Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

O AMOR DOS LIVROS E DA CULTURA

  
    José Afonso Furtado © Fundação Calouste Gulbenkian


José Afonso Furtado foi um exemplo de inteligência e entrega plena ao serviço público da cultura. Foi um estudioso e um militante sereno e determinado da promoção do livro e da leitura, para além do prazo curto. O produto do seu labor e talento está bem vivo, e todos quantos lidam com o mundo dos livros e do conhecimento sabem o muito que beneficiaram do seu contacto. O trabalho que realizou na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian (1992-2012) foi notável, na modernização tecnológica e na criação do serviço de referência, completando o que também fez na rede nacional de bibliotecas públicas municipais. Lembramo-nos da sua obra fundamental A Edição de Livros e a Gestão Estratégica, que continua ser um livro referencial. Quem o conheceu, sabe quanto era entusiasta, generoso, disponível e exaustivo no estudo e compreensão daquilo que o interessava. A partilha de conhecimentos era motivo de genuíno prazer, e todos quantos beneficiaram do saber que cultivava não podem esquecer o que lhe devem. Mas, além, da entrega à causa do livro e da leitura, José Afonso Furtado foi um artista, um criador, com provas dadas no domínio da fotografia. A sua obra põe-no no centro da melhor criação do seu tempo. As suas paisagens serenas e rigorosas permitem uma inevitável ligação à terra e ao tempo. Cada fotografia sua obriga-nos à observação atenta do conjunto e do pormenor. Dir-se-á que uma paisagem ganha, assim, todo o esplendor, tornando-se verdadeiro diálogo entre humanidade e natureza.

Ao seguirmos o seu caminho profissional, encontramos a presidência do Instituto Português do Livro e da Leitura (1987-91), a participação no Conselho Superior das Bibliotecas, a docência nos cursos de ciências documentais e de técnicas editoriais e na disciplina de Sociologia do Livro e da Leitura. Participou na Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e fazia parte da Comissão de Honra do Plano Nacional de Leitura. Como prova da profunda atenção que dava á evolução do mundo digital e da comunicação cultural, foi referido em 2011 na revista “Time” como um dos mais influentes utilizadores do Twitter (hoje X). Na vasta bibliografia que nos deixou conta-se O Que é o Livro (1995), Os Livros e as Leituras. Novas Ecologias da Informação (2000) ou Uma Cultura e Informação para o Universo Digital (2012), além de Canção das Crianças Mortas (com Clara Pinto Correia, 1989). Sobre fotografia são inesquecíveis Das Áfricas (com Maria Velho da Costa); Os Quatro Rios do Paraíso (com Clara Pinto Correia e Cristina Castel-Branco); Mundos da Fotografia – Orientações para a Constituição de uma Biblioteca Básica (com Ana Barata); Contaminações. Minas Abandonadas – Fotografias 1994-2009 (2019). De modo emblemático, sobre o Livro, a sua importância e fragilidade, José Afonso Furtado disse de modo sublime: “Nestes momentos de turbulência muitas predições já falharam, muitos fenómenos vertiginosos surpreenderam a comunidade dos especialistas. (…) As verdades inquestionáveis mais não seriam do que um compêndio de banalidades. Tal como outros, em outros tempos, ‘navegavam sem o mapa que faziam’, também agora ‘os homens sábios tinham concluído / que só podia haver o já sabido: / para a frente era só o inavegável’, como escreveu, admiravelmente, Sophia de Mello Breyner Andresen. Resta-nos, então, navegar os novos espaços”.   


GOM

O INCRÍVEL RUBEN A.

  


“Incrível” é o que não se acredita que possa acontecer, de tão admirável. Os gramáticos são muito claros: só perante condições muito especiais é possível qualificar alguém deste modo. Ruben Andresen Leitão integra-se plenamente nesse qualificativo, pela obra que nos deixou, pela vida que teve e pela capacidade que demonstrou não só por transmitir o que sentia, mas também por ter deixado a semente para fazer compreender que o gosto pelas nossas coisas não pode ser fechado ou autossuficiente, uma vez que precisa de ser aberto, cosmopolita, inconformista e desassossegado. Ruben foi a um tempo um cultor da inovação e da agitação de ideias e um investigador sereno e sistemático da historiografia, com provas dadas, bem como um defensor ativo e apaixonado do património cultural, num sentido amplo, material, imaterial, abrangendo ainda a natureza, a paisagem, as tecnologias novas e a criação contemporânea. Ao reler Orlando Ribeiro com seu método de ir ao campo e de dialogar com as pessoas, sentindo os seus sentimentos e compreendendo os seus anseios, encontrou um modo especial de amar a terra e os seus povos, mas sobretudo de cultivar a História como um terreno comum para nos conhecermos melhor num intercambio interminável em que tudo ganhamos pelo relacionamento com os outros. Acreditava numa cultura universal e comum, a começar no que estava próximo de casa, bem ciente de que no caso português o que é próprio projeta-se pelo mundo num permanente diálogo baseado no “melting pot” peninsular que nos construiu e que nos permite ser uma cultura de acolhimento sempre disponível para a viagem, com todo o mistério que comporta. Assim como disse do rei D. Pedro V, cuja memória admirou intensamente, que foi o primeiro homem moderno que houve em Portugal, ele mesmo foi alguém que amou não apenas os passos avançados, mas também a fidelidade às raízes. Como disse do fundador do Curso Superior de Letras, dedicou grande parte do tempo ao problema da cultura e da educação “que considerou fundamental para que se note a mínima parcela de progresso em que o país se pudesse embrenhar”. Para Ruben não havia contradição entre as tradições e os costumes ancestrais e a audácia  iconoclasta, que segundo a lenda, o levou um dia a dialogar nu com a estatuária grega, para melhor sentir a vertigem dos séculos.

