Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Dedico a crónica de hoje à memória de um amigo que nos deixou inesperadamente, quando tínhamos vários compromissos a realizar, graças ao seu entusiasmo e à sua inteligência. João Diogo Nunes Barata foi um grande embaixador de Portugal, com quem trabalhei de perto no gabinete de Mário Soares como Presidente da República, tendo desde então continuado uma excelente cumplicidade cívica e cultural, que culminou agora no Grémio Literário. Numa das muitas conversas que tivemos recordámos a extraordinária personalidade de Sophia de Mello Breyner Andresen, que bem conhecemos, amiga muito próxima de Mário Soares e Maria Barroso, espírito livre, que na sua aparente distração era a mais arguta analista da humanidade e da vida, que tanto partilhava as agruras domésticas como o diálogo com o melhor da humanidade. Quando lemos, por exemplo, os seus discursos na Assembleia Constituinte, sentimos um frémito, uma vez que as suas palavras ecoam sem uma ruga com marcas de eternidade. Lidas hoje, nada temos a acrescentar, e contrastam quer com as mil palavras de circunstância que o vento leva, quer com a vulgaridade que nos invade da politiquice de todos os dias. E João Diogo recordava estas lapidares palavras proferidas no hemiciclo de S. Bento: “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exatamente porque é capaz de criar a cultura” (Sessão de 2.9.1975). Afinal, a luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas pela liberdade do povo – liberdade de expressão e de cultura. “Queremos uma relação limpa e saudável entre a cultura e a política. (…) Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anti cultura e toda a anti cultura é reacionária”. Premonitoriamente, contra todos os dirigismos e totalitarismos, a poeta deixava claro um sentido essencial para a interpretação da nova Constituição – sendo a liberdade a pedra angular, contra dogmatismos indiscutíveis e maximalismos irreais. Por isso, importava atacar o “poder totalitário”, onde quer que esteja, que persegue o intelectual e manipula a cultura. “Nenhuma forma de cultura se pode atribuir o direito de destruir ou menorizar outras formas de cultura”. E se falava de cultura, também importava referir a educação como objetivo essencial ligado à cultura. “Ensinar é pôr a cultura em comum e não apenas a cultura já catalogada e arrumada do passado, mas também a cultura em estado de criação e de busca”. Que melhor forma poderia encontrar-se para falar da Educação? E que deve ser a liberdade de aprender e ensinar senão a procura de “novas formas de ensino que possam procurar, ensaiar e inventar”? Tudo, em nome de um “ensino livre onde nenhuma iniciativa seja desperdiçada”, sendo a escola o lugar de liberdade e de justiça, de participação e de solidariedade. E João Diogo lembrava, quando era embaixador em Moscovo, o nosso memorável encontro com Mário Soares, quando nos fotografámos simbolicamente com o retrato de Jaime Batalha Reis, o embaixador português aquando da revolução de 1917, em homenagem ao espírito emancipador da geração de 1870 e à liberdade. Há quanto tempo…
XXX. Recordar Camões no Quinto Centenário do seu Nascimento
Camões é um todo que, se soubermos lê-lo, nos enche de ventura, não sendo por acaso símbolo pátrio. A sua obra multifacetada está na encruzilhada das grandes componentes culturais das nossas letras. A lírica é inultrapassável, na tradição trovadoresca, a épica ombreia com a melhor tradição clássica, e todos os géneros que o autor pratica são seguramente cultivados, sempre com mestria. E até o fino humor é usado com a melhor ironia, como no delicioso episódio de Fernão Veloso… Não admira o verdadeiro culto que lhe votava Jorge de Sena, sempre com tão exigentes critérios de julgamento. Vítor Aguiar e Silva e Vasco Graça Moura demonstram a suprema valia, a cada passo. Infelizmente a leitura de Camões não tem sido servida pela melhor pedagogia. Seja na lírica, seja na épica dá sempre para entrar em Camões pela porta grande. Basta ler com olhos de ver e sem tentações formalistas. Com sólida formação e conhecimento da vida e do seu tempo, embebeu-se não só da existência comum, mas também da cultura greco-latina como nenhum dos nossos escritores e, segundo Rodrigues Lapa, teve “a felicidade de viver e ser criado num tempo excecional, em que as disciplinas humanísticas, trazidas até cá por grandes professores, florescia entre nós intensamente”. E oiçamos sempre: “Busque Amor novas artes, novo engenho, / para matar-me, e novas esquivanças; / que não pode tirar-me as esperanças, / que mal me tirará o que eu não tenho…”.
