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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


160. A AVENTURA DA FILOSOFIA, DA CULTURA E DA DEMOCRACIA


Na filosofia, na cultura e na democracia deve imperar o incerto, o imperfeito, o impermanente, a descoberta, a diversidade, a dúvida, o que nos interpela, o que promove o diálogo, o estudo, a investigação, o que nos estimula e atrai a criar, a continuar, a inovar. 


Se a filosofia é uma formulação de porquês geradores de outros porquês, se a cultura, na sua pluralidade, é uma interpelação permanente da realidade que nos liberta e transcende, se a democracia se funda na heterodoxia da liberdade de expressão, de pensamento, de informação, o que as deve entusiasmar é o que queremos saber e não sabemos, o que nos deve incentivar a uma disponibilidade constante para a aventura, desbravando e mapeando novas realidades, conhecimentos e saberes.   


São a continuação da curiosidade, um formular de perguntas com poucas ou nenhumas respostas, do querer descobrir ou saber, um processo infinito e intemporal de um diálogo intergeracional que envolve ouvir, colaborar, participar, conflituar e negociar, rumo a um ideal de referências tidas como comuns e sem absolutização de valores pré-fixados.     


Prevalecendo nelas o ir mais além do além, a sua evolução é gradual e por fraturas, qual matéria viva e incandescente, que pulsa, respira e demanda o desconhecido.


E se o nosso mundo é feito pela variedade de pequenos mundos, o relativismo será um dos seus fundamentos, aceitando, reconhecendo e valorando a ideia de que a capacidade de nos aproximarmos da verdade intrínseca e estrutural da filosofia, cultura e democracia deriva, no essencial, do escrutínio, do sentido crítico, do pleno exercício do contraditório, da complexidade e multiplicidade de ideias que proporciona, aceitando o compromisso como um fim inevitável a alcançar, com adequação, proporcionalidade e razoabilidade.


Questionando o que sabemos e não reunindo um conjunto de verdades absolutas, todos podemos filosofar, ser mensageiros culturais e defensores da democracia, mas nem todos querem fazê-lo, desde logo porque mal visto, por muitos, o querer pensar sobre nós, o que nos rodeia e ultrapassa, não admirando que tal atitude seja estimulante para uns (democratas) e perigosa para outros (autocracias, ditaduras e totalitarismos).


É nos domínios em que é maior a nossa ignorância que a aventura filosófica, cultural e democrática é mais importante, onde a noção de liberdade é mais urgente, não se adaptando a organizações hierárquicas anárquicas, ditatoriais ou totalitárias. 


O seu cerne é a liberdade, mesmo em tempos de escuridão, como escreveu o poeta: “Uma pequenina luz bruxuleante/ … brilhando no extremo da estrada/ aqui no meio de nós/ … Mas brilha/ …  Brilha” (Jorge de Sena, “Uma pequenina luz”).        


02.02.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


159. O NÃO PODER E O SUPERPODER DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA


Rareia alguém querer que os seus filhos sustentem permanentemente as suas vidas como escritores, desenhadores, pintores, escultores, compositores, músicos, fotógrafos, ilustradores, através do cinema, do teatro, da dança, da moda, de experiências artísticas que possibilitem misturar imagens, movimentos, sons, textos, pela via digital ou computacional.


Quase ninguém, ou “ninguém”, quer filhos artistas ou criadores artísticos, porque há a perceção, na sociedade, que a criação artística e as artes em geral não dão, aos seus mentores e protagonistas, estabilidade e sustento, mas sim carência, incerteza, insegurança.     


Mesmo que únicos, geniais ou dotados de uma singularidade diferenciadora, essa genialidade deve ser canalizada para áreas mais estáveis, portadoras de conforto e de uma garantia de sucesso em termos económicos e sociais.


Querem-se filhos economistas, engenheiros, gestores, informáticos, juristas ou médicos, mas não profissionais do âmbito e domínio artístico, mesmo que exaltemos grandes escritores, poetas, músicos, pintores, escultores, realizadores, atores, começando por aqueles que podemos fruir, ler ou ouvir nas nossas casas.


No entanto, todos reconhecemos que os criadores artísticos são uma grande parte das referências do mundo em que vivemos, estimulando e escrutinando o sentido crítico das coisas, inovando e superando a nossa condição humana, enriquecendo a cultura com o belo, criações e ideias novas, numa aventura sem fim. 


E como referências do nosso espaço existencial podem definir a História, criar um registo ou deixar um testemunho para o futuro. Para que o futuro o possa ler, ouvir, reproduzir ou ver. 


Se a História fala de poderosos, que tiveram poder sobre milhares ou milhões de pessoas enquanto vivos, ao invés do pouco poder que a quase totalidade dos criadores artísticos tiveram em vida, após a morte de todos sobrevive apenas o testemunho e o registo que ficou como superpoder dos escritores, pintores, escultores, músicos, cineastas, entre outros, como classificação e memória coletiva de uma época e civilização, como o exemplifica a “Guerra e Paz”, de Tolstoi, obra que melhor retrata a invasão da Rússia por Napoleão. 


Mesmo quando perseguidos ou assassinados em vida, muitos desses criadores sobreviveram e sobrevivem, com o legado da sua obra, após a morte, através de um poder (ou superpoder) que contrasta com o pouco ou nenhum que tiveram enquanto vivos.     


26.01.24
Joaquim M. M. Patrício

A VIDA DOS LIVROS

  
De 30 de outubro a 5 de novembro de 2023


A Cultura como Enigma
procura, num conjunto de crónicas e ensaios, salientar a importância das Humanidades como aprendizagem do ser, do conhecimento, do saber fazer e do viver com os outros, ligando cultura e ciência e visando superar a indiferença e o relativismo que subalternizam a memória, que absolutizam os contextos e os mercados e que põem em causa a dimensão emancipadora e universal da dignidade da pessoa humana e a salvaguarda da liberdade e dos direitos humanos.


