Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Sempre que vou a Amesterdão visito religiosamente, nas margens do Amstel, um fragmento importante da presença dos portugueses no mundo. Além da imponente Sinagoga, o cemitério de Ouderkerk constitui memória viva de uma presença forte e comovente. Falo de Beth Haim, que significa literalmente Casa de Vida, o cemitério dos judeus portugueses, fundado por Isaac Franco Medeyros em 1614. É um campo santo que recorda a tentativa do Padre António Vieira de fazer regressar a Portugal o poder económico e a influência dos portugueses que tiveram de partir para onde havia o reconhecimento da liberdade de consciência, nos Países Baixos, graças às leis da União de Utrecht de 1579.
As campas que se encontram em Ouderkerk albergam portugueses ilustres: Filipe Elias Montalto, de Castelo Branco, médico pessoal de Maria de Médicis, o célebre autor da “Arquipatologia”, recentemente comentada por Adelino Cardoso, Helder Macedo e Maria Filomena Molder, num belo livro sobre a melancolia; Isaac Oróbio de Castro, de Bragança, também médico e filósofo; Menasseh ben Israel, aliás Manuel Dias Soeiro, da Madeira, o rabino imortalizado por Rembrandt e primeiro impressor de livros em hebraico em Amesterdão; Isaac Aboab da Fonseca, de Castro Daire, um dos mais proeminentes rabinos no século XVII, mais tarde o primeiro das Américas, dirigindo a partir de 1641 a nova comunidade judaica de Recife, Pernambuco, donde sairiam os fundadores de Nova Amesterdão, hoje Nova Iorque; Jacob de Aharon de Sasportas, rabino e cabalista; Michael de Espinoza, pai do filósofo Baruch Espinoza; David Franco Mendes, cultor da língua hebraica; Abraham Israel Suasso ou Francisco Lopes Suasso, de profissão banqueiro; Moses Curiel, aliás Jerónimo Nunes da Costa, mercador e agente do rei D. João IV... Nas identificações constantes das pequenas placas do cemitério, descobrimos, a cada passo, quem se destacou e constituiu referência para os dias de hoje.
Não é possível compreender a riqueza e o carácter aberto e multifacetado da cultura portuguesa sem considerar todos quantos fizeram da liberdade de pensamento e do culto das diferenças marca da sua própria identidade, lembramo-nos ainda de Garcia de Orta, de Damião de Góis ou de António José da Silva. São exemplos que deram testemunho vivo de vitalidade e de sentido de futuro. Os textos de Vieira, que acompanharam a sua ação diplomática, são bem ilustrativos da exigência da abertura de espírito e de inteligência na reflexão. E quando hoje relemos a “Chave dos Profetas”, compreendemos que é o império do espírito que ocupa o orador sagrado, mais do que a evolução do poder temporal, que encerrava sempre o risco da decadência dos “fumos da Índia”, que preocupavam Afonso de Albuquerque e o próprio Camões. Fernando Pessoa tornou o Quinto Império uma referência da língua e da cultura, dando a Vieira o epíteto de “Imperador da Língua Portuguesa”. “Este, que teve a fama e à glória tem, (…) foi-nos um céu também”. O que estava em causa era o exercício da liberdade de espírito e a ligação entre a diversidade das raízes e o frondoso desenvolvimento de uma árvore multiplicando as influências. Em lugar do fechamento, a cultura da língua portuguesa exprime-se exatamente como nos sentimos nas margens do Amstel em contacto com os nossos compatriotas de há quatrocentos anos, para quem a nossa casa é o mundo.
Há poucos portugueses, e quase todos têm até três opiniões: a de que os portugueses que não são como eles são corruptos; a de que os portugueses que são como eles estão adoentados; e a de que os produtos portugueses de exportação são incomparáveis. Há um grande consenso em Portugal sobre o sofrimento dos corpos, a corrupção das almas, e o comércio externo.
Os dois primeiros tópicos foram já tratados pelos principais sábios. Não tem sido porém dedicada atenção suficiente ao comércio externo. As convicções generalizadas sobre justiça e saúde obscurecem uma dificuldade que a qualquer marciano pareceria evidente. A dificuldade exprime-se na seguinte pergunta: como é possível que uma população corrupta e doente produza quase sem esforço produtos tão apreciados no estrangeiro?
Existe uma ligação profunda entre a corrupção de terceiros, as desconfianças sobre a saúde própria e alheia, e o comércio externo. Foi sobretudo estudada por críticos literários e historiadores das artes. Estas profissões estão há vários séculos habituadas a lidar com espécies inclinadas à meliância, v.g. pintores, músicos e escritores, que, muitas vezes em condições precárias de saúde, produziram o que de melhor se fez à face da terra. Ao seu objecto genérico de eleição chamam, e com eles o resto de nós civis, cultura. É uma combinação feliz de maldade e hipocondria que explica que os portugueses sejam sobretudo conhecidos em todo o mundo como produtores de cultura.
A origem da cultura parece estar na natureza. De facto, a natureza dá exemplos numerosos de animais de mau carácter e saúde precária cujas actividades conquistaram grandes êxitos junto de outras espécies. São animais culturais os gansos, que desenvolvem cirroses; os cisnes, que se colocam deliberadamente em perigo de vida por razões artísticas; e até os crocodilos, bichos particularmente maus, que por vezes concedem em se esfoliar. O foie-gras, a música e a marroquinaria são três das mais importantes áreas da cultura.
Também a cultura portuguesa é produzida em pequena escala por um número reduzido de animais tortos, adoentados e atentos ao comércio externo. É porque o número de produtores é pequeno que os produtos são poucos; e é porque são poucos que despertam mais entusiasmo entre aqueles que os procuram. Os seus compradores são no geral animais incorruptos e de saúde indiferente, e por essa razão exportam sobretudo produtos de interesse reduzido, como servo-mecanismos e adubos.
O termo genérico ‘cultura portuguesa’ designa assim o resultado da conjunção, única em Portugal, de um pequeno número coeso de almas corruptas e corpos em sofrimento. Esta conjunção parece explicar as enormes vantagens comparativas dos grandes produtos portugueses de exportação: o vinho, os sapatos, a arquitectura, o futebol e a poesia.
Miguel Tamen Escreve de acordo com a antiga ortografia
O papel desempenhado pela cultura portuguesa na génese do Renascimento merece atenção especial. O pano de fundo da história portuguesa dos séculos XV e XVI abrange, assim, em termos culturais, referências fundamentais. Neste ano em que se celebra o quinto centenário de Camões referimo-las.
