos de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem pessoa livre, não há macho e fêmea: todos nós somos um em Cristo Jesus. Se nós somos de Cristo, então somos semente de Abraão e herdeiros segundo uma promessa (S. Paulo aos Gálatas, 3, 26-29). Assim, já não somos estrangeiros nem estranhos, mas concidadãos dos santos e pessoas da casa de Deus, edificados sobre a fundação dos apóstolos e profetas, sendo o próprio Jesus Cristo a pedra angular, na qual todo o edifício, bem ajustado, aumenta de modo a tornar-se templo sagrado no Senhor, no qual também nós somos edificados para habitação de Deus em espírito (aos Efésios, 2, 19-22). A instituição eclesial é a comunhão de todos em Cristo, os ministérios eclesiais são desempenhos de serviços dessa comunhão e não conferem a quem os exerce qualquer estatuto distinto ou acima dos outros comungantes. E porque Cristo é tudo em todos, chamamos católica à sua Igreja.
Com tanto alarido à volta do filme do Scorsese, Silêncio tem havido pouco. Nem tampouco ouço vozes que nos aproximem do drama dos cristãos japoneses, nem sequer de uma compreensão mais próxima do combate obsessivo de Endo Shusaku pelo entendimento da sua própria fé cristã. Este, tanto quanto possamos depreender de passos da sua obra literária, tem muito a ver com sentimentos de divisão e traição (ao pai ou à mãe), com solidão e separação (rasgões que experimentou através da companhia e deserção de animais domésticos) e, já no plano mais propriamente racional, cultural, filosófico e religioso, com o problema do mal, do pecado e da graça, da misericórdia de Deus. Começo por te referir um passo do romance Rio Profundo (Deep River, na versão inglesa, Le Fleuve Sacré, na francesa), em que Otsu, seminarista jesuíta japonês em Lyon, França, desabafa assim: Não posso perceber a diferença entre o que as pessoas de cá chamam o bem e o mal. Penso que no bem se esconde o mal, e vice versa. E aí intervém a magia de Deus. Até pode servir-se dos meus pecados para os transformar em salvação... ... A Igreja considera-me herético. Corrigiram-me: "Não distingues claramente as coisas, tens de agir com mais discriminação. Deus não é assim". A pobre personagem quererá pensar num cristianismo que se coadune com a mentalidade japonesa. Eis um ponto fulcral para o entendimento, não só de atitudes e comportamentos de católicos japoneses perante os estrangeiros (lembra-te do que eu já contei da minha experiência com a família católica dos meus senhorios em Tokyo ou das diligências que, enquanto Comissário Geral de Portugal na Exposição Universal de Aichi, fiz junto da hierarquia da Igreja em Nagoya) mas sobretudo da estranheza - para não dizer dificuldade de aceitação, desconfiança, ou mesmo aversão - que uma pregação rígida da ideia cristã pode causar nos japoneses. Já no século XVI, em debates entre missionários jesuítas e bonzos budistas, os japoneses interrogavam sobre se poderia ser infinitamente misericordioso um Deus omnipotente que, todavia, condena e castiga gente, mesmo até ao inferno eterno. Ou como poderia o mesmo Deus ser justo, ao pretender que há uma só religião verdadeira, quando, afinal, tanta e tanta gente nunca ouviu nem ouvirá a boa nova evangélica, do que não têm culpa. Nesse romance de Endo, Otsu afirma que estou persuadido de que o homem elege o seu Deus em função do seu local de nascimento, da sua cultura, das suas tradições e do seu ambiente. Os europeus escolheram o cristianismo porque assim o haviam feito os seus antepassados, e a cultura cristã era predominante no seu país. Não se pode dizer que os habitantes do Médio Oriente se tornaram muçulmanos, nem a maioria dos indianos hindus, após terem feito rigorosas comparações com outras religiões. Quanto a mim, foi a minha mãe e a sua particular influência que fizeram de mim o que sou. [Este passo é claramente autobiográfico, num romance em que Endo Shusaku se revê, ou descreve, sobretudo noutra personagem, Numada de seu nome]... ..." Mas nunca pensaste que teres nascido numa certa famíliafoi graças à bênção de Deus e ao seu amor?" - perguntou-me certo dia o meu diretor espiritual. "Sim, mas foi também graças à Sua bênção que aqueles que nasceram noutros lares acreditam noutras religiões... - responde Otsu/Endo.
