Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
A Exposição “Arte Britânica – Ponto de Fuga” a decorrer na Fundação Gulbenkian no âmbito do Centro de Arte Moderna (CAM) constitui um acontecimento, não apenas pela qualidade das obras expostas, mas também pelo sinal que dão, de um diálogo vivo no domínio da cultura e das artes com artistas de origens diversas que se encontraram no pós-guerra, que lançaram caminhos novos e muito fecundos, após os momentos dramáticos de angústia e destruição da “Blitz”. No caso português, a abertura de horizontes foi fundamental, num clima fechado, graças às bolsas de estudo e aos incentivos atribuídos pela Fundação Gulbenkian a alguns jovens que puderam ver as suas carreiras enriquecidas, mas sobretudo que puderam frequentar as melhores escolas e trabalhar com os melhores artistas do seu tempo.
O investimento na cultura é verdadeiramente reprodutivo quando se traduz na mobilidade internacional, no intercâmbio e na partilha de experiências. Isto aplica-se aos diversos domínios do conhecimento, envolvendo a educação, a ciência e a cultura e a Fundação Gulbenkian compreendeu-o desde sempre e por isso constituiu-se numa candeia que soube sempre ir à frente. No caso desta mostra, possível graças ao conhecimento e à sensibilidade de Ana Vasconcelos, Rita Lougares e Sarah Mac Dougall, e à encenação de Mariano Pissarra, podemos encontrar vários motivos de ponderação. Antes do mais, o encontro de dois conjuntos de grande qualidade que se completam – o do CAM e o da coleção Berardo; por outro lado, uma apreciável diversidade de perspetivas que permitem entender várias correntes relevantes da arte contemporânea. Atendo-nos aos casos de Paula Rego, Menez e Bartolomeu Cid dos Santos, nas suas diferenças, fácil é de perceber uma influência biunívoca entre o contributo pessoal de cada um e o resultado do mergulho num meio aberto e cosmopolita, que ganha claramente com a originalidade do seu contributo. E refiram-se ainda os casos de Eduardo Batarda, Fernando Calhau, Graça Pereira Coutinho, João Penalva e Rui Sanches. Perante obras como “Renaissance Head” de David Hockney ou “Oedipus and the Sphinx after Ingres” de Francis Bacon, a título de exemplo, compreendemos como a cultura segue caminhos múltiplos, alimentando-se desde os temas clássicos às tendências populares. O mesmo se diga da presença de Bridget Riley, Antony Gormley, Rachel Whiteread, Frank Auerbach, ou David Bomberg.
Num tempo difícil como o atual, somos assaltados pelos fantasmas perturbadores da intolerância, do fanatismo e da idolatria, sendo importante que possamos evocar os bons exemplos de inconformismo e de audácia criadora, como fatores de emancipação. No percurso da exposição da Gulbenkian, sentimos a força de um apelo à criação e à aprendizagem. De facto, é muito importante continuar a assumir o objetivo de abrir horizontes e de fazer da cooperação cultural um fator decisivo de desenvolvimento humano, fiel aos objetivos centrados na educação, na arte, na ciência e na filantropia. A Arte e a Cultura constituem com a Ciência e a Educação insubstituíveis catalisadores de progresso, de respeito mútuo e de reconhecimento da liberdade e da cidadania baseadas na dignidade humana. Numa conjuntura de anti-cultura, de censura e de circuitos fechados, como a de hoje, como correr os riscos necessários para abrir horizontes?
As Raízes Culturais de Portugal e da Europa serão tema do próximo curso do CNC. Os Roteiros Culturais estarão na ordem do dia e nada melhor do que começarmos por Ulisses e a sua viagem mítica de Troia até Ítaca…
(Ilustração de Jaime Martins Barata)
QUE ITINERÁRIOS CULTURAIS? Quando Claudio Magris escreveu “Danúbio” deu-nos o paradigma dos Itinerários Culturais que constituem base para a compreensão das raízes e da diversidade do património cultural material e imaterial – monumentos, geografia, tradições, costumes e criação contemporânea. Num tempo de mal-estar e de grande incerteza, torna-se necessário regressar ao conhecimento da História, única forma de prevenir a repetição de erros antigos, tantas vezes devidos à pura ignorância e à tentação de reconstruir o mundo à luz de uma visão unilateral e fechada, tributária de uma conceção avessa ao diálogo entre culturas e à ideia de civilização. O mundo contemporâneo defronta-se com as noções de globalização e de complexidade, das quais importa tirar conclusões orientadas pela demarcação quer do absolutismo quer do relativismo nos valores éticos. Apenas o conceito de pluralismo, aliado ao respeito mútuo, à partilha de responsabilidades e a um verdadeiro intercâmbio de entendimentos diferentes quanto às raízes culturais, permitirá superarmos aquilo que Hermann Broch designou como “sonambulismo” e vazio de valores. Longe da tentação da procura de um lugar onde ninguém se possa encontrar, sob a ilusão de que assim se respeitariam as diferenças, importa garantir um consenso de sobreposição democrático que permita a todos sentirem-se em casa, enriquecendo-se mutuamente. Daí a importância da ideia de roteiro cultural, no qual se possa assegurar o encontro das diferenças e a complementaridade entre raízes múltiplas.
