"MODO DE VER"
Em Notas sobre o Cinematógrafo, Robert Bresson lembra o segredo do artista genuíno e aconselha: “Faz aparecer o que sem ti provavelmente nunca seria visto”. Não por acaso, a comissária Ana Vasconcelos inicia com esta citação o seu texto no belíssimo catálogo da exposição, mais do que antológica, de Cruz-Filipe na Fundação Calouste Gulbenkian. E o feliz título “Modo de Ver” leva-nos ao que Bresson dizia relativamente ao cinema e que, em boa verdade, devemos estender a toda a Arte – é um movimento interior. No caso de Cruz-Filipe, estamos diante de um pintor, de rara sensibilidade, com o culto misterioso da representação da vida e do mundo. Quando percorri a mostra, fi-lo em silêncio, como aconselho vivamente a quem o faça, e em cada quadro confrontei-me com mistério. Há sempre algo escondido que nos obriga a procurar ir além. Mesmo no caso de “Música de Câmara”, a primeiríssima obra, de 1955, exposta na galeria “Pórtico”, ao Chiado, num registo diferente do que veio a caracterizar a obra de Cruz-Filipe, também sentimos a existência de um segredo, que, como acontecerá depois, põe em diálogo a pintura e outra forma de arte, nesse caso a música, que está sempre presente em toda a obra, como chave do movimento interior.
Centro-me em “Intervalle du temps”, de 1982, exatamente no ano em que o conheci e comecei a trabalhar no meu ofício de advogado com o pintor. Vou ao interior do cenário e vejo-me transportado a uma casa holandesa, onde vinham chegando os cristãos-novos portugueses. O que está escondido tem a ver com uma certa incomunicação, presente no “tempo imaginário” de que falava Eduardo Lourenço – “harmonia, ao mesmo tempo abolida e miticamente presente”, num momento de glória da pintura: “tempo morto, feliz na sua própria morte”. Se pensarmos em “Teatro dos sentidos”, de 1991, reportamo-nos a um mundo de sonhos e, como diz Bernardo Pinto de Almeida, “cada quadro é um reflexo de múltiplas reverberações da imagem”. Daí o “estatuto cenográfico radical”, referido por João Pinharanda, não podendo esquecer-se, como Raquel Henriques da Silva salienta, que a pintura deambula entre universos diferentes, mas sempre com profunda originalidade, entre continuidades e descontinuidades, subtilmente encadeadas, num maneirismo singular.
A exposição da Gulbenkian reúne obras realizadas desde a década de setenta, incluindo telas inéditas a partir de 2015. Cinquenta e sete pinturas traçam a evolução da obra do autor até à mais recente de 2020. Dez pinturas inéditas representam a fase mais recente da sua criação. Ricardo Cruz-Filipe ganhou destaque sobretudo depois de 1969, ano emblemático da inauguração da sede da Fundação, quando apresentou pinturas sobre telas fotossensibilizadas, técnica de que foi, com Rolando Sá-Nogueira, pioneiro entre nós. Encontramos assim uma matriz pop, num processo de colagem de fragmentos de imagens, numa reconstrução baseada em pinturas italianas e flamengas dos séculos XVI e XVII. E assim o pintor consegue a revelação e a ocultação de imagens com um efeito de magia. Se no primeiro ciclo é o corpo humano que protagoniza a encenação, no segundo ciclo é a natureza que se torna expressão viva da representação – mar, céu, terra atmosfera, natureza líquida e sublimada. Se considerarmos o pintor como um alter-ego de Álvaro de Campos, na sua profissão de engenheiro, a verdade é que ele se distingue nessa relação, através da “magia objetiva de sonhar estando acordado”, para relembrar ainda Eduardo Lourenço, num desassossego que se inclina para um sonho surreal, dominado pela busca misteriosa do ausente que se torna presente, na simbiose entre o olho humano e a fotografia. E Ana Vasconcelos tem razão, ao procurar entender o sentido profundo da obra do pintor, pondo em paralelo a imagem e a representação, e ao invocar de novo Bresson, que visava “atingir esse ‘coração do coração’ que não se deixa captar nem pela poesia, nem pela filosofia, nem pela dramaturgia”.
GOM