Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
XXIX. A busca de uma identidade: que cultura portuguesa? (2)
Como disse Sophia de Mello Breyner: «Me dói a lua me soluça o mar / E o exílio se inscreve em pleno tempo» (Livro Sexto, 1962). Como Unamuno bem pressentiu e Eduardo Lourenço interpretou, com rigor e perfeição, somos feitos de lirismo e de história trágico-marítima – sem esquecer o picaresco, que salienta António Tabucchi, no escárnio e maldizer. Encontramos desde a poesia trovadoresca à rica poesia contemporânea, passando por Camões, Sá de Miranda, Bocage, Garrett, Herculano, Antero de Quental, João de Deus, Cesário, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa, Almada Negreiros e todos mais… Portugal, como palavra, é uma eterna convergência da lembrança e do desejo, do amor e da provação, e a língua portuguesa, espalhada pelo mundo, plena de diferenças, foi-se construindo nessa pluralidade e nessa complementaridade… A língua portuguesa, temperada com mais açúcar ou mais especiarias, é o traço de união e de diferenciação. E se dúvidas houvesse João Guimarães Rosa leva-nos em busca da terceira margem, Baltazar Lopes da Silva introduz-nos nas diferenças e nos segredos dos crioulos, Mia Couto reinventa-nos em permanência, Pepetela, Agualusa, Ondjaki, Germano Almeida põem-nos em contacto com as grandes superfícies de terra e mar, Raduan Nassar interroga e confronta as raízes em «Lavoura Arcaica», Rubem Fonseca usa como matéria-prima o drama quotidiano… Já para Carlos Drummond de Andrade: “Adélia Prado é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo”. Quem a conhece considera-a desconcertante, plena de ironia, ousada, iconoclasta, seríssima no entendimento das coisas essenciais. Nela o comum e o banal encontram-se, a cada passo, com o transcendente.
Eduardo Lourenço é perentório: «Não temos nada que provar. O que tínhamos de provar ao mundo já provámos quando isso era uma novidade e constituía uma ação para a humanidade inteira. Temos sempre este complexo de ser uma pequena nação não tão visível como outras. Mas outras nações também não são visíveis». Não somos melhores ou piores, somos nós mesmos. «Não se sabe assim como é que há quase mil anos este país pequenino, aqui no canto da Europa, é ainda sujeito do seu próprio destino.». A História é uma batalha cultural. «A Europa define-se na sua relação com o que não é Europa. Só sabemos o que é Europa quando estamos fora da Europa. Na Europa temos uma experiência normal. É como a experiência de quem está em casa. Há até uma pluralidade de casas que, mais ou menos, têm afinidades entre elas. Isso é a Europa». Mas há ameaças e perigos, e até indiferença e acomodação. Falta a normalização connosco próprios. Perante tantos sinais de incerteza persiste uma miragem europeia. A Europa fechada definha, por isso, importa tirar lições, procurando caminhos que permitam encontrar a defesa de um núcleo essencial de interesses e valores comuns. Língua de várias culturas, cultura de várias línguas – eis um caleidoscópio incompatível com paternalismos. Prevalecem o pluralismo e a diversidade. Garrett, Antero e Cortesão aspiraram a um patriotismo prospetivo, em que o fundo português se afirma como exigência aberta e plural.
Pedro Mexia tem razão ao afirmar que, “a dignidade vale mais do que a identidade” (Expresso, 10.5.2024). Não que esta não seja importante, mas é a dignidade da pessoa humana que se torna pedra angular de qualquer entendimento identificador, até pela importância da compreensão de que urge distinguir para unir… “É importante que um entendimento acerca do humano seja tão ambicioso quanto judicioso. E que esteja atento às formas de desumanização, as novas e as antigas”.
