A VIDA DOS LIVROS
De 28 de agosto a 3 de setembro de 2023
O falecimento com 94 anos de Hélène Carrère d’Encausse, Secretária Perpétua da Academia Francesa, autora de “L’Empire Eclaté”, (Flammarion, 1978) constitui oportunidade para homenagear uma referência maior da cultura contemporânea.
O falecimento com 94 anos da Secretária Perpétua da Academia Francesa constitui oportunidade de homenagear uma referência maior da cultura contemporânea, pela qualidade da personalidade e da obra da historiadora, mas também por ocorrer num momento em que os acontecimentos ligados à guerra da Ucrânia têm gerado uma perniciosa e injusta desconfiança relativamente à cultura russa, que é riquíssima e não pode confundir-se com as tentações do neoimperialismo de qualquer governação. Hélène Carrère d’Encausse deixou-nos uma obra muito importante, da qual resulta uma ideia fundamental – o reconhecimento da relevância da componente russa na História europeia. Ao contrário de um certo discurso radical russófilo, não é possível compreender a História da Europa e a cultura do velho continente sem o reconhecimento dos grandes autores de origem russa, na literatura, na música, nas artes ou no pensamento. A historiadora agora desaparecida deixou-nos uma obra muito rica, que demonstra a necessidade de construir a Europa do futuro, através de um entendimento da complementaridade das raízes euroasiáticas da nossa cultura da sua base indo-europeia. Haverá alguma dúvida sobre a importância de Tolstoi, Dostoievski, Chestov, Berdiaev, Tchaikovsky, Kandinsky ou Chagall na alma europeia? A guerra fria e a sua evolução perturbaram esse entendimento natural, mas não o podem destruir. Quando H. Carrère d’Encausse foi recebida na Academia Francesa em novembro de 1991, parecia abrir-se um novo horizonte, que o tempo esbateu. Então a empossada afirmou: “Faço parte de uma geração que, chegada à adolescência no final da última grande guerra, viu-se confrontada com uma infelicidade europeia. A Europa estava amputada de uma parte de si mesma, estava-se perante o Ocidente raptado, como afirmou Milan Kundera. Essa era a nossa perspetiva. Sabíamos que o passado estava abolido, e que o pensamento e os génios antigos não podiam ter o direito de cidade, a não ser para legitimar uma utopia assassina. (…) Dezenas de milhares dos nossos semelhantes foram lançados no inferno gelado dos campos, com a horrível e degradante obrigação de proclamar que essa infelicidade era uma verdadeira felicidade”. Então, no modesto lugar de estudiosa da História, a investigadora disse ter-se esforçado para contribuir a fim de que fosse preservada a memória desses homens e povos que ficaram privados dela. Ora, com o fim do império soviético, um sonho de liberdade poderia estar a realizar-se. Mas a académica não tinha demasiadas ilusões. Nada seria simples nesta nova “Primavera dos Povos”, que apenas acabava de nascer. Haveria, por certo, o hábito do ódio que alimentaria muitos conflitos, e por isso, apesar dos escombros, acreditava nos homens de boa vontade, que tentariam, apesar do caos e da miséria, reconstruir um universo onde a dignidade humana recuperasse o seu lugar.