Luís de Camões em “Os Lusíadas” representa a maturidade poética da língua portuguesa. Toda a obra do grande épico constitui oportunidade para lidarmos com uma riquíssima convergência entre os maravilhosos pagão e cristão, servidos pelo domínio exemplar da palavra e da imagem. Deveremos, por isso, ler Camões, ao menos nos seus momentos mais marcantes. O poema épico divide-se em 10 cantos, compostos em oitava rima, totalizando 8.816 versos, na chamada medida nova, predominando os decassílabos heroicos, com a 6ª e a 10ª sílabas tónicas. “Os Lusíadas” têm cinco partes, segundo a tradição clássica: Proposição, Invocação das Tágides, Dedicatória ao Rei D. Sebastião, Narração e Epílogo. A narração compreende três ações: a viagem de Vasco da Gama, a narrativa da história de Portugal e as intervenções dos deuses do Olimpo. Nos Cantos I e II, narra-se a introdução e o Concílio dos Deuses, para deliberar sobre o destino dos novos Argonautas. Baco é crítico dos portugueses, Vénus e Marte, tomam a sua defesa, com a concordância de Júpiter. Vasco da Gama está no Índico, próximo de Moçambique. Baco, inconformado, instiga o governador de Moçambique contra os portugueses e põe a bordo um falso piloto, mas graças a Vénus, às Nereidas, a Mercúrio e à coragem de Gama, os portugueses chegam a Melinde. No Canto III, começa o relato ao rei Melinde da história de Portugal, “onde a terra se acaba e o mar começa” e das origens, de Viriato, da Reconquista, da Primeira Dinastia, da Casa de Borgonha, de Ourique até à morte de Inês de Castro. No Canto IV, prossegue a narrativa, fala-se da revolução de 1383, de Nuno Álvares Pereira, de Aljubarrota, do Mestre de Avis, de Ceuta. E começam os episódios do início da viagem. D. Manuel sonha com os rios Indo e Ganges, a profetizarem sucessos e perigos no Oriente, e pede a Gama que monte a esquadra para concretizar a visão, mas na partida, o velho Restelo previne contra a “glória de mandar e a vã cobiça”. No Canto V, Gama fala do Cruzeiro do Sul, do fogo-de-santelmo, até ao citado relato picaresco do Fernão Veloso. No Cabo das Tormentas, o Adamastor simboliza a superação do medo. No Canto VI, Baco desce ao palácio de Neptuno e incita os deuses marinhos contra Vasco da Gama, mas Vénus intervém. Veloso entretém os companheiros com a narrativa cavalheiresca dos Doze de Inglaterra. E os navegadores avistam Calicute. Nos Cantos VII e VIII, o samorim determina que o governador receba Gama, que o visita e oferece a amizade dos portugueses. Paulo da Gama esclarece o governador acerca do significado das figuras desenhadas nas bandeiras e conta os feitos dos heróis da pátria. Mas os muçulmanos intrigam, Gama é preso e tem de negociar a liberdade, em troca de mercadoria. Nos Cantos IX e X, depois de diversos incidentes, o samorim ordena que a armada possa levantar ferro e iniciar o regresso. E temos o longo episódio da Ilha dos Amores, já que Vénus decide premiar os navegadores numa ilha paradisíaca. O epílogo do poema contem as lamentações, como que um desabafo de Camões por todas as incompreensões sofridas. Mas fica-nos a reflexão sobre a exigência de porfia e de trabalho aturado para se alcançarem os sucessos necessários. Não por acaso, Camões inicia o poema épico citando o início de “A Eneida”: “Arma virumque cano, Trojae qui primus ab oris…”. E como em Dante, é sob a invocação de Virgílio que um tema tão sublime é tratado…
XXIX. A busca de uma identidade: que cultura portuguesa? (2)
Como disse Sophia de Mello Breyner: «Me dói a lua me soluça o mar / E o exílio se inscreve em pleno tempo» (Livro Sexto, 1962). Como Unamuno bem pressentiu e Eduardo Lourenço interpretou, com rigor e perfeição, somos feitos de lirismo e de história trágico-marítima – sem esquecer o picaresco, que salienta António Tabucchi, no escárnio e maldizer. Encontramos desde a poesia trovadoresca à rica poesia contemporânea, passando por Camões, Sá de Miranda, Bocage, Garrett, Herculano, Antero de Quental, João de Deus, Cesário, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa, Almada Negreiros e todos mais… Portugal, como palavra, é uma eterna convergência da lembrança e do desejo, do amor e da provação, e a língua portuguesa, espalhada pelo mundo, plena de diferenças, foi-se construindo nessa pluralidade e nessa complementaridade… A língua portuguesa, temperada com mais açúcar ou mais especiarias, é o traço de união e de diferenciação. E se dúvidas houvesse João Guimarães Rosa leva-nos em busca da terceira margem, Baltazar Lopes da Silva introduz-nos nas diferenças e nos segredos dos crioulos, Mia Couto reinventa-nos em permanência, Pepetela, Agualusa, Ondjaki, Germano Almeida põem-nos em contacto com as grandes superfícies de terra e mar, Raduan Nassar interroga e confronta as raízes em «Lavoura Arcaica», Rubem Fonseca usa como matéria-prima o drama quotidiano… Já para Carlos Drummond de Andrade: “Adélia Prado é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo”. Quem a conhece considera-a desconcertante, plena de ironia, ousada, iconoclasta, seríssima no entendimento das coisas essenciais. Nela o comum e o banal encontram-se, a cada passo, com o transcendente.
Eduardo Lourenço é perentório: «Não temos nada que provar. O que tínhamos de provar ao mundo já provámos quando isso era uma novidade e constituía uma ação para a humanidade inteira. Temos sempre este complexo de ser uma pequena nação não tão visível como outras. Mas outras nações também não são visíveis». Não somos melhores ou piores, somos nós mesmos. «Não se sabe assim como é que há quase mil anos este país pequenino, aqui no canto da Europa, é ainda sujeito do seu próprio destino.». A História é uma batalha cultural. «A Europa define-se na sua relação com o que não é Europa. Só sabemos o que é Europa quando estamos fora da Europa. Na Europa temos uma experiência normal. É como a experiência de quem está em casa. Há até uma pluralidade de casas que, mais ou menos, têm afinidades entre elas. Isso é a Europa». Mas há ameaças e perigos, e até indiferença e acomodação. Falta a normalização connosco próprios. Perante tantos sinais de incerteza persiste uma miragem europeia. A Europa fechada definha, por isso, importa tirar lições, procurando caminhos que permitam encontrar a defesa de um núcleo essencial de interesses e valores comuns. Língua de várias culturas, cultura de várias línguas – eis um caleidoscópio incompatível com paternalismos. Prevalecem o pluralismo e a diversidade. Garrett, Antero e Cortesão aspiraram a um patriotismo prospetivo, em que o fundo português se afirma como exigência aberta e plural.
Pedro Mexia tem razão ao afirmar que, “a dignidade vale mais do que a identidade” (Expresso, 10.5.2024). Não que esta não seja importante, mas é a dignidade da pessoa humana que se torna pedra angular de qualquer entendimento identificador, até pela importância da compreensão de que urge distinguir para unir… “É importante que um entendimento acerca do humano seja tão ambicioso quanto judicioso. E que esteja atento às formas de desumanização, as novas e as antigas”.