PARA ALÉM DA TRADIÇÃO LÍRICA Na grande tradição da lírica poética, vinda dos trovadores galaico-portugueses e das cantigas de amor e de amigo, chegamos à maturidade da língua portuguesa com Luís de Camões (1524-1580), antecedido por Garcia de Resende (1470-1536), coordenador e artífice do Cancioneiro Geral, acompanhado por Francisco Sá de Miranda (1481-1558), o grande introdutor em Portugal da medida nova de Petrarca, ou pelo autor de “Menina e Moça”, Bernardim Ribeiro (1488-1552). Ao lado deste fundo lírico, temos o domínio épico, de que Camões é o supremo representante, em paralelo como a “História Trágico-Marítima” (obra impressa no século XVIII, baseada em publicações dos séculos XVI) – que levou Miguel de Unamuno, a considerar a cultura portuguesa, a um tempo, lírica e trágica. A estes dois campos, junta-se, porém, o domínio picaresco, na tradição das cantigas de escárnio e maldizer – a que urge juntar o teatro de Gil Vicente (1465-1536), que António Tabucchi exemplificou com o extraordinário “Prato de Maria Parda”, podendo acrescentar-se, dentro de uma produção riquíssima, o “Auto da Lusitânia”, com as inconfundíveis personagens de Todo o Mundo e Ninguém (que Almada Negreiros considerou gémeos). Por outro lado, há um dos fundadores da moderna narrativa Fernão Mendes Pinto (c.1510-1583) com a obra fundamental “Peregrinação” – obra-prima de moderna transição romanesca, que nos permite compreender a diversidade de experiências dos portugueses no mundo, em que o autor se define como «treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e muitas outras províncias daquele Ocidental arquipélago dos confins da Ásia”. Por outro lado, temos as primeiras Gramáticas da Língua Portuguesa datam respetivamente de 1536 com Fernão de Oliveira (também autor da “Ars Nautica”) e de 1540 com João de Barros. Se referimos João de Barros, não podemos deixar de aludir a sua notável função de cronista, em que seria sucedido por Diogo do Couto, o célebre autor do “Soldado Prático”, repositório fundamental sobre as fragilidades do império. Nessa plêiade de grandes escritores, não podemos deixar de referir Damião de Góis, diplomata, intelectual prestigiado na Europa, amigo de Erasmo e de Dürer, alvo de desconfianças em virtude da sua relação com os maiores humanistas.
O DOMÍNIO DAS ARTES No campo artístico, temos no século XV os exemplos notáveis de Nuno Gonçalves (c. 1450-1491) e de Vasco Fernandes (Grão Vasco) (1475-1542) – sendo primeiro autor de uma das obras-primas europeias de sempre, os Painéis ditos de S. Vicente (c. 1470), redescobertos no final do século XIX e identificados pela representação do Infante D. Henrique tal como se encontra na edição da Crónica dos Feitos da Guiné da Biblioteca de Paris. Na arquitetura, Nicolau de Chanterene (1470-1551), Diogo Boitaca (1460-1528) e João de Castilho (1470-1522) criaram o que conhecemos como o manuelino de que é paradigma o mosteiro dos Jerónimos, além de Francisco de Arruda (m. 1547), que assina a Torre de Belém, merecendo todos especial destaque, ao lado do grande mestre teorizador Francisco de Holanda (1517-1585), não se esquecendo na ourivesaria a preciosidade da Custódia de Belém, possivelmente da autoria de Gil Vicente. Na música, encontramos figuras de relevância europeia como Mateus de Aranda (1495-1548), Pedro de Escobar (1465-1535), Filipe Magalhães (1571-1652), Manuel Mendes (1547-1605), Pedro Cristo (c.1545-1618) e Duarte Lobo (1565-1646).
O SABER DE EXPERIÊNCIAS FEITO Aos domínios referidos, importa acrescentar no que designamos como a primeira globalização as seguintes referências. Na ciência, há a figura maior de Pedro Nunes (1502-1578) matemático e cosmógrafo-mor do reino, de dimensão mundial, mas ainda a de Abraão Zacuto (1450-1522), autor da “Tábuas Astronómicas”; além de Duarte Pacheco Pereira (1460-1533), autor do “Esmeraldo de Situ Orbis” e elemento crucial na preparação e concretização do que veio a ser o Tratado de Tordesilhas; de Garcia de Orta (1501-1568), médico e naturalista; de Amato Lusitano (1511-1568), médico e fisiologista, e de D. João de Castro (1500-1548), político, cartógrafo e naturalista. Deste modo, até ao reinado de D. Manuel, há uma assinalável convergência de influências, num caleidoscópio de povos e crenças. No entanto, com a expulsão dos judeus, no início do século XVI, depois do massacre de Lisboa de 1506, houve, também uma dispersão e a perda de vantagens económicas e de conhecimento. Pode dizer-se que a saída dos judeus sefarditas da Península Ibérica teve consequências desastrosas no tocante aos investimentos e ao apoio científico – tendo resultado de uma forte pressão diplomática e religiosa, que um século depois o Padre António Vieira procuraria inverter na Restauração da Independência (1640). A primeira globalização, que Arnold Toynbee designa como era gâmica (por homenagem a Vasco da Gama), abre novos horizontes à língua e à cultura portuguesas nos diversos continentes. A língua franca dos mercadores e missionários da Ásia será o português, designado como “papiar cristão”, enquanto a miscigenação promovida, através dos casamentos mistos, por Afonso de Albuquerque vai permitir o surgimento de um relevante diálogo entre culturas – que Jaime Cortesão considerará como base do humanismo universalista dos portugueses…
Helder Macedo, Maria Filomena Molder e Adelino Cardoso publicam um notável conjunto de ensaios intitulados “Melancolia, Tristeza e Cura da Alma no Renascimento Português” glosando a obra de Filipe Elias Montalto “Arquipatologia” (1614).
Melancolia, Tristeza e Cura da Alma no Renascimento Português de Adelino Cardoso, Helder Macedo e Maria Filomena Molder (Húmus, 2025), com a capa de António Dacosta, intitulada Melancolia II, é constituído por um conjunto de ensaios belíssimos que nos permitem encontrar as antigas raízes da cultura portuguesa, graças à evocação de autores fundamentais dos séculos XV, XVI e XVII. Partimos do texto de Filipe Elias Montalto, judeu português exilado, nascido em 1567 como cristão-novo, que publicou em 1614 Arquipatologia, composto por tratados clínicos sobre os mecanismos da mente, escritos em latim e recentemente traduzido para português. É uma obra de charneira que, na descrição de estados psíquicos frequentemente antecipa o que veio a ser retomado pela psicologia moderna, embora recorrendo a tratamentos derivados da antiga medicina galénica, mesmo quando põe em dúvida a sua pertinência. Falamos da melancolia como forma agravada de tristeza, com a presença de três autores portugueses de primeira relevância – D. Duarte, Bernardim Ribeiro e Francisco Sá de Miranda. Além destes, outros houve que merecem referência, como Luís de Camões, contemporâneo mais velho de Montalto, que, segundo os seus biógrafos tendo sido “na conversação muito fácil, alegre e dizidor, já sobre a idade deu algo tanto em melancólico”, ou como o cristão-novo e quase exato contemporâneo de Filipe Montalto, Francisco Rodrigues Lobo, cuja Corte na Aldeia, publicada pouco depois da Arquipatologia é uma ampla meditação sobre a melancolia individual amplificada na coletividade nacional.
