Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O jornalista e escritor José Rodrigues dos Santos recebeu o Prémio Clube Literário do Porto, no valor de 25 mil euros, que visa "premiar o autor que mais criatividade teve no domínio da ficção". Trata-se do primeiro prémio, como romancista, que o jornalista recebeu. Na cerimónia de entrega do prémio - que já distinguiu Mário Cláudio, Baptista Bastos, Miguel Sousa Tavares e António Lobo Antunes -, coube ao reitor da Universidade Fernando Pessoa, Salvato Trigo, fazer a apresentação deste romance (da qual publicamos alguns excertos).
"Fúria divina", foi editado em Outubro passado e tem como tema de fundo o radicalismo islâmico e é um "thriller" que acompanha a aventura de Tomás Noronha, um professor da Universidade Nova de Lisboa, perito em criptanálise e línguas antigas.
José Rodrigues dos Santos explica que foi durante uma viagem ao Paquistão, em 2008, que teve a ideia para "Fúria Divina". "Sabendo que os paquistaneses estavam a 'exportar' a sua tecnologia de armas nucleares para outros países islâmicos e sabendo que os militares paquistaneses apoiavam a Al-Qaeda, desenvolvi a primeira linha de força do romance: e se a Al-Qaeda tiver a bomba atómica? Depois, apercebi-me de que teria de entrar na cabeça de um radical islâmico e pus-me a ler os textos islâmicos. Desenvolveu-se, assim, a segunda linha de força do romance: e se o Islão dos fundamentalistas é o verdadeiro Islão?".
«Deus do presente e do futuro»
Salvato Trigo
Reitor da Universidade Fernando Pessoa
(…)
9. Este novo livro de José Rodrigues dos Santos pertence, sem dúvida, à categoria do que a literatura consagra pela denominação de romance, e, mais uma vez, o autor serve-nos a dose certa do romanesco, temperada por uma escrita analítica ancorada na crónica que, enquanto jornalista, domina inteiramente naquela fronteira em que ela se assume como espécie narrativa de síntese entre o jornalismo e a literatura. O autor reconhece, como dizia Jacinto do Prado Coelho, que a literatura começa exactamente naquele instante em que termina o jornalismo, isto é, em que o facto (a matéria-prima da narrativa jornalística) se transforma em ficto (a matéria nuclear da ficção, da narrativa literária).
(...)
11. E porque o reconhece, serviu-nos, nesta longa narrativa de quase 600 páginas, factos, que jornalisticamente sabe tratar com a excelência do repórter, temporãmente revelado em teatros de guerras ou de catástrofes naturais, combinados, a preceito, com o romanesco amoroso, sem “happy end”, como o de Tomás Noronha com Rebecca, a agente americana da NEST, que, eternamente grata ao professor português especialista em criptografia e, por isso, herói-positivo na decifração do código que despoletaria a bomba nuclear da Al-Qaeda, fabricada e encriptada por Alberto Almeida, aliás, Ibn Taymiyyah, aliás Ahamed Barakah, eternamente grata, dizia, lhe deu, afinal, uma lição de vida, mostrando no beijo prolongado com a Anne, sua colega, que a gratidão não é suficiente para acordar Cupido.
12. De romanesco amoroso, apenas como motivo composicional literário, poderemos também falar, na relação filial de Ahmed com a mãe, mas já não da relação marital do senhor Barakah, seu pai, com sua mulher, e também não da fugaz relação marital de Ahmed com Adara, a bela jovem filha do comerciante Arif, para quem Ahmed angariava clientes; turistas (kafirun) nas ruas do Cairo, a troco de algumas piastras.
13. Adara, ainda que fugazmente, em Lisboa, para onde veio juntar-se ao marido que não amava, mas que o pai, na tradição islâmica, lhe escolheu, procura libertar-se da opressão dos princípios corânicos a que estava sujeita pela sua condição de mulher de um crente radical e fundamentalista religioso.
14. Não é, pois, na dimensão romanesca que assenta o valor e a importância deste livro. Para mim, este livro é sobretudo importante como texto, naquela acepção em que Eduardo Prado Coelho, a partir de Roland Barthes, o assumiu, quando escreveu: “ É texto tudo o que no discurso se desprende das condições normais de comunicação e significação, e funciona como uma clareira, uma zona de tréguas no interior da guerra das linguagens.”
15. Consagra-se Fúria Divina como texto, como clareira, como zona de tréguas no interior da guerra das linguagens, no cap. 62, quando Tomás Noronha convence o seu antigo aluno Ahmed a fornecer-lhe o código para desarmar a bomba e este, moribundo, depois de insistente pedido, lho fornece sob forma anagramática, embora convencido de que o tempo que restava não seria suficiente para o professor suspender a explosão.
(…)
17. “Fúria divina” era o nome do código da operação Nova Iorque, extractado do versículo 16 da sura 8 do Alcorão. Operação, todavia abortada, porque a vontade de Alá não era coincidente com a vontade de Bin Laden. Deus, para o ser verdadeiramente, não pode ser fonte de vida e seu carrasco, ao mesmo tempo.
18. A tradição pré-islâmica, aquela em que Maomé bebeu os ensinamentos para o Alcorão, ensina que “Alá, antes de tirar o mundo do nada, criou a Tábua e o Cálamo e este, apenas criado, escreveu na Tábua, por decreto de Alá, todo o futuro e quanto pode saber-se.”
19. Foi este Deus primevo que Tomás invocou e, afinal, revelou a Ahmed. Não o deus que alguns homens, arrogando-se gabriéis, usam para nos meter medo e, assim, se tornarem eles também deuses aos olhos dos que neles crêem, quando afinal, não passam de lobos como Plauto os caracterizou no axioma “homo homini lupus”.
20. É que, como escreveu Angelus Silesius, “ o olho com que vejo Deus é o mesmo olho com que ele me vê”, não devendo, por isso, o entusiasmo, no sentido etimológico grego, de ter Deus em cada um de nós, de transportarmos o halo divino, ser descontrolado e descambar em paixão, porque, como sabiamente escreveu Hobbes, “ a única paixão da minha vida foi o medo”.
(…)
33. A um leitor menos atento poderá parecer que o autor assunta, paralela e diferentemente, duas histórias dentro do romance, cujas personagens centrais seriam Tomás Noronha, da ocidental, e Ahmed Barakah, da islâmica. Como disse atrás, Tomás Noronha é, de facto, o herói-positivo deste romance-crónica, ou deste ensaio literário ou deste “roman fleuve”, como o poderíamos classificar com maior rigor técnico-literário. Ahmed, esse, é o herói-negativo, o pícaro, que funciona como o ponto de confluência das disputas das linguagens, a ocidental e a islâmica, ou como a lançadeira do tear que vai tecendo o texto.
(...)
37. Concluiria, dizendo que, se a qualidade dum romance pode ser determinada pela capacidade que o seu autor tem para manter o “leitor colado à história”, então, estamos, por isso e sem qualquer dúvida, em presença de um romance de qualidade.
38. Este livro de José Rodrigues dos Santos apresenta-nos, é preciso dizê-lo, um autor experimentado nas técnicas narrativas e no domínio perfeito da função fática da linguagem.
39. Fúria Divina poderia parecer um título pouco conveniente para um romance publicado em cima da borrasca de Caim e dos acintes alimentados por picardias mais políticas do que teológicas, mais ideológicas do que fideístas.