XXVIII. A busca de uma identidade: que cultura portuguesa? (1)
De que falamos quando referimos a Cultura Portuguesa? De continuidades e de mudanças, de características singulares e de convergências, de identidades e diferenças, de desafios e respostas. Não basta um sobrevoo na cultura geral, que mais não significa do que um contacto superficial com a criação e a arte, esquecida da complexidade, do que avança e progride e do que estagna. António Manuel Machado Pires tem recordado a preocupação que Vitorino Nemésio tinha com os seus discípulos, no sentido de abrir as suas mentes, ligando e relacionando realidades aparentemente distintas: “E por ‘ligar as coisas’ deve entender-se ligar mesmo, não apenas somar conhecimentos: fazer relacionações entre conhecimentos convencionalmente arrumados em cadeiras diferentes, ligar uma romaria a uma feira, esta a um modelo de vida, este à evocação de um almocreve, este a Gil Vicente e por que não, a O Malhadinhas de Aquilino?”. A cultura pressupõe diálogo e confronto, entre quem vê e tenta compreender e quem pretende ver e entender, numa relação sempre complexa entre a vida humana e a natureza que a rodeia. Daí a metáfora da varanda para ver a Cultura, tantas vezes usada pelo próprio Nemésio – “Varanda de Pilatos”. Afinal, refletir sobre a cultura é fazê-la, construí-la, interpretá-la e torná-la viva. Lembre-se o picaresco e o dramático no caleidoscópio de Fernão Mendes Pinto: “não é só uma narração de experiências, percursos de paisagens exóticas ou encontros e desencontros de povos (Ocidente e Oriente), é a ironia da vida, a dor humana, pecado, entusiasmo e castigo, alegrias e lágrimas, voluntarismos e disponibilidades, uma grandiosa saga coletiva de um povo (nem sempre exemplar), mas provando a exemplar lição do tudo e nada da Vida”. Eis por que a ligação da Literatura, da Arte ou da Ciência são pontos de observação de eleição para avistar e compreender a Cultura como panorama, uma vez que temos o testemunho concreto, mais do que a mera ostentação de um saber ou de uma técnica. Assim, não compreenderemos, por exemplo, o século XIX português sem ler Camilo (“raptos, fugas e famílias desgraçadas”), Júlio Dinis (“a conciliação social”), Eça de Queiroz (a ironia como método, devendo ser levada muito a sério), Cesário (a contradição dos sentimentos), João de Deus (a lírica popular) ou Antero (a reflexão culta).
Nemésio e Machado Pires falavam de duas linhas de pensamento marcantes na reflexão sobre a cultura portuguesa, a idealista e a racionalista, representadas por Teixeira de Pascoaes e António Sérgio. Ambas deveriam de ser consideradas “para o balanço de ser português na vida, na cultura e no mundo”. Dando maior importância ora a uma ora a outra, o certo é que os dois polos têm de estar presentes na definição do português e do “ser de Portugal”. A vontade, o sentimento de pertença, “a estruturação da Cultura e a organização do Estado”, caminhando a par, como na análise de António José Saraiva, articulam-se com a construção de um imaginário. A experiência “madre de todas as cousas”, os conflitos entre a sociedade antiga e a sociedade moderna, a compreensão de um culto de sentimentos contraditórios, os mitos da origem, de resistência ou de predestinação, tudo nos permite tentar perceber quem somos, donde vimos e o que nos motiva e desafia. Mas temos de recusar as simplificações e a tentação de levar a História da Cultura para uma mera sucessão de factos ou acontecimentos. Temos de descobrir tendências, de suscitar criticamente diversas leituras, de comparar, de ver de dentro e de fora, de cruzar saberes e campos de pesquisa. Urge contrariar as simplificações, que se tornam caricaturais, não permitindo compreender uma realidade que é multifacetada. Ligue-se a vontade ao fundo céltico, confronte-se a fixação e o transporte, contraponha-se o erudito ao castiço, compreenda-se as diferenças e as complementaridades entre Camões, a custódia de Belém, o galo de Barcelos ou o fado. De facto, nossa cultura tanto é o “Auto da Lusitânia”, de Todo o Mundo e Ninguém, como o “Pranto de Maria Parda”, para só nos atermos a Mestre Gil. Para Machado Pires quando diz que a «Cultura não é um “somatório” heteróclito, indiferenciado, anódino e maçador, mas um caminho coerente para um fim demonstrável no seu todo, um rasgão na neblina de dúvidas e problemas, carreando um considerável conjunto de materiais para “forçar” a prova». O que deve estar em causa é a procura de caminhos explicativos, de linhas de reflexão, de sínteses e de paradoxos, em resposta ao enigma persistente e contraditório de uma sociedade que oscila entre o messianismo e a vontade, entre o mito e a racionalidade, entre a crítica e a sobrevivência, entre o presente e o futuro. A Cultura é “uma perspetiva convergente e unitária de vários ramos do saber”. E eis o paradoxo, “se o historiador busca a razão dos acontecimentos, culpa os homens; se procura os imperativos da Raça, culpa o Destino”. O pessimismo contrasta com o compromisso cívico. E assim, num momento em que, nos anos 90 do século XIX, a decadência se manifestava e o desastre parecia anunciar-se, com o Ultimato, a bancarrota, a dívida pública, a crise do regime, o desprestígio das instituições, a Geração que se evidenciara em 1871 não baixa os braços e revela o sentido positivo da atitude crítica, em vez do fatalismo.