O HUMOR MELANCÓLICO DE D. DUARTE Mas D. Duarte merece uma atenção especial, numa análise pioneira do “humor merencório”, de que ele próprio padeceu e do modo como se curou. Como diz na dedicatória do Leal Conselheiro: “o entendimento é a nossa virtude mui principal”. E o certo é que o futuro rei pôde recuperar, por sua própria iniciativa, o gosto de viver e ficou “perfeitamente são, como se de tal sentimento nunca fora tocado”, mesmo sentindo-se na maturidade adquirida através desse penoso percurso “mais ledo do que era antes”. Já Bernardim Ribeiro e Sá de Miranda oferecem-nos dois poemas tornados clássicos na nossa literatura, que não podem ser esquecidos: do primeiro: “Entre mim mesmo e mim / não sei que se alevantou / que tão meu imigo sou”… E do segundo, temos as palavras com que todos nos deliciámos – “Comigo me desavim / sou posto em todo o perigo / não posso viver comigo / nem posso fugir de mim”… O criptojudaísmo do autor de Menina e Moça apresenta um modelo de criação, anunciador dos caminhos renascentistas, que não esquecem a raiz medieval, encontrando o mesmo “pecado da tristeza” de D. Duarte, com o trilhar do caminho da cura; enquanto o humanista cristão Sá de Miranda se aventura por domínios novos, avaliando as ambiguidades do conhecimento e a importância das mudanças e o “domínio da desrazão”. O espírito inovador valoriza, afinal, a devoção interior em contraste com a materialidade das obras, relacionando o entendimento com a liberdade, a equidade, a razão, a consciência e o conhecimento, mas também: o encantamento, o engano, o sentimento, a loucura, a ilusão e o cativeiro. E Paulo Tunhas apresenta-nos, de um modo pujante, as Condições de Descrer, ainda em Francisco Sá de Miranda – para quem a verdadeira liberdade seria o poder tudo sobre si. Fernando Gil entenderá essa autonomia individual, na sua ideia de convicção, como adesão a si do eu… E assim encontramos o seu ensaio notável sobre as “inevidências do eu”, publicado inicialmente, em 1998, com Helder Macedo em Viagens do Olhar. Retrospeção, visão e profecia no renascimento português (por nós referido no JL de 8.1.2025) onde refere que “a perda do amor por si é uma maneira de dizer que o sujeito perdeu a confiança. Não espera mais dar corpo ao desejo, que se des-realiza pouco a pouco, nem fazer-se ouvir e do silêncio nasce o mutismo e a mudez”. E Sá de Miranda apresenta-se como um poeta “absolutamente moderno”, bem para lá do doce stil nuovo que trouxe para Portugal. E é notável como encontramos num autor quinhentista intuições que só o tempo futuro viria a revelar e a desenvolver, onde há semelhanças com Montaigne, mas enquanto este descobre a unidade do sujeito, o português refere a desunião do eu.
PECADO DA TRISTEZA EM SÁ DE MIRANDA Adelino Cardoso apresenta nas suas considerações uma revelação importante sobre o pioneirismo renascentista do pensamento dos portugueses, atentos às ideias novas e às preocupações humanas em torno do eu, considerando a melancolia “como compleição estudiosa, inquieta e fantasiosa” na Arquipatologia de Filipe de Montalto. Aos ouvidos do leitor contemporâneo sentimos algo de pertinente e familiar quando ouvimos Montalto a aconselhar-nos a contrariar a “desrazão”: «Evite a ira, a tristeza e os desgostos, oriente a vida para a alegria e a tranquilidade do ânimo, oiça frequentemente o canto e a música instrumental, tire proveito das fábulas e dos jogos tradicionais. Afaste as imaginações prolongadas sobre a doença”. E, por momentos, compreendemos como D. Duarte, Bernardim, Sá de Miranda se houveram com o “pecado da tristeza”. E Maria Filomena Molder ajuda-nos a compreender como esses caminhos puderam ser trilhados, pondo-nos a ouvir Bernardim na Écloga de Pérsio e Fauno – “como pode repousar / quem traz a morte consigo?” e a recordar a fala de Bruno Huca na peça concerto Da Felicidade (de Cristina Carvalhal de João Henriques): “Proponho um brinde à melancolia a esse pequeno distanciamento da vida confrontado a nascente e sul pelo alvéolo do desejo a fazer caminho. Limitado a poente pelo aborrecimento, com o intuito de se encontrar o norte”. A melancolia surpreende os pontos cardeais, desde o tédio até ao chamamento do norte, podendo falar-se de cura neste “intuito de encontrar o norte”. O ensaio merece leitura atenta e ponderada. E eis que se confrontam Heraclito e as suas lágrimas e Demócrito e o seu riso, a propósito da Elegia a uma Senhora muito lida em nome de um seu servidor de Sá de Miranda. “Estas seriam as desventuras / que Heraclito chorava em vida andando, /e Demócrito ria por loucuras, / com muitas outras que fazem grão brando, / mas haviam de ser as principais / dos que perdendo vão-se outrem buscando”. Não se vislumbra aqui, porém, preferência do poeta por Heraclito. As lágrimas e o riso são tomados como modos de resistir ao desacerto do mundo e como forma de avaliação crítica… Os sentimentos coexistem. E Maria Filomena Molder revela-nos num remate esclarecedor: “Do que gosto em Sá de Miranda e Bernardim Ribeiro? Dos meios reduzidos, das palavras que se repetem incessantemente (…), do ritmo criado pelo espaço que as circunda e que elas engendram, dos precipícios que se abrem profundos em cada verso da evitação do desperdício, das obscuridades francas. Tudo bons condimentos para alimentar saudade, a mágoa e o luto e não ser submergido por eles”.
XXIX. A busca de uma identidade: que cultura portuguesa? (2)
Como disse Sophia de Mello Breyner: «Me dói a lua me soluça o mar / E o exílio se inscreve em pleno tempo» (Livro Sexto, 1962). Como Unamuno bem pressentiu e Eduardo Lourenço interpretou, com rigor e perfeição, somos feitos de lirismo e de história trágico-marítima – sem esquecer o picaresco, que salienta António Tabucchi, no escárnio e maldizer. Encontramos desde a poesia trovadoresca à rica poesia contemporânea, passando por Camões, Sá de Miranda, Bocage, Garrett, Herculano, Antero de Quental, João de Deus, Cesário, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa, Almada Negreiros e todos mais… Portugal, como palavra, é uma eterna convergência da lembrança e do desejo, do amor e da provação, e a língua portuguesa, espalhada pelo mundo, plena de diferenças, foi-se construindo nessa pluralidade e nessa complementaridade… A língua portuguesa, temperada com mais açúcar ou mais especiarias, é o traço de união e de diferenciação. E se dúvidas houvesse João Guimarães Rosa leva-nos em busca da terceira margem, Baltazar Lopes da Silva introduz-nos nas diferenças e nos segredos dos crioulos, Mia Couto reinventa-nos em permanência, Pepetela, Agualusa, Ondjaki, Germano Almeida põem-nos em contacto com as grandes superfícies de terra e mar, Raduan Nassar interroga e confronta as raízes em «Lavoura Arcaica», Rubem Fonseca usa como matéria-prima o drama quotidiano… Já para Carlos Drummond de Andrade: “Adélia Prado é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo”. Quem a conhece considera-a desconcertante, plena de ironia, ousada, iconoclasta, seríssima no entendimento das coisas essenciais. Nela o comum e o banal encontram-se, a cada passo, com o transcendente.