UM MOMENTO ESPECIAL
Num momento em que o Direito e a Cultura da Paz são menosprezados e desrespeitados, importa recuperar as virtualidades do universalismo humanista, longe da separação e da fragmentação de um formalismo que pode tornar os seres humanos súbditos ou instrumentos de novas idolatrias. O elogio do livro e da leitura significa, assim, a procura de uma emancipação baseada na autonomia, na liberdade e no sentido crítico.  O enigma da cultura está, assim, no misterioso diálogo com as gerações que nos antecederam e com os pensadores, artistas, cientistas, criadores, que podemos encontrar na leitura ou no usufruto das mais diversas formas de arte e de conhecimento. É esta a pergunta fundamental da esfinge na porta de Tebas.


Eis o introito desse conjunto de reflexões: «Gosto das casas com livros e da alma que eles alimentam. E falar de livros é lembrar a sua presença a ocupar amigavelmente todos os cantos das casas onde eles existem. Não concebo a hospitalidade de uma casa sem a omnipresença dos livros. E não há prazer maior do que ir à estante e folhear um livro, que já não recordamos, do qual temos uma lembrança vaga ou que julgamos ter bem presente. No fundo, os livros fazem parte dos nossos afetos. No entanto, porque os livros vivem, ou não fossem a projeção permanente dos seus autores nas nossas vidas, é normal que quando os relemos, e julgamos conhecê-los, descubramos novas ideias, novas perspetivas, cambiantes diferentes, com se fossem eternamente novos. As bibliotecas são sempre lugares iniciáticos, misteriosos, labirintos autênticos e inesgotáveis.


ENCRUZILHADAS, BIFURCAÇÕES
Os contos de Jorge Luís Borges têm a ver com esses caminhos, encruzilhadas, bifurcações, becos, saídas que nos entusiasmam ou exasperam. As minhas primeiras recordações da biblioteca fantástica de meu avô têm a ver com as Enciclopédias e os Dicionários. Foi por aí que comecei, na tentativa, sei hoje que vã, de procurar as saídas dos labirintos. E lembro-me bem dos sábados, passados até que a luz se desvanecesse, a correr de Herodes para Pilatos nas várias entradas do velho “Dicionário de Portugal”, a descobrir os vultos do nosso oitocentismo, a desvendar uma gigantesca Enciclopédia espanhola ou o “Larousse Illustré”, a folhear os Atlas e os livros imponentes e pesados com as reproduções já um pouco desmaiadas das grandes obras de arte do mundo, nos grandes Museus, desde o Louvre aos Ofícios de Florença, passando pelo misterioso Hermitage…


Eram horas esquecidas, em companhia da multidão de mortos que povoavam essa encruzilhada única que era a livraria de meu Avô (biblioteca e livraria eram sinónimos no vocabulário lá de casa). Penso que o vício dos livros veio no meu código genético. Nunca me senti bem sem eles. E quando há o vício de lidar com livros, tudo o que vem à rede é peixe. E, a pouco e pouco, depois da História, que havia para todos os gostos (o meu Avô era professor de História e Geografia), vinha o território da poesia e dos romances - dos romances, inevitavelmente. Entre duas revoltas e quatro viagens virtuais ou imaginárias (Odisseia, Ilíada, Eneida, Gulliver, Robinson e Júlio Verne) ia à poesia (Camões, Garrett, Antero, Cesário, Pessanha…) e aos romances, às coleções completas de Camilo e de Eça, sem restrições. Lá estavam todos. E rapidamente pude perceber por que razão Tolstoi era o romancista preferido dessa livraria ordenada e silente. Em frente de um antigo Atlas, perante a trajetória audaciosa e suicida do Imperador, jamais esquecerei as descrições épicas de “Guerra e Paz”.


Aos mortos das enciclopédias juntava-se a outra multidão das personagens romanescas: Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, Zé Fernandes, Jacinto, Carlos, Maria Eduarda, Basílio, Luísa… Stendhal confundia-se com Julien Sorel, com Fabrice del Dongo, com Clélia ou Sanseverina. Só Flaubert permitia compreender a ascensão e a queda de Cartago, através de Salammbô… E fica uma enorme saudade dessas aventuras e de quando minha Mãe vinha dizer serenamente que era chegada a hora de voltar».   


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO


CVII - OS MÉRITOS CULTURAIS DE CAETANO VELOSO


1. Apesar de se assumir, em primeiro lugar, como brasileiro, houve sempre em Caetano Veloso (CV) uma admiração e deslumbramento pela língua portuguesa. Não há nele ressentimentos em relação ao nosso idioma, que não tem como “imperialista”, “colonialista”, neocolonialista”, “racista”, aceitando-o como um mosaico de falas dos mais variados lugares, pois não há Portugal sem Brasil, sem África, sem as Índias, o Extremo-Oriente, sem o mundo por onde nos deslocalizamos e dispersamos geograficamente, sem uma vocação de extroversão, porque como profundamente o compreendeu Fernando Pessoa, não há o português e a lusofonia sem a língua portuguesa.


Há décadas, quando no seu país natal havia declarações desfavoráveis sobre a língua portuguesa, isolada da dos falantes dos países vizinhos e de todo o continente sul americano, CV foi uma das vozes que se fez ouvir para afirmar que tinha todo o orgulho em falar português, dada a sua singularidade na diversidade e ser um elemento diferenciador dos outros povos da América Latina e das Américas.


Este sentimento de amor e afeição ao Brasil e à língua portuguesa, e por arrastamento a Portugal e aos lusófonos, manifestou-o no decurso da sua vida e sólida carreira, ao afirmar: “O nome do Brasil não apenas me parece, por todos os motivos, belo, como tenho dele desde sempre uma representação interna una e satisfatória”, “Santo Amaro não tinha ricos nem pobres e era bem urbanizada e tinha estilo próprio: todos se orgulhavam com naturalidade de ser brasileiros. Achávamos a língua portuguesa bela e clara” (Verdade Tropical, edições quasi). 


Não há melhor exemplo, para celebrar o idioma cmum, que a canção “Língua”, onde têm cabimento e se evocam Camões, Pessoa, Carmen Miranda, Chico Buarque de Hollanda, Glauco Mattoso, Arrigo Barnabé, Maria da Fé, a Flor do Lácio Sambódromo, a Lusamérica, Guimarães Rosa, a Mangueira, Luanda, Scarlat Moon Chevalier, sendo dela os versos: “Minha pátria é minha língua”, “A língua é minha Pátria/E eu não tenho Pátria, tenho mátria/Quero fátria”.