XXVII. O universalismo da cultura portuguesa: língua como fator de diversidade e de encontro.
O idioma é essencial para a afirmação de uma identidade, mas também para enriquecer pelo diálogo culturas e civilizações. A língua portuguesa projetou-se em todos os continentes. Quando falamos dela, consideramos uma longa história, a partir do galaico-português, língua antiga, que cedo alcançou assinalável maturidade. O português ou o espanhol jamais foi dialeto um do outro. A partir da matriz galega, temos uma diversidade de influências, como a dos moçárabes, principal veículo transmissor de um grande número de vocábulos árabes para o nosso léxico, pela parte bilingue da população, além dos caracteres próprios adquiridos com a cultura quinhentista… Devemos falar de uma língua de várias culturas e uma cultura de várias línguas. Falamos de várias culturas, pela natureza própria da diversidade política, como língua de unidade nacional, como língua segunda, ou como língua integradora no complexo mosaico étnico e geográfico – ora em África, ora no Brasil. E quando referimos várias línguas, reportamo-nos ao desenvolvimento dos crioulos, de raiz portuguesa, mas com uma vida própria. Lembremo-nos de Cesária Évora ou de Mário Lúcio e encontramos pontes essenciais de diálogo. De facto, sem idealizações ou simplificações, e muito menos paternalismos, a partir de exemplos concretos, trata-se de uma língua que deve ser vista como realidade em movimento. Como disse Rui Knopli, a língua tenderá a ser um denominador comum de vários espaços africanos, asiáticos, brasileiros, europeus, numa espécie de “pátria coincidente”. E para o compreender, basta lermos a literatura da língua portuguesa contemporânea. A língua inglesa é indubitavelmente fundamental nos vocabulários científicos, mas temos de assegurar o diálogo interlinguístico, designadamente no âmbito das ciências sociais, nas quais a diversidade da comunicação tem de ser compreendida, sob pena de desvirtuarmos o conhecimento. Como insistia Vasco Graça Moura, nenhum de nós quer uma língua única, totalitária.
Tem de se abrir espaço para a diversidade linguística, estabelecendo pontes entre os vários idiomas e as várias culturas. Não podemos esquecer que as chamadas Humanidades irão ganhar uma configuração cada vez mais fortemente relacionada com todas as disciplinas científicas. Como investigar as literaturas e as artes sem considerar a diversidade de culturas e idiomas? Vergílio Ferreira dizia, por isso, que não se pode pensar fora das possibilidades da língua em que se pensa. Infelizmente, há quem julgue que a avaliação académica deve ser uniformizada e redutora, o que é contrário da compreensão da diversidade. E não se pense que a tendência futura é para a existência de uma única língua franca. Num mundo globalizado, não falamos da língua portuguesa como uma realidade fechada, mas de uma realidade aberta e em movimento, e aí está a sua riqueza e as suas virtualidades.
Para compreender as culturas da língua portuguesa, temos de ler Machado de Assis, Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Manuel Bandeira, Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, João Cabral de Melo Neto, António Cândido, Ferreira Gullar, João Ubaldo Ribeiro, Rubem Fonseca, Alberto Costa e Silva e Nelida Pinõn, mas igualmente Baltazar Lopes da Silva, Manuel Lopes, Daniel Filipe, Luandino Vieira, Mário Pinto de Andrade, Corsino Fortes, Pepetela, José Craveirinha, Mia Couto, Orlando Costa, Paulina Chiziane, Ana Paula Tavares, Ondjaki, José Eduardo Agualusa, Arménio Vieira, Onésimo Silveira, Germano Almeida, Vera Duarte, Albertino Bragança, Alda do Espírito Santo ou Luís Cardoso. Nesta diversidade, não exaustiva ou sistemática, poderemos ter a compreensão de várias culturas que se cruzam e se enriquecem mutuamente, sem uniformidade nem modelo.
XXVI. Portugal hoje - que relacionamento com a Europa e o Mundo?
A cultura europeia é pluralista, dinâmica e renovadora. Longe de uma identidade harmonizadora ou de uma lógica de uniformidade, o “património comum” leva-nos, na lógica da herança e da tradição, ao bem comum europeu, como ação inovadora como fator de coesão, de harmonia e de emancipação. A identidade europeia é construída por várias identidades, é plural, é complexa, é multifacetada. Não há, pois, uma “comunidade de destino”, mas uma comunidade plural de destinos e valores. Falar de identidade europeia é, assim, referirmo-nos à complexidade, a uma realidade não confundível com um bloco monolítico, diferente das nações e dos povos que a constituem. Daí que a legitimidade europeia seja de Estados e povos, e que a realidade “constitucional” da Europa não seja um sucedâneo ou um substituto das “constituições nacionais”. Continua a ser tempo de seguir uma via de “euro-realismo”, já que andar para trás “seria regressar a formas de centralismo, autoritarismo e subdesenvolvimento paroquial”. No fundo, sem uma sábia ligação entre as legitimidades dos Estados e dos cidadãos, arriscar-nos-emos a criar uma realidade efémera, artificial e reversível sem ligação efetiva ao mundo da vida. Só uma forte vontade comum ajudará a superarmos o fosso entre as instituições europeias e as pessoas.
Continente de contrastes unido pelo conteúdo, acessível, recortado, temperado, em que a variedade é a regra, a Europa não é uma Babel nem uma terra de ninguém. Terra de conflitos e de contradições, de guerras civis, de competição e de combate, alberga uma constante procura de equilíbrio e de síntese através de várias influências, etapas e polos. “É o dualismo entre fé e lei que, desde o início, torna possível o crescimento da liberdade e das liberdades – porventura o maior anelo e fator de dinamismo da história europeia no seu conjunto. Braudel considera que ‘liberdade’ – não apenas a individual mas também a das cidades, dos grupos e das nações – é mesmo a palavra-chave dessa história” – como lembra Francisco Lucas Pires. Assim, é possível ler “uma história através de várias histórias”, desde as raízes greco-romanas, das invasões bárbaras e da conversão cristã da Europa, para chegar à “coroação poética” da “Divina Comédia” e a uma “cultura comum europeia”, segundo a expressão feliz de T.S. Eliot, continuando essa rota na crise da República Cristã e na vida da Europa dos tempos modernos. Seguindo Paul Valéry, é fundamental reter a emergência de uma grande síntese na identidade originária da Europa enquanto “legado greco-romano mais cristianismo”. A história moderna abre, assim, campo às diferenças e a uma conflitualidade decorrente da competição gerada no Renascimento e continuada no iluminismo, no liberalismo, na revolução social do industrialismo e na mundialização.