Leia-se, mas leia-se mesmo, “A Torre da Barbela”. É uma obra-prima de entusiasmo literário, de humor subtil e requintado, com uma erudição extraordinária. Não há dúvida anacrónica, e no entanto o diálogo delirante obriga a uma grande atenção aos diferentes momentos históricos. Sente-se Portugal em busca do tempo. Como reconheceu Jacinto do Prado Coelho,  a “originalidade” do autor é uma “aventura necessária”. Trata-se de um diálogo crítico que merece leitura atenta, a ponto de ser uma referência única na literatura portuguesa contemporânea, só possível graças à autoria de um profundo conhecedor da cultura e da historiografia, mas muito mais do que isso, um analista inteligente da realidade do seu tempo. Aliás, se Ruben A. nos legou outra obra fundamental,  como são as suas memórias “O Mundo à Minha Procura”, é porque pôde realizar um retrato soberbo não apenas da sua singularidade, mas do seu lugar no tempo.


GOM 

CRÓNICA DA CULTURA

Não basta modernizar as linguagens dos lugares-comuns
 

TVB _ 18 set.jpg


Aqui chegados, cremos que há que partilhar o quanto nos temos mostrado alheios ou distraídos do errado na sociedade contemporânea, sem que a nossa responsabilidade e empenho para uma genuína melhoria do bem-estar do Homem se tenha feito notar.

Precisamos, seguramente, de criar alternativas ao que no mundo tem condenado as gentes a aceitar que o bem-estar é para poucos.

Em rigor, já assistimos a horrores numa escala desconhecida, e que bem nos tem alertado à urgência de uma mudança significativa, à qual ainda não nos apresentámos com vigor e em conjunto.

De registar, que a nossa surpresa face a um “novo” império de crueldade mascarada de falsa beatitude, de apelativas e sedutoras inverdades, repousa e muito, na ausência da nossa força apostada nas melhorias dirigidas a quem sentia e sente, que nós já abandonámos o reflexo de dor humana.

Por óbvio que o “novo” poder escuro, inquisitivo, manipulativo, germinador de medos, nunca foi alheio às nossas falhas como berço do seu regresso.

Continua este poder que é medo dos medos, a aprofundar uma descrença palpável do homem em si mesmo, um mistério sobre a sua ignorância que muito convém adubar, colonizando famintamente toda a vida quotidiana a fim de que se instale um domínio mecânico.

Não tem este poder, uma ideia que construa uma verdadeira visão alternativa para aquilo que a vida deveria ser em humanidade.

Questionemos, pois, o que poderemos fazer agora para mitigar a ausência de empatia, o que poderemos fazer que nos faça merecer a honra do belo que o homem é capaz de gerar, do belo que já provamos que o homem é capaz de multiplicar, sobretudo quando vai para além das estatísticas dos mínimos indispensáveis.

O imperativo de nos melhorarmos quotidianamente é o que segura todas as experiências que possam gerar vida digna; todas as situações em que o presente não descure o entender o passado, e que aprenda, o quanto para findar a agonia não basta modernizar as linguagens dos lugares-comuns

E o início da passagem far-se-á por aí.


Teresa Bracinha Vieira

A CONVENÇÃO DE FARO

  
    Foto: Câmara Municipal de Faro


Desde há vinte anos, o Algarve tornou-se símbolo do património cultural, mercê da assinatura em outubro de 2005 da Convenção do Conselho da Europa sobre o valor do património cultural na sociedade contemporânea, envolvendo não apenas os monumentos, mas também as tradições, a natureza, a paisagem e a criação artística. Este documento envolve uma significativa responsabilidade, considerando a surpreendente riqueza não apenas da maravilhosa costa marítima, mas também do barrocal e da serra com um potencial inesgotável. Recordo uma longa conversa que tive com o meu saudoso amigo José Maria Ballester sobre as virtualidades desta Convenção. A ideia de Helena Vaz da Silva está na sua origem dela, ao apresentar a grande originalidade de considerar a consciência europeia através da mobilização das pessoas e redes culturais europeias, enquanto roteiros e projetos comuns, que permitissem abrir horizontes de paz e de entreajuda, pelo melhor conhecimento do património cultural próximo e distante, com o reconhecimento de que a melhor identidade comunitária é a que não se isola, mas a que se acrescenta. O monumento ou o museu da minha região ganha mais sentido se partilhar o seu significado com outros exemplos de uma realidade local ou nacional. A dimensão cultural europeia aberta ao mundo reforça a ideia de cidadania comum, partindo das diferenças e pondo a tónica na autonomia individual e na solidariedade, na tradição e na modernidade.