XXVIII. A busca de uma identidade: que cultura portuguesa? (1)
De que falamos quando referimos a Cultura Portuguesa? De continuidades e de mudanças, de características singulares e de convergências, de identidades e diferenças, de desafios e respostas. Não basta um sobrevoo na cultura geral, que mais não significa do que um contacto superficial com a criação e a arte, esquecida da complexidade, do que avança e progride e do que estagna. António Manuel Machado Pires tem recordado a preocupação que Vitorino Nemésio tinha com os seus discípulos, no sentido de abrir as suas mentes, ligando e relacionando realidades aparentemente distintas: “E por ‘ligar as coisas’ deve entender-se ligar mesmo, não apenas somar conhecimentos: fazer relacionações entre conhecimentos convencionalmente arrumados em cadeiras diferentes, ligar uma romaria a uma feira, esta a um modelo de vida, este à evocação de um almocreve, este a Gil Vicente e por que não, a O Malhadinhas de Aquilino?”. A cultura pressupõe diálogo e confronto, entre quem vê e tenta compreender e quem pretende ver e entender, numa relação sempre complexa entre a vida humana e a natureza que a rodeia. Daí a metáfora da varanda para ver a Cultura, tantas vezes usada pelo próprio Nemésio – “Varanda de Pilatos”. Afinal, refletir sobre a cultura é fazê-la, construí-la, interpretá-la e torná-la viva. Lembre-se o picaresco e o dramático no caleidoscópio de Fernão Mendes Pinto: “não é só uma narração de experiências, percursos de paisagens exóticas ou encontros e desencontros de povos (Ocidente e Oriente), é a ironia da vida, a dor humana, pecado, entusiasmo e castigo, alegrias e lágrimas, voluntarismos e disponibilidades, uma grandiosa saga coletiva de um povo (nem sempre exemplar), mas provando a exemplar lição do tudo e nada da Vida”. Eis por que a ligação da Literatura, da Arte ou da Ciência são pontos de observação de eleição para avistar e compreender a Cultura como panorama, uma vez que temos o testemunho concreto, mais do que a mera ostentação de um saber ou de uma técnica. Assim, não compreenderemos, por exemplo, o século XIX português sem ler Camilo (“raptos, fugas e famílias desgraçadas”), Júlio Dinis (“a conciliação social”), Eça de Queiroz (a ironia como método, devendo ser levada muito a sério), Cesário (a contradição dos sentimentos), João de Deus (a lírica popular) ou Antero (a reflexão culta).
Nemésio e Machado Pires falavam de duas linhas de pensamento marcantes na reflexão sobre a cultura portuguesa, a idealista e a racionalista, representadas por Teixeira de Pascoaes e António Sérgio. Ambas deveriam de ser consideradas “para o balanço de ser português na vida, na cultura e no mundo”. Dando maior importância ora a uma ora a outra, o certo é que os dois polos têm de estar presentes na definição do português e do “ser de Portugal”. A vontade, o sentimento de pertença, “a estruturação da Cultura e a organização do Estado”, caminhando a par, como na análise de António José Saraiva, articulam-se com a construção de um imaginário. A experiência “madre de todas as cousas”, os conflitos entre a sociedade antiga e a sociedade moderna, a compreensão de um culto de sentimentos contraditórios, os mitos da origem, de resistência ou de predestinação, tudo nos permite tentar perceber quem somos, donde vimos e o que nos motiva e desafia. Mas temos de recusar as simplificações e a tentação de levar a História da Cultura para uma mera sucessão de factos ou acontecimentos. Temos de descobrir tendências, de suscitar criticamente diversas leituras, de comparar, de ver de dentro e de fora, de cruzar saberes e campos de pesquisa. Urge contrariar as simplificações, que se tornam caricaturais, não permitindo compreender uma realidade que é multifacetada. Ligue-se a vontade ao fundo céltico, confronte-se a fixação e o transporte, contraponha-se o erudito ao castiço, compreenda-se as diferenças e as complementaridades entre Camões, a custódia de Belém, o galo de Barcelos ou o fado. De facto, nossa cultura tanto é o “Auto da Lusitânia”, de Todo o Mundo e Ninguém, como o “Pranto de Maria Parda”, para só nos atermos a Mestre Gil. Para Machado Pires quando diz que a «Cultura não é um “somatório” heteróclito, indiferenciado, anódino e maçador, mas um caminho coerente para um fim demonstrável no seu todo, um rasgão na neblina de dúvidas e problemas, carreando um considerável conjunto de materiais para “forçar” a prova». O que deve estar em causa é a procura de caminhos explicativos, de linhas de reflexão, de sínteses e de paradoxos, em resposta ao enigma persistente e contraditório de uma sociedade que oscila entre o messianismo e a vontade, entre o mito e a racionalidade, entre a crítica e a sobrevivência, entre o presente e o futuro. A Cultura é “uma perspetiva convergente e unitária de vários ramos do saber”. E eis o paradoxo, “se o historiador busca a razão dos acontecimentos, culpa os homens; se procura os imperativos da Raça, culpa o Destino”. O pessimismo contrasta com o compromisso cívico. E assim, num momento em que, nos anos 90 do século XIX, a decadência se manifestava e o desastre parecia anunciar-se, com o Ultimato, a bancarrota, a dívida pública, a crise do regime, o desprestígio das instituições, a Geração que se evidenciara em 1871 não baixa os braços e revela o sentido positivo da atitude crítica, em vez do fatalismo.