Como escritor fala-nos da “bela carta de Pero Vaz de Caminha narrando a viagem ao rei de Portugal”, no movimento Tropicália e a preocupação que houve em não se confundir com o luso-tropicalismo de Gylberto Freire que tem “como algo muito mais respeitável”, de Agostinho da Silva, “o fascinante português fugitivo da salazarismo e que via no Brasil um esforço de superação da fase nórdico-protestante da civilização”, que “Era um paradoxal sebastianismo de esquerda que se nutria de lucidez e franco realismo e não de mistificações”, sem esquecer que “A extraordinária cantora de fados portuguesa Amália Rodrigues já era conhecida desde muito antes de a bossa nova surgir e parecia eterna”.       


Em 1985, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, cantou o fado “Estranha Forma de Vida”, em português de Portugal, desconhecendo que Amália estava presente, subindo esta ao palco, perante uma ovação emocionada da assistência, gesto decisivo para o ressurgimento do fado e um reencontrar do público com a fadista, numa atitude desafiante e ousada, tanto mais que, segundo CV, “(…) eu imitava muito convincentemente o sotaque português e os arabescos vocais das cantoras de fado, habilidade que levava as plateias a esquecerem o quanto a música portuguesa era convencionalmente considerada ridícula e a deixarem-se emocionar por ela, brindando-me com ovações”.     


2. Foi este artista que universalizou canções como “Alegria, Alegria”, “Você é Linda”, “Leãozinho”, “Língua”, que recentemente (19.09.23) recebeu a medalha de Mérito Cultural do governo português, que assim se apresenta: “Meu nome é Caetano porque nasci no dia de são Caetano, em louvor do qual minha mãe manda celebrar missa todos os anos, mesmo na minha ausência. Nunca me senti uma exceção por causa disso”.   


Criada “(…) para distinguir pessoas singulares ou coletivas, nacionais ou estrangeiras, pela sua dedicação ao longo do tempo a atividades de ação ou divulgação cultural” (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 123/84, de 13.04), a medalha de Mérito Cultural atribuída a CV, embora merecida, é insuficiente, dado o seu destinatário, in casu, ser um dos maiores defensores e divulgadores da nossa língua, como cantor e músico, além de compositor, produtor, escritor, como património comum lusófono e da humanidade. 


A distinção, meritória, peca por “inacabada”, embora reforçada pela atribuição a agraciados, entre outros, como Maria Bethânia, sua irmã (música/língua portuguesa), Agustina Bessa Luís (literatura), Álvaro Siza Vieira (arquitetura), António Ramos Rosa (poesia), Campo Arqueológico de Mértola (património cultural), Centro Nacional de Cultura (divulgação cultural), Eduardo Lourenço (filosofia/ensaio), Eugénio de Andrade (poesia), Eunice Muñoz (teatro), Fernanda Montenegro (teatro), Jorge Borges de Macedo (história),  Manoel de Oliveira (cinema), Maria João Pires (música), Orquestra Gulbenkian (música) Roberto Barchiesi (língua portuguesa).   


Daí ser justo questionarmo-nos duma eventual atribuição da Ordem de Camões, de um doutoramento honoris causa (em que a universidade espanhola de Salamanca se antecipou), incluindo o prémio Camões, este na sequência de uma interpretação mais ampla do prémio atribuído a Bob Dylan (Nobel da literatura) e Chico Buarque (Camões), por critérios não movidos por uma interpretação literal e estritamente literária.        


Portugal e a língua portuguesa não se complementam nem realizam tão só na Europa, havendo um compromisso e desígnio estratégico atlântico e global que se afirma levando a Europa e o Mundo à lusofonia e esta à Europa e ao Mundo, sendo a língua portuguesa o seu motor e veículo primordial, havendo que reconhecer, a esse nível, o contributo crucial de CV.


20.10.23
Joaquim M. M. Patrício

 

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


150. INTERROGAÇÕES CULTURAIS


Se tomarmos como referência um modelo antropológico, a cultura não é um bem de primeira necessidade, por confronto com o ar que respiramos, a água, a alimentação, o vestuário, a saúde, tidos como bens primários e de sobrevivência, pelo que, nesta perspetiva, podemos viver sem ópera, cinema, teatro, bailado, literatura, as letras e as artes em geral, embora haja a tradição de ser-se tanto mais civilizado quanto mais culto, de que não há civilização sem cultura, sob pena de vivermos em barbárie. 

Se se aceita, em termos antropológicos puros, que se pode sobreviver sem a cultura erudita, também podemos permanecer vivos, pelo mesmo critério, sem escrita e a palavra falada, sem educação, sem medicina, sem justiça, por exemplo, embora não possamos ter educação e saúde sem o saber associado ao culto do estudo, da investigação, da criatividade, da invenção, o que implica não excluir a escrita, a fala, a linguagem especializada, a ciência e a técnica, incluindo as humanidades e as artes.  

É inexequível positivar a realidade que apelidamos de cultura, dada a sua adaptabilidade, flexibilidade e elasticidade, sendo um universo escrutinado e questionado em permanência, englobando tudo o que a natureza não produz e lhe é adicionado pela criação e espírito humano, desde uma definição mínima e seu sentido restrito, a um significado intermédio e uma interpretação mais ampla, numa desconstrução e refazer permanente, negando determinismos e purismos.

Nesta sequência, é redutor não ter a cultura como um bem de primeira necessidade, por maioria de razão se pensarmos que tudo é passageiro e só fica a escrita, o património histórico, a fotografia, o audiovisual, a digitalização, sem os quais não há “eternidade”, mesmo que os seus autores, em vida, não tenham tido o poder de mandar, mas sim o de imortalizar do esquecimento histórias e biografias de poderosos que não sobreviveram à lei da morte, definindo a Cultura a História e a memória coletiva duma civilização  post mortem e dos que nela foram seus intervenientes.       


15.09.23
Joaquim M. M. Patrício

A VIDA DOS LIVROS

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   De 14 a 20 de agosto de 2023

 

Recordamos o testemunho de Rita Azevedo Gomes no texto que escreveu na revista “Electra” (Ausência Imperfeita – Agustina - nº 20, Primavera de 2023).