A originalidade de adotar o conceito de “património comum da Europa” tem de ser vista como um elemento dinamizador de uma cidadania ativa e aberta. Somos cidadãos e une-nos um sentimento de pertença comum e elos que se reportam a uma história viva, simbolizada e representada por uma herança, pelo património material e imaterial e pela capacidade de tornar presente essa evocação, através da vitalidade da criação contemporânea. O “valor” surge, assim, no “horizonte da experiência histórica”, fora de qualquer conceção desenraizada. Património comum está, deste modo, na encruzilhada das várias pertenças e no ponto de encontro das várias complementaridades. Indo mais longe do que outros instrumentos jurídicos e políticos e do que outras convenções, a Convenção de Faro visa prevenir os riscos do uso abusivo do património, desde a mera deterioração a uma má interpretação enquanto “fonte duvidosa de conflito”. Quantas vezes um mesmo bem patrimonial pode estar ligado a tradições diferentes. Um templo pode ter na sua existência referências diversas – pode ter sido sinagoga, igreja cristã ou mesquita. As mudanças fizeram-se violentamente, e haverá a tendência para valorizar apenas a conceção dominante atual. Caberá à própria sociedade encontrar o denominador comum, que permita evitar ser aquele monumento fonte de conflito. Nesta perspetiva, o património cultural fica no ponto de convergência entre um passado violento de guerras civis e a procura de um consenso de valores e ideais defendido pelo Conselho da Europa. Segundo a Convenção de Faro: “o património cultural constitui um conjunto de recursos herdados do passado que as pessoas identificam, independentemente do regime de propriedade dos bens, como um reflexo e expressão dos seus valores, crenças, saberes e tradições em permanente evolução, incluindo todos os aspetos do meio ambiente resultantes da interação entre as pessoas e os lugares através do tempo”.


GOM

COISAS QUE SE GUARDAM

feather-7722882_640.jpg

 

As pessoas que guardam coisas dividem-se, e às vezes combinam-se, em escuteiros e sentimentais:  os escuteiros guardam coisas porque acham que podem vir um dia a precisar delas; o seu modelo é a caixa de parafusos; os sentimentais guardam coisas porque já foram importantes para si; o seu modelo é a colecção de postais.

Nem sempre os planos correm bem.  Poucos escuteiros chegam a precisar de tudo o que guardaram; quase todos acabam por se esquecer daquilo que guardaram; e frequentemente voltam a guardar coisas que já tinham guardado.   Muitos sentimentais acabam por se esquecer das razões por que guardaram as coisas;  a enorme importância que essas coisas tiveram para si pode tornar-se tão remota como as memórias de uma outra pessoa.

Acredita-se que examinar um conjunto de coisas que foram guardadas por alguém nos diz muito sobre quem as guardou.  Ao inspeccionar o conteúdo de uma caixa que encontrámos num armário fazêmo-lo por vezes com as esperanças de um funcionário de alfândega com interesses psicológicos.   Achamos que todas as escolhas se ajustam como peças de um único puzzle e nos permitem conhecer intimamente quem lá as pôs.

Não é no entanto fácil perceber se o conteúdo da caixa que se encontrou foi coleccionado por um escuteiro ou por um sentimental.  Uma chávena desirmanada e uma fotografia de Tuy só por si não dizem nada.  Se foram guardadas por um escuteiro, é provável que o propósito tenha sido o de tentar arranjar chávenas iguais, ou escrever um artigo sobre Tuy; se foram guardadas por um sentimental, é provável que a razão tenha sido uma casa onde a chávena tenha estado, ou um certo habitante de Tuy.   Acontece porém que nem a chávena nem a fotografia nos dizem se foram lá postas por razões escuteiras ou sentimentais.  Os nossos propósitos não passam para as coisas.

Um caso extremo é o daquelas coisas que tantas vezes encontramos em caixas arrumadas por terceiros e que não conseguimos identificar, a não ser da maneira mais trivial: uma peça de plástico que parece um carrinho de linhas mas que tem um parafuso que, da perspectiva do carrinho de linhas, não cumpre qualquer função; um quadrado de tecido onde foram desenhadas letras e talvez animais;  um bocado de madeira que pode ser o assento de uma cadeira, uma tábua de cozinha, ou parte de um barco.

Quando não conseguimos identificar as coisas que alguém guardou não conseguimos já dividir o mundo em escuteiros e sentimentais; apenas admitimos que quem guardou essas coisas seria uma pessoa como nós porque nos garantem que antes de nós nascermos já havia pessoas parecidas connosco.  De facto, só quando conseguimos identificar uma coisa é que podemos concluir que foi guardada por uma pessoa; e só quando conhecemos uma pessoa é que sabemos  porque é que decidiu guardar uma coisa.

 

Miguel Tamen
Escreve de acordo com a antiga ortografia

FÉRIAS: TRABALHO, FESTAS, SILÊNCIO

Em merecido descanso, reproduzimos uma crónica anterior do Padre Anselmo Borges.

  
   Dostoiévski. Foto: Corbis/Getty Images


Nunca esqueci a senhora Isilda, uma idosa antiga, muito bonita e viva, com filhos, que, já com 91 anos, um dia no café me esclareceu quanto ao baptismo: segundo ela, baptizam-se as crianças pequeninas para receberem o Espírito Santo que é mais forte do que Jesus e que é o Espírito falador: é ele que dá às crianças a capacidade divina para falar.