Durante o mês de agosto, publicaremos este ano um conjunto de reflexões sobre Portugal, que complementam o que publicámos em anos anteriores. Começamos por lembrar a ilustração de Rafael Bordalo Pinheiro com a misteriosa pergunta sobre Zé Povinho – “Levantar-se-á?” – Agostinho de Morais.
I. Identidade e Cultura
Quem somos? O que nos distingue uns dos outros? Qual o significado dos sentimentos de pertença? Numa sociedade aberta e pluralista, as referências são diversas e complexas e temos de compreender quais os elos suscetíveis de caracterizar quem somos e de influenciar o que fazemos. As simplificações são enganadoras. Uma só pertença não nos pode caracterizar, até porque o “homem unidimensional” não permite fazer compreender a humanidade, limitando-se a uma caricatura incapaz de definir a cultura que formamos. Urge delimitar as fronteiras e os limites dentro dos quais se desenvolve a vida e a ação, que funcionam como catalisadores ou como motores de afirmação ou de emancipação.
Se Ortega y Gasset nos alertava para a necessidade de compreendermos as circunstâncias em que nos inserimos, como janelas abertas ao mundo e à ação, também nos obrigava a superar a perspetiva pobre e redutora do homem-massa. Em ambos os polos, desde o híper-egoísmo individualista à dissolução na multidão uniforme, devemos entender que a pluralidade de pertenças e que a aspiração universalista e cosmopolita à “vida digna” colocam-nos perante a exigência de equilíbrio entre a fragmentação e a emergência de uma massa indiferenciada e uniforme. Temos sempre várias referências, várias pertenças e várias atitudes e valores. Ainda que uma identidade seja muito marcada, a verdade é que procuramos sempre uma síntese que parta da situação concreta e da particularidade para uma visão universalista. A História é sempre feita de movimentos centrífugos e centrípetos e nós, atores e figurantes, somos determinantes e determinados, criadores e criaturas, em suma, o resultado e a síntese que decorrem desses encontros paradoxais.
É sabido que a cultura é uma realidade de definição difícil. Referimo-nos à superação do estado de natureza, perante os fatores que distinguem o caos e o cosmos sociais e a realização da natureza humana na relação com outros. O certo é que nos situamos na convergência entre fatores unificadores e fragmentários. Fala-se da sociedade culta como sociedade cultivada, mas fala-se também da cultura popular e de cultura erudita ou de um conceito étnico de cultura e de “cultura-aprendizagem” da sociedade educativa. A reflexão sobre a cultura e a natureza deve ser vista, assim, à luz de diversas perspetivas, uma vez que a pessoa humana e a comunidade se afirmam de várias maneiras.
A palavra Cultura, no sentido etimológico, que herdámos do Renascimento, tem uma reminiscência agrícola, ligada ao cultivar da terra, ao semear e ao colher (colo, colere, cultum). Com o tempo, a palavra passou a ter um sentido de aprendizagem de espírito e de “construção” da personalidade (bildung em língua alemã), passando a ligar-se ao processo transformador da humanidade. Os clássicos, na Grécia e em Roma, entendiam que cultura e a educação se completavam, e referiam-se respetivamente à paideia e à humanitas que significavam o caminho de desenvolvimento humano. Deste modo, o estudo da cultura corresponde à reflexão sobre o modo de nos relacionarmos e agirmos perante a natureza, sobre como damos e recebemos, como criamos e transmitimos, como transformamos informação em conhecimento e conhecimento em sabedoria. 1. Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico: a importância da geografia Portugal é uma terra de contrastes, onde pontificam o Atlântico e o Mediterrâneo. Mas é difícil de definir, pela complexidade e pela diversidade de elementos que caracterizam o território e a sociedade em que vivemos. Orlando Ribeiro escreveu em 1943 um livro notabilíssimo, pelo rigor da investigação e pela leveza da escrita, que constitui um verdadeiro vade mecum, indispensável para quem queira conhecer Portugal e a sua identidade. Trata-se de Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, do qual o escritor Ruben A. disse tratar-se do livro mais notável escrito em Portugal nos meados do século passado… É uma obra de indiscutível valia científica e de grande sensibilidade literária - essencial para compreender a identidade portuguesa. Em lugar de considerações apressadas, trata-se de indagar, através dos diversos fatores e manifestações relevantes, como é que "Portugal é mediterrânico por natureza e atlântico por posição" - na fórmula tornada clássica de Pequito Rebelo. Por que razão temos a fronteira mais antiga e estável da Europa? Como conseguimos preservar uma coesão social e cultural assinalável?