 

Agustina Bessa-Luís _ com legenda.jpg

 

UMA ESTRANHA ESCOLHA

 

Conta-se que um dia, em 1995, a Cinemateca pediu a Agustina uma sugestão de filme para apresentar na iniciativa “Terças-Feiras Clássicas”. Então sugeriu o filme As You Like de Paul Czinner, de 1936, raríssimo, e que nunca fora exibido naquelas sessões cinéfilas. Era uma opção misteriosa, que causou surpresa entre gente muito habituada a este género de escolhas. Moveram-se céus e terra, e lá apareceu a cópia. Quando houve oportunidade, perguntaram qual o motivo de tão inusitada escolha. E a resposta veio para espanto de todos. Não se tratava de qualquer memória de algo que a escritora tivesse visto alguma vez, nem se tratava de lembrar a primeira interpretação de Sir Laurence Olivier de Shakespeare. Não, Agustina nunca tinha visto o filme e tinha curiosidade em vê-lo pela primeira vez. Interessava-lhe ver o desempenho de Elisabeth Bergner, de quem ouvira falar, quando teria oito ou nove anos, como uma grande atriz, superior à Garbo, e desejava confirmar com os próprios olhos e ouvidos o que ouvira aos amigos de seu Pai, no tempo em que este a levava às matinées do Passos Manuel no Porto. Era assim Agustina, sempre desarmante na enorme capacidade de surpreender.

 

O testemunho de Rita Azevedo Gomes no texto que escreveu na revista “Electra” (Ausência Imperfeita – Agustina - nº 20, Primavera de 2023), confirma que Agustina Bessa-Luís é um caso especial. “Lembro a Helena e o Alberto Vaz da Silva, o Manuel Lucena e o João Bénard da Costa, que não parava de falar do prodígio da inadjetivável escrita da autora d’A Sibila”. Jorge Alves da Silva, João Botelho e Manuela Viegas juntavam-se a tal grupo de admiradores. “Descíamos juntos a Rua da Misericórdia, ao Chiado, pelo passeio da Guimarães na expectativa de ver exposto na vitrine o último romance de Bessa-Luís”. E havia histórias contadas por Joaquim Manuel Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge, do tempo em que visitavam a escritora na sua casa no Porto. E temos de lembrar, na continuação deste preito de homenagem, o outro caso de uma relação contrastada que tem a ver com Manoel de Oliveira. Tratou-se de Francisca. Sem entrarmos nas clássicas discussões sobre as soluções de títulos e de enredos, Agustina teria gostado mais que tivesse sido assumido o título do romance original, Fanny Owen, mas Oliveira preferiu a proximidade, até para que o ambiente romântico ficasse mais evidente. Para o cineasta haveria que garantir a fidelidade aos textos e à palavra, mas igualmente o recurso à magia da representação. Mais do que na representação do teatro, teríamos a fixação das imagens em movimento, suscetíveis de ser repetidas, como se o tempo pudesse ser revisto e a reflexão tivesse uma nova oportunidade. A cena recordada é a dos momentos finais da protagonista no suspiro derradeiro: “Não há por aí um homem que ame?”. Paulo Rocha estava investido no papel de médico e Agustina, fora do plano de cena, assistia ao desenrolar da cena. Rita Azevedo Gomes ocupava-se em ver o desenrolar da filmagem – “a voz ondulada do Paulo Rocha; o riso menineiro e sagaz de Agustina”. E depois importaria que o cerimonial do passamento fosse adequado e sentido: “Os pés nus têm de ficar descobertos”.

 

LEMBRAR “FRANCISCA”

 

Teresa Menezes, no papel de Francisca, deveria aparecer como alguém que assumia em pleno o drama representado. E não poderia esquecer a ligação entre as palavras escritas e a vida vivida e mortal. “A alma não é uma cadeira que se oferece a uma visita. A alma é um vício”. De facto, falar de Agustina é assumir um paradoxo, uma aposta, a capacidade de ver o avesso e o direito das coisas. Por isso mesmo, ela se lembrou de Elisabeth Bergner em As You Like, preferindo falar não de algo que pudesse conhecer realmente, mas de uma impressão original, apreendida sem preconceitos. Por certo que teria ouvido falar das lendas de Bergner (até nos misteriosos ecos no celebrado All About Eve de J. Mankiewicz), mas o que lhe interessava verdadeiramente era cultivar a surpresa em diferentes registos – para si própria e para os seus interlocutores. Frederico Lourenço, não por acaso, fala de «um percurso, afinal de contas, demasiado desconcertante na sua mescla de arrojo e de convenção para poder almejar esse estatuto incolor, outorgado aos pouquíssimos escritores que têm o azar de ser aclamados por todos os críticos, que é o de serem ‘pardamente consensuais’».

 

Rita Azevedo Gomes lembra o seu filme A Portuguesa, baseado num texto de Robert Musil. Sobre esse conto, Agustina disse em 1966: “como quem atinge um segredo através do anódino, ele aflorou como ninguém essa sombra melodiosa e fria”. Mas que fique esclarecido: não é infiel a portuguesa; contudo é mais do que isso. “A fidelidade da portuguesa é o que aniquila o marido; é uma fidelidade que não tem nada a ver com a mesura da virtude nem com o reflexo do tédio. “É um estado de graça, algo blasfemo talvez e não se sabe desafiador”. Para quem lê o conto e vê o filme encontra imbrincados dois caminhos paradoxais – a virtude e a sua recusa. Musil terá ido buscar esta portuguesa ruiva ao extraordinário quadro póstumo de Ticiano, feito por encomenda de Carlos V, da muito bela Imperatriz Isabel de Portugal, sentada “como quem espera a confirmação de uma notícia importante, sem ansiedade e também sem abandono”. E, com base nesse conto, emerge um diálogo misterioso escrito por Agustina, a pedido da realizadora. Musil dá-nos o enigma e a romancista encarrega-se de o completar com outra interrogação perturbadora: “Dizem que tenho amor pelos gatos que têm um pacto com o demónio. Os gatos têm uma alma de filósofo. É só isso. O diabo não é filósofo porque inveja Deus e a criação do mundo”. Tudo, afinal, se liga. Agustina era portentosa na definição emblemática dos temas. O lançamento das narrativas envolvia um surpreendente jogo de ideias e de palavras. Por isso, o testemunho de Rita Azevedo Gomes permite compreender encontros e desencontros na representação das palavras. É o princípio da incerteza que funciona, há o ganhar e o perder e os dois eram fascinantes para Agustina. “Portugal é tímido e ama a sua rotina: preza uma felicidade que tem de pagar pelo preço das suas submissões” (As Fúrias). Tinha, ao invés, o prazer da audácia. E volto a Frederico Lourenço: “À cigarra compete apenas concentrar-se no seu próprio canto, independentemente da zurraria dos burros que criticam (cito aqui os termos bem conhecidos do poeta helenístico Calímaco). Lição em que Agustina foi exemplar».     