40. Todavia, quando tiverem ocasião de ler o livro, que aqui me permito recomendar também como uma excelente crónica literária e jornalística de indubitável interesse social e de inegável actualidade doutrinária, então, verificarão que o oxímoro, que a nossa relação sintáctica e semântica com Deus ou com os deuses surpreenderia no título, não é, de facto, um oxímoro, porque, em rigor, não existe contradição fundante entre os termos.
41. Este livro, para além de outros muitos méritos que aqui o tempo não me deixou dizer, tem o condão de nos fazer pensar na nossa própria condição humana e na forma como a condicionamos no modo como nos relacionamos com Deus, como crentes ou como agnósticos.
42. Por mim, a leitura prazeirosa deste livro, motivou-me à releitura de O Sagrado e o Profano, de Mircea Eliade, para relembrar que, afinal, nós, os humanos, somos a epifania da dimensão sagrada que a vida inteligente nos garante para um encontro virtual com Deus, com o nosso Deus ou com os nossos deuses.
in As Artes entre As Letras (edição n.º 17, 13/01/2010)
Pedro Tamen - O livro do sapateiro por Teresa Vieira
Eu diria que se escreveu como se já não houvesse tempo para as razões, mas a escrita faz um desafio e agarra pelos olhos as tais cores do tudo que perduram no livro do sapateiro.
Nota-se que o sapateiro segue a analogia dos dedos que fizeram irmãos em livro anterior, diria até que a mão direita do sapateiro, sabendo ou não, foi aceitando um acocorar dos tempos, sobretudo quando eles nem concluíram a cena-vida, nem apenas a ela lhe chamaram solidão.
No tempo 4 o livro do sapateiro recorre a uma luz de tempo antigo como se o tempo novo não coasse os saberes por filtro anterior. Assim somos levados a concluir que em muitas horas não se descortinou o que foi a interpretação do que transporta e move o sapateiro e o sapato e que é precisamente esse tempo do transportar o que afinal lhe resta descobrir.
Neste tempo, sapateiro e sapato comungam a opinião de que o comércio dos saberes e dos sentires é afinal merceeiro, tão merceeiro que o cheiro do vinagre surge ao sapateiro com a utilidade de entender a vida na sua metade e não pela metade no sentido de amputada. Antes nos surge que o sapato se fez e se faz no espaço imenso de um sopro. Assim o entendemos até ao tempo 7 deste livro.
Contudo, desafia-se o sapato e o pé, ao mesmo tempo que faz todo o sentido compreender neste livro, o dizer não digo, pois já disse, qual condenado ainda a tempo. Sempre a tempo de aceitar a condenação que rejeita.
De propósito o livro do sapateiro surge numa perfeita confusão esclarecida.
Ao tempo 12 não distingue o poeta a margem, para que não surja a ponte que afinal recusa não ter visto na hora de se fazer oferecida ao seu olhar. Era sal, talvez, ou era pão o que se viveu e se vive e no entretanto do hoje a esperança, ainda assim na mão da pele também ela acocorada, temerária e insistente até romper a juventude que lhe resta.
Sentimos uma característica clara nestes poemas: eles recusam os caminhos miméticos pois que a obra não é trabalho de encomenda, como nos aperta o tempo 19. Todavia admite-se claramente que o destino é caminho incerto, é soluço admitido, mas a vida é outra coisa: sentimos que se afirma que a vida é um regresso ao princípio. Ao princípio do dia em que não renascendo se nasce.
Para nós este é o grande sapateiro que não foge, mas aceita sem receio o castigo de um prego pelo desrespeito que anteriormente lhe prestou. Desatenções?
Há no tempo 26 diga-se, uma fisga que dispara o suicídio de muitos dias, certo de que os sapatos aguentariam caminhos diferentes ou mais arrojados. Talvez por isso a tristeza líquida do choro quando nem a fruta que cuidou o reconhece. Parece que o sapateiro poderá agora sim, estar cego. Ou poderá querer fugir do destino ao qual apela deitando mão das cerejas?
Enfim, a cave é em muito o local da vida que o sapato usa e pisa e lustra. Afinal a cave faz parte do que pertence ao poema do livro no seu todo, pois que está à frente do próprio sapateiro e não só, mas também, para que lhe recorde a pele transfigurada quando é tentada ou saudada pelas pastagens verdes do tempo 41.
Surge-nos o livro do sapateiro e nele um construir de muito fundo um alicerce ao livro todo; suporte sintético e certeiro das palavras aos dias de uma vida em muito feita, prego a prego semeando pregos, horas a fio, na obtenção de um esclarecer que clareie razões ou as justifique ou as negue.
Surge-nos este excelente livro e no qual se constrói, sem paradoxo, um único poema que se ilumina também com a infelicidade. Aqui a infelicidade é também protagonista de um especial luzimento a muita vida em que se vai polindo o próprio sol? ele que desde logo subentendido no tempo 49, não deixa de ter voz para nos dizer o quanto os últimos dias, se têm brilho, será exactamente por nunca serem os últimos, ainda que o poeta aqui e ali os queira averbar.
Porém, a verdade é que o brilho imperecível deste sapateiro de olhos molhados já se fez à estrada pelo pé do escriba.
Referimo-nos à estrada magnifica e através da qual no tempo 43 o sapato concluído enfim e até hoje, vai e irá, montes e flores onde exacto encontra a sua maneira de bambalear o caminho, aquele com que tempera a natura numa liberdade elástica exposta nas palavras eximias do tempo 36.
Passaram dez anos sobre a morte de António Palolo - 29 de Janeiro de 2000. (Nasceu em Évora, em 5 de julho de 1946.) Pedem-me para evocar o João - os mais íntimos trataram-no sempre pelo primeiro dos seus nomes -, com quem tanto aprendi e com quem largamente convivi. É como se me pusesse a mexer numa ferida, depois de reerguer a crosta de sangue que há muito deixara sobre a pele e que se transformou numa leve mancha. E de novo fazer surgir o movimento de toda a sua arte. Um tempo em forma de polifonia de cor. Desde o seu início de repente se inscreve, como secção principal, o enlevo lento de mínimas cores, suaves geometrias. Toda a sua obra (pictórica e fílmica) guarda uma energia e uma exuberância de elementos contrastantes, que sempre encontraremos em permanente renovação.
É comum ligarem-no a um conjunto de pintores seus contemporâneos em Évora. Todos mais velhos. Admito que o seu convívio tenha sido importante, mas não ao ponto de terem sido fonte de aprendizagem e informação. Apenas de convívio, numa cidade opressora no seu viver quotidiano, fechada, classista e provinciana. De todos com quem conviveu nos seus anos de rapaz, sempre me disse considerar Joaquim Bravo de um modo particular. Nos meus contactos com Bravo, sempre vi neste um respeito de camaradagem e uma atenção mais de discípulo para mestre, do que sinal contrário. Mas nesta relação entraria, de certo, a delicadeza de que se revestia a amizade de ambos. Palolo foi entre nós um caso, não digo que único, mas bem raro, de aprendizagem a partir de si mesmo, numa captação directa do mundo da imagem. De início, o entusiasmo que encontrou nos poucos livros sobre arte que o pai possuía ou nas aulas de desenho dos primeiros anos do ensino técnico. Depois, um impulso único para prender à sua sensibilidade o desenhodomundo. Uma intuição — quase do nada, senão mesmo do nada, pois de muito pouco terá sido —, de resquícios de imagens, tê-lo-á levado aos primeiros desenhos, nos começos dos anos 60. Submergir num espaço de ficção imagética a que não seria estranha a visualização da banda-desenhada e uma entrada fulgurante, a partir desta, no universo co-existente da Pop Art. E, posteriormente, uma partida para a contemporaneidade da arte mundial.