PORQUÊ ULISSES? Lembremo-nos do paradigma de Ulisses e da sua viagem de Troia para Ítaca. Aí temos, num registo imaginário, o encontro das diferenças, e uma aprendizagem do inesperado pela experiência. E recorde-se que o projeto de Claudio Magris de seguir o caminho do Danúbio das nascentes até à foz, começou com um desafio centrado no projeto “Arquitetura da Viagem. Os Hotéis: História e Utopia”. Sim, História e Utopia encontram-se na ideia de viagem, uma vez que os acontecimentos históricos ocorrem sem repetição e dependem das circunstâncias concretas e do modo como os viajantes respondem aos diferentes desafios, enquanto a utopia leva à consideração de um horizonte de vários possíveis, que a cada passo nos confronta. Os dois polos coexistem e confrontam-se e a ideia de que o acontecimento é nosso mestre interior resulta dessa ligação. Que era o “Grand Tour”, praticado por várias gerações das elites europeias, príncipes e mercadores, intelectuais e aventureiros, senão a imersão total nesse confronto da aprendizagem entre a realidade e o sonho? Ruskin encontrou esse paradoxo entre realidade e imaginação na cidade de Veneza, já que a República Sereníssima simboliza essa misteriosa relação entre a cidade e a sua sombra – “um fantasma na areia do mar, tão frágil, tão silenciosa, tão despojada de tudo exceto da sua beleza, que por vezes, ao contemplarmos o seu lânguido reflexo na laguna, nos perguntamos quase como se fosse uma miragem, qual a cidade, qual a sua sombra”.
Nos percursos culturais, importa revelar as referências históricas, mitos, lugares e acontecimentos, origens e raízes. Trata-se de peregrinar ao encontro da memória, ilustrando a aventura com o que é digno de interesse e atenção. Montaigne, Stendhal, Goethe, Chateaubriand, Thoreau, Júlio Verne, George Sand, Magris, Canetti, André Gide, Bruce Chatwin ensinaram-nos a construir uma síntese entre história, geografia, literatura, filosofia, política, economia e artes. As Viagens Extraordinárias de Verne envolvem, por isso, a realidade e o fantástico, os mundos conhecidos e desconhecidos. Em A Volta ao Mundo em Oitenta Dias faz-se a divulgação do novo sistema horário universal e da linha internacional de mudança de data, que salvará a aposta de Phileas Fogg. Em Da Terra à Lua antecipa-se o que apenas em 1969 se concretizará. E com Miguel Strogoff, o correio do czar revela-nos todo o mistério do maior império de sempre.
A VIAGEM MODELAR Comecemos por Ulisses, o grande viajante mítico, perdido entre a saudade de Ítaca e o perigo das viagens. Trata-se da história do “herói de mil estratagemas que tanto vagueou, depois de ter destruído a cidadela sagrada de Troia, que viu cidades e conheceu costumes de muitos homens e que no mar padeceu mil tormentos, quando lutava pela vida e pelo regresso dos seus companheiros”. Ulisses levará dez anos a chegar à sua terra natal, depois da guerra de Troia, que durara outra década. Encontramo-lo cativo da bela ninfa Calipso, que o libertará, ao fim de sete anos, pela intervenção de Atena. Depois de novo naufrágio, o herói alcança a praia de Esquéria, lar dos Feaces, hábeis construtores de navios, sendo recebido por Nausícaa, que lhe dá hospitalidade e o ajuda, em contrapartida do relato das suas aventuras desde a partida de Troia. Aí recorda a aventurosa estada na Ciclopia, onde se vira confrontado pelos Ciclopes e pelo ameaçador Polifemo, contra quem teve de usar a proverbial astúcia, cegando o único olho que o monstro tinha, o que causaria a ira de Poseidon. A viagem envolveu ainda o encontro com Éolo e Circe, as previsões de Tirésias, e a ida à última fronteira dos Oceanos, ao limiar dos infernos e ao reino dos mortos. Nas tempestades entre Cila e Caríbdis perde alguns dos seus companheiros e, ao passar pela ilha das sereias protege-se, evitando deixar-se seduzir pelos cantos encantatórios, conseguindo regressar à luz e à alegria, não sem que sofresse ainda as vicissitudes na ilha do Sol, antes de regressar a Ítaca, para junto de Penélope e seu filho Telémaco, vencendo os pretendentes oportunistas que procuravam suceder-lhe no poder e influência. Temos aqui o exemplo supremo de uma viagem iniciática, que influenciou obras tão diferentes como a Eneida de Virgílio, Os Lusíadas de Camões ou Ulisses de James Joyce.
Referindo os itinerários que se tornaram modelos, importa seguir o Livro de Marco Polo, que relata a experiência do veneziano na Rota da Seda, que passa por Samarcanda e chega a Pequim e vai até ao contorno da Ásia, da Índia e do Golfo Pérsico, até aos lugares do domínio futuro do Império de Alexandre o Grande no Levante Mediterrânico. E eis como chegamos ao itinerário do nosso Infante D. Pedro das Sete Partidas, Duque de Coimbra e de Treviso, no Veneto, o mesmo que trouxe para a corte portuguesa o Livro das Maravilhas de Marco Polo. E assim o conhecimento do Império Romano-Germânico leva-nos à redescoberta do Mediterrâneo, lembrando a viagem Ibn Batuta, o extraordinário visitante que foi até ao fim do mundo. E interrogamo-nos sobre o encontro dos portugueses com Génova, Veneza e Roma, na génese do Plano da Índia do Príncipe Perfeito e na demanda do Preste João, encontrando-nos com Pero da Covilhã e Afonso de Paiva no Cairo até ao mar Arábico, culminando na Etiópia. E como não evocar os grandes cientistas portugueses e o seu decisivo contributo para a humanidade – Pedro Nunes, Garcia de Horta e D. João de Castro, com a demonstração de como o saber de experiências feito nos deu o conhecimento do mundo?