 

Guilherme d'Oliveira Martins

ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA


M. MIRANDÊS


Falo de espíritos bem vivos. Os falantes distribuem-se principalmente por uma área de 550 quilómetros quadrados, conhecida como Terra de Miranda, formada pelo concelho de Miranda do Douro e as freguesias de Angueira e Vilar Seco no concelho de Vimioso. Também se deve incluir o território de Caçarelhos. A língua mirandesa é o nome oficial que recebe o asturo-leonês persistente em território português. O mirandês tem três subdialetos (central ou normal, setentrional ou raiano, meridional ou sendinês), dispondo de um dicionário, gramática e ortografia próprios; os seus falantes são em maior parte bilíngues ou multilingues. O mirandês é, desde 1999, a segunda língua oficial de Portugal. A preservação da língua mirandesa deve-se à geografia e ao isolamento das Terras de Miranda, sede episcopal. Os rios e as cordilheiras são fatores cruciais para a criação de uma "fronteira linguística". O rio Sabor isolou a área da influência da língua portuguesa. Outro fator foi a proximidade de Espanha, com o comércio centrado no turismo espanhol. A cidade recebe espanhóis do antigo Reino de Leão, que muitas vezes falam asturiano. Assim, o mirandês chegou aos nossos dias, defendido também pelos espanhóis de fala asturiana. Havia muitos anos que o mirandês não era falado no coração da comarca, Miranda do Douro, mas, nos últimos anos, a deslocação das pessoas das aldeias para a cidade trouxe o mirandês de volta. As aldeias preservaram melhor a língua antiga. São naturais os entraves, como se nota em "Lição de Mirandês: You falo como bós i bós nun falais como you" de Manuela Barros Ferreira, onde é evidente a natural fragilidade da língua mirandesa face ao português. Não se fala o mirandês quando os alunos estão em situações formais, como por exemplo na relação com o professor. Então a língua portuguesa prevalece. A língua mirandesa é reservada para contextos familiares, do quotidiano ou mesmo de extrema intimidade.

Eis o exemplo de uma frase em mirandês com a respetiva tradução em português, num texto de Amadeu Ferreira, um dos grandes divulgadores da língua mirandesa. «Muitas lhénguas ténen proua de ls sous pergaminos antigos, de la lhiteratura screbida hai cientos d'anhos i de scritores hai muito afamados, hoije bandeiras dessas lhénguas. Mas outras hai que nun puoden tener proua de nada desso, cumo ye l causo de la lhéngua mirandesa». E eis a versão portuguesa. «Muitas línguas têm orgulho dos seus pergaminhos antigos, da literatura escrita há centenas de anos e de escritores muito famosos, hoje bandeiras dessas línguas. Mas há outras que não podem ter orgulho de nada disso, como é o caso da língua mirandesa».

Apresentamos ainda o texto do projeto lei de reconhecimento dos direitos linguísticos da comunidade mirandesa, apresentado em setembro de 1998 pelo deputado Júlio Meirinhos aprovado pelo Parlamento e com expressão constitucional. «La Lhéngua Mirandesa, doce cumo ua meligrana, guapa i capechana, nun yê de onte, detrasdonte ou trasdontonte mas cunta cun uito séclos de eijistência. Sien se subreponer a la "lhéngua fidalga i grabe" l Pertués, yê tan nobre cumo eilha ou outra qualquiêra. Hoije recebiu bida nuôba.

Saliu de l absedo i de l cenceinho an que bibiu tantos anhos. Deixou de s'acrucar, znudou-se de la bargonha, ampimponou-se para, assi, poder bolar, strebolar i çcampar l probenir. Agarrou l ranhadeiro para abibar l lhume d l'alma i l sangre dun cuôrpo bien sano. Chena de proua, abriu la puôrta de la sue priêça de casa, puso fincones ne l sou ser, saliu pa las ourriêtas i preinadas. Lhibre, cumo l reoxenhor i la chelubrina, yá puôde cantar, yá se puôde afirmar. A la par de l Pertués, a partir de hoije, yê lhuç de Miranda, lhuç de Pertual», Lei nº 7/99 de 29 de janeiro

Depois de José Leite de Vasconcelos, Amadeu Ferreira (1950-2015, Sendim, Miranda do Douro) foi o grande estudioso e divulgador do mirandês nos últimos anos, sendo jurista, escritor e tradutor de uma vasta obra em português e em mirandês, em nome próprio e com os pseudónimos de Francisco Niebro, Marcus Miranda e Fonso Roixo.

Traduziu para a língua mirandesa obras como Os Quatro EvangelhosOs Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, Mensagem, de Fernando Pessoa, e obras de Horácio, Vergílio e Catulo, bem como dois volumes de Astérix entre muitos outros. Foi colaborador, sobretudo em mirandês, de diversos meios de comunicação social, nomeadamente do Jornal Nordeste, do Mensageiro de Bragança, do Diário de Trás-os-Montes, do Público e da rádio Mirandum FM. Publicou mais de três mil textos, quase exclusivamente literários, em blogues como Fuontes de l AireCumo Quien Bai de Camino e Froles Mirandesas e CNC. Autor de obras científicas e literárias, em poesia e em prosa. Entre muitas outras, publicou, nas áreas das Ciências Jurídicas e Direito dos Valores Mobiliários; em poesia, Cebadeiros; e em prosa, Cuntas de Tiu Jouquin.