Em dezembro de 2009, o então director do Museu de Évora, Joaquim de Oliveira Caetano, mostrou-me uma fotografia, que tinha no seu gabinete. «Sabes quem é este miúdo?» Perguntou-me.
Era uma fotografia de uma visita oficial, com a gente soturna dos anos 50. Pelos fins de 50. «Não.» E fiquei a olhar para aqueles homens de estado, onde acabei por reconhecer o Dr. Azeredo Perdigão. Quanto ao rapazinho, que se encontrava no meio, coisa alguma me levou a reconhecê-lo. De configuração nervosa, rosto inteligente, sorriso tímido e feliz. Óculos que revelavam uma miopia aos 10, 11 anos. Tinha umas mãos bonitas. Era um menino. Não estava a perceber porque motivo, tão à queima roupa, teria de reconhecer aquele rapaz. «Não, não sei quem é.»
«É o Palolo. Numa visita a Évora, Azeredo Perdigão acabara de lhe comprar um desenho.» Provavelmente o que importaria sublinhar na fotografia seria o gesto, apesar da soturnidade dos anos 50, o presidente da única instituição cultural do país com carácter de continuidade reparou no trabalho de um miúdo e comprou-lho. Fá-lo-ia hoje alguém em idêntica posição, rodeado de um ambiente ilusoriamente bem menos taciturno? Deixemos a pergunta sem resposta. Palolo, que tratava quase todos os amigos por você, havia de tirar esta fotografia das mãos de Joaquim Oliveira Caetano, com um «Deixe-me ver» e ficaria a olhar para os seus tempos de quase infância, num misto de «Emílio» de Rousseau e de «Robinson» de Defoe. Aquele rapaz, ele próprio, havia de lhe falar com claridade — a claridade com que sempre pintou —, da memória das coisas. Da memória das cores que começou a encontrar por esses anos juvenis no grande livro da natureza. Da memória que espreitava por detrás das lentes, no olhar arguto, que lhe diria, se acaso o visse desde a distância: «Toma as cores nos teus sentidos e de seguida terás o desenho da cor.» Também António Palolo, que cresceu em Évora, o vejo como Robinson Crusoe. A sua história é a de um homem que criou o seu próprio mundo na arte sem ajuda de nada. (Dir-me-ão que não: um ou outro galerista, um ou outro amigo. É mentira. A ele chegaram de facto. A ele chegaram porque a sua arte era muito grande e já existia quer em acto quer em potência antes da interferência, e por vezes tão negativa, de qualquer. E foi a sua existência, no desenvolvimento da sua arte, quem de facto os ajudou; e não o contrário.) Évora foi para Palolo a ilha deserta de Robinson. De onde partiu para a sua vida de aventura, fértil de estímulo interior. De onde partiu para correr o seu caminho, fechado na singularidade da sua própria força.
Depois de ter visto aquela fotografia passei ao terraço do Museu. Duvido que alguma vez Palolo tivesse tido aquele confronto tão próximo e tão cimeiro com as alturas da Sé. Era um fim de tarde de dezembro, de neblina; e a torre lanterna, quase ao tocar da minha mão. Tão próxima, quase, como a imagem daquele menino pintor que me fora mostrado. Estava por de cima da planície eborense, sobre a sua cidade, pela qual Palolo tinha mais desprezo do que amor, apesar da extensão, do silêncio da terra e das pedras de sacrifício que se elevavam no vazio dos campos que, de facto, a esses, sempre quis. Évora foi para ele, como sempre me disse, uma cidade morta, um chão de mortos. Onde acabou por repousar. Enquanto estive ali, naquele reduzido plaino do terraço do Museu, senti-o próximo, senti a sua mão apertar o meu braço. E as gralhas, em voo curto, entre os pináculos da torre lanterna, gritavam ao nevoeiro que descia a dor e a alegria da sua arte. Com emoção e suavidade, o coração sereno das cores de Palolo descia nas listas, barras e volumetrias geometrizantes das suas telas, nos desenhos e guaches purificantes, nas transparências dos planos, na acalmia e profundidade dos corpos, no vórtice da imagem fílmica — e as gralhas, negras, saudavam em homenagem, no enredado voo, ao redor da torre lanterna da Sé, a arte maior de António Palolo.
Em muitos locais, em livros, em catálogos e na imprensa, deixei testemunho crítico sobre a sua obra. Não me importa aqui sublinhar nenhum desses aspectos. Barcarola, entendo-a somente como uma pequena música. E as gralhas na torre lanterna da Sé de Évora bem a executaram nesse final de tarde de dezembro de 2009. Barcarola de palavras, no meu caso, em memória. Mas o que importa sublinhar, é no momento em que tantos falsos e tantas dúvidas surgem acerca de pinturas e desenhos seus, que cada vez mais será urgente a realização de um catalogue raisonné sobre a obra de um dos artistas mais cimeiros da segunda metade do século XX.
Uns dias antes de morrer o João (já disse que era assim que o tratava) mostrou-me um livro que acabara de comprar. Pinturas de Masaccio. Combinámos, mal melhorasse, uma viagem a Florença, para vermos os frescos de Santa Maria del Carmine.
Transcrevo, de seguida, o que sobre esse nosso último encontro, escrevi para o catálogo de uma sua exposição em 2005, na Galeria 111 (texto recolhido em Processo Em Arte, Lisboa, 2008): «Estou a ver os seus dedos passarem sobre a imagem do fresco que representa ‘O pagamento do tributo’ e suspenderem-se na assimétrica divisão, como se quisesse ele mesmo isolar do grupo que rodeia Cristo as duas figuras que já se encontram separadas: o apóstolo, suponho, que entrega o pagamento ao jovem cobrador de impostos. Perdeu-se, enleou-se, deixou ir os sentidos e o imaginar nas imagens de outros frescos; e todas elas se perdiam na transparência de folhas separadoras [...] voltou-me à ideia este nosso último encontro e o tempo em que estivemos sentados ao lado um do outro a folhear o livro de Masaccio. Um dos seus gatos brancos, enormes, assistia ao passar das folhas e das mãos. Era janeiro. A luz do candeeiro (os gatos gostam de ficar exactamente debaixo das lâmpadas, mesmo quando elas são somente a ilusão fria do aquecimento) intensificava o branco do pêlo. O fumo do chá muito quente de salva erguia-se das chávenas. Os frescos de Santa Maria del Carmine seguiam a sua liberdade de folhas que caíam umas sobre as outras, num lento passar; uma liberdade totalmente limitada pelo destino, a atadura das folhas de um livro. Não andava longe o fim da liberdade que o destino atribuíra à duração perceptível da nossa amizade.»
Nesse mesmo final de último encontro o João deu-me o seu cartão de identidade da Sociedade Nacional de Belas Artes. Tem o nº 360, de sócio correspondente. Não se percebe a assinatura do presidente da direcção, mas percebe-se a do 1º secretário, Eduardo Nery, que assinou pelo director. O retrato é o de um rapaz de dezassete anos, a idade que tinha quando foi admitido sócio, a 27 de novembro de 1963. O cartão foi passado a 29 de janeiro de 1964. Morreu 36 anos depois. A assinatura é ainda a de um puto adolescente, mas já lá está o risco firme que manteve sobre as telas e de que se terão servido Caronte e os seus companheiros de trabalho, para na barca o levarem. E passarem o Styx, numa sucessão rápida de variações sobre a cor.