Dedico a crónica de hoje à memória de um amigo que nos deixou inesperadamente, quando tínhamos vários compromissos a realizar, graças ao seu entusiasmo e à sua inteligência. João Diogo Nunes Barata foi um grande embaixador de Portugal, com quem trabalhei de perto no gabinete de Mário Soares como Presidente da República, tendo desde então continuado uma excelente cumplicidade cívica e cultural, que culminou agora no Grémio Literário. Numa das muitas conversas que tivemos recordámos a extraordinária personalidade de Sophia de Mello Breyner Andresen, que bem conhecemos, amiga muito próxima de Mário Soares e Maria Barroso, espírito livre, que na sua aparente distração era a mais arguta analista da humanidade e da vida, que tanto partilhava as agruras domésticas como o diálogo com o melhor da humanidade. Quando lemos, por exemplo, os seus discursos na Assembleia Constituinte, sentimos um frémito, uma vez que as suas palavras ecoam sem uma ruga com marcas de eternidade. Lidas hoje, nada temos a acrescentar, e contrastam quer com as mil palavras de circunstância que o vento leva, quer com a vulgaridade que nos invade da politiquice de todos os dias. E João Diogo recordava estas lapidares palavras proferidas no hemiciclo de S. Bento: “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exatamente porque é capaz de criar a cultura” (Sessão de 2.9.1975). Afinal, a luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas pela liberdade do povo – liberdade de expressão e de cultura. “Queremos uma relação limpa e saudável entre a cultura e a política. (…) Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anti cultura e toda a anti cultura é reacionária”. Premonitoriamente, contra todos os dirigismos e totalitarismos, a poeta deixava claro um sentido essencial para a interpretação da nova Constituição – sendo a liberdade a pedra angular, contra dogmatismos indiscutíveis e maximalismos irreais. Por isso, importava atacar o “poder totalitário”, onde quer que esteja, que persegue o intelectual e manipula a cultura. “Nenhuma forma de cultura se pode atribuir o direito de destruir ou menorizar outras formas de cultura”. E se falava de cultura, também importava referir a educação como objetivo essencial ligado à cultura. “Ensinar é pôr a cultura em comum e não apenas a cultura já catalogada e arrumada do passado, mas também a cultura em estado de criação e de busca”. Que melhor forma poderia encontrar-se para falar da Educação? E que deve ser a liberdade de aprender e ensinar senão a procura de “novas formas de ensino que possam procurar, ensaiar e inventar”? Tudo, em nome de um “ensino livre onde nenhuma iniciativa seja desperdiçada”, sendo a escola o lugar de liberdade e de justiça, de participação e de solidariedade. E João Diogo lembrava, quando era embaixador em Moscovo, o nosso memorável encontro com Mário Soares, quando nos fotografámos simbolicamente com o retrato de Jaime Batalha Reis, o embaixador português aquando da revolução de 1917, em homenagem ao espírito emancipador da geração de 1870 e à liberdade. Há quanto tempo…
XXX. Recordar Camões no Quinto Centenário do seu Nascimento
Camões é um todo que, se soubermos lê-lo, nos enche de ventura, não sendo por acaso símbolo pátrio. A sua obra multifacetada está na encruzilhada das grandes componentes culturais das nossas letras. A lírica é inultrapassável, na tradição trovadoresca, a épica ombreia com a melhor tradição clássica, e todos os géneros que o autor pratica são seguramente cultivados, sempre com mestria. E até o fino humor é usado com a melhor ironia, como no delicioso episódio de Fernão Veloso… Não admira o verdadeiro culto que lhe votava Jorge de Sena, sempre com tão exigentes critérios de julgamento. Vítor Aguiar e Silva e Vasco Graça Moura demonstram a suprema valia, a cada passo. Infelizmente a leitura de Camões não tem sido servida pela melhor pedagogia. Seja na lírica, seja na épica dá sempre para entrar em Camões pela porta grande. Basta ler com olhos de ver e sem tentações formalistas. Com sólida formação e conhecimento da vida e do seu tempo, embebeu-se não só da existência comum, mas também da cultura greco-latina como nenhum dos nossos escritores e, segundo Rodrigues Lapa, teve “a felicidade de viver e ser criado num tempo excecional, em que as disciplinas humanísticas, trazidas até cá por grandes professores, florescia entre nós intensamente”. E oiçamos sempre: “Busque Amor novas artes, novo engenho, / para matar-me, e novas esquivanças; / que não pode tirar-me as esperanças, / que mal me tirará o que eu não tenho…”.