À sua maneira, a senhora Isilda tinha consciência do milagre que é falar. Quem algum dia reflectiu sobre isso - a capacidade de falar: proferir sons articulados que transportam sentido - falando, dizemo-nos a nós próprios, damos ordens, fazemos declarações de amor, e ódio também, ensinamos, contamos anedotas, fazemos paralisar um homem, levamos uma mulher à lua, discutimos sobre o que há e o que não há, sobre o possível e o impossível, dirigimo-nos ao Infinito... -, não pode deixar de cair no assombro interrogativo.

Um corpo humano, pelo simples facto de falar, nunca deixará de constituir um enigma e mesmo um milagre pura e simplesmente. Lá está Aristóteles, que viu bem ao definir o ser humano como animal que tem fala (zôon lógon échon), sendo, por isso, animal político (zôon politikón), com a capacidade de distinguir e discutir sobre o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o bem e o mal... Ah! Se os políticos soubessem disto e agissem em consequência!...

E as palavras não são arbitrárias. Assim, muitos já estão em férias, outros irão para férias. Ora, cá está: a palavra latina feria, no plural feriae, tinha o sentido de “descanso, repouso, paz, dias de festa”. No século III, a Igreja assumiu os dias da semana como dias de “comemoração festiva”, enumerando-os como feria primaferia secundatertiaquartaquintasexta, ou, invertendo a ordem das palavras: prima feriasecunda feriatertia feriaquarta feriaquinta feriasexta feria.

Daí, ao contrário de outras línguas, como o espanhol, o italiano, o francês, etc., que adoptaram a classificação romana baseada na divinização de um planeta: lunesmarteslundimardi, etc., o português, ao seguir a designação eclesiástica, ter dado origem aos dias da semana como: segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, etc. Que feira, enquanto mercado esteja associada a feria, deriva do facto de os comerciantes aproveitarem os dias festivos para vender as suas mercadorias - aliás, isso ainda hoje acontece frequentemente.

De qualquer modo, o importante é sublinhar, até do ponto de vista histórico e etimológico, o carácter festivo associado às férias. Isso é tanto mais significativo, quanto isso mesmo está presente noutras línguas, que seguiram caminhos etimológicos diferentes. Assim, em espanhol, férias diz-se vacaciones e, em francês, vacances. Ora, vacaciones vacances têm o seu étimo no latim vacatio, com o significado de isenção, dispensa de serviço. Os ingleses em férias dizem que estão on holidays, e isso quer dizer: em dias santos. Os alemães, esses têm ferien ou urlaub. Ora, a raiz de urlaub é erlaubnis, com o sentido de dias livres de serviço e trabalho.

É necessário sublinhar que a Bíblia faz questão de dizer que Deus deu um mandamento de um dia feriado semanal santo, sem trabalho, para que o ser humano fizesse a experiência de que não é uma besta de carga, mas um ser festivo. Tem de trabalhar - e duro -, mas não é besta de carga. E Jesus também trabalhou e trabalhou no duro. Quantos padres falam disso? Mas também descansou e tentava levar os discípulos para um lugar recôndito onde pudessem repousar.

Mas, aqui chegados, é preciso reflectir, pois, se pensarmos bem, os dias de descanso semanal e as férias não têm, ou, pelo menos, não deveriam ter, como finalidade única e última ser só um intervalo no trabalho para repor as forças, em ordem a trabalhar outra vez e mais.

As férias e o descanso semanal têm o seu fim em si mesmos: a experiência de que o ser humano é um ser festivo. É preciso ler e escrever poesia, dançar, apanhar sol na praia, no campo, na montanha, ouvir música excelente, que nos remete para origens imemoriais e para a transcendência utópica toda. É preciso reaprender a ver o Sol a nascer no Oriente e a pôr-se no Ocidente (sabia?) e a exaltar-se com a Lua enorme - cheia - ou pequenina que nem um fio, e com o alfobre das estrelas: isso que na cidade se não vê.

É preciso voltar às alegrias simples: contemplar uma simples folha de erva, acolher o perfume de uma rosa sem porquê, como dizia Angelus Silesius, exaltar-se com o mistério de qualquer rosto humano. É preciso ter tempo para ouvir o silêncio: haverá milagre maior do que estarmos cá?

Se se for fora, encontrar-se com culturas outras e diferentes modos de ser ser humano: como americano, como asiático, como africano e, de modo mais concreto, como chinês, como ugandês, como mexicano (nestes tempos de globalização, que Deus nos livre da uniformidade!).

É preciso ter tempo para a família e para os amigos. Para andar solto. Para dialogar com o Infinito. Para contemplar e criar beleza: não é ela que redime o mundo, como disse Dostoiévski?

Ai de quem, concretamente nestes tempos de dispersão, de barulho ensurdecedor e correria sem fim não se sabe muitas vezes para onde, não tenha todos os dias um pouco de tempo para o melhor: estar consigo lá no mais íntimo para se concentrar e conviver com o milagre de viver - sim, viver é um milagre - e encontrar o mistério da Transcendência e Sentido.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 3 de agosto de 2024

A VIDA DOS LIVROS

GOM _ A Vida dos Livros2.jpg 
  De 25 a 31 de agosto de 2025

 

A Rota de Al Mutamid invoca o grande poeta de língua árabe, nascido em Beja, rei da Taifa de Sevilha, que estabeleceu em Silves um centro cultural da maior relevância, conhecido pelos contemporâneos como Bagdad do ocidente.