Morreu no passado dia 31, mais um grande lutador antifascista em Portugal.
É na Juventude Operária Católica, aos 17 anos, que Manuel Serra toma consciência da pobreza, repressão e injustiças que o rodeiam – o motor de arranque para uma longa e agitadíssima caminhada.
Já como oficial da marinha marcante, integra-se na corrente mais extremista da campanha de Humberto Delgado para a presidência da República, em 1958, onde defende o recurso à luta armada para o derrube do regime.
Na noite de 11 para 12 de Março, chefia os civis no falhado Golpe da Sé, sendo detido e levado para o Aljube onde permanece seis meses, depois de cinco dias de tortura de sono. Numa primeira fuga espectacular, sai pelo seu pé do Hospital Curry Cabral onde se encontrava internado: vestido de padre, segue directamente para a embaixada de Cuba em Lisboa, onde pede asilo. Apesar de vigiado em permanência por quatro agentes da PIDE, chefiados por Rosa Casaco, estuda um novo plano de fuga, muda de visual muito rapidamente, cortando o cabelo e a barba, e aproveita uma mudança de turno para, uma vez mais, sair em pleno dia para a embaixada do Brasil, já que o seu objectivo era precisamente juntar-se a Humberto Delgado naquele país.
Parte em Janeiro de 1960 e começam então os preparativos para o que viria a culminar no golpe de Beja, em 1 de Janeiro de 1962. Depois dos factos que são do conhecimento público, Manuel Serra tenta esconder-se no sul do país, mas acaba por ser detido em Tavira. Segue-se então um mês de grande violência, com tortura de sono e espancamentos, um julgamento com condenação a dez anos de prisão e longas estadias em Peniche e em Caxias. Liberto no início de 1972, é ainda detido por um curto período em Novembro de 1973.
Tudo somado, quase doze anos passados em prisões da PIDE.
A seguir ao 25 de Abril, é um dos fundadores do MSP (Movimento Socialista Popular) que mais tarde se integra no Partido Socialista com grupo autónomo, mas divergências internas precipitam a saída, em Janeiro de 1975, para a criação da FSP (Frente Socialista Popular). No quadro deste pequeno partido, participa nas campanhas de Otelo Saraiva de Carvalho para a presidência da República. Em 1980, foi um dos fundadores da FUP (Força de Unidade Popular).
Ontem, tudo acabou. Ficará na história dos belos lutadores da resistência em Portugal, que aliaram a coragem à aventura e até ao prazer do risco. Na memória dos que o conheceram pessoalmente, restará um enorme sorriso e um coração do tamanho do mundo – será sempre assim que o recordarei.
Joana Lopes
Fotografia e fonte para a elaboração deste texto: Rui Daniel Galiza e João Pina, Por teu livre pensamento. Histórias de 25 ex-presos políticos portugueses, Assírio & Alvim)
Sérgio Nazar David: de Garrett a uma poética de fogo lento
Sérgio Nazar David (n. 1964, Além Paraíba, Minas Gerais, Brasil) é sobretudo conhecido, entre nós, como investigador de qualidade nascido do outro lado do oceano, experimentado e obsessivo garrettiano como há poucos em terras lusas. Poeta, professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001), fez o seu pós-doutoramento na Universidade de Coimbra (2006).
Publicou, em Portugal, O Século de Silvestre da Silva – vol. I – Estudos sobre Garrett, A. P. Lopes de Mendonça, Camilo Castelo Branco e Júlio Dinis (ensaio, Lisboa, Editora Prefácio, 2007) e O Século de Silvestre da Silva – vol. II – Estudos queirosianos (ensaio, Rio de Janeiro / 7Letras, 2007), tendo organizado uma excelente edição de Cartas de Amor à Viscondessa da Luz (Famalicão, Quasi Edições, 2007), de Almeida Garrett.
Nesta obra, de leitura obrigatória, não só o estudioso do autor de Frei Luís de Sousa actualiza a ortografia das cartas – fazendo os termos da época surgir na sua cor original –, como corrige transcrições defeituosas e decifra palavras. O Garrett que Sérgio Nazar David nos apresenta, na singular introdução, é um ser de «estranha inquietude», usando a expressão de Freud, analisado também segundo a psicanálise e a antropologia social, ou seja, à luz da perturbação interior, da culpabilização, do conflito entre amor e desejo sexual. É ele quem vê Rosa «com olhos da alma», adorada e anjo, e com ela mantém uma relação clandestina que terminará num irreparável desencontro que nem a iminênciada morte do escritor recomporá.
Membro da Equipa Garrett do Centro de Literatura Portuguesa (CLP), sob a orientação de Ofélia Paiva Monteiro (OPM), Sérgio Nazar David prepara agora a Correspondência Familiar do autor de Viagens na Minha Terra, com publicação prevista para 2011, pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda [ler dossier na Colóquio/Letras (nº 174), disponível em Maio, dedicado à edição crítica desta última obra, organizada por OPM]. O volume inclui, ao todo, 105 cartas, 64 ao irmão Alexandre, 52 das quais inéditas, 40 à filha Maria Adelaide (onze inéditas) e uma outra (inédita também) à mulher Luísa Midosi.
É, no entanto, o poeta perplexo, apaixonado por Portugal e sua literatura, que trago a este espaço, aquele que reinventa, no quotidiano, o conteúdo da escrita, atribuindo-lhe, como escreveu Boris Pasternak a Rainer Maria Rilke1, em tempos diversos nomes diferentes. Que é da poesia se não desenha, a traços claro-escuros, uma a uma as coisas do mundo, uma cartografia da condição humana?
Sérgio Nazar publicou, até agora, dois livros de poesia: Onze Moedas de Chumbo (Rio de Janeiro, 7Letras, 2001) e A Primeira Pedra (Rio de Janeiro, 7Letras, 2006, nomeado para o Prémio Portugal Telecom 2007). Regra geral, trata-se de uma poesia elíptica a sua, de dimensão narrativa e grande apego a um quotidiano que a palavra torna onírico, como se o poema fosse laboratório e o modelo romanesco se transformasse em companhia no seu atelier de autor contaminado por uma cultura oitocentista.
Servem-lhe os versos para agudizar formulações mais vastas de interrogação interior, seguindo o autor um ritmo cuidado, tão lírico como, por vezes, áspero. Não existe o verbo no intervalo da batida, na tensão criada entre silêncio e som, abrindo-se o texto tanto à harmonia quanto à ruptura? Nos inéditos que se divulgam agora, do novo livro de Sérgio Nazar David, Tercetos Queimados, Portugal é personagem não só enquanto função emotiva, mas paisagem, pormenor autobiográfico ou pessoana deriva.
As dissonantes notas desta escrita de nostálgica celebração dão o mote a uma poesia/prosa subtil de suavidade, atravessada por um fogo lento, estanhado. Nesse sentido, podem ler-se os inéditos – nos quais o sentimento de ausência, de finura líquida, se vai densificando –, a partir de um sujeito poético que revela sinais da enevoada incompletude, de esmagamento do desejo, de uma breve existência entre a exaltação e uma força sombria.
Veja-se como a cultura portuguesa atravessa a seiva destes poemas.
