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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

O ENIGMA DE NÉLIDA…


“Aprendi ao longo da vida que o verbo é o que fazemos com ele”, Nélida Piñon inicia deste modo um dos capítulos de Um Dia Chegarei a Sagres (Temas e Debates, 2021). Um dos mistérios que a escritora procura desvendar relaciona-se com a origem da língua portuguesa, que começou na terra de seus ancestrais, numa zona de Finisterra, ponto de encontro de múltiplas influências e origens, “território ocupado por sobrados, casas senhoriais, castelos, muitos ainda habitados. E antigas fortificações outrora a serviço do rei, prontas para combater inimigos. A constituir um sistema de defesa cujo poder bélico exibia esplendor e ostensivo contraste com a pobreza reinante”. Como idioma e património comum, o português nasceu nessa terra de trovadores e peregrinações e partiu à aventura. Quando lemos os poemas de Rosalia de Castro em Cantares Gallegos sentimos o que Nélida, na convergência da ancestralidade galega, nos diz em Uma Furtiva Lágrima (Temas e Debates, 2019)“bastou-me ver pela primeira vez a ponte medieval e a capelinha à entrada de Borela, para jurar amor imorredouro por aquele solo”. O mito da origem torna-se enamoramento e recuperação da força do mistério, verdadeira força da vida. E o certo é que o “mito não se moderniza. Afinal, o núcleo mítico daquela terra alastra-se além das aldeias que amei”.


É o galaico-português que encontramos e demarca este maravilhoso terreno das nossas raízes, nascido fora do Portugal, que nós prolongámos e se tornou marca e matriz de uma cultura que se projetou além-fronteiras no mundo global. E ouvimos Rosalia invocar “cantos, vagoas, queixas, sospiros, serans, romerias, paisaxes, debesas, pinares, soidades, ribeiras, costumes, tod’aquelo en fin que pó-la forma e colorido e dino de ser cantado, todo ó que tuvo un eco, un-ha voz, un runxido por leve que fosse, que chegasse á commoverme, tod’este m’atrevin á cantar…”. A verdade é que ainda hoje ouvimos, de um lado e do outro do rio Minho: “Canta xente… canta xente / Por campiñas, e por veigas! / Canta pó lo mar abaixo / Ven camiño da ribeira”. E foi esta língua que se espraiou desde as ondas do mar de Vigo para o sul, recebendo o tributo moçárabe, até Sagres, que, depois das influências e contributos dos trópicos, formou esse núcleo mítico que Nélida amou. “Há anos escrevi (diz-nos a escritora): era a época dos prodígios. Lembro-me de quando a Idade Média começou. A mãe levantou-se cedo para regar a horta e esquentar o leite recém-saído das vacas. Foi quando a mãe anunciou para uma família ainda sonolenta: - Venham ver as catedrais nascendo…”. E assim se fizeram a língua e a grei. “Santos e deuses caminhando de mãos dadas”. Nélida viveu apaixonada pela memória de quantos amou, a família, os amigos. E sonhava com a possibilidade de usar o capacete de Hermes e de, graças a ele, poder tornar-se invisível, para ver e conhecer melhor o mundo.  A imaginação é uma razão de viver. Amava as cidades, mas tinha nostalgia do campo, gostava de imaginar-se em personalidades diversas, em tempos diferentes. E pensava-se feita de retalhos, de escombros, de lembranças, que impedissem a morte por força da ingratidão.


E Nélida Piñon bem sabia, como os cultores da sabedoria, que “o melhor da viagem é prolongá-la através dos recursos da memória”. E foi este o enigma fundamental de quem, chegou a Portugal, sabendo por onde caminhar e quis “captar a paisagem, os enigmas do povo, os locais onde o sangue foi derramado”, porque “precisava descobrir de onde viera esse nosso idioma deslumbrante”. Eis o que nos liga e que faz desta língua multifacetada algo que permite compreender que somos uma cultura aberta, que deve recusar a tentação de qualquer superioridade histórica e que está investida no desafio da exigência e da responsabilidade. “Falar em primeira pessoa requer audácia. Mas é uma opção natural. Enquanto falo por mim, incorporo os demais na minha genealogia. Não ando sozinha pelo mundo”. 


GOM

AS RELIGIÕES NA ESCOLA

  


Quantos cristãos saberão que, se Adão e Eva fossem figuras reais e nossos contemporâneos, precisariam, para viajar para o estrangeiro, de um passaporte iraquiano? Quantos se lembram de que  Abraão, que está na base das três religiões monoteístas -- judaísmo, cristianismo, islão --, possuiria igualmente nacionalidade iraquiana? Quantos se lembram de que os primeiros capítulos do Génesis, referentes ao mito da criação e da queda, se passam na Mesopotâmia, onde mergulham algumas das nossas raízes culturais? As religiões estão sempre presentes. Mas quem tem delas um conhecimento mínimo? Qual é a relação entre religião e violência, religião e política, religião e desenvolvimento económico, religião e saúde?


O grande Umberto Eco, agnóstico, lamentava-se: “Nas escolas italianas, Homero é obrigatório, César é obrigatório, Pitágoras é obrigatório, só Deus é facultativo. Se o ensino religioso se identificar com o do catecismo católico, no espírito da Constituição italiana deve ser facultativo. Só lamento que não exista um ensino da história das religiões. Um jovem termina os seus estudos e sabe quem era Poséidon e Vulcano, mas tem ideias confusas acerca do Espírito Santo, pensando que Maomé é o deus dos muçulmanos e que os quacres são personagens de Walt Disney...”


Ernst Bloch, o filósofo marxista heterodoxo e ateu religioso, com quem tive o privilégio de conversar, sublinhou que o desconhecimento da Bíblia constitui uma “situação insustentável”, pois produz “bárbaros”, que, por exemplo, perante a “Paixão segundo São Mateus”, de Bach, ficam como bois a olhar para palácios. 


É um facto que não é possível ensinar literatura, história, filosofia, artes, sem uma cultura religiosa mínima. Por outro lado, vivemos num mundo cada vez mais multicultural e multireligioso e, sem paz entre as religiões, não haverá paz no mundo. A paz exige o diálogo inter-religioso, mas o diálogo pressupõe o conhecimento das religiões, como acentuava o teólogo Hans Küng.


Neste contexto, em 2002, a pedido do ministro francês da Educação Nacional, o filósofo agnóstico Régis Debray apresentou o Relatório sobre  “O ensino do facto religioso na escola laica”. O ministro Jack Lang escreveu no Prefácio: se “a escola autêntica e serenamente laica deve dar acesso à compreensão do mundo”, as religiões enquanto “factos de civilização” e “elementos marcantes e, em larga medida, estruturantes da história da humanidade” têm de estar presentes, e os professores, sem privilegiarem esta ou aquela opção espiritual, devem dar o justo lugar ao seu conhecimento nas várias disciplinas escolares. Uma melhor formação dos professores em ordem a poderem tratar serenamente o facto religoso é uma necessidade.