 

a vida dos livros.jpg 

Maomé ibne Abade Almutâmide foi o terceiro e último dos reis abádidas que governaram a taifa de Sevilha no século XI e um dos poetas mais importantes de Al Andalus, tendo ficado conhecido como o "rei-poeta". Nascido em Beja, em dezembro de 1039 (Rabi Alual de 431, no calendário islâmico), foi o segundo filho de Almutadide, originalmente batizado com o nome de seu avô, Abu Alcacime Maomé, e com o título honorífico Almoaíde Bilá. Com cerca de 12 anos, foi nomeado governador de Silves (Chilb) por seu pai. Aí, conheceu o poeta Abenamar, com quem criou uma forte relação de amizade e afeto, ambos dedicando vários poemas um ao outro. No entanto, a atenção de Abu Alcácime mudaria ao conhecer a escrava Rumaiquia (E'etemad al-Rumaikiyya), que, segundo a lenda, o encantou ao terminar um verso que Abenamar não tinha sido capaz de completar. Imediatamente, adquiriu a bela escrava ao seu senhor e, pouco tempo depois, casou com ela, a única mulher legítima do seu harém, algo que afetou a sua relação com Abenamar. A influência de Abenamar e Rumaiquia na vida do filho preocupou bastante Almutadide, que acabou por forçar Abenamar a fugir do reino. Já Rumaiquia foi aceite depois de ser chamada a Sevilha e de aparecer perante o rei com o seu neto Abde.

Em 1069, por morte do seu pai, Abu Alcácime sobe ao trono, adotando o nome "Almutâmide", e uma das primeiras coisas que fez foi nomear Abenamar governador de Silves, designando-o por morte de Ibn Zaidune, ministro de seu pai, vizir do reino. Na década seguinte, Almutâmide viu morrer o seu filho mais velho, Abde, governador de Córdova sendo a cidade incorporada na coroa de Sevilha em 1070. Foi nesta cidade que Abde acabaria por morrer na batalha contra os exércitos de Almamude de Toledo. No início da década de 1080, com o aumento do território cristão, o Al Andalus entrou em declínio, em grande parte devido à intensificação das pressões existentes sobre as Taifas e a exigência de tributos cada vez mais elevados por Afonso VI de Leão. Em 1082, Almutâmide terá tentado pagar a Afonso VI em moeda falsa, tendo crucificado o seu enviado, o judeu Ibn Salibe, quando este protestou. Por vingança, Afonso VI invadiu Sevilha. A situação agravou-se quando Almutâmide foi traído por Abenamar, que, ao conquistar Múrcia, cortou relações com o rei de Sevilha e tentou tornar-se autónomo. A sua posição tornou-se, porém, insustentável, tendo sido aprisionado em Sevilha e morto por ordem do próprio Almutâmide.

Com a conquista de Toledo por Afonso VI em 1085, os reis muçulmanos pediram apoio aos Almorávidas do norte de África tendo em vista das Taifas ameaçadas pela reconquista cristã. O emir dos Almorávidas, Iúçufe Ibn Taxufine viajou com as suas tropas para Al Andalus, ajudando Almutâmide e os outros reis muçulmanos a derrotar os cristãos em 1086 na Batalha de Zalaca. Taxufine voltou ao seu reino posteriormente. Os reinos muçulmanos viram no apoio de Taxufine uma oportunidade para se libertarem da pressão cristã e voltaram a pedir a sua ajuda para a tomada de Aledo, dois anos depois. No entanto, a operação militar não foi bem sucedida, e o exército de Afonso VI venceu, consolidando a sua posição, sobretudo considerando a divisão existente entre os reinos taifas. Finalmente, em 1090, Taxufine voltou a Al Andalus, desta vez não se aliando com os reis das taifas, mas tentando conquistá-los, beneficiando da sua fragmentação. Almutâmide demorou até se aperceber do que estava em causa, tendo inclusive felicitado Taxufine após a sua conquista da Taifa de Granada. Contudo, em 1091, o emir Almorávida chegou a Sevilha. Almutâmide ainda terá pedido apoio a Afonso VI, mas em vão, por ter sido derrotado e feito prisioneiro e desterrado para Agmate perto de Marraquexe, onde passaria os últimos quatro anos da sua vida aprisionado e dedicado à atividade poética, morrendo em 1095.