Ana Marques Gastão
Inéditos de Sérgio Nazar David
1.
Não tenho poema. Tenho (quase ponho tremo) já agora pouco para ti. A vírgula, o acento inútil, tão pequeno, ainda sabe entretanto a Amor. É estranho amar-te, ver-te atrasado
num email de aniversário com palavras desiguais... Tudo tão distante – balões que vão sonhando – e estranho, amor, amar-te ainda. Tenho deixado tudo: num velho caderno as notas de viagem de Berlim,
no ap de Lisboa os hieróglifos da tua mão quando nevou, na pedra em que repouso o fado de misérias. A coleção dos teus ditos
telegráficos (talvez ainda falte algum) segue e até rio do castelo de cartas que compus. Devagar empalidece a rosa em que dormíamos.
2.
Numa tarde, num café de Lisboa (por instantes se pode fugir do tédio, do absurdo desejo de sofrer), um livro trouxe-me o que um dia eu quis
e o corpo reteve (a alma não). O difuso (ou parte incorpórea?) dá-se em livro, agora, urgência recoberta de cinza e espinho.
Haverá outro modo de tocá-lo que não este, alheio à geografia do poema? Quis para sempre o livro e os três quartos de hora
que passei, morto, lendo. Porém - como à tarde na cidade ou dentro do passado que relembro - vivo em tudo às cegas, não entro em nada
por completo. Agora, por exemplo, me pergunto: por que me abro, por que me entrego e nunca estou liberto?
3.
Queria agora dizer-te espera, espera um pouco mais... Tendo vivido à tua espera, vi-te entrar-me
num 27 de fevereiro, sexta-feira, com um chinelo gasto, um short, um maço de cigarros, poucas palavras, nenhuma sorte e uns poucos gestos,
que mesmo o amor tratou de comer. Naquela fria e leda madrugada, depus jogos e armas: vinha de noites antigas (não disse quais), mostrei-te
os óculos azuis (já não posso usá-los como queria), disse-te ser um animal que pouco pode com o som estrídulo
dos verbos. Por mais finos, são, com abstrusas derivas, grito engolido, carne ultrajada, osso que salta do corpo sem preparação. Teus braços foram-me
um rio que sai de repente das pedras.
Hoje não quero ser nada senão aquele que corria aos cafés de Lisboa a ler mensagens telegráficas.
Morri com as tábuas que gravei lembrando-te
e ainda hoje daria o pouco que sou por ver-te como eras: rosa impura, que o tempo macerou.
4.
O rosto mais rubro do silêncio era tua moeda e morada (se já não estavas). Com elas compus um verso livre a dizer-te: "quando vieres, seja dormindo." Que não te lembres depois do que fizeste comigo e das palavras que dizes enquanto cruzas-me o corpo. Quero entregar-me sonhando como se fosse morto.
1Correspondance à trois (Rilke, Pasternak, Tsvetaiëva), Paris, éd. Gallimard, 1983, p. 35; Correspondência a Três – Verão de 1926, Rainer Maria Rilke / Marina Tsvétaïeva / Boris Pasternak, Lisboa, Assírio & Alvim, trad. Armando Silva Carvalho, 2006).
Se é totalmente incorrecto fazer coincidir o início da oposição dos católicos ao salazarismo com a década de 60, não há dúvida que foi nela que se deu a verdadeira explosão de actividades daquela oposição. Dois factores contribuíram decisivamente para que isto acontecesse: dentro da Igreja, as perspectivas de abertura criadas pelo Concílio Vaticano II e o conservantismo da Igreja portuguesa; na sociedade em geral, a ausência de liberdades elementares e a manutenção da guerra colonial, com todas as insuportáveis consequências que arrastou. Ao invocarem a sua condição de católicos em iniciativas cada vez mais radicais, aqueles que o fizeram atingiram um dos pilares ideológicos mais fortes do regime e este foi acusando o toque.
É certo que se tratou de uma oposição que manteve sempre uma certa informalidade organizativa. Concretizou‑se em iniciativas e instituições, mais ou menos ligadas entre si através dos seus membros, mas, em parte propositadamente, sem uma estruturação sólida e definida. Daí derivaram fraquezas e forças e, definitivamente, características específicas.
A Pragma foi uma dessas instituições – com uma importância e projecção ainda relativamente desconhecidas. Foi fundada por um grupo de católicos, em Abril de 1964, como uma «Cooperativa de Difusão Cultural e Acção Comunitária». Porquê uma cooperativa? Porque foi a forma de tirar o partido possível de uma lacuna legislativa: as cooperativas não tinham sido abrangidas pelas limitações impostas ao direito de associação e, por essa razão, nem os seus estatutos eram sujeitos a aprovação legal, nem a eleição dos seus dirigentes a ratificação pelas entidades governamentais. Forçando uma porta entreaberta por um lapso do poder, os fundadores da Pragma puseram mais uma peça no puzzle da oposição ao regime – cuidadosa e imaginativamente.
Desde o seu núcleo inicial, a Pragma não se restringiu ao universo «intelectual» e incluiu também sócios provenientes do meio operário, nomeadamente dirigentes e militantes das organizações operárias da Acção Católica. Os horizontes abriram-se rapidamente e muitos dos seus futuros membros nem sequer seriam católicos. Aliás, a Pragma acabou por funcionar também como uma espécie de plataforma aglutinadora de elementos da esquerda não-PC que, por não estarem integrados em qualquer estrutura organizativa, nela identificaram um espaço de debate e de encontro (foi o caso, por exemplo, de muitos activistas das lutas estudantis de 1962).
Subjacente a este novo projecto estava, obviamente, um posicionamento de oposição ao regime como um todo, à falta de liberdades, à guerra de África. Pretendeu‑se explorar mais uma janela legal de oportunidades, complementar outras iniciativas, criar possibilidades para acções concretas e úteis, aumentar a consciência política e social de um número cada vez maior de pessoas.
Os três primeiros anos
Mário Murteira foi o sócio nº 1 e o primeiro Presidente da Direcção. Nuno Teotónio Pereira, sócio nº 2 e segundo Presidente, manteve-se até ao fim como o seu principal animador.
«Oficialmente», os Estatutos definiram como objecto da Cooperativa: «a) – Facultar aos seus sócios a maior defesa económica nos artigos que possam adquirir ou produzir; b) – Promover o aperfeiçoamento moral, cultural e técnico dos sócios e suas famílias [...]; c) – Instalar casas de férias para sócios e famílias.»
Durante os primeiros três anos, estes objectivos, nomeadamente os dois primeiros, foram concretizados num número absolutamente notável de iniciativas.
Na área da promoção cultural e técnica, para além de um ciclo de cinema e de exposições, organizaram-se, em três anos, largas dezenas de cursos (com muitas aulas), colóquios (com várias sessões), conferências e reuniões temáticas. Nalgumas destas iniciativas, participaram centenas de pessoas. Escolhiam-se os títulos «possíveis», o que se passava na realidade ia bem mais além…
Em Abril de 1965, por ocasião de um colóquio sobre Planeamento económico e progresso social, a Pragma organizou uma exposição baseada no Parecer da Câmara Corporativa sobre o Plano Intercalar de Fomento para 1965‑1967: sessenta painéis com fotografias, gráficos e comentários, em que os textos e dados estatísticos foram extraídos dos documentos oficiais. O Parecer, que era muito crítico, tinha sido elaborado por Francisco Pereira de Moura, então Procurador à Câmara Corporativa. Depois de exibida em várias localidades, acabou por ser apreendida pela PIDE, em S. Mamede de Infesta.