Há ainda os Pauliteiros de Miranda, praticantes da dança guerreira céltica, característica destas Terras, designada de dança dos paus,  representativa de momentos históricos locais, acompanhada com os sons da gaita-de-foles, caixa e bombo, com a particularidade de ser dançada por oito homens (mais recentemente também por mulheres) que vestem saia bordada e camisa de linho, um colete de pardo, botas de cabedal, meias de lã  e chapéu enfeitado com flores e finalmente por dois paus (palos) com os quais os dançadores fazem uma série de diferentes passos e movimentos coordenados. E neste folhetim de fantasmas, a propósito do Mirandês, invoco um texto de Orlando Ribeiro sobre o seu Mestre José Leite de Vasconcelos, que antevia com «os olhos do espírito de que se apagam lentamente os últimos fulgores». «Num pedestal de tosco granito», vislumbrava «não uma figura enroupada no traje académico, mas um velho meão mas desempenado, de cabeça coberta e barba intonsa, de chapéu de viagem, abordado ao bastão de jornada, mostrando aos novos – ele, eterno caminheiro – os rumos científicos da “boa Terra Lusitana”, de que esclareceu as origens nas pedras incompletas, na língua como expressão da vida coletiva, na multiplicidade dos textos e dos falares rústicos, sobre o pedaço de terra que nos coube neste fim da Europa, onde o povo, considerado no conjunto das classes da Nação, afirmou o seu direito de ser livre, de pensar e sentir a seu modo e a seu jeito e até contribuir, com as luzes de Espíritos de que o Mestre foi o mais poderoso e operoso para o progresso geral do conhecimento humano. Só assim a lenda de José Leite de Vasconcelos se consagrará na História, a que há mais de um século ofereceu as primícias do seu pensamento».

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA


L. LOPES (FERNÃO)


Nesta visita sistemática dos fantasmas da Casa Portuguesa, chegamos ao loquaz Fernão Lopes, autor da “Crónica de D. João I”, um dos grandes marcos da língua portuguesa. A vida de Fernão Lopes é um mistério. Por ironia do destino, o homem através de quem conhecemos a História da geração que o precedeu, é-nos quase desconhecido como pessoa. A própria efigie que aqui reproduzimos é duvidosa. Talvez seja ele uma das figuras representadas nos Painéis de S. Vicente de Nuno Gonçalves. Não sabemos quando nasceu, mas presumimos que tenha sido nos anos da crise. A sua origem era plebeia, e esse facto explica a atenção que reserva na sua escrita à “arraia miúda de ventres ao sol”. O seu nome aparece-nos pela primeira vez em 1418, como guarda-mor das escrituras da Torre do Castelo de Lisboa. Um ano depois, é escrivão dos livros de D. João I e em 1422 exerce o cargo de escrivão da puridade do Infante D. Fernando, sendo depois nomeado tabelião geral do reino. D. Duarte atribui-lhe uma tença anual vitalícia em 1434 para escrever as crónicas da história geral do reino, até D. João I. Como cronista-mor exerce funções, com zelo e competência, até 1454, altura em que, por estar “mui velho e flaco”, é aposentado. Gomes Eanes de Zurara é quem escreve a versão final da terceira parte da Crónica de D. João I. Estando Fernão Lopes com avançada idade em 1459, julga-se que morreu no ano seguinte. Como cronista é o primeiro grande estilista da prosa em língua portuguesa, com a sua escrita fluida e atraente, presenciamos uma sucessão de acontecimentos que anunciam uma nova era, diferente do estilo medieval. Assistimos ao “crepúsculo” do tempo antigo, na sequência de um rumo modernizador preparado na passagem dos séculos XIII para o XIV no período dionisíaco. Um dos temas novos é o da legitimidade política, que deixa de ser fundada no património e no senhorio, para passar a ser ditada pelas gentes e pelo “poboo”. Sente-se a influência da escola de Bolonha. Desde que se fixara a fronteira do reino e que a língua comum se tornara idioma oficial dos tabeliães foram abertos os caminhos do “direito de naturalidade”, por contraponto ao “direito senhorial”. E se houve divisões drásticas na sociedade portuguesa, com a alta nobreza e o alto clero a sustentarem o conceito “legitimista” de D. Beatriz, e a burguesia das cidades a ansiar por um entendimento mais ligado aos povos, o certo é que a matriz legitimadora do reino (o Estado que precedeu a nação) atribuía uma forte importância aos municípios, aliados naturais do poder real. O “direito de naturalidade” representava o anúncio de uma nova conceção. E Fernão Lopes desenvolve na “Crónica de D. João I” esse entendimento, quer na narração quer nas reflexões. Fala de “verdadeiros portugueses”, mas também de “cidadãos honrados”, de “amor da terra”, do grito “Portugal” da gente “miúda” e até de “evangelho português”. E esse entendimento leva-o a conceber a historiografia como uma procura de factos fiéis à realidade, em nome da causa legitimadora do Mestre da Avis. Lembremo-nos dos relatos do Cerco de Lisboa e da batalha de Aljubarrota. Os acontecimentos são minuciosamente descritos, numa cadeia de factos que culmina no sucesso de D. João I. Se o cronista apresenta um novo entendimento social e político, fá-lo com o recurso originalíssimo à narrativa, demonstrando “o estofo de um dramaturgo poderoso”, como dirá António José Saraiva, afirmando-se como um exímio “contador da História” na expressão de Teresa Amado… Fernão Lopes reúne os elementos fundamentais para justificar a “justa aclamação”. O relato das Cortes de Coimbra é magistral. O cronista dá-nos, com minúcia, as provas da argumentação jurídica de João das Regras. Aí estão a incerteza da paternidade de D. Beatriz, a situação matrimonial irregular de D. Leonor Teles, o apoio cismático de D. João de Castela ao Papa de Avinhão, a demonstração da ilegitimidade (e da indignidade por apoio á causa de Castela) de D. João de Castro, filho de D. Inês de Castro… A argumentação jurídica alia-se aos sinais da Providência, protagonizados pelo jovem Condestável do Reino D. Nuno Álvares Pereira, chefe militar da linhagem de Galaaz, o cavaleiro de Camelot e companheiro do Rei Artur, do ciclo bretão. Álvaro Pais, o rico cidadão de Lisboa, é a verdadeira alma do movimento. As hesitações e até a descrição da personalidade contraditória de D. João, Mestre de Avis, demonstram com meridiana clareza que houve um forte impulso, vindo do movimento popular, mobilizador de vilões, mesteirais e lavradores. E se o Mestre começa por ser quem está em posição mais frágil na linha sucessória, sem mesmo desejar ser rei, como várias vezes afirma, considerando ser seu meio-irmão D. João de Castro quem teria maior legitimidade dinástica, a verdade é que a sua condição de clérigo o afastava da sucessão. O certo é que os acontecimentos (e a determinação de Álvaro Pais) irão colocá-lo no centro dos acontecimentos e à frente dos destinos do reino.  Em Coimbra, porém, o legista João das Regras, depois de declarar o trono vago, demonstra que a nova legitimidade, a dos povos, não oferecia dúvidas, cabendo ao Mestre ser o novo Rei. O movimento popular não tinha, é certo, a aceção que hoje lhe daríamos. Opunha-se à aristocracia fidalga, na linha da consolidação da monarquia fundada por Henrique de Borgonha e seu filho Afonso Henriques. E como é facilmente compreensível a conceção do “direito de naturalidade” reforçou o peso e a importância dos povos dos concelhos, segundo o que Jaime Cortesão designaria como “os fatores democráticos na formação de Portugal”. Estamos, assim, perante uma revolução de “cidades” e de “vilões”, logo desde os acontecimentos de Lisboa, em 1383, com a morte do conde de Andeiro, mas também em Beja, em Évora, no Porto. Sente-se a “epopeia” das mudanças profundas, a partir da “gente pequena dos lugares” e, sobretudo, de uma razão nova: “Ó geração que depois veio, povo bem-aventurado, que não soube parte de tantos males nem foi quinhoeiro de tais sofrimentos” … As vilas combatem os castelos, a legitimidade nova destrona a legitimidade senhorial. Novos espíritos se anunciam.