Há o perigo da incultura religiosa que faz com que, perante uma Virgem de Boticelli, qualquer dia um jovem pergunte: “Quem é a gaja?”” De qualquer forma, Régis Debray sublinha que “a história das religiões não é a recolha das lembranças da infância da Humanidade”. Não há ninguém que não se confronte com a pergunta: Qual é o fundamento e o sentido último de tudo? E esta pergunta abre inevitavelmente à questão religiosa. Mesmo se as religiões não têm o monopólio do sentido, integram o universo simbólico, como o direito, a moral, a história da arte ou o mito, sendo dever da escola aprofundar a sua inteligência reflexiva e crítica. Este esforço impõe-se tanto mais quanto o paradigma da economia, da gestão e das novas tecnologias não pode constituir “o horizonte único e último”. É preciso reconhecer também que relegar o facto religioso para fora dos circuitos da transmissão racional, portanto, escolar, não é o melhor remédio para enfrentar “a vaga esotérica e irracionalista” bem como o fundamentalismo. Como recentemente sublinhou o Papa Francisco, “a educação é essencial para superar fundamentalismos.”


Uma vez que se trata da escola laica, deve tornar-se claro que “o ensino do religioso não é um ensino religioso”. Por outras palavras, não se pode confundir informação histórica e crítica com catequese. Aqui, não se faz catecismo, pois o objectivo é uma “aproximação  descritiva, factual e nocional das religiões em presença, na sua pluralidade, sem privilegiar nenhuma”. De qualquer forma, a perspectiva “objectivante” não colide com a perspectiva “confessante”, desde que as duas possam “existir e prosperar simultaneamente”. São duas ópticas não concorrentes: a da fé e a da cultura.


É a laicidade que torna possível a coexistência das várias opções espirituais. Mas “a faculdade de aceder à globalidade da experiência humana, inerente a todos os indivíduos dotados de razão, implica a luta contra o analfabetismo religioso e o estudo dos sistemas de crenças existentes”, sendo preciso passar de “uma laicidade de incompetência” – a religião não nos diria respeito – a uma “laicidade de inteligência” – é nosso dever compreendê-la.


O princípio a manter no ensino do facto religioso na escola pública foi formulado pelo filósofo Hegel: não se trata de tornar os crentes descrentes nem os descrentes crentes, mas contribuir para que todos se tornem lúcidos.


Neste quadro, não pode deixar de ser veementemente saudada a criação da Academia para o Encontro de Culturas e Religiões da Universidade de Coimbra (APECER-UC), com o objectivo fundamental da promoção do “diálogo cultural e inter-religioso”, dentro da missão da Universidade, que é formar pessoas integrais para um mundo bom, justo, na paz.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 8 de outubro de 2022

PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

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XXXI. UMA CHAVE INESPERADA, OU TALVEZ NÃO!

 

É João Abel Manta quem nos ajuda a fechar este folhetim de folhetins, que propositadamente fez um sobrevoo exaustivo sobre as várias leituras (e tantas ficaram por fazer) que a lusitana língua tem para nos dar do lado de cá do Atlântico. É Fernando Pessoa, qual Hamlet, a fazer a pergunta enigmática que esta série encerra. E devemos alguns esclarecimentos.

Antes do mais, porquê este título esotérico de “Pedras no meio do caminho”?
De facto, é Carlos Drummond de Andrade o inspirador desta fórmula, pelo poema que bem conhecemos.

   No meio do caminho tinha uma pedra
   tinha uma pedra no meio do caminho
   tinha uma pedra 

   no meio do caminho tinha uma pedra.

   Nunca me esquecerei desse acontecimento
   na vida de minhas retinas tão fatigadas.
   Nunca me esquecerei que no meio do caminho
   tinha uma pedra
   tinha uma pedra no meio do caminho
   no meio do caminho tinha uma pedra.

Parece estranho, mas não é. Os nossos leitores sabem que, ao longo do tempo – a memória e o património cultural representam-se metaforicamente, como quis Rabelais, entre pedras mortas e pedras vivas – e as pedras vivas são as pessoas. Não há cultura sem memória, sem interrogação, sem enigma. Monumentos, habitações, documentos, crónicas, idiomas, tradições, natureza, paisagem, técnicas, instrumentos, comunicação, criatividade. E foi assim que ao longo das semanas lidámos com fantasmas, propositadamente, com os seus caprichosos espíritos que, em vez de terem desaparecido, se mantêm presentes e vivos de diversas maneiras – pelo que escreveram e disseram, pelo que viveram e legaram. E do princípio ao fim lidámos com Carlos Fradique Mendes, heterónimo exclusivo de uma geração, símbolo heterogéneo, surgido na absurda história da Estrada de Sintra, filho de Eça e Ramalho, espécie de pirata cultor de um pensamento mefistofélico; depois Antero e Jaime Batalha Reis inventam-no como um poeta singular e marginal – e, por fim, Eça de Queiroz, liberto do pendor romântico da Ramalhal figura, deu-lhe nervo e espírito, com autonomia, como verdadeiro símbolo de uma geração maior. Não por acaso, demos dois exemplos de folhetins romanescos. As “Viagens” de Garrett renovaram a literatura (como fez Almada Negreiros em “Nome Guerra”) e o “Mistério da Estrada de Sintra”, sem ser obra genial, é o anúncio em parte (a de Eça) do naturalismo e depois do simbolismo. E voltamos a Fradique, que é muito mais do que filho de uma escola, representa a transição que nos conduz de Afonso e Carlos da Maia até Jacinto e Gonçalo Mendes Ramires – da Regeneração à Renascença Portuguesa, de 1870 a 1915 e ao “Orpheu”. Tivemos um Romantismo muito longo, libertado com Antero, Cesário e Pessanha de uma escola decaída de elogio mútuo, enterrada no Bom Senso e Bom Gosto e nas Conferências do Largo da Abegoaria.

 

Como podem compreender, o folhetim é caricatural e trágico. Poderíamos ter ido mais adiante. Chegámos aos Barbelas e aí pudemos ver quem somos na dimensão plural da história, mas poderíamos ter falado ainda de Agustina e da sua “Sibila”, de Quina e Germa e do mesmo ano emblemático: “Há uma data na varanda desta sala que lembra a época em que a casa se construiu. Um incêndio por alturas de 1870, reduziu a ruínas toda a estrutura primitiva”. Que data estranha esta, recorrente, tantas vezes encontrada.

Reunidos numa sala ampla, Jaime Ramos interroga comigo os suspeitos e protagonistas: todos fantasmas, Fradique, Justino Antunes, Conselheiro Torres, Coronel Segismundo, Conselheiro Acácio, Luísa do “Primo Basílio”, o inefável Pacheco, Zé Povinho, Joãozinho das Perdizes, o Bispo de  Viseu, Calisto Elói de Barbuda, Corto Maltese, Sandokan, Gastão de Sequeira, Fernão Mendes Pinto, António José da Silva, o Vaqueiro do Auto da Visitação, Frei Dinis, Carlos e Joaninha, o conde de Abranhos, Camilo Castelo Branco, Antunes e Judite, Jaime Ramos, Luísa, a condessa de W., Garrett (ele mesmo) com Duarte Guedes, Amália, Josefina e José Félix, D. Raymundo de Barbela, o cavaleiro e a bela Madeleine, Pessoa como Hamlet, e (à ultima da hora) Quina e Germa… uma algazarra.

Duas horas de interrogatório. Jaime Ramos é sistemático. E o veredicto é duro. «Todos, mas todos sem exceção, são culpados”. A condessa de W., ainda pretendeu assumir, ela só, todas as culpas. Mas Ramos pô-la à prova com o detetor de mentiras. A culpa dela era a mesma de todos os outros… um pequeno golpe para cada um. O que estava em causa era a culpa para manter, pura e impura, a lusitana língua e, como no “Crime do Expresso do Oriente”, a culpa era de todos, todos, próximos ou distantes!