A PIDE esteve atenta à Pragma desde o início. Em processo próprio arquivado na Torre do Tombo, há informações sobre actividades e pessoas ligadas à Cooperativa desde 1964, bem como relatórios de informadores da PIDE.
A realização de sessões públicas pressupunha uma autorização prévia concedida pelo Governo Civil. A Pragma submeteu por isso um pedido relativo a uma conferência sobre Emigração – situação de crise ou factor de progresso?, que deveria ter lugar em 28 de Fevereiro de 1967. Depois de consultada a PIDE, que considerou «inconveniente» a realização da sessão, o Governo Civil de Lisboa indeferiu o pedido. Compreende‑se a razão – emigração era um tema especialmente sensível, já que, em 1966, tinham sido 125.000 os portugueses que, legal ou clandestinamente, tinham deixado o país. Devido à recusa de autorização por parte do Governo Civil, o ciclo sobre emigração ficou limitado aos sócios, que assistiram às duas primeiras sessões na sede da Cooperativa. A terceira deveria ter tido lugar precisamente no dia em que a sede foi encerrada pela PIDE.
Começou então uma nova etapa na vida da Pragma. Entretanto, a Cooperativa tinha crescido rapidamente ao longo dos três primeiros anos: de 111 sócios em Dezembro de 1964, passara para 216 no fim de 1965 e para 305 no de 1966. Em Abril de 1967, tinha 340 sócios.
O encerramento da sede e as reacções
No dia 6 de Abril de 1967, quando se encontravam na sede da Cooperativa, na Rua da Glória, Natália Teotónio Pereira e António Macieira Costa, apresentou‑se uma brigada de agentes da PIDE, com ordem para realizar uma busca às instalações. Esperaram por Nuno Teotónio Pereira, então já Presidente da Direcção, entretanto avisado. Um painel com documentos sobre emigração atraiu imediatamente a atenção dos agentes. Deveria realizar‑se, nessa mesma noite, a já referida terceira sessão sobre aquele tema, intitulada Visão histórica da emigração portuguesa, sob a orientação de Joel Serrão e com a colaboração de Vitorino Magalhães Godinho.
Enquanto decorriam as buscas, chegou alguém que passou a ser objecto de comportamento reverente por parte dos agentes e que foi apresentado a Nuno Teotónio Pereira como o «Subdirector Sachetti». Agitado, apontou para o painel e terá dito:
«Ali está o que nós suspeitávamos! São estas as ideias que vocês espalham. Hão‑de ver na Polícia a criminosa acção que estão a fazer. Um desgraçado em África traiu os seus camaradas e disse que a culpa era toda vossa!»
As instalações foram seladas para que a diligência pudesse continuar no dia seguinte. Nuno Teotónio Pereira seguiu com os agentes para a sede da PIDE – de táxi – e foi mais tarde levado para a prisão de Caxias. A caminho da cela, iniciou este extraordinário diálogo com o guarda que o acompanhava:
- Tem havido muito movimento? - Não, pouco, isto está muito parado e muitas celas estão vazias. E o que dá ainda alguma coisa é a emigração. Políticos agora são menos. O senhor é da emigração ou dos políticos? - Sou dos políticos. - Pois é, disso tem havido pouco. Compreende: cada um trata mas é da sua vida.
Vinte e quatro horas depois, foram presos outros elementos da Direcção: João Gomes, António Macieira Costa, Nuno Silva Miguel e Ana Marques [hoje Ana Vicente]. Em todos os casos, houve buscas domiciliárias, interrogatórios na sede da PIDE e detenção em Caxias, até 10 de Abril, dia em que foram libertados juntamente com Nuno Teotónio Pereira.
Acontece que, para o dia seguinte, estava marcado um serão de convívio comemorativo do terceiro aniversário da Cooperativa, a ser realizado na Sociedade Nacional de Belas Artes. A PIDE proibiu a realização da sessão, comunicou essa proibição aos dirigentes da Pragma antes de os pôr em liberdade e obrigou‑os a comprometerem‑se, por escrito, a fazê‑la respeitar.
Nesse 11 de Abril, precipitaram-se vários acontecimentos. Os jornais publicaram uma Nota Oficiosa da PIDE sobre as razões para o encerramento da sede da Pragma. Uma resposta, enviada imediatamente pela Direcção, foi cortada pela Censura e não foi portanto divulgada por nenhum órgão de comunicação social.
Alguns membros dos órgãos dirigentes pediram uma audiência ao Cardeal Patriarca de Lisboa para o porem ao corrente dos acontecimentos. Pouco antes da hora prevista para a dita audiência, os sócios tomaram conhecimento da proibição do serão de convívio, através de um aviso afixado na porta fechada da Sociedade Nacional de Belas Artes. Resolveram dirigir‑se também para o Patriarcado, onde os dirigentes esperavam a reunião com Cerejeira. Aglomeraram-se à entrada mais de duzentas pessoas. Tinham entretanto chegado forças da PSP, mas as portas abriram‑se e todos entraram para o átrio, o que evitou males maiores.
Com data de 13 de Abril, foram redigidos dois abaixo‑assinados, um dirigido ao Presidente da República, outro aos Bispos Portugueses. O primeiro foi assinado por 280 pessoas de vários quadrantes políticos, todos sócios ou colaboradores da Pragma, católicos ou não, o segundo por 547 católicos. Houve 124 assinaturas comuns aos dois documentos, o que significa que, em conjunto, estas iniciativas mobilizaram 827 pessoas – número absolutamente notável e excepcional para a época.
Organizaram-se verdadeiras brigadas para recolha de assinaturas e não só em Lisboa. Por exemplo no abaixo‑assinado endereçado aos bispos Portugueses, houve larga participação do Porto, e também de Coimbra, Estremoz, Évora, Leiria, Santarém e Marinha Grande. Entre os subscritores, contavam‑se vinte e cinco padres ou membros de ordens religiosas.
Importa sublinhar o esforço que representou esta recolha de assinaturas. Se hoje é possível criar uma Petition Online na Internet em menos de um minuto e se podem obter milhares de adesões em pouco tempo, a vida era bem diferente em 1967: recolha porta a porta, em papel azul de vinte e cinco linhas, sem Internet, sem telemóveis, com telefones fixos vigiados pela polícia, com correio apreendido, com poucos automóveis. (Os serões que eu passei calcorreando Lisboa, «cravando» um amigo mais timorato mas com posses para ter carro, que me esperava enquanto eu subia lanços e lanços de escadas – é que também não havia assim tantos elevadores…)
Foi também grande a repercussão do encerramento da sede da Pragma na imprensa internacional, tanto de orientação católica (Informations Catholiques Internationales, Témoignage Chrétien, etc.), como de grande circulação (Le Monde, New York Times, The Times).
Tempos difíceis
Depois de ouvidos advogados, foi considerado que o facto de a sede estar inacessível, e de os seus dirigentes serem objecto de instauração de um processo pela PIDE, não impedia que a Cooperativa prosseguisse as suas actividades.
Iniciou‑se então um árduo percurso, recheado de iniciativas e assente em fortes laços de solidariedade que permitiram cedências de locais e de outros meios logísticos. Sociedade Nacional de Belas Artes, Bombeiros Voluntários Lisbonenses, Centro Nacional de Cultura, Casa da Imprensa, Capela do Rato, Igreja de S. João de Brito e outras instituições foram abrindo as suas portas para reuniões, colóquios, conferências, Assembleias-gerais. Entre Abril e Dezembro de 1967, o número de sócios aumentou de 340 para 390.