O tal Numada, como Endo ele-mesmo na vida real, passara a infância em Dalian, na Manchúria, que à época fora colonizada pelos japoneses. Ajudado por um jovem criado chinês - que seu pai mais tarde despediria - recupera da vadiagem das ruas um cão manchu, que criará e a quem chamará Negrão. Quando os pais se divorciam, na sequência do alcoolismo crónico do marido, Numada/Endo parte para o Japão com a mãe. E assim, depois de ter perdido Li, o criado amigo, terá de se separar de Negrão. Mais tarde, o menino já adulto nunca esquecerá o olhar de despedida do seu cão. Foi graças a ele e a Li que aprendeu o significado da palavra separação. Já casado e escritor conhecido, Numada adquire um estranho pássaro tropical, um calau. Este acabará por voar livremente no gabinete do romancista, que com ele conversa e o calau observa enquanto escreve. Quando a ave morre, a mulher de Numada, que muito discutia e protestava contra a sujidade que o bicho lhe fazia em casa, oferecer-lhe á outro pássaro diferente. Percebera que o marido era incapaz de explicar o seu desejo intenso de se religar a todos os seres vivos. A semente nele plantada pelo Negrão, na infância, tinha lentamente frutificado num mundo imaginário que ele só podia descrever através das histórias que contava. Aí, as crianças eram capazes de compreender o murmúrio das flores, as conversas das árvores, e até de ler os sinais trocados pelas abelhas entre elas, ou as formigas. Apenas um cão e um calau tinham compreendido a solidão que, já adulto, ele não conseguira dissipar...
Essa sentida solidão - em Endo autor e muitas das suas personagens - acaba sempre por ter uma proposta de companhia: a de Jesus. No romance Chinmoku (Silêncio), o padre apóstata ouve em confissão o renegado Kichijiro, que o traíra. Ambos haviam pisado o fumie, a imagem de Cristo. - "Senhor, ressenti o teu silêncio". - "Eu não estava silente. Sofri ao teu lado". Após a confissão secreta, Kichijiro chora mansamente e sai. E o livro termina assim: O padre tinha administrado o sacramento que só um padre pode administrar. Sem dúvida de que os seus colegas padres condenariam o seu ato porque sacrílego; mas mesmo que estivesse a traí-los, ele não traíra o seu Senhor. Amava-o agora de uma maneira diferente de dantes. Tudo o que ocorrera até agora fora necessário para o trazer a este amor. "Agora mesmo sou o último padre nesta terra. Mas Nosso Senhor não estava silencioso. Mesmo que estivesse calado, a minha vida até hoje teria falado dele". William Johnston, jesuíta da Universidade Sophia, em Tokyo, amigo e tradutor de Endo Susaku, escreve, a abrir um prefácio ao romance, algo que traduzo para ti:
Shusaku Endo tem sido apelidado de Graham Greene japonês. Se com isso se quer dizer que ele é um romancista católico, que os seus livros são problemáticos e controversos, que a sua escrita é profundamente psicológica, que ele descreve a angústia da fé e a misericórdia de Deus - então é certamente verdade. Porque o senhor Endo chegou à ribalta do mundo literário japonês escrevendo sobre problemas que, a dado momento, pareciam longe deste país: problemas de fé e Deus, de pecado e traição, de martírio e apostasia.
Sobre o pano de fundo desta história - que é o século cristão do Japão - já escrevi bastante. Mas talvez volte a escrever, em carta só para ti. Por hoje, basta lembrar-te de que, como já te disse, Silêncio não é um romance histórico, muito menos uma análise da missionação dos jesuítas no Japão dos séculos XVI-XVII. É um cenário e uma ficção para questões que o seu autor foi interrogando, sofrendo e meditando.