Houve broaá, e pronto, a cortina desceu apressadamente, para paz de todos. Um compasso de espera e houve palmas…      

 

Agostinho de Morais

 

Pedras.jpg>> Pedras no meio do caminho no Facebook

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  

 

107. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E CANCELAMENTO (RUSSOFOBIA) CULTURAL


Cancelar da cultura mundial Dostoiévsky, Tolstoi, Pushkin, Pasternak, Tchekhov, Tchaikovsky, Stravinsky, Kandinsky, Mussorgsky, Rachmaninov, Chostakovitch, Tarkovsky, Anna Pavlova, entre outros, por um sentimento de aversão ou ódio à Rússia, seu país natal, após a agressão e invasão russa na Ucrânia, é censurável, por maioria de razão em países democráticos que fazem culto e consagram a liberdade de expressão, incluindo a de informação e de pensamento.   


Pela arte, literatura, música, dança, pelo cinema, pela cultura em geral, a Rússia é património cultural da humanidade, produziu e continua a produzir, a nível artístico, cinematográfico, literário e científico, nomes intemporais que a Europa também reconhece como seus, e se universalizaram, sendo parte integrante da alma russa e do génio humano.


Não faz sentido cancelar a cultura russa, mesmo havendo uma condenação intransigente da invasão da Ucrânia, como notícias vindas de Zagreb revelando que a orquestra filarmónica cancelou dois concertos de Tchaikovsky, ou da MET, companhia de ópera de Nova Yorque, ao excluir uma soprano e um maestro russos, ou a interdição da literatura de Dostoiévski numa universidade italiana, o que não ajuda a amenizar o sofrimento das vítimas ucranianas, sendo um contra senso condenar o governo russo por limitar ou boicotar a liberdade de expressão e o ocidente agir do mesmo modo quanto à cultura russa.   


Defendemos que uma obra cultural (uma obra de arte em geral) vale por si, independentemente das opções políticas, ou outras, de cada um ou do autor, fazendo a separação entre a obra em si ou ao serviço de qualquer coisa, sobrepondo-se às contingências pessoais por que passou ou passa o seu autor, sendo transcontextuais, transversais, transnacionais, transcontemporâneas, isentas de culpas.   


Não há que confundir a Arte e a Cultura Russa com as opções políticas atuais dos seus governantes, dada a sua intemporalidade, antecipando-se, antepondo-se ou sobrepondo-se para além de quem tem o poder.   


Faz sentido que deixe de ler ou exclua da minha biblioteca obras como Guerra e Paz, de Tolstoi, Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski? 


Que deixe de se ouvir e ver O Lago dos Cisnes ou O Quebra-Nozes, de Tchaikovsky? 


Não se ouça Rachmaninov, Stravinsky, ou não se contemplem as pinturas de Kandinsky?


Não faz, nem faria, nem atenua o sofrimento dos ucranianos, antes é uma arma de arremesso que, por um lado, não dignifica sociedades que se dizem livres e têm por base a liberdade de expressão e, por outro, quando fazem uso de tais cancelamentos culturais dão argumentos ao culto da russofobia e a que se fortaleça o regime russo e a sua propaganda direcionada para criar entre os russos uma sensação de injustiça e de o ocidente estar contra eles, mesmo que a democracia em que vivemos, cheia de falhas, seja a melhor alternativa (por confronto com propostas autocratas, ditatoriais, totalitárias ou similares).

 

27.05.22
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

A VIDA DOS LIVROS

  

De 14 a 20 de fevereiro de 2022


A “Temporada de Portugal em França - 2022” ou “Saison du Portugal en France” abriu este fim de semana com o concerto da Orquestra Gulbenkian na Philarmonie de Paris, com Maria João Pires e a inauguração das Três Graças de Pedro Cabrita Reis nas Tulherias. A versão deste ano da “Noite das Ideias” constituiu um excelente aperitivo relativamente à Temporada Cultural Portugal-França.


RECONSTRUIR A EUROPA… 
Na Fundação Gulbenkian, Isabel Mota e a Embaixadora Florence Mangin deram a tónica, salientando a importância da cooperação e do intercâmbio cultural. E o antigo Comissário Europeu e atual Presidente da Câmara de Lisboa Carlos Moedas pôs a tónica na importância do tema proposto para os debates: “(Re)construir em conjunto uma Europa mais justa e mais unida”. Daí a referência a três objetivos urgentes, ainda condicionados pela crise pandémica: exigência de proximidade das pessoas; aposta na ciência; e atenção à cultura. Não por acaso, recordou o “Ensaio sobre a Desintoxicação Moral da Europa” de Stefan Zweig, enviado pelo escritor austríaco para o Congresso sobre a Europa, organizado pela Fundação Volta, da Academia de Itália, em novembro de 1932. O texto é premonitório, mas então poucos o ouviram. E que afirmava? “A situação moral da Europa é preocupante pelo peso de um ódio belicoso que prevalece sobre uma paz frágil. Uma desconfiança mútua entre os europeus e a recrudescência do nacionalismo fazem, temer o regresso do caos da guerra e os traumatismos do primeiro conflito mundial”. E Zweig dizia que, mais do que política ou diplomática, a resposta a dar deveria ser cultural. E assim preconizava um ensino da História que privilegiasse os elos culturais e não as guerras, não apresentando os povos como inimigos, bem como a criação de uma Universidade Europeia, a mobilidade dos estudantes num programa semelhante ao atual Erasmus (mas que envolvesse também o ensino secundário) e a existência de uma comunicação social europeia, visando uma opinião pública informada – a partir de uma “geração vigilante”, e de uma elite que conhecesse os países, as línguas e os costumes dos outros, com a missão de preparar um futuro de paz… Eis o que hoje continua a estar em causa para respondermos à incerteza. E o conjunto dos debates e reflexões dessa noite, permitiu pôr em comum e em diálogo cientistas, pedagogos, sociólogos, historiadores, filósofos, juristas, politólogos. Longe de soluções ou receitas, tratou-se de pôr a tónica nos novos problemas – desde a democracia e do confronto de culturas, até à necessidade de superação de ressentimentos e incompreensões… 


LEMBRANÇAS HISTÓRICAS
A Temporada Cultural Portugal-França constitui exemplo significativo de uma cooperação que vai ao encontro de uma nova perspetiva nas relações culturais entre os dois países, centrada na vivência comum do projeto europeu e na necessidade de lhe dar um conteúdo participativo e mobilizador. Não esquecemos as raízes históricas muito antigas que chegam às origens da nacionalidade e à consolidação da independência portuguesa, desde o papel desempenhado pela Casa de Borgonha e pelos beneditinos de Cister ou pela duquesa D. Isabel de Portugal, filha de D. João I e mulher de Filipe, o Bom, até à intervenção do Cardeal Richelieu na Restauração de 1640, às Luzes, ao apoio do rei Luís Filipe de Orleães, durante a Monarquia de Julho, à causa liberal de D. Pedro e às origens da I República… Há um longo caminho que explica uma ligação cultural multifacetada, complementar da antiga aliança luso-britânica. O espírito europeu esteve, assim, bem presente na afirmação cultural portuguesa em vários momentos da nossa história, sendo reafirmados no século XX no movimento migratório, e hoje pela importância das novas gerações de descendentes de portugueses, com novos horizontes e oportunidades. Eis por que razão o desafio do Presidente Emmanuel Macron, em 2018, na Fundação Gulbenkian, surge como natural, correspondendo a uma afirmação de vitalidade europeia, num momento mais importante do que nunca, de compromisso e partilha. A “Temporada Cruzada”, comissariada por Emmanuel Demarcy-Mota, Victoire Bidegain di Rosa e Manuela Júdice, inscreve-se na continuidade das presidências portuguesa e francesa da União Europeia constituindo oportunidade para sublinhar a proximidade e amizade que ligam os dois países. Procura-se pôr em relevo a excelência dos nossos artistas, pensadores, cientistas e empresários na perspetiva do reforço e renovação das bases da cooperação em aspetos prioritários para a juventude dos dois países: preservação do meio ambiente, energias renováveis, economia responsável, urbanismo humano, agriculturas alternativas, a fim de demonstrar que estamos preparados para inventar soluções para os desafios contemporâneos.