Intensificou‑se também, naturalmente, a acção da PIDE quanto a proibição de sessões. Em 9 de Setembro de 1967, agentes da PIDE impediram a discussão sobre As possibilidades económicas no acesso à Universidade – Inquérito Geral à Universidade promovido pela Juventude Universitária Católica. Nuno Teotónio Pereira foi chamado à PIDE para prestar declarações, depois de um debate que foi possível realizar em 16 de Novembro, na Igreja de S. João de Brito, com a participação de mais de 500 pessoas, sobre O III Congresso Mundial para o Apostolado dos Leigos. (Repare-se na «perigosidade» dos temas acima indicados…)
Paralelamente, deu‑se início a um longo processo de contestação do encerramento da sede, que incluiu um recurso para o Supremo Tribunal Administrativo. Este viria a tomar uma posição favorável à Pragma, em Julho de 1968, embora essa decisão não tenha tido quaisquer efeitos práticos.
* * *
Existiam, paralelamente à Pragma, outras cooperativas mais ou menos afins. A mais próxima era a CONFRONTO, fundada no Porto à imagem e semelhança da Pragma. Regressado de Angola, Mário Brochado Coelho liderou este projecto e, em 27 de Julho de 1966, foi eleito Presidente da Direcção, sendo Francisco de Sá Carneiro o Presidente da Assembleia-Geral e sócio nº 1.
A CODES, uma cooperativa de carácter cultural e socioeconómico, tinha sido criada em 1962 e alguns dos seus membros foram, desde a primeira hora, sócios ou estreitos colaboradores da Pragma. Mais tarde, foram fundadas a DEVIR, ligada ao Partido Comunista Português, e a CED – Cooperativa de Estudos e Documentação, afecta aos primórdios do Partido Socialista.
Entretanto, já durante o marcelismo, em 27 de Novembro de 1971, foi publicado um decreto (570/71) que assimilou as cooperativas que exercessem qualquer tipo de actividade cultural, independentemente do seu objecto principal, às outras associações. Estatutos e dirigentes passaram então a ficar sujeitos a aprovação governamental, o que provocou uma forte contestação no seio do movimento cooperativo. Os dirigentes da CED entregaram aos deputados da Assembleia Nacional uma longa exposição, pedindo-lhes que não ratificassem o decreto. Obviamente, não veriam este seu pedido satisfeito…
A Pragma prosseguiu. Em 20 de Janeiro de 1972, ainda realizou uma Assembleia Geral nas instalações do Centro Nacional de Cultura. Participou, no dia seguinte, numa Reunião Nacional de Cooperativas, que teve lugar em Coimbra. Em 3 de Fevereiro de 1972, a PIDE emitiu um ofício interno, assinado pelo chefe Mortágua, ordenando uma busca às instalações da antiga sede da Pragma na Rua da Glória, «a fim de apreender livros, documentos, valores ou objectos, que possam interessar à instrução de uns autos em curso na Direcção Geral de Segurança». Recebeu como resposta que, na referida morada, se encontravam, desde há quatro anos, os «Armazéns Primavera», dedicados ao comércio de roupas… Não encontrei documentos sobre actividades da Cooperativa posteriores a estas datas. Mas sei que nunca foi legalmente encerrada.
A história da Pragma é uma bela história. Ela ilustra bem alguns ambientes da última década do fascismo. Mobilizou muita gente, abriu horizontes, influenciou muitos jovens que foram chamados para combater na guerra colonial – alguns desertaram, outros tiveram um papel activo, como milicianos, na alteração de mentalidades, e na preparação do 25 de Abril.
Muitos dos sócios, dos colaboradores, e mesmo dos dirigentes, estavam longe de ser perigosos esquerdistas!… Queriam a liberdade, a paz, o desenvolvimento e o progresso social – um país decente.
(Este texto foi escrito com base num capítulo do meu livro Entre as Brumas da Memória. Os Católicos Portugueses a Ditadura, Âmbar, 2007: «A cooperativa Pragma – Uma boa ideia e uma bela história», que os mais interessados poderão consultaronlinena íntegra.)
Este post foi originalmente publicado no blogue Caminhos da memória.
Publicamos, a partir desta data, “posts” de amigos e colaboradores nossos sobre temas culturais da actualidade.
Começamos com um texto inédito que Ana Marques Gastão apresentou num encontro dedicado à personalidade e obra do escritor António Osório, realizado em Dezembro passado na Biblioteca Nacional de Portugal.
CHUVA MATERNA, LUZ FRATERNA
Em A Matéria Volátil (1), António Osório define, no texto Peso do Mundo, a poesia como «o milagre de uma arma total, / de uma só palavra / reduzindo o átomo à completa inocência.» Que faz a poesia, afinal, se não ceder a uma vontade de observar o mínimo-máximo no interior das coisas, usando de um olhar-primeiro? Não que seja seu propósito dar largas a uma curiosidade obsessiva, mas diríamos que a capacidade de ver o au-delà ou o au-dedans das coisas, a que se refere Bachelard(2), constrói o poema, essa fábrica de versos integrada pelo movimento da palavra dentro da escrita, pelo som, o ritmo e a prosódia, o sentido.
Que há a reter, então, desta definição de António Osório abrangendo três linhas de pensamento?
a) Poesia como arma total. b) Poesia que usa de uma só palavra. c) Poesia como redução a uma completa inocência.
Falemos, em primeiro lugar, da «arma da totalidade», de uma plenitude aberta ao esplendor do mundo. O criador sabe que nada é, mas deseja; dir-se-ia um cavaleiro andante, o passageiro a que alude Jean-Michel Maulpoix(3), ousado construtor de uma trajectória em busca do Absoluto Perfeito que vai forjando a matéria do espírito, tal como diz Novarina(4).
A escrita de António Osório é a de um imaginário persistente, centrado na formulação de uma arte sem artifícios, purificadora e ritual, associada a uma simbólica da fecundidade e da regeneração. Está, de modo mais ou menos velado, ligada à Terra, geradora dos seres que alimenta e logo os acolhe como um útero lavado pelas chuvas de uva.
Relembre-se o fenómeno do nascimento dos deuses e do mundo na Teogonia de Hesíodo(5)que anuncia uma função organizadora do Cosmos assimilada, de uma forma ou de outra, pelas literaturas de todos os tempos. Dessas bodas entre o Céu e o Inferno surge também a escrita de António Osório, interrogando-se esta sobre a sua própria proveniência e destino enquanto caminha sobre um ínfimo fio contra a vulgaridade lírica. Nela se sente como a ordem é frágil e jamais adquirida.
António Osório é um autor da tradição, das hierofanias, que faz do poema flecha feiticeira, deus sem idade, cepa de vinha, como se, a partir de uma confusão inicial, o poeta fosse construindo a harmonia e, na senda dessa serenidade de cítara, se movesse, instaurando um tempo mítico.
A sua criação poderíamos defini-la como uma arena onde assentam, escorregadios, os conflitos da consciência humana, via láctea de touros sacrificados. É nesse lugar que se cumpre um teatro trágico. Só que o guerreiro homérico sabe que «não pode nem penetrar nem dirigir as manobras do destino» como, ironicamente, sublinha George Steiner.(6)
Uma não angustiada Terra – divindade da fertilidade – brota da obra de António Osório como se o poeta usasse de um «super-telescópio» para a ver, azul e cheia de escuridade na magnificência de um enigmático silêncio, abundando em ardor contido.