Eduardo Lourenço é perentório: «Não temos nada que provar. O que tínhamos de provar ao mundo já provámos quando isso era uma novidade e constituía uma ação para a humanidade inteira. Temos sempre este complexo de ser uma pequena nação não tão visível como outras. Mas outras nações também não são visíveis». Não somos melhores ou piores, somos nós mesmos. «Não se sabe assim como é que há quase mil anos este país pequenino, aqui no canto da Europa, é ainda sujeito do seu próprio destino.». A História é uma batalha cultural. «A Europa define-se na sua relação com o que não é Europa. Só sabemos o que é Europa quando estamos fora da Europa. Na Europa temos uma experiência normal. É como a experiência de quem está em casa. Há até uma pluralidade de casas que, mais ou menos, têm afinidades entre elas. Isso é a Europa». Mas há ameaças e perigos, e até indiferença e acomodação. Falta a normalização connosco próprios. Perante tantos sinais de incerteza persiste uma miragem europeia. A Europa fechada definha, por isso, importa tirar lições, procurando caminhos que permitam encontrar a defesa de um núcleo essencial de interesses e valores comuns. Língua de várias culturas, cultura de várias línguas – eis um caleidoscópio incompatível com paternalismos. Prevalecem o pluralismo e a diversidade. Garrett, Antero e Cortesão aspiraram a um patriotismo prospetivo, em que o fundo português se afirma como exigência aberta e plural.
Pedro Mexia tem razão ao afirmar que, “a dignidade vale mais do que a identidade” (Expresso, 10.5.2024). Não que esta não seja importante, mas é a dignidade da pessoa humana que se torna pedra angular de qualquer entendimento identificador, até pela importância da compreensão de que urge distinguir para unir… “É importante que um entendimento acerca do humano seja tão ambicioso quanto judicioso. E que esteja atento às formas de desumanização, as novas e as antigas”.
XXVIII. A busca de uma identidade: que cultura portuguesa? (1)
De que falamos quando referimos a Cultura Portuguesa? De continuidades e de mudanças, de características singulares e de convergências, de identidades e diferenças, de desafios e respostas. Não basta um sobrevoo na cultura geral, que mais não significa do que um contacto superficial com a criação e a arte, esquecida da complexidade, do que avança e progride e do que estagna. António Manuel Machado Pires tem recordado a preocupação que Vitorino Nemésio tinha com os seus discípulos, no sentido de abrir as suas mentes, ligando e relacionando realidades aparentemente distintas: “E por ‘ligar as coisas’ deve entender-se ligar mesmo, não apenas somar conhecimentos: fazer relacionações entre conhecimentos convencionalmente arrumados em cadeiras diferentes, ligar uma romaria a uma feira, esta a um modelo de vida, este à evocação de um almocreve, este a Gil Vicente e por que não, a O Malhadinhas de Aquilino?”. A cultura pressupõe diálogo e confronto, entre quem vê e tenta compreender e quem pretende ver e entender, numa relação sempre complexa entre a vida humana e a natureza que a rodeia. Daí a metáfora da varanda para ver a Cultura, tantas vezes usada pelo próprio Nemésio – “Varanda de Pilatos”. Afinal, refletir sobre a cultura é fazê-la, construí-la, interpretá-la e torná-la viva. Lembre-se o picaresco e o dramático no caleidoscópio de Fernão Mendes Pinto: “não é só uma narração de experiências, percursos de paisagens exóticas ou encontros e desencontros de povos (Ocidente e Oriente), é a ironia da vida, a dor humana, pecado, entusiasmo e castigo, alegrias e lágrimas, voluntarismos e disponibilidades, uma grandiosa saga coletiva de um povo (nem sempre exemplar), mas provando a exemplar lição do tudo e nada da Vida”. Eis por que a ligação da Literatura, da Arte ou da Ciência são pontos de observação de eleição para avistar e compreender a Cultura como panorama, uma vez que temos o testemunho concreto, mais do que a mera ostentação de um saber ou de uma técnica. Assim, não compreenderemos, por exemplo, o século XIX português sem ler Camilo (“raptos, fugas e famílias desgraçadas”), Júlio Dinis (“a conciliação social”), Eça de Queiroz (a ironia como método, devendo ser levada muito a sério), Cesário (a contradição dos sentimentos), João de Deus (a lírica popular) ou Antero (a reflexão culta).
Nemésio e Machado Pires falavam de duas linhas de pensamento marcantes na reflexão sobre a cultura portuguesa, a idealista e a racionalista, representadas por Teixeira de Pascoaes e António Sérgio. Ambas deveriam de ser consideradas “para o balanço de ser português na vida, na cultura e no mundo”. Dando maior importância ora a uma ora a outra, o certo é que os dois polos têm de estar presentes na definição do português e do “ser de Portugal”. A vontade, o sentimento de pertença, “a estruturação da Cultura e a organização do Estado”, caminhando a par, como na análise de António José Saraiva, articulam-se com a construção de um imaginário. A experiência “madre de todas as cousas”, os conflitos entre a sociedade antiga e a sociedade moderna, a compreensão de um culto de sentimentos contraditórios, os mitos da origem, de resistência ou de predestinação, tudo nos permite tentar perceber quem somos, donde vimos e o que nos motiva e desafia. Mas temos de recusar as simplificações e a tentação de levar a História da Cultura para uma mera sucessão de factos ou acontecimentos. Temos de descobrir tendências, de suscitar criticamente diversas leituras, de comparar, de ver de dentro e de fora, de cruzar saberes e campos de pesquisa. Urge contrariar as simplificações, que se tornam caricaturais, não permitindo compreender uma realidade que é multifacetada. Ligue-se a vontade ao fundo céltico, confronte-se a fixação e o transporte, contraponha-se o erudito ao castiço, compreenda-se as diferenças e as complementaridades entre Camões, a custódia de Belém, o galo de Barcelos ou o fado. De facto, nossa cultura tanto é o “Auto da Lusitânia”, de Todo o Mundo e Ninguém, como o “Pranto de Maria Parda”, para só nos atermos a Mestre Gil. Para Machado Pires quando diz que a «Cultura não é um “somatório” heteróclito, indiferenciado, anódino e maçador, mas um caminho coerente para um fim demonstrável no seu todo, um rasgão na neblina de dúvidas e problemas, carreando um considerável conjunto de materiais para “forçar” a prova». O que deve estar em causa é a procura de caminhos explicativos, de linhas de reflexão, de sínteses e de paradoxos, em resposta ao enigma persistente e contraditório de uma sociedade que oscila entre o messianismo e a vontade, entre o mito e a racionalidade, entre a crítica e a sobrevivência, entre o presente e o futuro. A Cultura é “uma perspetiva convergente e unitária de vários ramos do saber”. E eis o paradoxo, “se o historiador busca a razão dos acontecimentos, culpa os homens; se procura os imperativos da Raça, culpa o Destino”. O pessimismo contrasta com o compromisso cívico. E assim, num momento em que, nos anos 90 do século XIX, a decadência se manifestava e o desastre parecia anunciar-se, com o Ultimato, a bancarrota, a dívida pública, a crise do regime, o desprestígio das instituições, a Geração que se evidenciara em 1871 não baixa os braços e revela o sentido positivo da atitude crítica, em vez do fatalismo.
Durante o mês de agosto, publicaremos este ano um conjunto de reflexões sobre Portugal, que complementam o que publicámos em anos anteriores. Começamos por lembrar a ilustração de Rafael Bordalo Pinheiro com a misteriosa pergunta sobre Zé Povinho – “Levantar-se-á?” – Agostinho de Morais.