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K. «KWY» - LOURDES CASTRO


Este folhetim trata de fantasmas. E quem melhor soube representá-los como sombras vivas foi Lourdes Castro e os seus amigos. A revista KWY foi um veículo precioso! Publicou-se em doze números de fabricação artesanal de 1958 a 1964. A denominação tem a ver com as três letras que então estavam ausentes do alfabeto português. Só por ironia disse-se que significava Ká Wamos Yndo… O grupo foi responsável “pela abertura da arte portuguesa no contexto internacional e pela franca adesão às novas linguagens figurativas que, sob a égide da reconstrução económica do pós-guerra, deram impulso a um dos períodos mais estimulantes da cultura europeia do século XX”. Em lugar de agrupamentos por tendências, há grupos de intervenção. Trata-se de um realismo cosmopolita. Com o grupo “KWY” (Lourdes Castro, René Bertholo, Costa Pinheiro, José Escada, João Vieira, Gonçalo Duarte, Jan Voss e Christo), abrem-se horizontes além-fronteiras, ultrapassando a dimensão paroquial, fora da censura no caminho criador pelo repensar das raízes.

Lourdes Castro compreendeu o novo tempo e as novas tendências de um modo exemplar. “A surpresa do desenho, a simplicidade da forma, o contorno da sombra fascinou-me tanto que ainda hoje para mim é nova” (como testemunhou a Joana Galhardo Frazão). Ao seguirmos o seu percurso é impressionante o modo como soube trilhar caminhos absolutamente inesperados e inovadores. Em “O Grande Herbário das Sombras” reencontrou a Natureza e a vegetação da Ilha da Madeira, domínio da laurissilva, sua terra natal, com uma centena de espécies botânicas, que permitem ligar o labor da artista à criação essencial e transcendente. Como recordou José Carlos Seabra Pereira, a obra envolve “a imanência do mundo criado e a Transcendência que lhe dá sentido último”. É o dom da vida que está em causa, como fica demonstrado no filme “Pelas Sombras” de Catarina Mourão (2010), no qual se apresenta o encantamento “com a magia no quotidiano das coisas”. Por isso, a artista afirma: “a minha pintura é esta: o viver, o estar cá”. E assim a sua arte foi-se tornando o espaço à sua volta. “Não a posso transportar. Ela nem quereria mudar de sítio”. José Tolentino Mendonça afirmou que, para ela, “a arte nunca foi simplesmente um fazer. A arte era um intransigente pensamento sobre o estar”. Por isso, não deixa apenas obras que podemos ver nos museus, deixa uma visão. E tal constitui um facto político raro. Lembrando o “Teatro de Sombras”, verdadeiro património imaterial posto em prática primeiro com René Bertholo e depois com Manuel Zimbro, trata-se de arte em movimento. Os primeiros passos foram no Centro Nacional de Cultura, em 1954, com José Escada. Não por acaso, o Centro era uma casa onde o teatro tinha especial importância, sob a influência de Fernando Amado e de Almada Negreiros. E Lourdes Castro, no tempo da fugaz passagem em Belas-Artes, começou a fazer teatro com Fernando Amado no Centro, e foi no espaço do teatro que a jovem começou por apresentar os primeiros passos nas artes plásticas. E vem à memória a peça “Antes de Começar” de Almada Negreiros, encenada por Amado, nos princípios que conduziriam à criação da “Casa da Comédia” e à amizade que se prolongará no tempo, pela vida fora, com o pintor Manuel Amado, companheiro, com sua mulher Teresa, em férias e viagens na Madeira e Porto Santo. E está aqui a preciosa chave, capaz de ligar a descoberta das sombras, a representação teatral e a paixão pela vida. E há o encontro simbólico entre a memória do primeiro modernismo de Almada Negreiros e a lembrança de Fernando Pessoa, muito presentes nesse tempo e no grupo, quando o poeta do “Livro do Desassossego” começava a ser descoberto, ao lado de um outro modernismo, totalmente novo, da geração de “KWY”. E foi essa pulsão vital que levou Lourdes Castro a realizar esses fantásticos livros de artista, que explicou simplesmente – “porque havia tesouras, havia papel, havia tempo, gostava de livros…”. E, ao apresentá-los, Paulo Pires do Vale compreendeu bem como a artista continuou a criar, mesmo quando se retirou da intervenção ativa. “Na verdade, não deixou de criar”, continuou, sim, a “transformar a própria vida”, a “dar-lhe maior atenção” (Público, 9.1.22). E na exposição “Tudo o que Eu Quero”, Helena de Freitas e Bruno Marchand, na Gulbenkian, ficaram em destaque as sombras na sua múltipla dimensão, absolutamente singular e inovadora – silhuetas bordadas em lençóis brancos, retratos de amigos em plexiglas, flores e folhagens. “As suas sombras tornam-se progressivamente mais leves. A presença aprofunda-se na ausência e cumpre-se no desaparecimento” (Anne Bonin).