À tentativa de criar condições para a emancipação nacional com equilíbrio e tolerância entre os Estados, sucede a autarcia e o fechamento. E em 1914, depois de a “Primavera dos Povos” (1848) ter-se inclinado para os nacionalismos protecionistas, a Europa como possibilidade de ação em comum deixou de existir pelas suas contradições nacionais. E foi a devastação da guerra e a necessidade de reconstrução que fez regressar à ordem dia um programa europeu, no contexto de uma paz ameaçada e segundo o modelo de Jean Monnet de “integração funcional”. Tratava-se de garantir a partilha de soberanias e a salvaguarda de um projeto assente nos valores comuns da liberdade (cidadania europeia), da democracia (codecisão e esboço de democracia parlamentar nas relações entre a Comissão e o Parlamento), do desenvolvimento (moeda única e coesão), e da segurança (política externa e de segurança comum e cooperação policial e judicial), fatores de efetiva complementaridade. Eis a base do método comunitário e da subsidiariedade e a necessidade de seguir um caminho de construção gradual das instituições supranacionais e de respeito escrupuloso pela iniciativa cívica e pelo que está mais próximo dos cidadãos, que prevaleça sobre o que está mais distante das pessoas (os Estados e a democracia supranacional). A ideia de “Europa connosco” não corresponde nem a uma subalternização, nem a um fechamento, mas à abertura de horizontes, a uma geometria variável e à participação numa globalização baseada na paz e na cooperação.
XXV. Sophia de Mello Breyner – Símbolo do Portugal do século XXI
Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) é uma das grandes referências da poesia contemporânea e da cultura portuguesa. Clássica e moderna, encontra e prolonga Fernando Pessoa por um caminho próprio e diferente. E Eduardo Lourenço afirmou que “desde os tempos de Pascoaes, a poesia portuguesa esforçava-se por conciliar Apolo e a sua mítica expressão solar da vida com Cristo, sombra sob tanto excesso de sol, deus morto para que a morte não fosse confundida com a vida digna desse nome. Se essa conciliação teve lugar em algum lugar foi na poesia de Sophia”. Sentimos a coexistência de Atenas e Jerusalém. Daí ter nascido “precocemente clássica”, talvez fora de uma modernidade, por definição em crise, mas ciente da importância dos novos caminhos em busca da dignidade do Ser. E assim Sophia chega a Nietzsche e à ligação dionisíaca, através de um “Cristo Cigano” – que não espera que o crucifiquem e que se oferece nu ao esplendor da vida que misericordiosamente o assassina – “mas a sua morte despe-o da sua aparência solar e esculpe-o em redentora agonia onde o rosto do Ausente se revela”. E sentimos a sede de justiça, que leva a não fechar os olhos ao “espantoso sofrimento do mundo”. Francisco de Sousa Tavares disse, na melhor fórmula, que Sophia "tinha sinais do seu Deus na confusão dos homens". Eduardo Lourenço diagnosticou "uma espécie de milagre, de raro e quase incrível privilégio" que deve "ter preservado cedo a jovem Sophia, católica e portuguesa, daquela obsessão culpabilizante que encharca por dentro a lírica nacional". Vemos, ouvimos e lemos – não podemos ignorar. Contra a ambiguidade, “sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem”. E lembremo-nos do entusiasmo posto por Sophia na tradução de «Anunciação a Maria» de Paul Claudel. Sente-se a proximidade relativamente ao artista de «Arte Poética». «Esta é a noite / Densa dos chacais / Pesada de amargura / Este é o tempo em que os homens renunciam». Longe da exclusiva busca de doçura, o que há, sim, é a permanente demanda de uma vida de drama, de dúvida e de contradição. Tomé e Pedro estão sempre presentes, antes e depois de pôr a mão na ferida aberta ou de ouvir o galo cantar, sempre perante o medo terrível que leva Mara ao ato de desespero perante Violaine. «Aquele que partiu / Precedendo os próprios passos como um jovem morto / Deixou-nos a esperança». É aqui que a poética de Sophia se aproxima e se afasta de Claudel. Aproxima-se porque há a procura silenciosa da esperança no equilíbrio da palavra e da justiça, nunca a confusão com qualquer certeza intolerante. Mas distancia-se, uma vez que não pode haver ambiguidade na luta agónica. Violaine é símbolo, a um tempo, da incerteza e da força, num gesto inusitado e necessário do beijo ostensivo ao leproso.
Cidadã de reflexão e talento, foi deputada à Assembleia Constituinte, sendo marcante o discurso que fez sobre as liberdades de criação cultural e de aprender e ensinar. “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exatamente porque é capaz de criar a cultura” (Sessão de 2 de Setembro de 1975). A luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas pela liberdade do povo – liberdade de expressão e de cultura. E, a propósito, invocava o terrível grito pronunciado no paraninfo da Universidade de Salamanca perante Unamuno: “Morra a Inteligência!”, para que nunca mais fosse possível ouvi-lo. “Queremos uma relação limpa e saudável entre a cultura e a política. Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anti cultura e toda a anti cultura é reacionária”.
Quando lembramos as datas fundamentais do constitucionalismo português (1820, 1834, 1910 e 1974), verificamos que correspondem à necessidade de concretizar a democracia como permanente atenção à liberdade, à responsabilidade e à participação, enquanto cidadania ativa, como respeito mútuo e defesa dos valores éticos. Em 1820 e na Constituição de 1822 o absolutismo cedeu lugar à soberania dos cidadãos e à separação, interdependência e limitação dos poderes. Depois da guerra civil, a causa de D. Pedro e de D. Maria da Glória viu reconhecida a vitória da liberdade em Évora Monte e a Carta Constitucional de 1826 pôde renovar o caminho para o Estado liberal, graças à Constituição de 1838 e ao Ato Adicional à Carta de 1852, que permitiram à Regeneração modernizar o País, aproximá-lo da Europa e pôr a tónica no primado da lei e na liberdade de opinião, sendo a proibição ocorrida nas Conferências do Casino de 1871 uma singular exceção, que levou à solidariedade entre os jovens amigos de Antero de Quental e a primeira geração romântica, representada por Alexandre Herculano. A República de 1910 e o republicanismo, de que foi símbolo a “Renascença Portuguesa”, representou a procura de um novo alento para os valores democráticos. Daí a necessidade de compreendermos o que Jaime Cortesão afirma sobre a importância dos fatores democráticos na formação de Portugal (envolvendo a independência da nação, a legitimidade das Cortes de Coimbra de 1385, a aclamação de D. João I, o municipalismo, os descobrimentos, a Restauração e a proclamação da liberdade) – consumados no constitucionalismo.