Luís de Camões em “Os Lusíadas” representa a maturidade poética da língua portuguesa. Toda a obra do grande épico constitui oportunidade para lidarmos com uma riquíssima convergência entre os maravilhosos pagão e cristão, servidos pelo domínio exemplar da palavra e da imagem. Deveremos, por isso, ler Camões, ao menos nos seus momentos mais marcantes. O poema épico divide-se em 10 cantos, compostos em oitava rima, totalizando 8.816 versos, na chamada medida nova, predominando os decassílabos heroicos, com a 6ª e a 10ª sílabas tónicas. “Os Lusíadas” têm cinco partes, segundo a tradição clássica: Proposição, Invocação das Tágides, Dedicatória ao Rei D. Sebastião, Narração e Epílogo. A narração compreende três ações: a viagem de Vasco da Gama, a narrativa da história de Portugal e as intervenções dos deuses do Olimpo. Nos Cantos I e II, narra-se a introdução e o Concílio dos Deuses, para deliberar sobre o destino dos novos Argonautas. Baco é crítico dos portugueses, Vénus e Marte, tomam a sua defesa, com a concordância de Júpiter. Vasco da Gama está no Índico, próximo de Moçambique. Baco, inconformado, instiga o governador de Moçambique contra os portugueses e põe a bordo um falso piloto, mas graças a Vénus, às Nereidas, a Mercúrio e à coragem de Gama, os portugueses chegam a Melinde. No Canto III, começa o relato ao rei Melinde da história de Portugal, “onde a terra se acaba e o mar começa” e das origens, de Viriato, da Reconquista, da Primeira Dinastia, da Casa de Borgonha, de Ourique até à morte de Inês de Castro. No Canto IV, prossegue a narrativa, fala-se da revolução de 1383, de Nuno Álvares Pereira, de Aljubarrota, do Mestre de Avis, de Ceuta. E começam os episódios do início da viagem. D. Manuel sonha com os rios Indo e Ganges, a profetizarem sucessos e perigos no Oriente, e pede a Gama que monte a esquadra para concretizar a visão, mas na partida, o velho Restelo previne contra a “glória de mandar e a vã cobiça”. No Canto V, Gama fala do Cruzeiro do Sul, do fogo-de-santelmo, até ao citado relato picaresco do Fernão Veloso. No Cabo das Tormentas, o Adamastor simboliza a superação do medo. No Canto VI, Baco desce ao palácio de Neptuno e incita os deuses marinhos contra Vasco da Gama, mas Vénus intervém. Veloso entretém os companheiros com a narrativa cavalheiresca dos Doze de Inglaterra. E os navegadores avistam Calicute. Nos Cantos VII e VIII, o samorim determina que o governador receba Gama, que o visita e oferece a amizade dos portugueses. Paulo da Gama esclarece o governador acerca do significado das figuras desenhadas nas bandeiras e conta os feitos dos heróis da pátria. Mas os muçulmanos intrigam, Gama é preso e tem de negociar a liberdade, em troca de mercadoria. Nos Cantos IX e X, depois de diversos incidentes, o samorim ordena que a armada possa levantar ferro e iniciar o regresso. E temos o longo episódio da Ilha dos Amores, já que Vénus decide premiar os navegadores numa ilha paradisíaca. O epílogo do poema contem as lamentações, como que um desabafo de Camões por todas as incompreensões sofridas. Mas fica-nos a reflexão sobre a exigência de porfia e de trabalho aturado para se alcançarem os sucessos necessários. Não por acaso, Camões inicia o poema épico citando o início de “A Eneida”: “Arma virumque cano, Trojae qui primus ab oris…”. E como em Dante, é sob a invocação de Virgílio que um tema tão sublime é tratado…
XXIX. A busca de uma identidade: que cultura portuguesa? (2)
Como disse Sophia de Mello Breyner: «Me dói a lua me soluça o mar / E o exílio se inscreve em pleno tempo» (Livro Sexto, 1962). Como Unamuno bem pressentiu e Eduardo Lourenço interpretou, com rigor e perfeição, somos feitos de lirismo e de história trágico-marítima – sem esquecer o picaresco, que salienta António Tabucchi, no escárnio e maldizer. Encontramos desde a poesia trovadoresca à rica poesia contemporânea, passando por Camões, Sá de Miranda, Bocage, Garrett, Herculano, Antero de Quental, João de Deus, Cesário, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa, Almada Negreiros e todos mais… Portugal, como palavra, é uma eterna convergência da lembrança e do desejo, do amor e da provação, e a língua portuguesa, espalhada pelo mundo, plena de diferenças, foi-se construindo nessa pluralidade e nessa complementaridade… A língua portuguesa, temperada com mais açúcar ou mais especiarias, é o traço de união e de diferenciação. E se dúvidas houvesse João Guimarães Rosa leva-nos em busca da terceira margem, Baltazar Lopes da Silva introduz-nos nas diferenças e nos segredos dos crioulos, Mia Couto reinventa-nos em permanência, Pepetela, Agualusa, Ondjaki, Germano Almeida põem-nos em contacto com as grandes superfícies de terra e mar, Raduan Nassar interroga e confronta as raízes em «Lavoura Arcaica», Rubem Fonseca usa como matéria-prima o drama quotidiano… Já para Carlos Drummond de Andrade: “Adélia Prado é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo”. Quem a conhece considera-a desconcertante, plena de ironia, ousada, iconoclasta, seríssima no entendimento das coisas essenciais. Nela o comum e o banal encontram-se, a cada passo, com o transcendente.
Eduardo Lourenço é perentório: «Não temos nada que provar. O que tínhamos de provar ao mundo já provámos quando isso era uma novidade e constituía uma ação para a humanidade inteira. Temos sempre este complexo de ser uma pequena nação não tão visível como outras. Mas outras nações também não são visíveis». Não somos melhores ou piores, somos nós mesmos. «Não se sabe assim como é que há quase mil anos este país pequenino, aqui no canto da Europa, é ainda sujeito do seu próprio destino.». A História é uma batalha cultural. «A Europa define-se na sua relação com o que não é Europa. Só sabemos o que é Europa quando estamos fora da Europa. Na Europa temos uma experiência normal. É como a experiência de quem está em casa. Há até uma pluralidade de casas que, mais ou menos, têm afinidades entre elas. Isso é a Europa». Mas há ameaças e perigos, e até indiferença e acomodação. Falta a normalização connosco próprios. Perante tantos sinais de incerteza persiste uma miragem europeia. A Europa fechada definha, por isso, importa tirar lições, procurando caminhos que permitam encontrar a defesa de um núcleo essencial de interesses e valores comuns. Língua de várias culturas, cultura de várias línguas – eis um caleidoscópio incompatível com paternalismos. Prevalecem o pluralismo e a diversidade. Garrett, Antero e Cortesão aspiraram a um patriotismo prospetivo, em que o fundo português se afirma como exigência aberta e plural.