I. Identidade e Cultura
Quem somos? O que nos distingue uns dos outros? Qual o significado dos sentimentos de pertença? Numa sociedade aberta e pluralista, as referências são diversas e complexas e temos de compreender quais os elos suscetíveis de caracterizar quem somos e de influenciar o que fazemos. As simplificações são enganadoras. Uma só pertença não nos pode caracterizar, até porque o “homem unidimensional” não permite fazer compreender a humanidade, limitando-se a uma caricatura incapaz de definir a cultura que formamos. Urge delimitar as fronteiras e os limites dentro dos quais se desenvolve a vida e a ação, que funcionam como catalisadores ou como motores de afirmação ou de emancipação.
Se Ortega y Gasset nos alertava para a necessidade de compreendermos as circunstâncias em que nos inserimos, como janelas abertas ao mundo e à ação, também nos obrigava a superar a perspetiva pobre e redutora do homem-massa. Em ambos os polos, desde o híper-egoísmo individualista à dissolução na multidão uniforme, devemos entender que a pluralidade de pertenças e que a aspiração universalista e cosmopolita à “vida digna” colocam-nos perante a exigência de equilíbrio entre a fragmentação e a emergência de uma massa indiferenciada e uniforme. Temos sempre várias referências, várias pertenças e várias atitudes e valores. Ainda que uma identidade seja muito marcada, a verdade é que procuramos sempre uma síntese que parta da situação concreta e da particularidade para uma visão universalista. A História é sempre feita de movimentos centrífugos e centrípetos e nós, atores e figurantes, somos determinantes e determinados, criadores e criaturas, em suma, o resultado e a síntese que decorrem desses encontros paradoxais.
É sabido que a cultura é uma realidade de definição difícil. Referimo-nos à superação do estado de natureza, perante os fatores que distinguem o caos e o cosmos sociais e a realização da natureza humana na relação com outros. O certo é que nos situamos na convergência entre fatores unificadores e fragmentários. Fala-se da sociedade culta como sociedade cultivada, mas fala-se também da cultura popular e de cultura erudita ou de um conceito étnico de cultura e de “cultura-aprendizagem” da sociedade educativa. A reflexão sobre a cultura e a natureza deve ser vista, assim, à luz de diversas perspetivas, uma vez que a pessoa humana e a comunidade se afirmam de várias maneiras.
A palavra Cultura, no sentido etimológico, que herdámos do Renascimento, tem uma reminiscência agrícola, ligada ao cultivar da terra, ao semear e ao colher (colo, colere, cultum). Com o tempo, a palavra passou a ter um sentido de aprendizagem de espírito e de “construção” da personalidade (bildung em língua alemã), passando a ligar-se ao processo transformador da humanidade. Os clássicos, na Grécia e em Roma, entendiam que cultura e a educação se completavam, e referiam-se respetivamente à paideia e à humanitas que significavam o caminho de desenvolvimento humano. Deste modo, o estudo da cultura corresponde à reflexão sobre o modo de nos relacionarmos e agirmos perante a natureza, sobre como damos e recebemos, como criamos e transmitimos, como transformamos informação em conhecimento e conhecimento em sabedoria. 1. Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico: a importância da geografia Portugal é uma terra de contrastes, onde pontificam o Atlântico e o Mediterrâneo. Mas é difícil de definir, pela complexidade e pela diversidade de elementos que caracterizam o território e a sociedade em que vivemos. Orlando Ribeiro escreveu em 1943 um livro notabilíssimo, pelo rigor da investigação e pela leveza da escrita, que constitui um verdadeiro vade mecum, indispensável para quem queira conhecer Portugal e a sua identidade. Trata-se de Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, do qual o escritor Ruben A. disse tratar-se do livro mais notável escrito em Portugal nos meados do século passado… É uma obra de indiscutível valia científica e de grande sensibilidade literária - essencial para compreender a identidade portuguesa. Em lugar de considerações apressadas, trata-se de indagar, através dos diversos fatores e manifestações relevantes, como é que "Portugal é mediterrânico por natureza e atlântico por posição" - na fórmula tornada clássica de Pequito Rebelo. Por que razão temos a fronteira mais antiga e estável da Europa? Como conseguimos preservar uma coesão social e cultural assinalável?
"Disposto de través na zona mediterrânica, bem engastado numa península que é como a miniatura de um continente, o território português abre-se para o mundo por uma vasta fachada oceânica" (p.131). O traçado de viés é acompanhado de alternâncias climáticas e da coexistência do clima oceânico e da secura quente. E é a "vigorosa oposição das terras altas e montanhosas, cortadas de vales profundamente incisos ", as repercussões no revestimento vegetal define uma terra de contrastes. Norte e Sul - o primeiro é atlântico, verdejante, húmido, com "gente densa"; o segundo mediterrâneo, com longos estios e escassamente povoado. Litoral e Interior - o país vai desde a verdura espessa, "banhada na luz doce e húmida" do noroeste até à aridez das terras de além Marão; desde a variegada aptidão rural do Vouga ao Sado ou do sul algarvio até aos monótonos descampados alentejanos… Terras altas e baixas, Serra e Ribeira, Campo e Monte, Montanha e Vale, Terra Alta e Terra Chã - assim define o povo a complexidade e as oposições, bem evidentes na economia e no povoamento. Desde a montanha húmida do norte e da economia agro-pastoril tradicional até aos relevos menos acentuados, secos e descarnados do sul, "onde o gado miúdo e as queimadas degradaram a floresta primitiva", temos os traços de uma complementaridade e de um coerência meridional. E, deste modo, a unidade de Portugal é em grande parte obra humana - que há mais de oito séculos define uma entidade política antiga e estável.
2. Variedade e unidade de Portugal: contrastes e fatores de unificação Orlando Ribeiro não se limita a interrogar a terra. Olha sempre as gentes e a sua vontade, procurando as "raízes antigas" da identidade. No fim do neolítico na Península Ibérica, fala de três áreas de civilização - a do levante, a dos planaltos centrais e a da faixa oeste. E no Oeste peninsular recorda a "civilização megalítica ocidental", ligada igualmente à Bretanha, ao País de Gales e à Irlanda. Aí estão os redutos célticos da Galiza e de Portugal. E a sul temos as influências dos povos mediterrânicos - fenícios, gregos, cartagineses e a "brilhante civilização indígena" dos Tartessos no Guadalquivir – com a misteriosa “escrita do Sudoeste”. Os tempos vão revelando as diferenças e as ligações, as continuidades e as descontinuidades. Os conventi romanos, a organização administrativa dos suevos e dos visigodos, as divergências da monarquia goda, a invasão moura, a influência árabe, a reconquista cristã, a coexistência das zonas estabilizadas dos reinos cristãos a norte e dos reinos taifas no meio dia com uma zona intermédia de incerteza e de alternância de influências - tudo nos vai revelando uma multiplicidade de elementos, num curioso melting pot, que vai gerando a autonomia ocidental peninsular. É o cadinho típico de uma zona de Finisterra que se manifesta. Os povos vindos da Europa chegavam e misturavam-se, gerando uma hospitalidade de sobrevivência e uma construção de pluralismo e diversidade.