UM PROGRAMA VARIADO
A Temporada inicia-se com o concerto de abertura, a 12 de fevereiro, em que a Orquestra Gulbenkian se apresentará, com Maria João Pires, na Philarmonie de Paris. E com este momento especialíssimo poderemos referir a exposição do Centro Pompidou, que juntará o escultor Rui Chafes, o cineasta Pedro Costa e o fotógrafo Paulo Nozolino, que se somam à instalação, nas Tulherias, no jardim do Museu do Louvre, de uma obra monumental de Pedro Cabrita Reis, intitulada As Três Graças. Invoca-se ainda uma muito fecunda intervenção em França, desde os anos cinquenta, simbolicamente assinalada na mostra de Tesouros da Coleção Gulbenkian, realizada em coprodução com a Coleção Al-Thani no Hôtel de la Marine, em Paris. Acresce o programa destinado a promover exposições de artistas portugueses em França, com uma retrospetiva dedicada a Maria Helena Vieira da Silva, referência fundamental do panorama artístico europeu, bem como as apresentações individuais de Pedro Barateiro, Francisco Tropa, Carla Filipe, além de uma exposição coletiva com Mónica de Miranda, Sérgio Carronha, Rita Sobral Campos e Musa Paradisíaca. É de especial importância a apresentação da exposição “Tudo o que eu quero – Artistas portuguesas 1900-2020”, comissariada por Helena de Freitas e Bruno Marchand, realizada em 2021, com assinalável êxito na Gulbenkian, em Lisboa, no âmbito da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, que não pôde ser apresentada em Bruxelas, no Bozar, como previsto, em virtude do incêndio entretanto ocorrido na capital belga. Agora, a presença em Tours permite o contacto, ao vivo do público francês e europeu, com um notável acervo de primeira qualidade, que demonstra o caráter pioneiro de um conjunto significativo de mulheres artistas portuguesas. As artes performativas serão também contempladas na ação da Gulbenkian, através do apoio aos Festivais d’Automne e Chantiers d’Europe. Entretanto, será apresentada em Lisboa, a partir de março a mostra “Europa, Oxalá”, vinda do MUCEM de Marselha, com curadoria de António Pinto Ribeiro, de Kátia Kameli e Aimé Mpane Enkobo, que apresenta cerca de 60 obras de 21 artistas com origem nas antigas colónias em África, nascidos e criados em contexto pós-colonial. O carácter inovador e transnacional do trabalho «pós-memória» marca profundamente o panorama artístico e cultural das últimas décadas, conjugando linguagens contemporâneas e processos tradicionais. São os valores de hoje e de amanhã a estar presentes. 


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

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  De 31 de janeiro a 6 de fevereiro de 2022

 

O caso de Lourdes Castro merece especial atenção. A sua obra e a sua vida confundem-se, permitindo-nos compreender plenamente a amplitude dos conceitos de cultura e de património cultural.

 

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UM NOME FUNDAMENTAL

Recebemos a palavra cultura do humanismo renascentista, a partir de uma etimologia tirada da atividade agrícola. Falamos de uma sementeira, de lançar a semente à terra e de colher o que a natureza nos dá. Enquanto os gregos falavam de “paideia” e os romanos de “humanitas” era da troca de saberes e experiências e da aprendizagem que se tratava. Já relativamente à ideia de património cultural, está em causa o dever de preservar o que vem dos nossos pais, não apenas o que recebemos das gerações que nos antecederam, mas também o que acrescentamos e aperfeiçoamos, para legar a quem nos vai suceder. Daí o conceito dinâmico que abrange as pedras vivas e as pedras mortas, a natureza e a paisagem, a criação contemporânea e a evolução das técnicas e instrumentos, e no momento presente o mundo digital. Lourdes Castro compreendeu tudo isso de um modo exemplar. “A surpresa do desenho, a simplicidade da forma, o contorno da sombra fascinou-me tanto que ainda hoje para mim é nova” (como testemunhou a Joana Galhardo Frazão). Ao seguirmos o seu percurso é impressionante o modo como soube trilhar caminhos absolutamente inesperados e novos. Com o grupo “KWY” (Lourdes Castro, René Bertholo, Costa Pinheiro, José Escada, João Vieira, Gonçalo Duarte, Jan Voss e Christo), abriu horizontes além-fronteiras, ultrapassando a dimensão paroquial, libertando-se da censura e nunca mais parou no caminho criador através do repensar das raízes. Em “O Grande Herbário das Sombras” reencontrou a Natureza e a vegetação da Ilha da Madeira, domínio da laurissilva, sua terra natal, com uma centena de espécies botânicas, que permitem ligar o labor da artista à criação essencial e transcendente. Como recordou José Carlos Seabra Pereira, a obra envolve “a imanência do mundo criado e a Transcendência que lhe dá sentido último”. É o dom da vida que está em causa, como fica demonstrado no filme “Pelas Sombras” de Catarina Mourão (2010), no qual se apresenta o encantamento “com a magia no quotidiano das coisas”. Por isso, a artista afirma: “a minha pintura é esta: o viver, o estar cá”. E assim a sua arte foi-se tornando o espaço à sua volta. “Não a posso transportar. Ela nem quereria mudar de sítio”.

 