Pedro Mexia tem razão ao afirmar que, “a dignidade vale mais do que a identidade” (Expresso, 10.5.2024). Não que esta não seja importante, mas é a dignidade da pessoa humana que se torna pedra angular de qualquer entendimento identificador, até pela importância da compreensão de que urge distinguir para unir… “É importante que um entendimento acerca do humano seja tão ambicioso quanto judicioso. E que esteja atento às formas de desumanização, as novas e as antigas”.
XXVIII. A busca de uma identidade: que cultura portuguesa? (1)
De que falamos quando referimos a Cultura Portuguesa? De continuidades e de mudanças, de características singulares e de convergências, de identidades e diferenças, de desafios e respostas. Não basta um sobrevoo na cultura geral, que mais não significa do que um contacto superficial com a criação e a arte, esquecida da complexidade, do que avança e progride e do que estagna. António Manuel Machado Pires tem recordado a preocupação que Vitorino Nemésio tinha com os seus discípulos, no sentido de abrir as suas mentes, ligando e relacionando realidades aparentemente distintas: “E por ‘ligar as coisas’ deve entender-se ligar mesmo, não apenas somar conhecimentos: fazer relacionações entre conhecimentos convencionalmente arrumados em cadeiras diferentes, ligar uma romaria a uma feira, esta a um modelo de vida, este à evocação de um almocreve, este a Gil Vicente e por que não, a O Malhadinhas de Aquilino?”. A cultura pressupõe diálogo e confronto, entre quem vê e tenta compreender e quem pretende ver e entender, numa relação sempre complexa entre a vida humana e a natureza que a rodeia. Daí a metáfora da varanda para ver a Cultura, tantas vezes usada pelo próprio Nemésio – “Varanda de Pilatos”. Afinal, refletir sobre a cultura é fazê-la, construí-la, interpretá-la e torná-la viva. Lembre-se o picaresco e o dramático no caleidoscópio de Fernão Mendes Pinto: “não é só uma narração de experiências, percursos de paisagens exóticas ou encontros e desencontros de povos (Ocidente e Oriente), é a ironia da vida, a dor humana, pecado, entusiasmo e castigo, alegrias e lágrimas, voluntarismos e disponibilidades, uma grandiosa saga coletiva de um povo (nem sempre exemplar), mas provando a exemplar lição do tudo e nada da Vida”. Eis por que a ligação da Literatura, da Arte ou da Ciência são pontos de observação de eleição para avistar e compreender a Cultura como panorama, uma vez que temos o testemunho concreto, mais do que a mera ostentação de um saber ou de uma técnica. Assim, não compreenderemos, por exemplo, o século XIX português sem ler Camilo (“raptos, fugas e famílias desgraçadas”), Júlio Dinis (“a conciliação social”), Eça de Queiroz (a ironia como método, devendo ser levada muito a sério), Cesário (a contradição dos sentimentos), João de Deus (a lírica popular) ou Antero (a reflexão culta).
Nemésio e Machado Pires falavam de duas linhas de pensamento marcantes na reflexão sobre a cultura portuguesa, a idealista e a racionalista, representadas por Teixeira de Pascoaes e António Sérgio. Ambas deveriam de ser consideradas “para o balanço de ser português na vida, na cultura e no mundo”. Dando maior importância ora a uma ora a outra, o certo é que os dois polos têm de estar presentes na definição do português e do “ser de Portugal”. A vontade, o sentimento de pertença, “a estruturação da Cultura e a organização do Estado”, caminhando a par, como na análise de António José Saraiva, articulam-se com a construção de um imaginário. A experiência “madre de todas as cousas”, os conflitos entre a sociedade antiga e a sociedade moderna, a compreensão de um culto de sentimentos contraditórios, os mitos da origem, de resistência ou de predestinação, tudo nos permite tentar perceber quem somos, donde vimos e o que nos motiva e desafia. Mas temos de recusar as simplificações e a tentação de levar a História da Cultura para uma mera sucessão de factos ou acontecimentos. Temos de descobrir tendências, de suscitar criticamente diversas leituras, de comparar, de ver de dentro e de fora, de cruzar saberes e campos de pesquisa. Urge contrariar as simplificações, que se tornam caricaturais, não permitindo compreender uma realidade que é multifacetada. Ligue-se a vontade ao fundo céltico, confronte-se a fixação e o transporte, contraponha-se o erudito ao castiço, compreenda-se as diferenças e as complementaridades entre Camões, a custódia de Belém, o galo de Barcelos ou o fado. De facto, nossa cultura tanto é o “Auto da Lusitânia”, de Todo o Mundo e Ninguém, como o “Pranto de Maria Parda”, para só nos atermos a Mestre Gil. Para Machado Pires quando diz que a «Cultura não é um “somatório” heteróclito, indiferenciado, anódino e maçador, mas um caminho coerente para um fim demonstrável no seu todo, um rasgão na neblina de dúvidas e problemas, carreando um considerável conjunto de materiais para “forçar” a prova». O que deve estar em causa é a procura de caminhos explicativos, de linhas de reflexão, de sínteses e de paradoxos, em resposta ao enigma persistente e contraditório de uma sociedade que oscila entre o messianismo e a vontade, entre o mito e a racionalidade, entre a crítica e a sobrevivência, entre o presente e o futuro. A Cultura é “uma perspetiva convergente e unitária de vários ramos do saber”. E eis o paradoxo, “se o historiador busca a razão dos acontecimentos, culpa os homens; se procura os imperativos da Raça, culpa o Destino”. O pessimismo contrasta com o compromisso cívico. E assim, num momento em que, nos anos 90 do século XIX, a decadência se manifestava e o desastre parecia anunciar-se, com o Ultimato, a bancarrota, a dívida pública, a crise do regime, o desprestígio das instituições, a Geração que se evidenciara em 1871 não baixa os braços e revela o sentido positivo da atitude crítica, em vez do fatalismo.