Leia-se o poema O Movimento da Terra incluído em Planetário, escute-se a caminhada do seu bestiário aristocrático que percorre esta poética protegida por um «deus / marcado por estigmas»(7), interpelado e oculto:
Céu mais límpido que noite de estio.
Sente-se o movimento da Terra.
Insimulável, falta o aroma do feno, a sirene festiva das cigarras, o murmúrio dos que amam.(8)
E é também no amor – um dos atributos guerreiros no sentido da paixão de Medeia por Jasão em A Argonáutica(9) – que mergulha esta poética de despojamento e ritmos mágicos na mais «funesta adversidade» ou na fortuna de uma extrema decantação: o amor do gago que sofre por palavras ou da videira que espera pelo seu retardatário enxertador; o amor pelos pais que, desaparecidos, permanecem na inocência intacta e dorida da criança; o amor solidário no sentido cosmobiológico devido à vida, entendida na acepção de Mircea Eliade.(10)
António Osório escreve sobre os amantes que, na sua fortaleza de amar, não se completam como se fossem mendigos de olhos. As suas personagens, se assim se pode dizer, são coisa nunca finda, água destilada de Deus e Adão, seres que exprimem um imenso amor pela poesia olhada como enxame de símbolos, chuva materna, luz fraterna de quem reentra no Paraíso, por onde o amor, aparição de leite(11), passa ileso.
O poeta de Aforismos Mágicos usa a concisão estilística, essa «uma só palavra» que nasce da habilidade do mínimo cultivada pelos greco-latinos ou pelos sábios do Oriente, seguindo o caminho dos antigos e buscando, à maneira de Bashô, o que eles buscaram. Os afectos são, por outro lado, bússola e origem na sua obra: a Mãe, sua e única, por um lado, centro do mundo por outro, omphalos de Delfos, vida e morte, pedra branca-negra a partir da qual irradiam cristalizações imprevisíveis e um pensar entrançado em visão e movimento. Ora, «só se vê aquilo para que se olha»(12). Nesse sentido, a poesia de António Osório é ritualística e indissociável da observação, do dom da atenção, activador de uma ética do cuidado. À terra, na sua obra, entendamo-la enquanto matriz e substância universal, caos primordial, matéria-prima separada das águas segundo o Génesis, fecundada pela chuva e o sangue que são semente celeste, «o lugar do amor», repousante «cela / onde não há desespero».(13)
Da poesia de António Osório, ressalta a ideia da Tellus Mater, função maternal que dá e tira a vida, inseparável de uma força seminal a partir da qual se explica a árvore (lembre-se a de Leonardo Da Vinci), símbolo da vida e da sua perpétua e cíclica evolução cósmica: morte e reconstrução, também a das constelações de inumeráveis filhos e símbolos. Nessa medida, a Terra surge como meteoro líquido ao qual o sujeito poético quer regressar encenando a morte com a doçura de um seio. Dessa passagem, da dor da separação que simultaneamente celebra a vida, nasce o poema Mãe que Levei à Terra, grito sufocado perante a morte:
Mãe que levei à terra, como me trouxeste no ventre, que farei destas tuas artérias? Que medula, placenta, que lágrimas unem aos teus estes ossos? Em que difere a minha da tua carne?
Mãe que levei à terra como me acompanhaste à escola, o que herdei de ti, além de móveis, pó, detritos da tua e outras casas extintas? Porque guardavas o sopro de teus avós?
Mãe que levei à terra como me trouxeste no ventre, vejo nos teus retratos, seguro nos teus dezanove anos, eu não existia, meu Pai já te amava. Que fizeste do teu sangue, como foi possível, onde estás?(14)
Longe de uma topologia psíquica, embora entrelaçada em associações, complexos e símbolos, a terra de António Osório não se insere na materialização de pulsões dominantes, renuncia a esse domínio de pesquisa, situando-se do lado da inocência e da fome de imagens, do fragmento de um tempo primeiro. O sujeito poético perde, então, por isso, algo da sua substância de infelicidade e de aprisionamento ao acolher-se numa essência de repouso ao qual o movimento das palavras conduz.
Talvez por isso esta poesia se entrelace com a estrutura cósmica, revelada nas suas manifestações, podendo-se nesse aspecto, pensá-la a partir da mitologia, da história das religiões, da ciência, da arte. A hera e o louro são também na escrita de António Osório a coroação dos animais, que se veste, por outro lado, de fábula e mito da criação humana como em Adão, Eva e o Mais, livro de aromas fugidios e amores secretos: «Mordeu a maçã: / guardou o remorso / e guardou, alva, / incólume, a coroa / de seus dentes.(15)
A arte do poeta de Libertação da Peste – e usando da paráfrase – «ama com pressa de não acabar o amor», desejando que o sagrado possa começar «de novo pela boca dos mortos»(16). Como se a Natureza fosse a sua maior obra e os versos descendessem de medusas, tubarões-anjos, do concerto interior da natureza. António Osório dir-se-ia também o advogado/ad vocatus (o que é chamado em auxílio) que dá num verso, / a outra face(17).
Ana Marques Gastão
(1) António Osório, Poesia Reunida, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, A Ignorância da Morte (Aldeia de Irmãos / Matéria Volátil), «Peso do Mundo», p. 94. Todas as referências seguem esta edição. (2) Gaston Bachelard, La Terre et les rêveries du repos, «Les rêveries de l’intimité matérielle», Paris, José Corti, 1948, p. 18. (3)3 Jean Michel Maulpoix, Le Poète perplexe, en lisant en écrivant, Paris, José Corti, 2002, p. 20. (4) Valère Novarina, Devant la parole, Paris, éd. P.O.L, 1999, p.16. (5) Cf. Hesíodo, Théogonie, Les Travaux et les Jours, Bouclier, suivis des Hymnes homériques, introd., trad. e notas de Jean-Louis Backès, Paris, Gallimard, 2001. (6)George Steiner, La Mort de la tragédie, Paris, Gallimard, 1993, p.13. (7)António Osório, ibid., «Uma Estrela Vulgar», p.301. (8)António Osório, ibid., Planetário e Zoo dos Homens, «O Movimento da Terra», p. 297. (9) Cf. Apolónio de Rodes, A Argonáutica, Lisboa, Publicações Europa-América, 1989, p. 91. (10)Ler Mircea Eliade, Tratado de História das Religiões, Lisboa, Asa, 1994, p. 323-24. (11)António Osório, ibid., Décima Aurora, «Água-Forte», p. 251. (12)Merleau-Ponty, O Olho e o Espírito, Lisboa, Vega, 2ª ed., 1997, p. 19. (13) António Osório, ibid., O Lugar do Amor (A Teia Dupla / Felicidade da Pintura), «Casa Térrea», p. 137. (14)Idem, ibid., A Ignorância da Morte (Aldeia de Irmãos / Matéria Volátil), «Ponte Velha I», «Mãe que Levei à Terra», p.95. (15) Idem, ibid, Adão, Eva e o Mais, trecho 23, p.279. (16)Idem, ibid., O Lugar do Amor, (Teia Dupla / Felicidade da Pintura), «Casa Térrea», p.133. (17) Idem, ibid., Décima Aurora, «O Betão Armado», p.230.