"Disposto de través na zona mediterrânica, bem engastado numa península que é como a miniatura de um continente, o território português abre-se para o mundo por uma vasta fachada oceânica" (p.131). O traçado de viés é acompanhado de alternâncias climáticas e da coexistência do clima oceânico e da secura quente. E é a "vigorosa oposição das terras altas e montanhosas, cortadas de vales profundamente incisos ", as repercussões no revestimento vegetal define uma terra de contrastes. Norte e Sul - o primeiro é atlântico, verdejante, húmido, com "gente densa"; o segundo mediterrâneo, com longos estios e escassamente povoado. Litoral e Interior - o país vai desde a verdura espessa, "banhada na luz doce e húmida" do noroeste até à aridez das terras de além Marão; desde a variegada aptidão rural do Vouga ao Sado ou do sul algarvio até aos monótonos descampados alentejanos… Terras altas e baixas, Serra e Ribeira, Campo e Monte, Montanha e Vale, Terra Alta e Terra Chã - assim define o povo a complexidade e as oposições, bem evidentes na economia e no povoamento. Desde a montanha húmida do norte e da economia agro-pastoril tradicional até aos relevos menos acentuados, secos e descarnados do sul, "onde o gado miúdo e as queimadas degradaram a floresta primitiva", temos os traços de uma complementaridade e de um coerência meridional. E, deste modo, a unidade de Portugal é em grande parte obra humana - que há mais de oito séculos define uma entidade política antiga e estável.
2. Variedade e unidade de Portugal: contrastes e fatores de unificação Orlando Ribeiro não se limita a interrogar a terra. Olha sempre as gentes e a sua vontade, procurando as "raízes antigas" da identidade. No fim do neolítico na Península Ibérica, fala de três áreas de civilização - a do levante, a dos planaltos centrais e a da faixa oeste. E no Oeste peninsular recorda a "civilização megalítica ocidental", ligada igualmente à Bretanha, ao País de Gales e à Irlanda. Aí estão os redutos célticos da Galiza e de Portugal. E a sul temos as influências dos povos mediterrânicos - fenícios, gregos, cartagineses e a "brilhante civilização indígena" dos Tartessos no Guadalquivir – com a misteriosa “escrita do Sudoeste”. Os tempos vão revelando as diferenças e as ligações, as continuidades e as descontinuidades. Os conventi romanos, a organização administrativa dos suevos e dos visigodos, as divergências da monarquia goda, a invasão moura, a influência árabe, a reconquista cristã, a coexistência das zonas estabilizadas dos reinos cristãos a norte e dos reinos taifas no meio dia com uma zona intermédia de incerteza e de alternância de influências - tudo nos vai revelando uma multiplicidade de elementos, num curioso melting pot, que vai gerando a autonomia ocidental peninsular. É o cadinho típico de uma zona de Finisterra que se manifesta. Os povos vindos da Europa chegavam e misturavam-se, gerando uma hospitalidade de sobrevivência e uma construção de pluralismo e diversidade.