XXVII. O universalismo da cultura portuguesa: língua como fator de diversidade e de encontro.
O idioma é essencial para a afirmação de uma identidade, mas também para enriquecer pelo diálogo culturas e civilizações. A língua portuguesa projetou-se em todos os continentes. Quando falamos dela, consideramos uma longa história, a partir do galaico-português, língua antiga, que cedo alcançou assinalável maturidade. O português ou o espanhol jamais foi dialeto um do outro. A partir da matriz galega, temos uma diversidade de influências, como a dos moçárabes, principal veículo transmissor de um grande número de vocábulos árabes para o nosso léxico, pela parte bilingue da população, além dos caracteres próprios adquiridos com a cultura quinhentista… Devemos falar de uma língua de várias culturas e uma cultura de várias línguas. Falamos de várias culturas, pela natureza própria da diversidade política, como língua de unidade nacional, como língua segunda, ou como língua integradora no complexo mosaico étnico e geográfico – ora em África, ora no Brasil. E quando referimos várias línguas, reportamo-nos ao desenvolvimento dos crioulos, de raiz portuguesa, mas com uma vida própria. Lembremo-nos de Cesária Évora ou de Mário Lúcio e encontramos pontes essenciais de diálogo. De facto, sem idealizações ou simplificações, e muito menos paternalismos, a partir de exemplos concretos, trata-se de uma língua que deve ser vista como realidade em movimento. Como disse Rui Knopli, a língua tenderá a ser um denominador comum de vários espaços africanos, asiáticos, brasileiros, europeus, numa espécie de “pátria coincidente”. E para o compreender, basta lermos a literatura da língua portuguesa contemporânea. A língua inglesa é indubitavelmente fundamental nos vocabulários científicos, mas temos de assegurar o diálogo interlinguístico, designadamente no âmbito das ciências sociais, nas quais a diversidade da comunicação tem de ser compreendida, sob pena de desvirtuarmos o conhecimento. Como insistia Vasco Graça Moura, nenhum de nós quer uma língua única, totalitária.
Tem de se abrir espaço para a diversidade linguística, estabelecendo pontes entre os vários idiomas e as várias culturas. Não podemos esquecer que as chamadas Humanidades irão ganhar uma configuração cada vez mais fortemente relacionada com todas as disciplinas científicas. Como investigar as literaturas e as artes sem considerar a diversidade de culturas e idiomas? Vergílio Ferreira dizia, por isso, que não se pode pensar fora das possibilidades da língua em que se pensa. Infelizmente, há quem julgue que a avaliação académica deve ser uniformizada e redutora, o que é contrário da compreensão da diversidade. E não se pense que a tendência futura é para a existência de uma única língua franca. Num mundo globalizado, não falamos da língua portuguesa como uma realidade fechada, mas de uma realidade aberta e em movimento, e aí está a sua riqueza e as suas virtualidades.
Para compreender as culturas da língua portuguesa, temos de ler Machado de Assis, Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Manuel Bandeira, Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, João Cabral de Melo Neto, António Cândido, Ferreira Gullar, João Ubaldo Ribeiro, Rubem Fonseca, Alberto Costa e Silva e Nelida Pinõn, mas igualmente Baltazar Lopes da Silva, Manuel Lopes, Daniel Filipe, Luandino Vieira, Mário Pinto de Andrade, Corsino Fortes, Pepetela, José Craveirinha, Mia Couto, Orlando Costa, Paulina Chiziane, Ana Paula Tavares, Ondjaki, José Eduardo Agualusa, Arménio Vieira, Onésimo Silveira, Germano Almeida, Vera Duarte, Albertino Bragança, Alda do Espírito Santo ou Luís Cardoso. Nesta diversidade, não exaustiva ou sistemática, poderemos ter a compreensão de várias culturas que se cruzam e se enriquecem mutuamente, sem uniformidade nem modelo.
XXVI. Portugal hoje - que relacionamento com a Europa e o Mundo?
A cultura europeia é pluralista, dinâmica e renovadora. Longe de uma identidade harmonizadora ou de uma lógica de uniformidade, o “património comum” leva-nos, na lógica da herança e da tradição, ao bem comum europeu, como ação inovadora como fator de coesão, de harmonia e de emancipação. A identidade europeia é construída por várias identidades, é plural, é complexa, é multifacetada. Não há, pois, uma “comunidade de destino”, mas uma comunidade plural de destinos e valores. Falar de identidade europeia é, assim, referirmo-nos à complexidade, a uma realidade não confundível com um bloco monolítico, diferente das nações e dos povos que a constituem. Daí que a legitimidade europeia seja de Estados e povos, e que a realidade “constitucional” da Europa não seja um sucedâneo ou um substituto das “constituições nacionais”. Continua a ser tempo de seguir uma via de “euro-realismo”, já que andar para trás “seria regressar a formas de centralismo, autoritarismo e subdesenvolvimento paroquial”. No fundo, sem uma sábia ligação entre as legitimidades dos Estados e dos cidadãos, arriscar-nos-emos a criar uma realidade efémera, artificial e reversível sem ligação efetiva ao mundo da vida. Só uma forte vontade comum ajudará a superarmos o fosso entre as instituições europeias e as pessoas.