PALAVRAS PROFÉTICAS
Estas palavras soaram a proféticas, já que o tempo recente confirmou a incerteza e o medo…. Nascida em Paris, na família Zourabichvili, a 6 de julho de 1929, Hélène teve uma infância dividida entre a memória grandiosa do tempo dos Romanov e as provações da condição de emigrados pobres da revolução bolchevique. A família instala-se em França, vinda da Geórgia, com passagem por Istambul, depois da invasão da República Democrática da Geórgia pelo exército russo no fim do inverno de 1921. A jovem aprende a ler em francês, mas também em russo. Seu pai, Georges, filósofo diplomado em economia política começa por ser condutor de táxi em Paris, antes de criar uma empresa de importação-exportação em Bordéus, mas o domínio de cinco línguas levam-no a ser intérprete durante a ocupação pelas autoridades alemãs, facto que levará ao seu desaparecimento no fim da guerra. Hélène vem para Paris com sua mãe, vivendo de início na comunidade ortodoxa russa. Nesse tempo, Maurice Bardèche, cunhado de Robert Brasillach, dirá dela: “Tinha uma alma de jovem heroína, mas também era realista, decidida e lúcida”. Estudante bem classificada no Liceu Moliére, obtém uma formação sólida que prossegue no Instituto de Estudos Políticos. Sendo apátrida, obtém a nacionalidade francesa quando chega à maioridade, recordando essa circunstância em 1987 quando participa na Comissão da Reforma do Código da Nacionalidade. Casa-se em 1952 com Louis Carrère d’Encausse e interessa-se pelo estudo dos povos da Ásia Central e dos emiratos uzbeques, desde Alexandre II a Lenine, o que constituirá tema da sua tese de doutoramento, sob a orientação de Maxime Rodinson (1963). A editora Armand Colin publica o estudo sob o título “Reforma e Revolução entre os muçulmanos do Império Russo: Bukhara 1867-1924” (1966). A historiadora aproveita esse tempo para viajar pelas repúblicas periféricas da União Soviética, do Cazaquistão ao Afeganistão, passando por Tachkent, atual capital do Uzbequistão. Os seus estudos revelam-se fundamentais, pelo conhecimento das populações e pelo entendimento aprofundado de meio século do sistema soviético, bem evidenciado na obra “A União Soviética de Lenine a Estaline 1917-1953” (ed. Richelieu, 1972), reeditada em dois volumes pela Flammarion em 1979, centrada no tema “a ordem pelo terror”. Contudo, depois de publicar o estudo sobre a política soviética no Médio Oriente (1955-1975), em 1976, é com a saída do célebre “L’Empire Eclaté” (Flammarion, 1978) que Hélène Carrère d’Encausse se torna uma figura mediática de primeiro plano. Apesar de não se concretizar a sua tese fundamental – o enfraquecimento da União Soviética pela pressão demográfica das repúblicas asiáticas muçulmanas – a verdade é que a contestação política na Polónia com o Sindicato Solidariedade e a ação de Lech Walesa, bem como a eleição de João Paulo II, um polaco, como Papa anunciam mudanças profundas no mundo soviético, que trazem os temas da historiadora para a ribalta. Um significativo conjunto de estudos ilustram a urgência dos temas que a ocupam: “O Poder Confiscado, governantes e governados na URSS” (1980); “O Grande Irmão: a União Soviética e a Europa sovietizada” (1983); “Nem Guerra nem Paz: o Novo Império Soviético ou do bom uso da distensão” (1986), “O Grande Desafio: os bolcheviques e as nações 1917-1930” (1987), além de um estudo menos conhecido, mas essencial, sobre a desestalinização de Krutchev, que mais tarde constituirá novo sucesso – “A Segunda Morte de Estaline” (2006). Mas a fulgurante síntese intitulada “Le Malheur russe: Essai sur le meurtre politique” (Fayard, 1988), se lida atentamente nos dias de hoje, faz luz sobre a crise russa. É verdade que a análise do poder sanguinário russo apresenta lacunas, mas a transposição da experiência soviética para história ancestral do czarismo em “Os Romanov – Uma dinastia sob o reino do sangue” (2013) obriga a tentar entender o nevoeiro espesso que rodeia a ação de Vladimir Putin. Trata-se de uma situação muito complexa, a exigir a recusa de qualquer simplificação. Foi Henri Troyat o grande defensor da eleição de Hélène Carrère d’Encausse para a Academia, sendo eleita em 1990 e recebida poucos dias depois da morte da União Soviética (1991). Para o punho da sua espada, da autoria do artista da Geórgia Goudji, escolhe o versículo bíblico “Bem-aventurados os pacíficos”. Mulher de saber e autoridade deixa na sua obra vasta muitas pistas relevantes para a compreensão da gravíssima crise europeia e para as suas saídas, obrigando à recusa do reino do sangue e à salvaguarda da dignidade, tão esquecida… Grande mulher das artes e da cultura, como afirmou Jack Lang, manteve uma coerência extrema no seu pensamento sobre a necessidade de pensar no futuro da Europa devendo ser um fator essencial de paz, devendo estreitar-se os laços culturais em todo o continente, com recusa do regresso da lógica do “homo sovieticus” e da lembrança em Praga de 1968…
Guilherme d'Oliveira Martins