Após a ditadura (1926-1974), ao chegarmos a 25 de abril de 1974, tratou-se de fazer renascer a democracia em toda a sua vitalidade num contexto europeu e no concerto das nações, pela autodeterminação e independência dos países de língua oficial portuguesa. Em 1820, com todas as vicissitudes conhecidas, renovou-se a tradição portuguesa, a um tempo fiel ao espírito de independência de D. Afonso Henriques e de D. Dinis, e à audácia de 1383-1385 e da Ínclita Geração e dos Altos Infantes, mas também às tradições do povo e à expansão da língua portuguesa em todos os continentes. A democracia e o constitucionalismo não são obra do acaso, mas de trabalho persistente e de grandes responsabilidades. A opção europeia, a “Europa Connosco” de Mário Soares (1976), com a adesão de pleno direito a partir de 1986 às Comunidades Europeias, hoje União Europeia, e a entrada na moeda europeia, o Euro, depois de 2001 fazem pleno sentido no âmbito da afirmação da identidade democrática de Portugal no âmbito da cooperação entre Estados e cidadãos soberanos e livres, para quem a cultura é um fator de emancipação e desenvolvimento. Fiel às raízes históricas de uma identidade de nove séculos, Portugal, a cultura e a língua afirmam-se como realidades abertas e acolhedoras, em nome da diversidade matricial de um cadinho de várias influências. Língua de várias culturas, cultura de várias línguas – eis a chave desta convergência de fatores. Nas artes e na literatura, na educação, na cultura e na ciência, Portugal afirma-se através de nomes como Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, Vitorino Nemésio, Vergílio Ferreira, José Régio, Alves Redol, José Cardoso Pires, António Ramos Rosa, Herberto Helder, Manuel Alegre, Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, Ruy Belo, Eduardo Lourenço, David Mourão-Ferreira, Augusto Abelaira, José Saramago, António Lobo Antunes, Manuel António Pina, Lídia Jorge, Nuno Júdice ou de artistas como Maria Helena Vieira da Silva, Paula Rego, Júlio Pomar, Ângelo de Sousa, Graça Morais, Siza Vieira, mas também Agustina Bessa-Luís, Maria Judite de Carvalho, Fernanda Botelho, Isabel da Nóbrega, Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. A atribuição a José Saramago do Prémio Nobel da Literatura em 1998 é corolário da afirmação da cultura da língua portuguesa como marca do Portugal democrático.
As marcas da contemporaneidade portuguesa são a abertura e a liberdade. O primado da lei, a legitimidade do voto, a legitimidade do exercício e a justiça como valor ético – distributiva e intergeracional – constituem os elementos cruciais de uma cultura de respeito mútuo, de solidariedade e de proximidade, centrada na dignidade da pessoa humana.
É fundamental sermos capazes de nos vermos projetados no espelho da crítica e a poesia encarrega-se de perscrutar diversos caminhos. Mais do que encontrar soluções, que não cabem à arte, trata-se de iluminar e de ajudar a ver. Impõe-se, porém, cuidar do entendimento dos símbolos, o que obriga à consideração, segundo Pessoa, da simpatia, da intuição, da inteligência, da compreensão e do conhecimento transcendente. Tem o intérprete de sentir simpatia pelo símbolo. Tem de ser capaz de ver o que está para além dele. E Almada Negreiros? Eduardo Lourenço fala dele como o “único autêntico modernista em sentido estrito de sintonizado com o vanguardismo (ou sucessivos vanguardismos) da época”, enquanto em Fernando Pessoa, salienta, em vez do delírio, a “consciência das insolúveis contradições do mundo moderno e da mesma modernidade, porventura até, rejeição do seu próprio espírito”. Se virmos o percurso de Almada Negreiros compreendemos que o gosto absoluto da novidade o leva a crer, menos na lógica dos sistemas, e mais na força da criação. “Os sistemas e os programas servem para conduzir e jamais para criar”. “A Arte não pode viver antes de criar a sua própria autoridade de autonomia dentro da coletividade”. Dêem-se dois exemplos: o dos painéis da Gare da Rocha do Conde de Óbidos (1945-48) e o da obra “Começar” na Fundação Calouste Gulbenkian (1968-69). São duas abordagens diferentes, que representam facetas complementares da mesma atitude. José-Augusto França fez a síntese adequada: “Almada situa-se na história da arte portuguesa contemporânea como uma figura única, no seu valor estético tanto quanto no valor referencial da sua mensagem poética”. A expressão “português sem mestre” caracteriza o artista completo que procurou abrir caminhos novos – “chegar a cada instante pela primeira vez” – com originalidade e um sentido próprio de praticar diferentes artes com subtil mestria.