José Tolentino Mendonça refere três momentos no caminho de Lourdes Castro. “A primeira etapa é aquela que vai até ao ‘Teatro de Sombras’ e constitui talvez a parte mais reconhecível da sua produção artística”. A segunda etapa foi a do movimento das sombras, como se uma parede deixasse de ser um obstáculo, descobrindo-se no branco do muro intransponível uma passagem na transparência. E lembro o enigma dos jardins japoneses, como em Ryoan-ji, em Quioto, quintessência de um templo zen, representação do mundo contada por João Bénard da Costa no filme “A Décima Quinta Pedra” de Rita Azevedo Gomes. Por fim, a terceira etapa foi a dos jardins madeirenses – a Praia Formosa, a Quinta do Monte, o lugar de exílio de Carlos de Habsburgo, e o Jardim do Caniço… De facto, o jardim tornou-se a própria obra (cf. Expresso, 14.1.22). “O meu jardim é a minha tela”. A Natureza é que tudo faz. Lourdes Castro preparava-se, afinal, para a última viagem, em direção ao Jardim das Nuvens. A obra de arte deixou de se limitar a um espaço contido, às fronteiras de uma tela ou de um lençol, abriam-se os horizontes, e não havia fronteiras intransponíveis nesse teatro de nuvens.    


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MÁRIO CESARINY DE VASCONCELOS (1923-2006)


Celebram-se os cem anos de um dos principais homens de cultura portugueses do século XX.

Mário Cesariny de Vasconcelos nasceu a 9 de agosto de 1923, em Lisboa. Foi poeta, pintor, tradutor e considerado um dos grandes Mestres do Surrealismo Português.

Frequentou a Escola António Arroio (1936-1943) onde conheceu António Domingues, Cruzeiro Seixas, Fernando de Azevedo, Fernando José Francisco, José Leonel Martins, Júlio Pomar, Pedro Oom e Marcelino Vespeira. Na companhia destes jovens artistas, que animaram entre nós o movimento surrealista, reuniu-se em tertúlia de características Dadá no Café Herminius, em Lisboa.

Em 1947, viajou até à capital francesa que lhe permitiu um encontro com os membros do grupo surrealista francês, nomeadamente, André Breton, Victor Brauner e Henri Pastoureau. Ainda nesse ano, integrou o chamado Grupo Surrealista de Lisboa com Alexandre O’Neill, António Domingues, António Pedro, Fernando de Azevedo, João Moniz Pereira, José-Augusto França e Marcelino Vespeira, cujo objetivo era protestar contra o regime político que vigorava em Portugal e contra as poéticas dominantes da época. Após divergências com o Grupo Surrealista de Lisboa afastou-se e criou o grupo dissidente Os Surrealistas constituído por Cruzeiro Seixas, Pedro Oom, António Maria Lisboa, Mário Henrique Leiria, Carlos Eurico da Costa, Fernando Alves dos Santos, Fernando José Francisco e Henrique Risques Pereira. O grupo organizou duas exposições coletivas em Lisboa, na Sala de Projeções da Pathé-Baby (1949) e na Livraria A Bibliófila (1950). Mário Cesariny destacou-se no Surrealismo plástico pelo seu pioneirismo na introdução de novas técnicas, exploração de materiais e pela impregnação de humor, ironia, crítica, irreverência e drama. Apesar do afastamento dos grupos surrealistas, Mário Cesariny continuou a desenvolver um percurso brilhante, adotando uma postura de impulsionador e promotor de diversas exposições em Portugal e no estrangeiro, estabelecendo contactos internacionais, nomeadamente com o grupo Phases. O seu percurso individual e coletivo foi pautado por diversas exposições, salientando-se a organização das exposições Surrealismo e Pintura Fantástica (Lisboa, 1984) e Primeira Exposição do Surrealismo ou Não (Galeria S. Mamede – Lisboa 1994).

Publicou diversos títulos que o distinguiram como detentor de uma das obras literárias mais ricas e carregadas de complexidade do nosso tempo. Da sua extensa obra literária destacam-se: Corpo Visível (1950); Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952); Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (1953); Manual de Prestidigitação (1956); Pena Capital (1957); Alguns Mitos Maiores e Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação Pelo Autor (1958); Antologia do Cadáver-Esquisito (1961); Antologia Surreal/Abjecion(ismo) (1963); A Intervenção Surrealista (1966); Titânia e a Cidade Queimada (1977).

Foi Bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e foi distinguido com o Grande Prémio EDP (2002), com o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores (APE)/Caixa Geral de Depósitos (CGD) e condecorado com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade. A sua obra e vida foram registadas nos documentários Autografia de Miguel Gonçalves Mendes (2004) e Ama como a estrada começa, com guião de Perfecto E. Cuadrado (2002).

O artista e poeta proporcionou, à Fundação Cupertino de Miranda, Vila Nova de Famalicão, a incorporação por compra, doação e legado de uma grande parte da sua biblioteca e acervo artístico e documental. É com o intuito de lembrar e homenagear este nome da cultura portuguesa do século XX que, são realizados anualmente, no aniversário da sua morte, os Encontros Mário Cesariny.

Mário Cesariny de Vasconcelos faleceu a 26 de novembro de 2006, em Lisboa.

O Centro Nacional de Cultura homenageia a sua memória.†


Agradecemos a colaboração da Fundação Cupertino Miranda.