A poesia de Almutâmide integra-se na poesia árabe, no estilo clássico da qasîda, e revela um perfeito domínio do idioma e de utilização de todas as suas potencialidades. Filho e neto de poetas, educado numa corte de intelectuais e de literatos, provavelmente do grande Ibn Zaîdun, o então jovem príncipe encontra cedo uma voz própria. A linguagem que usa é simples e direta, com a expressão exata que se adequa à expressão dos sentimentos, afastando-se do mero jogo formal ou retórico da poesia. Pelo seu tom confessional e autêntico, os seus poemas constituem um espelho da sua própria vida e, se a sensualidade e o amor são temas tão fortes nas diversas fases da sua vida, no entanto, no final quase desaparece, valorizando uma dimensão mais espiritualizada e contemplativa da vida, em que a poesia é mais elegíaca. No belo poema "Evocação de Silves", compara a beleza de uma donzela com a curva de uma pulseira e descreve a alegria e a melancolia da sua existência. Adalberto Alves publicou na Assírio e Alvim “Al Mu’tamid Poeta do Destino”, onde se revela uma personalidade epicurista, multifacetada e rica, que alia o prazer da vida e uma sensibilidade muito fina, em que o destino marca uma complementaridade entre o prazer e a vontade. Oiçamo-lo: “Solta a alegria! Que fique desatada! Esquece a ânsia que rói o coração. Tanta doença foi assim curada! A vida é uma presa, vai-te a ela! Pois é bem curta a sua duração”.

A Rota Almutâmide é um itinerário cultural e turístico que liga Lisboa a Granada, passando por Silves e Tavira e por terras do al-Andalus, destacando o legado comum dos períodos muçulmanos em Portugal e Espanha, com ênfase para a herança cultural, monumental e para a figura do rei poeta Almutâmide. A rota é estruturada em dois ramos e é um projeto para promover o turismo e a cultura através de uma narrativa partilhada sobre o património cultural.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

COMO ABRIR HORIZONTES?

  


A Exposição “Arte Britânica – Ponto de Fuga” a decorrer na Fundação Gulbenkian no âmbito do Centro de Arte Moderna (CAM) constitui um acontecimento, não apenas pela qualidade das obras expostas, mas também pelo sinal que dão, de um diálogo vivo no domínio da cultura e das artes com artistas de origens diversas que se encontraram no pós-guerra, que lançaram caminhos novos e muito fecundos, após os momentos dramáticos de angústia e destruição da “Blitz”. No caso português, a abertura de horizontes foi fundamental, num clima fechado, graças às bolsas de estudo e aos incentivos atribuídos pela Fundação Gulbenkian a alguns jovens que puderam ver as suas carreiras enriquecidas, mas sobretudo que puderam frequentar as melhores escolas e trabalhar com os melhores artistas do seu tempo.

O investimento na cultura é verdadeiramente reprodutivo quando se traduz na mobilidade internacional, no intercâmbio e na partilha de experiências. Isto aplica-se aos diversos domínios do conhecimento, envolvendo a educação, a ciência e a cultura e a Fundação Gulbenkian compreendeu-o desde sempre e por isso constituiu-se numa candeia que soube sempre ir à frente. No caso desta mostra, possível graças ao conhecimento e à sensibilidade de Ana Vasconcelos, Rita Lougares e Sarah Mac Dougall, e à encenação de Mariano Pissarra, podemos encontrar vários motivos de ponderação. Antes do mais, o encontro de dois conjuntos de grande qualidade que se completam – o do CAM e o da coleção Berardo; por outro lado, uma apreciável diversidade de perspetivas que permitem entender várias correntes relevantes da arte contemporânea. Atendo-nos aos casos de Paula Rego, Menez e Bartolomeu Cid dos Santos, nas suas diferenças, fácil é de perceber uma influência biunívoca entre o contributo pessoal de cada um e o resultado do mergulho num meio aberto e cosmopolita, que ganha claramente com a originalidade do seu contributo. E refiram-se ainda os casos de Eduardo Batarda, Fernando Calhau, Graça Pereira Coutinho, João Penalva e Rui Sanches. Perante obras como “Renaissance Head” de David Hockney ou “Oedipus and the Sphinx after Ingres” de Francis Bacon, a título de exemplo, compreendemos como a cultura segue caminhos múltiplos, alimentando-se desde os temas clássicos às tendências populares. O mesmo se diga da presença de Bridget Riley, Antony Gormley, Rachel Whiteread, Frank Auerbach, ou David Bomberg.  

Num tempo difícil como o atual, somos assaltados pelos fantasmas perturbadores da intolerância, do fanatismo e da idolatria, sendo importante que possamos evocar os bons exemplos de inconformismo e de audácia criadora, como fatores de emancipação. No percurso da exposição da Gulbenkian, sentimos a força de um apelo à criação e à aprendizagem. De facto, é muito importante continuar a assumir o objetivo de abrir horizontes e de fazer da cooperação cultural um fator decisivo de desenvolvimento humano, fiel aos objetivos centrados na educação, na arte, na ciência e na filantropia. A Arte e a Cultura constituem com a Ciência e a Educação insubstituíveis catalisadores de progresso, de respeito mútuo e de reconhecimento da liberdade e da cidadania baseadas na dignidade humana. Numa conjuntura de anti-cultura, de censura e de circuitos fechados, como a de hoje, como correr os riscos necessários para abrir horizontes?