A ditadura militar de 1926 impôs um nacionalismo autocrático, que viria a ser marcado pela influência decisiva do Ministro das Finanças Oliveira Salazar, que se tornaria Presidente do Conselho em 1932, como figura marcante do novo regime, fazendo aprovar a Constituição de 1933, por plebiscito em que as abstenções foram consideradas como votos a favor, base do chamado “Estado Novo”. Aí um quadro de direitos formais, no célebre artigo 8º, previa exceções na sua aplicação que lhes retirava qualquer sentido real. Apesar da Primeira República ter conseguido iniciar o saneamento das Finanças Públicas, foi Salazar quem fez aprovar um novo quadro disciplinador em 1929, apresentando equilíbrio orçamental, como fizera Afonso Costa no início da Primeira República. O protecionismo, o apoio ao nacionalismo de Franco em Espanha (1936-39), a neutralidade colaborante durante a Segunda Grande Guerra, o regime policial, o acolhimento de muitos refugiados - coexistiram com a chamada “Política do Espírito”, coordenada pelo Secretário da Propaganda Nacional António Ferro, antigo secretário da redação de “Orpheu”, jornalista e escritor, com ligações aos meios intelectuais modernistas. A “Exposição do Mundo Português” (1940) procurou reunir os principais artistas do momento, mas foi prejudicada nas suas repercussões, pelo início da Grande Guerra. Pode dizer-se que até ao final da Guerra (1945) houve uma convergência entre a política de António Ferro e do Ministro das Obras Públicas Duarte Pacheco, um antigo republicano, falecido prematuramente em 1943, que permitiu a estabilidade essencial do salazarismo. A vitória dos Aliados e as expectativas do país relativamente a uma europeização e abertura do regime, com eleições livres, fez evoluir o estado de coisas. Os jovens artistas e intelectuais afirmaram-se crescentemente críticos e partidários da democratização. Mesmo no seio do regime surge uma corrente modernizadora que defende mudanças estruturais, pela eletrificação, com o apoio técnico do Plano Marshall, e por uma tímida industrialização (“Linha de Rumo” do Engº Ferreira Dias) e pela alfabetização. Em 1958 a candidatura presidencial do General Humberto Delgado, antigo alto dirigente do Estado Novo, contra Salazar, bem como a afirmação crítica da Igreja Católica, através do Bispo do Porto, abrem o início do ocaso do regime. Entretanto, a Fundação Gulbenkian, como instituição totalmente privada, torna-se influente, no apoio às artes, à educação, à ciência e a beneficência (1956). Abre-se gradualmente a economia e começa o fim do protecionismo nacionalista, do condicionamento industrial e da lógica autárcica, com a adesão de Portugal com o Reino Unido à Associação Europeia do Comércio Livre (EFTA), antecâmara do projeto europeu (1959). Em 1961, o começo da Guerra Colonial acelera o enfraquecimento de Salazar. Este será substituído em 1968 por Marcelo Caetano, cuja abertura tímida não tem eficácia e apenas acelera a preparação do Movimento das Forças Armadas de 25 de abril de 1974. A chamada Ala Liberal de Francisco Sá Carneiro e de João Pedro Miller Guerra, mas também de José Pedro Pinto Leite, prematuramente desaparecido numa missão parlamentar na Guiné-Bissau, prepara a mudança do regime, esbarrando com o imobilismo essencial do Presidente do Conselho, incapaz de encontrar solução para a guerra colonial e uma resposta política para a mesma. O contexto internacional pressiona o regime e as Forças Armadas manifestam necessidade de uma evolução no sentido da democratização e da descolonização. Novos horizontes da cultura contribuem decisivamente para essa mudança, que Samuel Huntington considerará como o início da Terceira Vaga das Democracias.
XXII. O século das guerras e o fim lento da autarcia
A partir da implantação da República em 5 de outubro de 1910, culturalmente a «Renascença Portuguesa» constituiu um exemplo de como o republicanismo, com diversas leituras, exerceu uma influência simbólica na evolução do século XX português. Recorde-se que no dealbar do movimento, Teixeira de Pascoaes e Raul Proença apresentaram dois projetos de manifesto que, apesar de diferentes, representaram uma imagem de renovação. «O fim da “Renascença Lusitana” – escrevia Pascoaes – é combater as influências contrárias ao nosso carácter étnico, inimigas da nossa autonomia espiritual, e provocar, por todos os meios de que se serve a inteligência humana, o aparecimento de novas forças morais orientadoras e educadoras do povo que sejam essencialmente lusitanas». Proença, por seu lado, falava “em pôr a sociedade portuguesa em contacto com o mundo moderno, fazê-la interessar-se pelo que interessa aos homens lá de fora, dar-lhe o espírito atual, a cultura atual, sem perder nunca de vista, já se sabe, o ponto de vista nacional e as condições, os recursos e os fins nacionais”. Como salientou José Augusto Seabra: “o ideal patriótico é idêntico, apenas os meios de o atingir divergem, embora sejam afinal complementares, como Pascoaes, aliás, n’A Águia, intentará mostrar”. Ambos se demarcam do positivismo ou de lógicas partidárias redutoras, estando em causa o que Jaime Cortesão propunha: «dar conteúdo renovador e fecundo à revolução republicana». Como dirá Pascoaes, havia que «criar um novo Portugal, ou melhor, ressuscitar a Pátria Portuguesa, arrancá-la do túmulo, onde a sepultaram alguns séculos de escuridade física e moral, em que os corpos definharam e as almas amorteceram».
As palavras Renascença e Regeneração são usadas no Portugal de influência liberal, pelo menos desde 1820. “Renascer é regressar às fontes originárias da vida, mas para criar uma nova vida” (Pascoaes). Vêm à memória os sinais renovadores provindos do Porto – 1820, o impulso de D. Pedro após o desembarque dos bravos do Mindelo (onde estiveram Garrett, e Alexandre Herculano), a influência portuense do Setembrismo (em que pontificaram os irmãos Manuel e José Passos), a Maria da Fonte e a Patuleia, a Regeneração de 1851, o movimento da “Vida Nova” (1885), o magistério de Rodrigues de Freitas, a presidência de Antero de Quental na Liga Patriótica do Norte, o 31 de Janeiro, o manifesto dos emigrados políticos, o “Porto Culto” de Sampaio Bruno… A “Renascença” e a revista “A Águia” procuram um pluralismo eclético e aberto, “no sentido profundo, verdadeiro, essencial, isto é, o sentimento ideia, a emoção refletida, onde tudo o que existe, corpo e alma, dor e alegria, amor e desejo, terra e céu, atinge a sua unidade divina”. Na “Renascença” estão Álvaro Pinto e Jaime Cortesão, Guerra Junqueiro, Antero de Figueiredo, António Carneiro, Leonardo Coimbra, mas também Afonso Lopes Vieira, António Correia de Oliveira, António Sérgio, Raul Proença, João de Barros, Mário Beirão, Câmara Reis e Afonso Duarte, além de Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro. Compreende-se, pela diversidade de intervenientes, que a “Renascença Portuguesa” tenha sofrido diversos sobressaltos – no entanto, olhando o impulso fundamental, depressa descobrimos que, como movimento original representa o que de mais significativo encontramos na cultura portuguesa do século XX – de Pascoaes a Leonardo, de Cortesão a Pessoa, do simbolismo ao modernismo, do lirismo ao racionalismo. Afinal, como dizia Raul Proença, havia necessidade de «homens de inteligência e de direção espiritual», para dar dimensão à nova República. E Cortesão frisava: «a Renascença Portuguesa não era incompatível com as aspirações modernas». Leonardo Coimbra dizia ser fundamental “dar uma finalidade à vida nacional”, lembrando Cortesão que o berço da Renascença é o Porto: «foi, na verdade, pelas suas origens, carácter e tendências, um movimento portuense». Note-se a prevalência da elevação das ideias, o respeito mútuo e a serenidade da razão e do sentimento, contra a cegueira sectária. Estamos, de facto, perante uma convergência humanista universalista, desde a perspetiva espiritualista, representada por Pascoaes (e depois por Leonardo Coimbra) até à razão cosmopolita de António Sérgio e Raul Proença, passando pelo modernismo e pelo futurismo de Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros. Pesam a herança de Herculano e Garrett, a vontade nacional e a tradição romântica, mas também o sentido renovador e revolucionário de Antero, Eça, Oliveira Martins e Junqueiro e da Geração de 1870, além do positivismo, do pensamento libertário e do socialismo cooperativo. E não pode ainda esquecer-se a influência inovadora de Cesário Verde e Camilo Pessanha, que, com Antero de Quental, constituem a antecipação do “Orpheu”.