O formigueiro humano e a intensa atividade rural de Entre Douro e Minho no tempo da reconquista exprime o código genético do que será depois a unidade política que origina Portugal. E Portucale, junto à foz do Douro, vai ser matriz do corpo político donde sairá o Estado português - um Estado que precede a Nação. Portucale serve, desde cedo, após a reconquista do século IX, como designação dos domínios cristãos a sul do Lima. No fim do século X, há já um condado (e até há um fugaz rei Ramiro - entre 926 e 930) e, pouco mais de cem anos depois, Henrique de Borgonha verá ser-lhe atribuída a tarefa incerta e difícil de consolidar e dilatar a influência cristã na região moçárabe de Coimbra para sul, além da linha Mondego/Serra da Estrela, tendo o Tejo como horizonte. No Sul, almorávidas e almoádas dominavam o Magrebe e o Al-Andaluz, até ao nosso Al-Gharb do Al-Andaluz (o Ocidente da Andaluzia) com pouca atividade agrícola e largos descampados, apesar das inovações de influência árabe nos vinhedos, olivais, pomares de laranjas e hortas regadas.
São os contrastes naturais que determinam ainda a deslocação de populações. As vindimas do Douro, as ceifas da Terra Quente, a apanha da azeitona na Beira Baixa, as ceifas no Alentejo, a retirada da cortiça. E assim havia movimentos internos, sazonais, de gentes. Nos arrozais encontramos os caramelos do Mondego e do Vouga, mas há ainda os gaibéus do norte do Ribatejo ou os avieiros da foz do Liz… Isto, sem esquecer os minhotos e pica-milhos, os beirões e os ratinhos. E em Lisboa e na Caparica encontramos as varinas e varinos de Ovar, ao lado dos pescadores de Ílhavo. E em Azeitão, Orlando Ribeiro descobre a curiosíssima distinção entre os caramelos de estar e os caramelos de ir e vir, ou seja, os colonos permanentes e os migrantes periódicos. É este o entrecruzar de influências que reforça o melting pot e a identidade portuguesa complexa e diversa. Por isso José Mattoso considera a identidade portuguesa como complexa, diversa, plural e aberta.
António Quadros (1923-1993) era um espírito aberto e livre que conhecia muito bem as raízes da cultura portuguesa e que pensou Portugal a partir da modernidade e das suas relações com a tradição.
COMPREENDER A HISTÓRIA Para António Quadros, não havia contradição entre o caminho histórico português e o desejo de olhar o futuro como um desafio de transformação. Nesse sentido, foi original na sua atitude, capaz de compreender a multifacetada e heterogénea atitude, por exemplo, de Fernando Pessoa, enquanto inclassificável e indomável. É, por isso, impossível encerrar António Quadros numa leitura retrospetiva da sua obra, sendo uma pessoa atenta à realidade que o cercava, como “homo viator”, capaz de compreender, como poucos, a filosofia da existência, assumida por Karl Jaspers e Gabriel Marcel, como podemos encontrar com nitidez em «Histórias do Tempo de Deus» (1965).
Quem conheceu António Quadros sabe bem a singularidade e a riqueza da sua atitude – de um homem de verdadeiro diálogo, nunca encerrado sobre qualquer posição de superioridade ou de certeza. E se, para entendermos o pensamento, precisamos de conhecer os pensadores, a verdade é que o humanismo e a proximidade eram referências que o tornavam alguém para quem o ato de pensar tinha a ver com a necessidade de nos compreendermos e aproximar-nos mutuamente. A dúvida metódica foi sempre uma leal conselheira para Quadros na demanda da verdade – já que considerava que à categoria tradicional do ser tornava-se necessário acrescentar a categoria do estar (ou do existir), donde decorria que a verdade deveria ser entendida com algo que englobava, que abarcava, que integrava a vida, ou seja, uma simbiose do testemunho pessoal e existencial, em que a transcendência tinha de partir da dignidade humana. Nesse sentido se demarcou de uma atitude transpersonalista, para assumir o reconhecimento da eminente dignidade da pessoa humana. «Não reconheço verdadeiramente adversários em minha volta (disse um dia), porque de todos me sinto irmão na origem da minha atividade, na geratriz da minha energia ao serviço de uma causa». E não podemos esquecer a invocação do Quinto Império de Vieira e de Pessoa, como domínio, não do poder, mas da cultura e do espírito, a realizar quando se unirem, o que o poeta chamava o lado direito e o lado esquerdo da sabedoria. O lado direito é o do conhecimento, do transcendente e do místico e o lado esquerdo o da ciência, da filosofia, da experiência e da razão. A criação do futuro haveria de resultar dessa ligação e dessa complementaridade.