A ARTE NUNCA FOI SÓ UM FAZER

José Tolentino Mendonça, graças a quem devo ter conhecido pessoalmente Lourdes Castro, afirmou que, para ela, “a arte nunca foi simplesmente um fazer. A arte era um intransigente pensamento sobre o estar. Por isso, não deixa apenas obras que podemos ver nos museus de arte contemporânea. Ela deixa uma visão. E tal constitui um facto político raro”. Lembrando o “Teatro de Sombras”, verdadeiro património imaterial posto em prática primeiro com René Bertholo e depois com Manuel Zimbro, trata-se de arte em movimento, e recordo a conversa que tivemos, sobre como foram os primeiros passos no Centro Nacional de Cultura, em 1954, com José Escada. Não por acaso, o Centro era uma casa onde o teatro tinha uma especial importância, sob a influência extraordinária de Fernando Amado e de Almada Negreiros. E Lourdes Castro, no tempo da fugaz passagem em Belas-Artes, começou a fazer teatro com Amado no Centro, e foi no espaço do teatro que a jovem começou por apresentar os primeiros passos nas artes plásticas. E vem à memória a peça “Antes de Começar” de Almada Negreiros, encenada por Fernando Amado, nos princípios que conduziriam à criação da “Casa da Comédia” e à amizade que se prolongará no tempo, pela vida fora, com o pintor Manuel Amado, companheiro, com sua mulher Teresa, em férias e viagens na Madeira e Porto Santo. E está aqui a preciosa chave, capaz de ligar a descoberta das sombras, a representação teatral e a paixão pela vida. E, ainda para mais, há o encontro simbólico entre a memória do primeiro modernismo, com Almada Negreiros ou a lembrança de Fernando Pessoa, muito presente nesse tempo e no grupo, quando o poeta do “Livro do Desassossego” começava a ser descoberto, e o papel pioneiro de um outro modernismo, totalmente novo, da geração de “KWY”. E foi essa pulsão vital que levou Lourdes Castro a realizar esses fantásticos livros de artista, que explicou simplesmente – “porque havia tesouras, havia papel, havia tempo, gostava de livros…”. E, ao apresentá-los, Paulo Pires do Vale compreendeu bem como a artista continuou a criar, mesmo quando se retirou da intervenção ativa. “Na verdade, não deixou de criar”, continuou, sim, a “transformar a própria vida”, a “dar-lhe maior atenção” (Público, 9.1.22). E na exposição “Tudo o que Eu Quero”, Helena de Freitas e Bruno Marchand, na Gulbenkian, puseram em destaque as sombras na sua múltipla dimensão, absolutamente singular e inovadora – silhuetas bordadas em lençóis brancos, retratos de amigos em plexiglas, flores e folhagens. Foi da realidade viva que a artista partiu, através de uma imaterialidade que constituiu a procura da essência da própria vida. “As suas sombras tornam-se progressivamente mais leves. A presença aprofunda-se na ausência e cumpre-se no desaparecimento” (Anne Bonin).

 

O TEATRO DE SOMBRAS

José Tolentino Mendonça refere três momentos no caminho de Lourdes Castro. “A primeira etapa é aquela que vai até ao ‘Teatro de Sombras’ e constitui talvez a parte mais reconhecível da sua produção artística”. A segunda etapa foi a do movimento das sombras, como se uma parede deixasse de ser um obstáculo, descobrindo-se no branco do muro intransponível uma passagem na transparência - como Lourdes procurou demonstrar ao seu amigo quando o surpreendeu a explicar como se compreende o espaço. E lembrei-me, ao ler esse relato, do enigma que sempre há nos jardins japoneses, como em Ryoan-ji, em Quioto, quintessência de um templo zen, representação do mundo, na história contada por João Bénard da Costa no filme “A Décima Quinta Pedra” de Rita Azevedo Gomes, e revivida na viagem japonesa que fiz com Tolentino Mendonça. Também então não pudemos descobrir a décima quinta pedra, sendo-nos feita a pergunta sobre se compreendêramos tudo. O certo é que há sempre enigmas sem solução. Por fim, a terceira etapa foi a dos jardins madeirenses – a Praia Formosa, a Quinta do Monte, o lugar de exílio de Carlos de Habsburgo, e o Jardim do Caniço… De facto, o jardim tornou-se a própria obra (cf. Expresso, 14.1.22). “O meu jardim é a minha tela”. A Natureza é que tudo faz. Haveria lentamente que entrar nesse ritmo. Lourdes Castro preparava-se, afinal, para a última viagem, em direção ao Jardim das Nuvens. A obra de arte deixara de se limitar a um espaço contido, às fronteiras de uma tela ou de um lençol, abriam-se os horizontes, e não havia fronteiras intransponíveis nesse teatro de nuvens.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

A VIDA DOS LIVROS

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  De 27 de setembro a 3 de outubro de 2021

 

Quando hoje nos deparamos com a capa da revista “O Tempo e o Modo”, nascida em janeiro de 1963, encontramos, ao lado do fundador António Alçada Baptista, os nomes de dois futuros Presidentes da República, Mário Soares e Jorge Sampaio.

 

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CULTURA COMO MEIO NATURAL

De facto, o grupo que criou a nova revista, como testemunhou João Bénard da Costa, tinha um certa consciência de que algo de novo se preparava nos meios culturais portugueses. E mais do que os caminhos novos e plurais, era a própria ideia de democracia que estava em causa, onze anos antes da sua consagração efetiva através do Movimento das Forças Armadas, em 25 de abril de 1974. A presença do jovem Jorge Sampaio era significativa. Dirigente estudantil de um movimento marcante, escreve na revista, com Jorge Santos, um texto emblemático “Em Torno da Universidade”, no qual afirmam: “uma vez que haviam tomado consciência do papel que tinham a desempenhar na vida nacional, uma vez que tinham bem presente as suas responsabilidades perante a Nação, uma vez ainda, que a Universidade deixara de ser o tal ‘vase clos’, a tal corporação hermética dos tempos passados, os estudantes passaram a ocupar-se dos seus problemas de uma forma que, frequentemente saindo do ‘casulo universitário’, atinge o plano da própria vida política do país. (…) Entraram decisivamente a preocupar-se com o problema do alargamento do ensino ao maior número possível de jovens; começaram a exigir sistemas de subvenção de estudos, de seguros sociais para estudantes, de assistência médica estudantil etc.”. Hoje, quase parece profética essa convergência de contributos diferentes no pensamento e na ação, e a verdade é que a história da revista “O Tempo e o Modo” é bem ilustrativa de como a democracia se preparava, abrindo horizontes, mobilizando ideias diferentes e até contraditórias. As heterodoxias contrapunham-se às ortodoxias e o resultado era a emergência do cadinho das ideias democráticas que se afirmava.

Se refiro este momento emblemático, faço-o para salientar como a cidadania política é algo que não se faz instantaneamente, nem com ilusões de certezas absolutas. Quando lemos a biografia modelar de José Pedro Castanheira, percebemos em Jorge Sampaio um caminho feito de tentativas e erros, mas de uma essencial coerência. E a vida política é apaixonante porque é de riscos extremos. O estudo da história política corresponde à análise de uma sucessão de êxitos e de naufrágios, de persistência e de recuperação, e é preciso haver essa clara consciência. Por isso, Mário Soares disse que só é vencido quem desiste de lutar. O exemplo de Jorge Sampaio é o de alguém que sempre compreendeu que a política tem de ser assumida com independência e sentido de serviço público. Os valores éticos e as causas da cidadania são essenciais, mais importantes do que o sucesso fácil e imediato. Brilhante advogado, jurisconsulto de mérito, defensor ativo dos direitos humanos com todas as consequências, como demonstrou internacionalmente quando esteve no Conselho da Europa, no âmbito da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, ainda hoje há quem recorde em Estrasburgo o período em que Jorge Sampaio se ocupou ativamente desses sempre complexos temas.