No plano político, o regime republicano (1910-1926) caracterizou-se pela instabilidade, dos partidos, dos governos, da sociedade, agravada com a entrada na Grande Guerra e a emergência do presidencialismo de Sidónio Pais (1917-18) e com o regresso em 1919 da República velha. No campo económico, em lugar da fixação da riqueza e da produção, houve os efeitos da Grande Guerra com inflação galopante e crise monetária. Quanto à Constituição de 1911, o parlamentarismo e a subalternidade da figura do Presidente da República (contrariada por Sidónio) geraram instabilidade governativa. Na educação, houve muitas expectativas positivas, nas reformas de António José de Almeida (1911), de Leonardo Coimbra (1919) e de João Camoesas (1923) que, apesar de não terem tido efeitos imediatos na frequência escolar, definiram orientações no sentido da valorização da qualidade do ensino.
Fernando Pessoa e “Orpheu” (1915) representam um sobressalto, num curioso casamento entre a história de um povo que o poeta procura interpretar e uma reflexão cosmopolita, que torna fascinante a leitura de uma obra caleidoscópica. Contudo, sem ser redutora, a perceção da identidade é feita à luz de uma consciência universalista. Como disse Eduardo Lourenço (1923-2020) em «Pessoa revisitado», o poeta «foi uma espécie de aparição fulgurante descida das brumas culturais alheias ao nosso desterro azul, para nele inscrever em portuguesa língua o mais insubornável poema jamais erguido à condição exilada dos homens na sua própria pátria, o universo inteiro». Assim se podem entender os paradoxos e as contradições que encontramos e que mais não são do que a aceitação de que uma cultura é complexa e heterogénea, abarcando elementos diversos. Estamos perante a imperfeição de que fala Lourenço, que exige a abordagem de diversos caminhos, sobretudo evidente numa cultura como a portuguesa, nascida numa finisterra de múltiplas presenças e depois espalhada pelo mundo. A relação entre o ortónimo pessoano e os principais heterónimos (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e o semi-heterónimo Bernardo Soares do “Livro do Desassossego”) corresponde, assim, à representação da pluralidade do universo. A modernidade de Pessoa tem, no fundo, a ver com essa projeção, que nos leva ambiguamente ao conceito de Quinto Império – incompreensível sem referência a Vieira, o imperador da língua portuguesa. Em vez de um projeto de domínio temporal, estamos diante da exigência de um diálogo, em busca da diferença.
«Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade» - afirmou Pessoa. Ora, os mitos permitem interrogar as raízes e o desenvolvimento de uma identidade, e essa abordagem crítica abre as portas para a superação de uma mera lógica defensiva ou retrospetiva. Compreende-se que José Régio e a revista “Presença” (segundo modernismo) tenham lamentado a publicação da «Mensagem» antes do outro manancial poético de Pessoa. O poeta não deixou de concordar junto de Adolfo Casais Monteiro, mas preferiu falar de um momento crítico de «modelação do subconsciente nacional». Será Eduardo Lourenço quem melhor articulará a necessidade crítica da consideração dos mitos pessoanos com a interrogação de Antero de Quental sobre «as causas da decadência dos povos peninsulares», com a obrigação crítica da geração de 1870, com a vontade de renascimento de «A Águia» e com o ensaísmo de António Sérgio. A heterodoxia de Lourenço tem a ver, afinal, com a recusa das escolas dominantes ou dos grupos instalados, pretendendo obter liberdade para seguir a necessidade crítica não acomodada à lógica positivista – de modo a partir dos mitos, a fim de poder compreender a sociedade e a cultura na sua complexidade. Afinal, Pessoa dissera sobre «Orpheu» a Cortes-Rodrigues que tinha como objetivo «agir sobre o psiquismo nacional», trabalhando-o por «novas correntes de ideias e emoções», sendo uma espécie de «ponte por onde a nossa Alma passa para o futuro». Eis por que motivo qualquer leitura superficial ou unívoca da obra pessoana pode conduzir num sentido redutor e incapaz de a compreender. Alberto Caeiro, o mestre, assume o panteísmo naturalista, pelo que afirma Campos: «O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo». «Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza. / Murcha a flor e o seu pó dura sempre. / Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua. / Passo e fico, como o Universo». Ricardo Reis afirma a nostalgia dos deuses gregos e romanos, Álvaro de Campos é o cantor da civilização mais moderna. E Pessoa procura transcender, reunir, completar, num pequeno texto em «Sobre Portugal» trata do provincianismo. Do que se trata é da definição de uma atitude crítica contrária do conformismo. «O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela – em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz. A síndroma provinciana compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e a admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade da ironia». O poeta pensa na necessidade de haver escóis, de haver uma aristocracia comportamental, de se cultivar a abertura e o cosmopolitismo, de superar uma tripla camada de negativismo: a decadência, a desnacionalização e a degenerescência. A ilusão do progresso ilimitado, a tentação de não cuidar do futuro, o fatalismo e a indiferença – tudo isso está em causa. E o certo é que a ironia ganha uma especial importância.