O formigueiro humano e a intensa atividade rural de Entre Douro e Minho no tempo da reconquista exprime o código genético do que será depois a unidade política que origina Portugal. E Portucale, junto à foz do Douro, vai ser matriz do corpo político donde sairá o Estado português - um Estado que precede a Nação. Portucale serve, desde cedo, após a reconquista do século IX, como designação dos domínios cristãos a sul do Lima. No fim do século X, há já um condado (e até há um fugaz rei Ramiro - entre 926 e 930) e, pouco mais de cem anos depois, Henrique de Borgonha verá ser-lhe atribuída a tarefa incerta e difícil de consolidar e dilatar a influência cristã na região moçárabe de Coimbra para sul, além da linha Mondego/Serra da Estrela, tendo o Tejo como horizonte. No Sul, almorávidas e almoádas dominavam o Magrebe e o Al-Andaluz, até ao nosso Al-Gharb do Al-Andaluz (o Ocidente da Andaluzia) com pouca atividade agrícola e largos descampados, apesar das inovações de influência árabe nos vinhedos, olivais, pomares de laranjas e hortas regadas.
São os contrastes naturais que determinam ainda a deslocação de populações. As vindimas do Douro, as ceifas da Terra Quente, a apanha da azeitona na Beira Baixa, as ceifas no Alentejo, a retirada da cortiça. E assim havia movimentos internos, sazonais, de gentes. Nos arrozais encontramos os caramelos do Mondego e do Vouga, mas há ainda os gaibéus do norte do Ribatejo ou os avieiros da foz do Liz… Isto, sem esquecer os minhotos e pica-milhos, os beirões e os ratinhos. E em Lisboa e na Caparica encontramos as varinas e varinos de Ovar, ao lado dos pescadores de Ílhavo. E em Azeitão, Orlando Ribeiro descobre a curiosíssima distinção entre os caramelos de estar e os caramelos de ir e vir, ou seja, os colonos permanentes e os migrantes periódicos. É este o entrecruzar de influências que reforça o melting pot e a identidade portuguesa complexa e diversa. Por isso José Mattoso considera a identidade portuguesa como complexa, diversa, plural e aberta.
António Quadros (1923-1993) era um espírito aberto e livre que conhecia muito bem as raízes da cultura portuguesa e que pensou Portugal a partir da modernidade e das suas relações com a tradição.
COMPREENDER A HISTÓRIA Para António Quadros, não havia contradição entre o caminho histórico português e o desejo de olhar o futuro como um desafio de transformação. Nesse sentido, foi original na sua atitude, capaz de compreender a multifacetada e heterogénea atitude, por exemplo, de Fernando Pessoa, enquanto inclassificável e indomável. É, por isso, impossível encerrar António Quadros numa leitura retrospetiva da sua obra, sendo uma pessoa atenta à realidade que o cercava, como “homo viator”, capaz de compreender, como poucos, a filosofia da existência, assumida por Karl Jaspers e Gabriel Marcel, como podemos encontrar com nitidez em «Histórias do Tempo de Deus» (1965).
Quem conheceu António Quadros sabe bem a singularidade e a riqueza da sua atitude – de um homem de verdadeiro diálogo, nunca encerrado sobre qualquer posição de superioridade ou de certeza. E se, para entendermos o pensamento, precisamos de conhecer os pensadores, a verdade é que o humanismo e a proximidade eram referências que o tornavam alguém para quem o ato de pensar tinha a ver com a necessidade de nos compreendermos e aproximar-nos mutuamente. A dúvida metódica foi sempre uma leal conselheira para Quadros na demanda da verdade – já que considerava que à categoria tradicional do ser tornava-se necessário acrescentar a categoria do estar (ou do existir), donde decorria que a verdade deveria ser entendida com algo que englobava, que abarcava, que integrava a vida, ou seja, uma simbiose do testemunho pessoal e existencial, em que a transcendência tinha de partir da dignidade humana. Nesse sentido se demarcou de uma atitude transpersonalista, para assumir o reconhecimento da eminente dignidade da pessoa humana. «Não reconheço verdadeiramente adversários em minha volta (disse um dia), porque de todos me sinto irmão na origem da minha atividade, na geratriz da minha energia ao serviço de uma causa». E não podemos esquecer a invocação do Quinto Império de Vieira e de Pessoa, como domínio, não do poder, mas da cultura e do espírito, a realizar quando se unirem, o que o poeta chamava o lado direito e o lado esquerdo da sabedoria. O lado direito é o do conhecimento, do transcendente e do místico e o lado esquerdo o da ciência, da filosofia, da experiência e da razão. A criação do futuro haveria de resultar dessa ligação e dessa complementaridade.
RESPEITAR O PASSADO «Desde muito cedo me choquei com a maneira como os portugueses falam de Portugal». Numa entrevista ao «Diário de Notícias», a Antónia da Sousa (11.3.93), fala-nos dessa sensação estranha que lhe causava o derrotismo fatalista. «Uma maneira constantemente depreciativa. Confundiam os aspetos materiais com os aspetos espirituais. Então, acho que essas pessoas (que são de todos os géneros, no meio intelectual e não só) não dão uma chance a Portugal. Põem Portugal no banco dos réus e condenam-no». Se é verdade que hoje a crise é mais sentida, o certo é que somos levados a ir além das simplificações. Não meias-tintas, temos mesmo de responder, sob pena de perdermos. «A minha mola psicológica (dizia António Quadros) é tentar ajudar a criar um outro estado de espírito, em que as pessoas possam entender melhor a razão de ser de Portugal e aquilo em que Portugal é grande e desconhecido».
Fora de uma mitificação da identidade, o que estaria em causa era o entendimento de que «a identidade portuguesa não é (…) qualquer coisa estática, mas qualquer coisa a construir». Daí a preocupação do ensaísta em reunir ideias e pensadores que animaram e contribuíram para a afirmação do país – como Fernão Lopes, o Padre António Vieira, os homens da Renascença Portuguesa, alguns do «Orpheu», como Fernando Pessoa… E António Quadros, um dos animadores do jornal «57», ao lado doutros discípulos de José Marinho e Álvaro Ribeiro, foi-se preocupando em alargar horizontes e esferas de reflexão. À ciclotimia portuguesa, haveria que saber contrapor o estímulo e a resposta de Arnold Toynbee, que nos levou além dos limites, perante os exigentes desafios da provação e da subalternidade. E assim pudemos ir superando: mediocridade, irrelevância e periferia. Portugal precisaria de pensar por si próprio. «Portugal, quanto a mim, nasceu para realizar uma obra de sentido universal e nós temos de estar à altura dessa exigência». E seguia as pisadas de Camões, de Vieira ou de Pessoa, refletindo sobre a complexa relação entre o mito e a profecia. Afinal, a previsão científica em História é, segundo pensava, mais problemática que a profecia. Esta, parte de uma crença e a ciência pode partir de um erro. Nunca a História ou o historicismo conseguiram fazer previsões ou leis, embora tal tenha sido tentado várias vezes. Afinal, os mitos e as profecias, mesmo que postos em dúvida, constituem o imaginário de um povo – sem o qual a identidade não existe. Leia-se, por isso, «Memórias das Origens – Saudades do Futuro» (Europa-América, s.d., 1992), livro dedicado a Afonso Botelho, Ariano Suassuna e Lima de Freitas.