GOM 

A VIDA DOS LIVROS

  

De 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2025


As Raízes Culturais de Portugal e da Europa serão tema do próximo curso do CNC. Os Roteiros Culturais estarão na ordem do dia e nada melhor do que começarmos por Ulisses e a sua viagem mítica de Troia até Ítaca…


(Ilustração de Jaime Martins Barata)


QUE ITINERÁRIOS CULTURAIS?
Quando Claudio Magris escreveu “Danúbio” deu-nos o paradigma dos Itinerários Culturais que constituem base para a compreensão das raízes e da diversidade do património cultural material e imaterial – monumentos, geografia, tradições, costumes e criação contemporânea. Num tempo de mal-estar e de grande incerteza, torna-se necessário regressar ao conhecimento da História, única forma de prevenir a repetição de erros antigos, tantas vezes devidos à pura ignorância e à tentação de reconstruir o mundo à luz de uma visão unilateral e fechada, tributária de uma conceção avessa ao diálogo entre culturas e à ideia de civilização. O mundo contemporâneo defronta-se com as noções de globalização e de complexidade, das quais importa tirar conclusões orientadas pela demarcação quer do absolutismo quer do relativismo nos valores éticos. Apenas o conceito de pluralismo, aliado ao respeito mútuo, à partilha de responsabilidades e a um verdadeiro intercâmbio de entendimentos diferentes quanto às raízes culturais, permitirá superarmos aquilo que Hermann Broch designou como “sonambulismo” e vazio de valores. Longe da tentação da procura de um lugar onde ninguém se possa encontrar, sob a ilusão de que assim se respeitariam as diferenças, importa garantir um consenso de sobreposição democrático que permita a todos sentirem-se em casa, enriquecendo-se mutuamente. Daí a importância da ideia de roteiro cultural, no qual se possa assegurar o encontro das diferenças e a complementaridade entre raízes múltiplas.


PORQUÊ ULISSES?
Lembremo-nos do paradigma de Ulisses e da sua viagem de Troia para Ítaca. Aí temos, num registo imaginário, o encontro das diferenças, e uma aprendizagem do inesperado pela experiência. E recorde-se que o projeto de Claudio Magris de seguir o caminho do Danúbio das nascentes até à foz, começou com um desafio centrado no projeto “Arquitetura da Viagem. Os Hotéis: História e Utopia”. Sim, História e Utopia encontram-se na ideia de viagem, uma vez que os acontecimentos históricos ocorrem sem repetição e dependem das circunstâncias concretas e do modo como os viajantes respondem aos diferentes desafios, enquanto a utopia leva à consideração de um horizonte de vários possíveis, que a cada passo nos confronta. Os dois polos coexistem e confrontam-se e a ideia de que o acontecimento é nosso mestre interior resulta dessa ligação. Que era o “Grand Tour”, praticado por várias gerações das elites europeias, príncipes e mercadores, intelectuais e aventureiros, senão a imersão total nesse confronto da aprendizagem entre a realidade e o sonho? Ruskin encontrou esse paradoxo entre realidade e imaginação na cidade de Veneza, já que a República Sereníssima simboliza essa misteriosa relação entre a cidade e a sua sombra – “um fantasma na areia do mar, tão frágil, tão silenciosa, tão despojada de tudo exceto da sua beleza, que por vezes, ao contemplarmos o seu lânguido reflexo na laguna, nos perguntamos quase como se fosse uma miragem, qual a cidade, qual a sua sombra”.


Nos percursos culturais, importa revelar as referências históricas, mitos, lugares e acontecimentos, origens e raízes. Trata-se de peregrinar ao encontro da memória, ilustrando a aventura com o que é digno de interesse e atenção. Montaigne, Stendhal, Goethe, Chateaubriand, Thoreau, Júlio Verne, George Sand, Magris, Canetti, André Gide, Bruce Chatwin ensinaram-nos a construir uma síntese entre história, geografia, literatura, filosofia, política, economia e artes. As Viagens Extraordinárias de Verne envolvem, por isso, a realidade e o fantástico, os mundos conhecidos e desconhecidos. Em A Volta ao Mundo em Oitenta Dias faz-se a divulgação do novo sistema horário universal e da linha internacional de mudança de data, que salvará a aposta de Phileas Fogg. Em Da Terra à Lua antecipa-se o que apenas em 1969 se concretizará. E com Miguel Strogoff, o correio do czar revela-nos todo o mistério do maior império de sempre. 


A VIAGEM MODELAR
Comecemos por Ulisses, o grande viajante mítico, perdido entre a saudade de Ítaca e o perigo das viagens. Trata-se da história do “herói de mil estratagemas que tanto vagueou, depois de ter destruído a cidadela sagrada de Troia, que viu cidades e conheceu costumes de muitos homens e que no mar padeceu mil tormentos, quando lutava pela vida e pelo regresso dos seus companheiros”. Ulisses levará dez anos a chegar à sua terra natal, depois da guerra de Troia, que durara outra década. Encontramo-lo cativo da bela ninfa Calipso, que o libertará, ao fim de sete anos, pela intervenção de Atena. Depois de novo naufrágio, o herói alcança a praia de Esquéria, lar dos Feaces, hábeis construtores de navios, sendo recebido por Nausícaa, que lhe dá hospitalidade e o ajuda, em contrapartida do relato das suas aventuras desde a partida de Troia. Aí recorda a aventurosa estada na Ciclopia, onde se vira confrontado pelos Ciclopes e pelo ameaçador Polifemo, contra quem teve de usar a proverbial astúcia, cegando o único olho que o monstro tinha, o que causaria a ira de Poseidon. A viagem envolveu ainda o encontro com Éolo e Circe, as previsões de Tirésias, e a ida à última fronteira dos Oceanos, ao limiar dos infernos e ao reino dos mortos. Nas tempestades entre Cila e Caríbdis perde alguns dos seus companheiros e, ao passar pela ilha das sereias protege-se, evitando deixar-se seduzir pelos cantos encantatórios, conseguindo regressar à luz e à alegria, não sem que sofresse ainda as vicissitudes na ilha do Sol, antes de regressar a Ítaca, para junto de Penélope e seu filho Telémaco, vencendo os pretendentes oportunistas que procuravam suceder-lhe no poder e influência. Temos aqui o exemplo supremo de uma viagem iniciática, que influenciou obras tão diferentes como a Eneida de Virgílio, Os Lusíadas de Camões ou Ulisses de James Joyce.