Continente de contrastes unido pelo conteúdo, acessível, recortado, temperado, em que a variedade é a regra, a Europa não é uma Babel nem uma terra de ninguém. Terra de conflitos e de contradições, de guerras civis, de competição e de combate, alberga uma constante procura de equilíbrio e de síntese através de várias influências, etapas e polos. “É o dualismo entre fé e lei que, desde o início, torna possível o crescimento da liberdade e das liberdades – porventura o maior anelo e fator de dinamismo da história europeia no seu conjunto. Braudel considera que ‘liberdade’ – não apenas a individual mas também a das cidades, dos grupos e das nações – é mesmo a palavra-chave dessa história” – como lembra Francisco Lucas Pires. Assim, é possível ler “uma história através de várias histórias”, desde as raízes greco-romanas, das invasões bárbaras e da conversão cristã da Europa, para chegar à “coroação poética” da “Divina Comédia” e a uma “cultura comum europeia”, segundo a expressão feliz de T.S. Eliot, continuando essa rota na crise da República Cristã e na vida da Europa dos tempos modernos. Seguindo Paul Valéry, é fundamental reter a emergência de uma grande síntese na identidade originária da Europa enquanto “legado greco-romano mais cristianismo”. A história moderna abre, assim, campo às diferenças e a uma conflitualidade decorrente da competição gerada no Renascimento e continuada no iluminismo, no liberalismo, na revolução social do industrialismo e na mundialização.
À tentativa de criar condições para a emancipação nacional com equilíbrio e tolerância entre os Estados, sucede a autarcia e o fechamento. E em 1914, depois de a “Primavera dos Povos” (1848) ter-se inclinado para os nacionalismos protecionistas, a Europa como possibilidade de ação em comum deixou de existir pelas suas contradições nacionais. E foi a devastação da guerra e a necessidade de reconstrução que fez regressar à ordem dia um programa europeu, no contexto de uma paz ameaçada e segundo o modelo de Jean Monnet de “integração funcional”. Tratava-se de garantir a partilha de soberanias e a salvaguarda de um projeto assente nos valores comuns da liberdade (cidadania europeia), da democracia (codecisão e esboço de democracia parlamentar nas relações entre a Comissão e o Parlamento), do desenvolvimento (moeda única e coesão), e da segurança (política externa e de segurança comum e cooperação policial e judicial), fatores de efetiva complementaridade. Eis a base do método comunitário e da subsidiariedade e a necessidade de seguir um caminho de construção gradual das instituições supranacionais e de respeito escrupuloso pela iniciativa cívica e pelo que está mais próximo dos cidadãos, que prevaleça sobre o que está mais distante das pessoas (os Estados e a democracia supranacional). A ideia de “Europa connosco” não corresponde nem a uma subalternização, nem a um fechamento, mas à abertura de horizontes, a uma geometria variável e à participação numa globalização baseada na paz e na cooperação.
XXV. Sophia de Mello Breyner – Símbolo do Portugal do século XXI
Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) é uma das grandes referências da poesia contemporânea e da cultura portuguesa. Clássica e moderna, encontra e prolonga Fernando Pessoa por um caminho próprio e diferente. E Eduardo Lourenço afirmou que “desde os tempos de Pascoaes, a poesia portuguesa esforçava-se por conciliar Apolo e a sua mítica expressão solar da vida com Cristo, sombra sob tanto excesso de sol, deus morto para que a morte não fosse confundida com a vida digna desse nome. Se essa conciliação teve lugar em algum lugar foi na poesia de Sophia”. Sentimos a coexistência de Atenas e Jerusalém. Daí ter nascido “precocemente clássica”, talvez fora de uma modernidade, por definição em crise, mas ciente da importância dos novos caminhos em busca da dignidade do Ser. E assim Sophia chega a Nietzsche e à ligação dionisíaca, através de um “Cristo Cigano” – que não espera que o crucifiquem e que se oferece nu ao esplendor da vida que misericordiosamente o assassina – “mas a sua morte despe-o da sua aparência solar e esculpe-o em redentora agonia onde o rosto do Ausente se revela”. E sentimos a sede de justiça, que leva a não fechar os olhos ao “espantoso sofrimento do mundo”. Francisco de Sousa Tavares disse, na melhor fórmula, que Sophia "tinha sinais do seu Deus na confusão dos homens". Eduardo Lourenço diagnosticou "uma espécie de milagre, de raro e quase incrível privilégio" que deve "ter preservado cedo a jovem Sophia, católica e portuguesa, daquela obsessão culpabilizante que encharca por dentro a lírica nacional". Vemos, ouvimos e lemos – não podemos ignorar. Contra a ambiguidade, “sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem”. E lembremo-nos do entusiasmo posto por Sophia na tradução de «Anunciação a Maria» de Paul Claudel. Sente-se a proximidade relativamente ao artista de «Arte Poética». «Esta é a noite / Densa dos chacais / Pesada de amargura / Este é o tempo em que os homens renunciam». Longe da exclusiva busca de doçura, o que há, sim, é a permanente demanda de uma vida de drama, de dúvida e de contradição. Tomé e Pedro estão sempre presentes, antes e depois de pôr a mão na ferida aberta ou de ouvir o galo cantar, sempre perante o medo terrível que leva Mara ao ato de desespero perante Violaine. «Aquele que partiu / Precedendo os próprios passos como um jovem morto / Deixou-nos a esperança». É aqui que a poética de Sophia se aproxima e se afasta de Claudel. Aproxima-se porque há a procura silenciosa da esperança no equilíbrio da palavra e da justiça, nunca a confusão com qualquer certeza intolerante. Mas distancia-se, uma vez que não pode haver ambiguidade na luta agónica. Violaine é símbolo, a um tempo, da incerteza e da força, num gesto inusitado e necessário do beijo ostensivo ao leproso.