 

LIBERDADE AUTÊNTICA

Com uma apetência especial para as questões da criação cultural e da sensibilidade artística, deve dizer-se que o político foi moldado por essa especial ligação a essas questões. De facto, a liberdade autêntica constrói-se pela compreensão da complexidade, da capacidade criadora, da incerteza, da dúvida e do sentido crítico. Melómano conhecido, que gostaria de ter sido maestro, Jorge Sampaio amava os grandes autores e as suas obras musicais – Mozart, Beethoven, Chopin, Mahler, Schostakovich. Como leitor ativo de prosa e poesia, era ainda um amante da boa dramaturgia, e também um cultor da memória enquanto património vivo. Com sua Mãe falava indiferentemente em português e inglês – e a literatura e o jornalismo anglo-saxónicos eram-lhe familiares. Nascido de uma família com raízes muito antigas e arreigadas, em que os Bensaúdes, a diáspora e os Açores tinham uma marca forte de abertura, diversidade e apego à liberdade, a Cultura, ou a sensibilidade das artes, era para Jorge Sampaio um meio natural. Assim como, no texto de 1963, para o jovem que há pouco deixara os bancos da universidade ficava clara a necessidade de abertura de horizontes, em lugar da claustrofobia dos ambientes fechados, das soluções herméticas, essa abertura só seria possível se as liberdades fossem conquistadas, já que o valor da cultura obrigaria à democracia – numa ligação íntima entre cultura e liberdade. Daí que a identidade nacional só se enriqueceria de modo aberto, exigindo uma ligação entre cultura, educação e ciência. Afinal, haveria que compreender que “a educação é uma espécie de lugar geométrico de três grandes desígnios cívicos: desenvolvimento, democracia e emancipação individual.” (27.11.2002). Os avanços realizados nas aprendizagens foram importantes, mas não podem satisfazer-nos só por si, porque os progressos gerais não param, e porque a exigência de qualidade é permanente. O mesmo se diga da absoluta prioridade à ciência, a partir da internacionalização, do diálogo e cooperação com os principais centros mundiais. Daí Jorge Sampaio salientar “o papel absolutamente pioneiro que a Fundação Calouste Gulbenkian teve neste movimento de aproximação dos investigadores portugueses aos centros de excelência sediados no estrangeiro” (15.10.2002). De facto, é incindível o triângulo cultura, educação e ciência, obrigando a que a capacidade inovadora do artista permita compreender o impulso criador do cientista, e a afinação de um instrumento de precisão se assemelhe ao que permite ao instrumento musical dar maior fidelidade ao desejado pelo compositor.

 

O PATRIMÓNIO E A LÍNGUA

“O património histórico-cultural é por natureza diverso. Ele alimentou-se de uma tensão entre interno e externo, entre local e universal, entre elites e povo, entre exclusão e integração, entre uniformidade e alteridade. (…) Conservar é promover uma reaproximação. É, portanto, reinterpretar, de acordo com critérios e expectativas do presente. Finalmente porque a identidade de uma sociedade não é um dado imutável, é, isso sim, uma aquisição permanente, um processo continuo entre o passado e o desejo do futuro” (10.10.1996). As raízes históricas apenas podem ser entendidas pela compreensão deste movimento imparável – o que nos permitirá entender, no património imaterial, que “a língua que falamos não é apenas um veículo funcional e utilitário de comunicação, molda o que pensamos e o que sentimos, leva-nos ao mundo e traz-nos o mundo. A língua que falamos exige que a renovemos, que a recriemos, que a amemos. (…) Quando ouvimos falar o português nas vozes dos outros povos, sentimos que a nossa voz se amplia nessas vozes e que o futuro começa na língua que falamos” (6.12.2004). E assim uma cultura aberta e plural constitui-se fundamento da liberdade.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

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  De 16 a 22 de agosto de 2021

 

Autor de “O Sangue, a Água e o Vinho” (1958) ou de “Retábulo de Matérias” (2018), Pedro Tamen é indiscutivelmente um dos grandes poetas e homens de cultura do último século.

 

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INFLUÊNCIA MARCANTE

Pedro Tamen representa no panorama cultural português da segunda metade do século XX um exemplo significativo de influência marcante nos diversos campos em que agiu. Ouvimo-lo: …“e às apalpadelas toco o rasto / do caminho que nunca percorri” (Rua de Nenhures, 2013). Logo a partir de 1958, proveniente da Juventude Universitária Católica e da revista “Encontro”, tornou-se, com António Alçada Baptista e João Bénard da Costa, não apenas um jovem editor interveniente e dinâmico, mas alguém que teve consciência de que se preparava um novo tempo, que conduziria, mais tarde ou mais cedo, à democracia. E há nessa compreensão uma convergência de três fatores que se associam, com inevitáveis consequências: o abalo causado pela candidatura presidencial de Humberto Delgado e pela primeira divisão nas Forças Armadas, que eram um fundamento estrutural do chamado Estado Novo; o mal-estar causado pelo memorando enviado pelo Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, a Oliveira Salazar e que levaria ao exílio do prelado e à abertura de uma tensão com a Santa Sé, que não aceitou afastar o Bispo da titularidade da diocese, o que representou o primeiro sinal evidente de afastamento crítico por parte de uma figura relevante da Igreja Católica, outro apoio estrutural com que o regime contava, estava-se em vésperas do Concílio Vaticano II; por fim, no plano cultural a “aventura da Morais” e a preparação da revista “O Tempo e o Modo” representou a abertura de novos horizontes no meio intelectual, para além da forte influência neorrealista, sentida no pós-guerra. Abria-se caminho ao que Eduardo Lourenço designou como “heterodoxia”.

 

COERÊNCIA E SENTIDO PRÁTICO

Pedro Tamen envolveu-se com coerência e sentido prático nesse triplo desafio, que era, a um tempo, político, religioso e cultural. António Alçada Baptista transforma a Livraria Morais da Rua da Assunção num centro de renovação intelectual e religiosa. Tamen entrou como sócio, juntando-se uma equipa constituída por João Bénard da Costa, Nuno Bragança, Luís de Sousa Costa, Helena e Alberto Vaz da Silva. Premonitoriamente, o que aconteceu com o nascimento do projeto da Morais teve projeção logo em 1959 em abaixo-assinados de fevereiro e março sobre “as relações entre a Igreja e o Estado e a liberdade dos católicos” e sobre os serviços de repressão do regime, cujos primeiros subscritores foram os Padres Abel Varzim e Adriano Botelho. Pedro Tamen apenas não assina por estar a prestar o serviço militar. Acresce que, em março de 1959, tem lugar a tentativa de Golpe da Sé, com a participação de elementos próximos da Morais, designadamente o Padre João Perestrelo de Vasconcelos, Manuel Serra, Francisco de Sousa Tavares, António Alçada Baptista e Jorge de Sena. A atividade editorial da Morais é intensa. Quando compulsamos os livros e autores publicados no Círculo de Poesia, verificamos como se trata de dar eco de um autêntico movimento de renovação da poesia portuguesa, num momento raro de confluência de grandes valores: Jorge de Sena, José Terra, Murilo Mendes, Cristovam Pavia, Vitorino Nemésio, João Maia, António Ramos Rosa, João Rui de Sousa, José Blanc de Portugal, José Cutileiro, Maria Alberta Meneres, E. M. de Melo e Castro, Alexandre O’Neill, Ruy Belo, Fernando Echevarria, Fernando Lemos, Salette Tavares, Ana Hatherly, Sophia de Mello Breyner… É impressionante a produção reunida, o que corresponde a uma ação persistente de Pedro Tamen, que não deixa, ele mesmo, de manter a sua própria produção poética. O cuidado extremo chega à parte gráfica e ao contributo decisivo de José Escada. Diz o testemunho de Pedro Tamen: «Não tenho a certeza, mas creio que o António Alçada já tinha pedido ao meu amigo, e dele, José Escada o lay-out das capas do futuro Círculo de Poesia.  Lembro-me, isso sim, de discutir com o Escada o tipo e qualidade da cartolina a usar, na qual seria colada a «etiqueta» com o belíssimo desenho do «sol» que se tornaria clássico.  As dificuldades relacionavam-se com o facto de a cartolina escolhida ser importada. (…) Mas tais dificuldades foram rapidamente ultrapassadas, rendidos que ficámos todos – o António, o Jorge de Sena e eu – à beleza indiscutível daquele projeto gráfico». Pedro Tamen prestará, porém, homenagem a António Alçada pelo facto de sempre ter acompanhado a coleção – que por razões diversas não pôde contar com Eugénio de Andrade, Herberto Helder, David Mourão-Ferreira, a Poesia-61 ou Mário Cesariny. Contudo, no essencial, estamos perante um verdadeiro panorama da poesia portuguesa da segunda metade do século, a que acresceram grandes nomes da poesia brasileira. Feitas as contas, até ao ano de 1975, sob a direção de Pedro Tamen, «o Círculo de Poesia publicou ao todo 70 livros novos, alguns dos quais reeditados uma e mais vezes, perfazendo até essa data a bonita soma de 75 edições de 36 autores».