Referindo os itinerários que se tornaram modelos, importa seguir o Livro de Marco Polo, que relata a experiência do veneziano na Rota da Seda, que passa por Samarcanda e chega a Pequim e vai até ao contorno da Ásia, da Índia e do Golfo Pérsico, até aos lugares do domínio futuro do Império de Alexandre o Grande no Levante Mediterrânico. E eis como chegamos ao itinerário do nosso Infante D. Pedro das Sete Partidas, Duque de Coimbra e de Treviso, no Veneto, o mesmo que trouxe para a corte portuguesa o Livro das Maravilhas de Marco Polo. E assim o conhecimento do Império Romano-Germânico leva-nos à redescoberta do Mediterrâneo, lembrando a viagem Ibn Batuta, o extraordinário visitante que foi até ao fim do mundo. E interrogamo-nos sobre o encontro dos portugueses com Génova, Veneza e Roma, na génese do Plano da Índia do Príncipe Perfeito e na demanda do Preste João, encontrando-nos com Pero da Covilhã e Afonso de Paiva no Cairo até ao mar Arábico, culminando na Etiópia. E como não evocar os grandes cientistas portugueses e o seu decisivo contributo para a humanidade – Pedro Nunes, Garcia de Horta e D. João de Castro, com a demonstração de como o saber de experiências feito nos deu o conhecimento do mundo?


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CULTURA E LIBERDADE

  
Sophia de Mello Breyner Andresen © António Cotrim /Lusa 2007 


Dedico a crónica de hoje à memória de um amigo que nos deixou inesperadamente, quando tínhamos vários compromissos a realizar, graças ao seu entusiasmo e à sua inteligência. João Diogo Nunes Barata foi um grande embaixador de Portugal, com quem trabalhei de perto no gabinete de Mário Soares como Presidente da República, tendo desde então continuado uma excelente cumplicidade cívica e cultural, que culminou agora no Grémio Literário. Numa das muitas conversas que tivemos recordámos a extraordinária personalidade de Sophia de Mello Breyner Andresen, que bem conhecemos, amiga muito próxima de Mário Soares e Maria Barroso, espírito livre, que na sua aparente distração era a mais arguta analista da humanidade e da vida, que tanto partilhava as agruras domésticas como o diálogo com o melhor da humanidade. Quando lemos, por exemplo, os seus discursos na Assembleia Constituinte, sentimos um frémito, uma vez que as suas palavras ecoam sem uma ruga com marcas de eternidade. Lidas hoje, nada temos a acrescentar, e contrastam quer com as mil palavras de circunstância que o vento leva, quer com a vulgaridade que nos invade da politiquice de todos os dias. E João Diogo recordava estas lapidares palavras proferidas no hemiciclo de S. Bento: “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exatamente porque é capaz de criar a cultura” (Sessão de 2.9.1975). Afinal, a luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas pela liberdade do povo – liberdade de expressão e de cultura. “Queremos uma relação limpa e saudável entre a cultura e a política. (…) Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anti cultura e toda a anti cultura é reacionária”. Premonitoriamente, contra todos os dirigismos e totalitarismos, a poeta deixava claro um sentido essencial para a interpretação da nova Constituição – sendo a liberdade a pedra angular, contra dogmatismos indiscutíveis e maximalismos irreais. Por isso, importava atacar o “poder totalitário”, onde quer que esteja, que persegue o intelectual e manipula a cultura. “Nenhuma forma de cultura se pode atribuir o direito de destruir ou menorizar outras formas de cultura”. E se falava de cultura, também importava referir a educação como objetivo essencial ligado à cultura. “Ensinar é pôr a cultura em comum e não apenas a cultura já catalogada e arrumada do passado, mas também a cultura em estado de criação e de busca”. Que melhor forma poderia encontrar-se para falar da Educação? E que deve ser a liberdade de aprender e ensinar senão a procura de “novas formas de ensino que possam procurar, ensaiar e inventar”? Tudo, em nome de um “ensino livre onde nenhuma iniciativa seja desperdiçada”, sendo a escola o lugar de liberdade e de justiça, de participação e de solidariedade. E João Diogo lembrava, quando era embaixador em Moscovo, o nosso memorável encontro com Mário Soares, quando nos fotografámos simbolicamente com o retrato de Jaime Batalha Reis, o embaixador português aquando da revolução de 1917, em homenagem ao espírito emancipador da geração de 1870 e à liberdade. Há quanto tempo…


GOM