AS BIBLIOTECAS DA GULBENKIAN Refiro o pensamento de António Quadros, para invocar o seu papel de pedagogo e de estudioso da cultura, desde o papel fundamental desempenhado na Fundação Calouste Gulbenkian, até à fundação do IADE (Instituto de Arte e Decoração). E atenho-me em especial às Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian, cujas repercussões são de uma importância fundamental. Pode dizer-se que a abertura de horizontes na educação em Portugal se deveu em parte importante a essa missão crucial. Em 1958, por sugestão de Branquinho da Fonseca foi convidado para integrar os quadros do recém-criado Serviço das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian, onde ocupou sucessivamente os cargos de Presidente da Comissão de Escolha de Livros, Inspetor-Geral, Diretor-Adjunto (1969) e de Diretor de Serviço depois da morte de Branquinho da Fonseca (1974) e de Domingos Monteiro (1980). Até dezembro de 1974 foram examinadas pelo Serviço 11.499 obras, tendo a Comissão de leitura sido inicialmente dirigida por Domingos Monteiro e constituída por António Quadros e Tomás Kim (Monteiro Grilo), sendo mais tarde composta por Patrícia Joyce, Maria João Vasconcelos, Natércia Freire, Orlando Vitorino e Breda Simões. António Quadros desenvolveu o seu trabalho nas Bibliotecas Itinerantes durante vinte anos, constituindo essa a sua principal atividade profissional. Percorreu o país de norte a sul, o que lhe permitiu um conhecimento circunstanciado do património cultural português, tendo constituído um acervo de imagens, fundamental para o conhecimento da História de Arte portuguesa.
A partir de 1971 assumiu a direção-geral do IADE, sendo docente das cadeiras de História da Arte e de Cultura Portuguesa, o que manteve ininterruptamente até 1992. Acumulou essa função com as de Diretor-adjunto das Bibliotecas Itinerantes, sob a direção de Branquinho da Fonseca, lecionando ainda na Universidade Católica Portuguesa Deontologia da Comunicação. Em 1972 com a demissão de Lima de Freitas como diretor do IADE deixou a direção-adjunta das Bibliotecas, ficando como Inspetor-Geral e vogal da Comissão de Leitura. Após o falecimento de Branquinho da Fonseca, em maio de 1974, António Quadros foi nomeado para exercer interinamente as funções de diretor de serviço das Bibliotecas Itinerantes, o que acontece até 1975, com a nomeação de Domingos Monteiro, regressando ao cargo de Inspetor-Geral. Depois da morte de Domingos Monteiro assumiu de novo o cargo de Diretor do Serviço das Bibliotecas Itinerantes (1980), mas no ano seguinte decidiu reformar-se antecipadamente na Fundação Gulbenkian, dedicando-se à sua obra, mantendo a atividade como diretor e docente do IADE e da Universidade Católica.
Nos domínios em que exerceu atividade, António Quadros demonstrou sempre uma grande coerência, considerando que «o grande problema moderno não é um problema económico, é um problema de valores e há uma riqueza de valores em suspensão em toda a cultura portuguesa». A verdade é que o pensador nunca desistiu da tarefa fundamental de «desentranhar esses valores», fazendo-os trazer para a luz do dia. O que deveria ser construído como império do futuro, não seria uma quimera, deveria ser algo a criar com o nosso pensamento e esforço. Com as Bibliotecas Itinerantes, a cultura ia até junto das pessoas nos lugares mais recônditos Tratava-se de um «mundo de valores que nos pertence a nós criar». Um país antigo apenas pode persistir com conhecimento, vontade e determinação. E, por isso mesmo, o pensador deixou-nos um apelo de esperança: «acreditem em Portugal, porque Portugal está no mais fundo de cada um de nós e sem Portugal sereis menos do que sois».
O Centro Nacional de Cultura assinala o centenário de Natália Correia, no dia do seu nascimento, 13 de setembro, nome maior da cultura portuguesa contemporânea.
Foi uma voz rebelde que construiu o seu percurso literário e cívico juntando o talento poético e a energia, orientados pelos valores da verdade e da justiça. A sua voz é singular e presente. Nunca se fechou numa torre de marfim. Trilhou sempre os caminhos da liberdade. A «Mátria» era, para si, a demonstração da força da mulher e do feminino, como marca de sensibilidade e de determinação. E sobre a missão da mulher era claríssima: «Acho que a missão da mulher é assombrar, espantar. Se a mulher não espanta... De resto, não é só a mulher, todos os seres humanos têm que deslumbrar os seus semelhantes para serem um acontecimento. Temos que ser um acontecimento uns para os outros. Então a pessoa tem que fazer o possível para deslumbrar o seu semelhante, para que a vida seja um motivo de deslumbramento. Se chama a isso sedução, cumpri aquilo que me era forçoso fazer. O meu primeiro contacto com as pessoas é de uma grande afabilidade. Quando as pessoas recusam essa afabilidade, então eu dou-lhes o que elas me pedem: irascibilidade. Volto-lhes as costas irascivelmente, mais nada. Se é isso mau génio, talvez seja» (Entrevista de 1983).
Conheci Natália, já não no período da sua aura mítica de sedução, mas no tempo da sua força, do seu entusiasmo, da fantástica capacidade de afrontar tudo e todos, em nome dos valores em que acreditava. Convidei-a muitas vezes para debates e reflexões e nunca se negava, desde que o combate valesse a pena. A cultura para a poeta e para a escritora significava, a um tempo, ter capacidade criadora, e poder comunicar a força íntima. Era uma açoriana de gema, que fazia das suas ilhas encantadas um sinal indómito de autonomia e força anímica. Acreditava, por isso, nas identidades abertas – e proclamava a açorianidade como uma marca indelével de espírito e de vontade. O culto do Espírito Santo sobre que a ouvi falar, em cumplicidade estreita com Agostinho da Silva ou Lima de Freitas, era um modo de afirmar a sua heterodoxia, salientando como essa forma de pensar era um modo de afirmar a vontade de ligar o primado das pessoas ao sonho de uma utopia onde não houvesse amos e súbditos, onde houvesse a partilha plena da riqueza e onde uma mulher pudesse ser coroada com a coroa do Espírito. Nesta linha, demarcava-se com clareza de qualquer fechamento provinciano ou de um qualquer protecionismo cultural. Dava-se muito mal com o egoísmo e com a hipocrisia. Tantas vezes usou a sua coragem para desafiar os poderes mais instalados e subservientes. No caso do amor de Snu Abecasis e Francisco Sá Carneiro, não dissimulou, desde o primeiro momento, a sua consideração positiva. O mesmo se diga de tantas outras atitudes poéticas, intelectuais, políticas e cívicas, mesmo contra as correntes dominantes. Nunca regateou esforços por uma boa causa em que acreditasse. E o seu tempo e a sua atitude foram precursores em muitos combates – entre os quais o direito inalienável à diferença.