 

EM PROL DA CULTURA

Pedro Tamen desdobrou-se em atividades em prol da cultura da língua portuguesa numa perspetiva de liberdade, culminando num quarto de século na Fundação Gulbenkian, nas áreas da Cultura e das Belas Artes, do Centro de Arte Moderna, do ACARTE e da Biblioteca de Arte. Consciente de que a democracia e a cidadania se constroem pelo reconhecimento do papel fundamental da cultura, da educação e da ciência, esteve sempre atento aos novos ventos no mundo do pensamento e das artes. Daí a sua relação, como artista e criador, com a memória. Não memória do passado, mas compreensão de um tempo que permanentemente se renova. Quando escolhe a epígrafe de Sá de Miranda, assume a dúvida e a contradição: “Alma, que fica por fazer desd’hoje / na vida mais, se é vã minha esperança, / que sempre sigo, que me sempre foge? / Já quanto a vista alcança, a não alcança”. O poeta procura esclarecer essa relação necessariamente imperfeita e contraditória. Não há memória que se complete a si mesma – ela será sempre indescritível, ao invés de uma “memória descritiva”. “Deixar correr o tempo sem memória/ entre memoriais de tudo quanto houve/ valendo-me assim do que os outros lembram/ para nada lembrar”. É, no fundo e sempre, a complexa relação com o tempo, que tanto perturbava Agostinho, o bispo de Hipona, que está em causa - a tripla dimensão do presente, articulando o agora, o passado e o devir, numa observação atenta e inesperada. Lembrança e esquecimento, eis o que tem estar sempre presente quando nos interrogamos sobre a existência. “Por sobre o ombro (dói!) lobrigo/ tantas confusas coisas, falo delas./.../o peso, o contrapeso, a palavra que digo. / Sufoco o medo a medo, e olho a esteira/ remudo e quedo, sentado na cadeira”. E não é um acaso a invocação de Sá de Miranda, já que nos remete ainda para o célebre poema: “Comigo me desavim, / Sou posto em todo perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim”. Com a memória, é também essa perplexidade que se manifesta. É o mistério da palavra que o poeta persegue, sempre preocupado com o domínio do ser. E é essa liberdade que a memória indescritível nos exige, capaz de compreender o limite do não alcançar no que a vista alcança. "Disseste: o sol nasceu. / Foi verdadeiramente então que o sol nasceu / e que nos habituámos todos a dizer / que o sol nasceu. / Às vezes pensamos que acontece várias vezes / mas é uma ilusão de ótica que não nos deixa ver / o grande círculo azul em cujo centro / tu dizes eternamente: o sol nasceu". A ironia completa a realidade. A memória permite que a palavra esclareça os limites do existir… Eis o caminho indescritível que Pedro Tamen procurou trilhar em pensamento e ação. E assim se pode compreender ainda o extraordinário tradutor que foi, demonstrando como o poeta cultivou um grande artífice da palavra, capaz de fazer da leitura de autores e obras consagrados a expressão da melhor escrita. Aí se sente o grande prazer da decifração.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

79. CULTURA E TOTALITARISMOS

II - FASCISMO


Michael Mann, define o fascismo como “a busca de um estatismo nacionalista transcendente e depurador através do paramilitarismo”, englobando cinco termos centrais: nacionalismo, estatismo, transcendência, depuração e paramilitarismo (The Sources of Social Power). Os principais redutos europeus, entre as duas grandes guerras, foram a Alemanha. Áustria, Hungria, Itália, Roménia e Espanha. Italianos e nazis foram, de longe, os mais relevantes. O Estado Novo português, autoritário e ditatorial, é tido como um dos exemplos dos regimes “fascistas entre aspas”, em que as tendências fascistas são diluídas por outra tendência: o deus, pátria e família de Salazar. É tido como um regime corporativista que aumentou o estatismo e o nacionalismo orgânico, culpabilizando e intensificando a perseguição e exclusão das minorias e da esquerda, chegando a apropriar-se de ideias fascistas para reprimir os verdadeiros fascistas, assim sobrevivendo e mantendo o poder.


O fascismo também tinha como imperativo urgente a necessidade de construção de um homem novo. Os fascistas italianos incorporavam-no na romanidade. Os nazis desejavam um homem novo biológica e culturalmente puro, uma raça superior que fosse a representação mais pura do arianismo, habitando solo ariano, aí procurando os fundamentos da sua cultura nacionalista.      


NAZISMO OU NAZIFASCISMO
      


O nazismo é tido como o expoente máximo ou uma forma extrema do fascismo (ou nazifascismo), desde logo pela sua depuração reforçada pelo racismo e antissemitismo, em que judeus e outros grupos tidos como indesejáveis (ciganos, homossexuais, deficientes físicos e mentais, pacientes de hospitais psiquiátricos) foram perseguidos, escravizados ou assassinados, membros da oposição política e religiosa brutalmente reprimidos, presos, mortos ou coagidos ao exílio.  


Daí que o nazismo, mais étnico, seja tido como mais mortífero e radical que o fascismo italiano (entre outros), que identificava os inimigos em termos essencialmente políticos.


Não surpreende que a depuração nazi tivesse efeitos devastadores e imediatos nas artes e cultura em geral, depurando liminarmente artistas e intelectuais de origem judia ou tidos como desajustados sociais.  


Enquanto o fascismo italiano integra o futurismo de Marinetti, o nazismo condena toda a “arte degenerada” das vanguardas. Tal arte decadente, além de incluir sempre as obras de autores de origem judaica, integrava também todas as obras de arte e movimentos culturais que estavam em desacordo com a conceção e o ideal de beleza da arte nazi, que se queria clássica, naturalista, figurativa e popular, e não elitista. Arte degenerada era a arte moderna, incluindo movimentos como a Bauhaus, cubismo, futurismo, dadaísmo, impressionismo, expressionismo, surrealismo, pintura metafísica, nova objetividade e fauvismo.   


Numa exposição feita em Nuremberga, em 1933, e depois em Munique, em 1937, a “arte degenerada” foi exposta e posta a ridículo, colocando-a ao lado de pinturas,  esculturas e fotografias de doentes mentais e de pessoas com deficiências físicas, onde foram expostas obras de Kirchner, Klee, Klein, Chirico, Chagall, Kandinsky, Max Ernst, Gauguin, Mondrian, Otto Dix, Emil Nolde, entre tantos outros. Algumas foram vendidas no estrangeiro ou trocadas por arte adequada aos padrões nazis, as demais queimadas, sendo hoje clássicos da modernidade as que sobreviveram.  


Em 1933, é criado o Ministério da Informação e da Propaganda, a cargo de Goebells,  que tem a cargo a nazificação da cultura, controlando todas as suas vertentes, desde a literatura, o cinema e a música, à rádio e às artes plásticas, obrigando os artistas a aderir às diferentes câmaras profissionais, enquadradas e monitorizadas pela Câmara da Cultura.        