Cidadã de reflexão e talento, foi deputada à Assembleia Constituinte, sendo marcante o discurso que fez sobre as liberdades de criação cultural e de aprender e ensinar. “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exatamente porque é capaz de criar a cultura” (Sessão de 2 de Setembro de 1975). A luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas pela liberdade do povo – liberdade de expressão e de cultura. E, a propósito, invocava o terrível grito pronunciado no paraninfo da Universidade de Salamanca perante Unamuno: “Morra a Inteligência!”, para que nunca mais fosse possível ouvi-lo. “Queremos uma relação limpa e saudável entre a cultura e a política. Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anti cultura e toda a anti cultura é reacionária”.
Quando lembramos as datas fundamentais do constitucionalismo português (1820, 1834, 1910 e 1974), verificamos que correspondem à necessidade de concretizar a democracia como permanente atenção à liberdade, à responsabilidade e à participação, enquanto cidadania ativa, como respeito mútuo e defesa dos valores éticos. Em 1820 e na Constituição de 1822 o absolutismo cedeu lugar à soberania dos cidadãos e à separação, interdependência e limitação dos poderes. Depois da guerra civil, a causa de D. Pedro e de D. Maria da Glória viu reconhecida a vitória da liberdade em Évora Monte e a Carta Constitucional de 1826 pôde renovar o caminho para o Estado liberal, graças à Constituição de 1838 e ao Ato Adicional à Carta de 1852, que permitiram à Regeneração modernizar o País, aproximá-lo da Europa e pôr a tónica no primado da lei e na liberdade de opinião, sendo a proibição ocorrida nas Conferências do Casino de 1871 uma singular exceção, que levou à solidariedade entre os jovens amigos de Antero de Quental e a primeira geração romântica, representada por Alexandre Herculano. A República de 1910 e o republicanismo, de que foi símbolo a “Renascença Portuguesa”, representou a procura de um novo alento para os valores democráticos. Daí a necessidade de compreendermos o que Jaime Cortesão afirma sobre a importância dos fatores democráticos na formação de Portugal (envolvendo a independência da nação, a legitimidade das Cortes de Coimbra de 1385, a aclamação de D. João I, o municipalismo, os descobrimentos, a Restauração e a proclamação da liberdade) – consumados no constitucionalismo.
Após a ditadura (1926-1974), ao chegarmos a 25 de abril de 1974, tratou-se de fazer renascer a democracia em toda a sua vitalidade num contexto europeu e no concerto das nações, pela autodeterminação e independência dos países de língua oficial portuguesa. Em 1820, com todas as vicissitudes conhecidas, renovou-se a tradição portuguesa, a um tempo fiel ao espírito de independência de D. Afonso Henriques e de D. Dinis, e à audácia de 1383-1385 e da Ínclita Geração e dos Altos Infantes, mas também às tradições do povo e à expansão da língua portuguesa em todos os continentes. A democracia e o constitucionalismo não são obra do acaso, mas de trabalho persistente e de grandes responsabilidades. A opção europeia, a “Europa Connosco” de Mário Soares (1976), com a adesão de pleno direito a partir de 1986 às Comunidades Europeias, hoje União Europeia, e a entrada na moeda europeia, o Euro, depois de 2001 fazem pleno sentido no âmbito da afirmação da identidade democrática de Portugal no âmbito da cooperação entre Estados e cidadãos soberanos e livres, para quem a cultura é um fator de emancipação e desenvolvimento. Fiel às raízes históricas de uma identidade de nove séculos, Portugal, a cultura e a língua afirmam-se como realidades abertas e acolhedoras, em nome da diversidade matricial de um cadinho de várias influências. Língua de várias culturas, cultura de várias línguas – eis a chave desta convergência de fatores. Nas artes e na literatura, na educação, na cultura e na ciência, Portugal afirma-se através de nomes como Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, Vitorino Nemésio, Vergílio Ferreira, José Régio, Alves Redol, José Cardoso Pires, António Ramos Rosa, Herberto Helder, Manuel Alegre, Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, Ruy Belo, Eduardo Lourenço, David Mourão-Ferreira, Augusto Abelaira, José Saramago, António Lobo Antunes, Manuel António Pina, Lídia Jorge, Nuno Júdice ou de artistas como Maria Helena Vieira da Silva, Paula Rego, Júlio Pomar, Ângelo de Sousa, Graça Morais, Siza Vieira, mas também Agustina Bessa-Luís, Maria Judite de Carvalho, Fernanda Botelho, Isabel da Nóbrega, Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. A atribuição a José Saramago do Prémio Nobel da Literatura em 1998 é corolário da afirmação da cultura da língua portuguesa como marca do Portugal democrático.
As marcas da contemporaneidade portuguesa são a abertura e a liberdade. O primado da lei, a legitimidade do voto, a legitimidade do exercício e a justiça como valor ético – distributiva e intergeracional – constituem os elementos cruciais de uma cultura de respeito mútuo, de solidariedade e de proximidade, centrada na dignidade da pessoa humana.