Dizia os poemas de Antero de Quental com uma verve e uma intensidade, como ninguém mais fazia. Compreendia Vitorino Nemésio, nas suas diversas facetas, ponto de encontro de desassossego e de inconformismo, como ninguém mais. Dialogava com Agostinho da Silva, de igual para igual, com o mesmo idealismo, mas sem esquecer a racionalidade. Recordava com saudade os tempos em que pôde usufruir da maiêutica de António Sérgio, em inesquecíveis tardes de sábado, com um chá gordo de ideias e de pensamento crítico. Eram épicos os serões no “Botequim”, onde tudo se debatia e de tudo se falava. David Mourão-Ferreira disse que ela foi a irmã que nunca teve. José-Augusto França considerou-a a “mais bonita mulher de Lisboa”. Mário Cesariny também se deslumbrava que a sua beleza que superava as melhores obras de Miguel Ângelo. Para Fernando Dacosta: “As causas, as pessoas do coração e do sonho, e da fé, tinham-na do seu lado; as causas, as pessoas da manipulação, do utilitarismo, da serventia, conheciam-lhe a cólera, o chiste, a indignação”. A sua indignação era inexorável e não podia deixar alguém indiferente…
Um dia Natália, perante a acusação num tribunal plenário, propôs-se uma defesa intransigente e poética. O seu advogado pediu-lhe que não usasse o poema, uma vez que o mesmo lhe traria, por certo, dissabores, sendo, no mínimo, considerado ofensivo para o plenário. Hoje, lemo-lo como um verdadeiro manifesto pela liberdade. Sabemos que não foi dito, mas Natália tinha vontade e ânimo para o fazer. Ele representa, sobretudo nos dias de hoje, um alerta severo, contra as tentações que subalternizam a liberdade e que fazem regressar as formas mais subtis de condicionamento e de desenfreado populismo, que tendem a pôr a democracia entre parêntesis. A releitura do poema, publicado em “As Maçãs de Orestes” de 1970, fala por si e merece uma releitura permanente e atenta: «Senhores jurados sou um poeta / um multipétalo uivo um defeito / e ando com uma camisa de vento / ao contrário do esqueleto. / Sou um vestíbulo do impossível um lápis / de armazenado espanto e por fim / com a paciência dos versos / espero viver dentro de mim. / Sou em código o azul de todos / (curtido couro de cicatrizes) / uma avaria cantante / na maquineta dos felizes. / Senhores banqueiros sois a cidade / o vosso enfarte serei / não há cidade sem o parque / do sono que vos roubei. / Senhores professores que pusestes / a prémio minha rara edição / de raptar-me em crianças que salvo / do incêndio da vossa lição. / Senhores tiranos que do baralho / de em pó volverdes sois os reis / sou um poeta jogo-me aos dados / ganho as paisagens que não vereis. / Senhores heróis até aos dentes / puro exercício de ninguém / minha cobardia é esperar-vos / umas estrofes mais além. / Senhores três quatro cinco e sete / que medo vos pôs por ordem? /que pavor fechou o leque / da vossa diferença enquanto homem? / Senhores juízes que não molhais /a pena na tinta da natureza / não apedrejeis meu pássaro / sem que ele cante minha defesa. / Sou uma impudência a mesa posta / de um verso onde o possa escrever / ó subalimentados do sonho! /a poesia é para comer». Quando hoje voltamos ao poema, entendemos a dimensão singular de Natália Correia. E assim, podemos compreender não só a coragem de defender a liberdade criadora (que a levaria à condenação, com pena suspensa no caso da “Antologia de Poesia Erótica e Satírica”), mas também a determinação em não deixar por mãos alheias as causas cívicas em que genuinamente acreditava.
Que fantasma se segue? Um dos mais previsíveis. Um cultor de máscaras e da suprema arte de Thalia, que Talma celebrizou.. O sétimo fantasma respeita, assim, ao teatro. Das três graças da corte de Afrodite – Tália fazia nascer flores, Eufrosina dava sentido à alegria e Aglaia repesentava a claridade. Já François-Joseph Talma (1763-1826), seria o ator favorito de Napoleão, reconhecendo ao teatro uma essencial função na vida cívica, como arte por excelência da representação e da busca da verdade. O nosso Garrett seguiria esses mesmos passos, essenciais a um regime de liberdade. Mas em Portugal, é Mestre Gil (talvez autor da Custódia de Belém segundo Teófilo Braga, ou pessoa diferente segundo Camilo) o grande símbolo da representação da vida como movimento, liberdade crítica e ensinamento. Não tendo sido o primeiro no teatro português foi, no entanto, o mais célebre. De facto, Gil Vicente (c. 1465-1536), é uma das referências fundamentais da cultura e da língua portuguesas. Pouco se sabe dele, ou pelo menos muito menos do que gostaríamos, mas lê-lo e seguir a sua obra multifacetada e rica, é o modo que temos para poder compreender as nossas raízes. Lembremo-nos do “Auto da Índia” (1509), retrato das contradições das gentes na capital do Império e da presença dos “fumos da Índia”, mas também do “Auto da Lusitânia” (1532), que a audácia de Almada Negreiros representou como se os dois protagonistas – Todo o Mundo e Ninguém – fossem dois irmãos gémeos, como verdadeiramente o são. Quer no “Auto da Índia”, quer no “Auto da Lusitânia”, mestre Gil representou as figuras essenciais da epopeia da Índia como verdadeiros símbolos, o que levou Almada Negreiros a fazer uma interpretação livre na caracterização das personagens. Como acontece com a maior parte dos Autos, Comédias e Farsas de Gil Vicente, há um fundo ético, que não significa sisudez, mas que representa aguda consciência do picaresco. Este fundo lírico e religioso leva-nos às raízes trovadorescas, mais uma vez, designadamente aos temas das “Cantigas de Santa Maria” de Afonso X e ao “Cancioneiro Geral” de Garcia de Resende… E assim temos os Autos de Devoção (como da “Visitação”, no “Monólogo do Vaqueiro”, ou nos “ Auto da Alma”, de “Mofina Mendes” e na “Trilogia das Barcas”), as Comédias (como a “do Viúvo”), as Tragicomédias (como “D. Duardos”, e “Amadis de Gaula”), as Farsas (como “Quem tem Farelos?”, “Auto da Índia”, “Velho da Horta” ou “da Lusitânia”, com o célebre entremez “Todo o Mundo e Ninguém”), além das “Obras Miúdas” (como o “Pranto de Maria Parda”). E não esquecemos o que António Tabucchi disse sobre o nosso lado trocista e o culto de trocadilhos, dando como exemplo o Pranto de Maria Parda, onde ela diz “cada traque que eu dou é um suspiro de saudade”. Ruben A. e Nuno Bragança concordariam com a expressão bem portuguesinha. O “Auto da Lusitânia” foi representado quando a corte regressou a Lisboa, depois de ter passado a epidemia de peste na capital (1532). Retrata-se uma família judaica de Lisboa. Lediça, a filha do alfaiate Jacob, varre a “logea”. E entra um cortesão galanteador, fazendo-se a jovem desentendida. Sem sucesso, o atrevido sai, entrando o pai alfaiate, vindo de negócios na cidade. E um amigo diz que é preciso “inventar” um auto, pois a Lusitânia desperta em Portugal um amor especial. Assiste-se então ao frutuoso casamento de Portugal com a princesa Lusitânia. Dinato descreve a Berzebu o diálogo entre Todo o Mundo e Ninguém. E conclui com a célebre frase “Todo o Mundo é mentiroso e Ninguém diz a verdade”. A sobriedade e a sabedoria são qualidades que a Lusitânia e Portugal representam nas suas almas gémeas. Eis por que razão este sétimo fantasma diz, assim, muito sobre quem somos. Diferentes e insatisfeitos. Reconhecendo a imperfeição. Buscadores de mitos como chave da compreensão das nossas raízes.