À nazificação da cultura, agudizada pelo holocausto, campos de concentração, esterilização obrigatória de pessoas portadoras de defeitos hereditários, numa desumanização e violação sistemática dos direitos humanos, acresce a fuga e exílio de artistas e intelectuais.   


Thomas Mann, emigrou para a Suíça, em 1933, ano da chegada de Hitler ao poder, perdendo a nacionalidade alemã.  


Walter Gropius, fundador da Bauhaus, fechada pelos nazis, em 1933, emigrou para os Estados Unidos. 


Após o banimento e queima dos seus livros, Erich Maria Remarque, tido como descendente de judeus, emigrou para os Estados Unidos.  


Bertolt Brecht, após a ascensão de Hitler, exila-se.   


Albert Einstein, físico alemão, nascido numa família judia alemã, exilou-se e naturalizou-se norte-americano quando os nazis chegaram ao poder.


Franz Jagerstatter, objetor de consciência austríaco durante a segunda guerra mundial, foi condenado à morte e executado por se recusar a combater pelos nazis, sendo declarado mártir e beatificado pela igreja católica.  


Muitos outros emigraram ou exilaram-se, como George Grosz (pintor), Fritz Lang (cineasta), Freud (criador da psiquiatria), Hannah Arendt (filósofa), Gunther Stern (filósofo e ensaísta, primeiro marido de Hannah Arendt), Ernst Toll (pacifista, poeta, dramaturgo) e os escritores Walter Benjamim, Alfred Doblin, Hermann Broch, Emil Ludwig, Heinrich Mann, Else Lasker-Schuler, Odon Von Horvath, Anna Seghers, Joeph Roth, Stefan Sweig.      


Mas há sempre o perigo do hipotético ressurgimento do fascismo, cujo totalitarismo amordaça e corta a liberdade criativa, ao invés de uma sociedade onde haja liberdade de expressão e de movimentos.   


Em qualquer caso, o totalitarismo do Estado, é apanágio dos extremos e radicais, quer de esquerda ou de direita, com reflexos similares a nível cultural.  

 

02.07.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


78. CULTURA E TOTALITARISMOS

I - COMUNISMO

Nos Estados totalitários, seja qual for a sua ideologia, de direita ou de esquerda, o Estado toma a seu cargo e vigilância a definição de normas a que a arte, artistas e intelectuais se devem submeter. É obrigatório que a cultura obedeça a imperativos ideológicos que se integrem na norma vigente. Em substituição da perigosa liberdade de expressão e de pensamento, e da liberdade individual dos criadores, sobressai a imposição de uma arte oficial. São seus exemplos o comunismo e o fascismo (no fascismo, com especial destaque para o nazismo ou nazifascismo).  


Para Lenine, na antiga União Soviética, a arte ocidental era decadente, burguesa, reacionária e capitalista. A arte deveria ter um fim inteligível, servindo as necessidades do povo e do regime.    


Era imperativo construir um homem novo, diferente do modelo das democracias liberais burguesas e capitalistas.   


Na nova Rússia Soviética o homem novo é o proletário, a classe do proletariado, que triunfou do capitalismo.      


Se inicialmente os artistas estavam com o sistema, proporcionando um ideal utópico idealizado do comunismo, foram sendo censurados, exilados, acusados,  condenados, presos, torturados, coagidos a trabalhos forçados, assassinados, ostracizados, difamados, perseguidos, obrigados a emigrar, numa progressiva centralização e controlo da produção cultural, impondo a arte oficial por expulsões, intolerâncias, marginalizações, nacionalização de museus, de coleções de arte privada, proibição de livros, filmes, imprensa e editoras independentes, purgas em bibliotecas e perseguições de intelectuais tidos por individualistas, pequeno-burgueses, inimigos do povo, sabotadores e traidores. Tudo apoiado numa propagando ao serviço de uma nova arte.   


Esse endurecimento na política cultural foi mais sentido com o estalinismo, através do realismo socialista, obrigando os que queriam trabalhar a pertencer à União dos Artistas Soviéticos, que tinha o monopólio da distribuição dos recursos materiais e dos instrumentos de trabalho. 


Artistas e cidadãos são compelidos a apoiar e a construir o realismo socialista, nomeadamente aquando da chegada ao poder de Estaline, em 1925. 


Malevitch, pai do suprematismo, denunciado, em 1929, de “subjetivismo”, atacado pela imprensa, preso, torturado, proibido de dar aulas e acusado de espionagem, morreu pobre e abandonado.     


Tatlin, um dos fundadores do construtivismo, foi esquecido e marginalizado após o desinteresse político pelas obras de vanguarda, acabando por se acomodar e ser obrigado, em fim de vida, às regras de criação artística impostas pelo estalinismo.


Maiakovski, escritor, poeta e desenhador, ter-se-á suicidado, na versão oficial, subsistindo até hoje a hipótese de ser assassinado por razões políticas.    


Pavel Filonov, teorizador a autor da arte analítica, recusou o realismo socialista, foi dado como traidor e inimigo do povo, morrendo na penúria.  


Boris Pasternak, tido como “subjetivista”, foi impedido, por razões políticas, de receber o Nobel da literatura, em 1958, pela sua obra Doutor Jivago.  


Alexander Soljenítsin, romancista, dramaturgo e historiador, preso, exilado e condenado a trabalhos forçados, autor de O Arquipélago de Gulag, Nobel da literatura em 1970, acabou por ser expulso do país, perdendo a nacionalidade.


Andrei Sakarov, físico e defensor dos direitos humanos, forçado a residência fixa, foi premiado com o Nobel da paz, em 1975, que foi proibido de receber, por razões políticas. 


Rudolf Nureyev, um dos mais aclamados bailarinos de sempre, pediu asilo no ocidente, em 1961, quando em turnê com o Kirov, em Paris, preferindo uma vida em liberdade à de conforto e glória na URSS, sendo julgado à revelia, condenado e só reabilitado em 1997, após a queda do muro de Berlim. 


Eisenstein, cineasta, foi asfixiado e dificultado na sua criatividade, cuja liberdade defendia.    


Outros, como Wassily Kandinsk e Marc Chagall, emigraram.


Em toda a Europa de Leste, e não só, restava ao cidadão comum e artistas descontentes a resignação, serem apolíticos. Se manifestassem um descontentamento aberto, havia a dissidência, com os inerentes riscos: perda de direitos cívicos e de cidadania, fixação de residência, internamento psiquiátrico, prisão, tortura, morte, exílio, retaliações, intimidações à família e amigos, extensivos a outros regimes comunistas, como em Cuba (Reinaldo Arenas, Guillermo Cabrera Infante, Jesús Díaz, Roberto San Martín, Herberto Padilha), China (escritora Ding Ling, Campanha das Cem Flores), Polónia (Adam Michnik), Hungria (George Konrad), Checoslováquia (Vaclav Habel, Milan Kundera, Jan Patocka), Roménia (Paul Goma). Mesmo depois de conhecido o relatório Krustchov, em 1958, sobre os crimes do estalinismo, como o Holodomor. 


É fácil ser-se comunista numa sociedade e num Estado onde haja liberdade de expressão e física, mas irrealizável ser-se livre numa sociedade e num Estado comunista.

 

25.06.21
Joaquim Miguel de Morgado Patrício