RESPEITAR O PASSADO «Desde muito cedo me choquei com a maneira como os portugueses falam de Portugal». Numa entrevista ao «Diário de Notícias», a Antónia da Sousa (11.3.93), fala-nos dessa sensação estranha que lhe causava o derrotismo fatalista. «Uma maneira constantemente depreciativa. Confundiam os aspetos materiais com os aspetos espirituais. Então, acho que essas pessoas (que são de todos os géneros, no meio intelectual e não só) não dão uma chance a Portugal. Põem Portugal no banco dos réus e condenam-no». Se é verdade que hoje a crise é mais sentida, o certo é que somos levados a ir além das simplificações. Não meias-tintas, temos mesmo de responder, sob pena de perdermos. «A minha mola psicológica (dizia António Quadros) é tentar ajudar a criar um outro estado de espírito, em que as pessoas possam entender melhor a razão de ser de Portugal e aquilo em que Portugal é grande e desconhecido».
Fora de uma mitificação da identidade, o que estaria em causa era o entendimento de que «a identidade portuguesa não é (…) qualquer coisa estática, mas qualquer coisa a construir». Daí a preocupação do ensaísta em reunir ideias e pensadores que animaram e contribuíram para a afirmação do país – como Fernão Lopes, o Padre António Vieira, os homens da Renascença Portuguesa, alguns do «Orpheu», como Fernando Pessoa… E António Quadros, um dos animadores do jornal «57», ao lado doutros discípulos de José Marinho e Álvaro Ribeiro, foi-se preocupando em alargar horizontes e esferas de reflexão. À ciclotimia portuguesa, haveria que saber contrapor o estímulo e a resposta de Arnold Toynbee, que nos levou além dos limites, perante os exigentes desafios da provação e da subalternidade. E assim pudemos ir superando: mediocridade, irrelevância e periferia. Portugal precisaria de pensar por si próprio. «Portugal, quanto a mim, nasceu para realizar uma obra de sentido universal e nós temos de estar à altura dessa exigência». E seguia as pisadas de Camões, de Vieira ou de Pessoa, refletindo sobre a complexa relação entre o mito e a profecia. Afinal, a previsão científica em História é, segundo pensava, mais problemática que a profecia. Esta, parte de uma crença e a ciência pode partir de um erro. Nunca a História ou o historicismo conseguiram fazer previsões ou leis, embora tal tenha sido tentado várias vezes. Afinal, os mitos e as profecias, mesmo que postos em dúvida, constituem o imaginário de um povo – sem o qual a identidade não existe. Leia-se, por isso, «Memórias das Origens – Saudades do Futuro» (Europa-América, s.d., 1992), livro dedicado a Afonso Botelho, Ariano Suassuna e Lima de Freitas.
AS BIBLIOTECAS DA GULBENKIAN Refiro o pensamento de António Quadros, para invocar o seu papel de pedagogo e de estudioso da cultura, desde o papel fundamental desempenhado na Fundação Calouste Gulbenkian, até à fundação do IADE (Instituto de Arte e Decoração). E atenho-me em especial às Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian, cujas repercussões são de uma importância fundamental. Pode dizer-se que a abertura de horizontes na educação em Portugal se deveu em parte importante a essa missão crucial. Em 1958, por sugestão de Branquinho da Fonseca foi convidado para integrar os quadros do recém-criado Serviço das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian, onde ocupou sucessivamente os cargos de Presidente da Comissão de Escolha de Livros, Inspetor-Geral, Diretor-Adjunto (1969) e de Diretor de Serviço depois da morte de Branquinho da Fonseca (1974) e de Domingos Monteiro (1980). Até dezembro de 1974 foram examinadas pelo Serviço 11.499 obras, tendo a Comissão de leitura sido inicialmente dirigida por Domingos Monteiro e constituída por António Quadros e Tomás Kim (Monteiro Grilo), sendo mais tarde composta por Patrícia Joyce, Maria João Vasconcelos, Natércia Freire, Orlando Vitorino e Breda Simões. António Quadros desenvolveu o seu trabalho nas Bibliotecas Itinerantes durante vinte anos, constituindo essa a sua principal atividade profissional. Percorreu o país de norte a sul, o que lhe permitiu um conhecimento circunstanciado do património cultural português, tendo constituído um acervo de imagens, fundamental para o conhecimento da História de Arte portuguesa.
A partir de 1971 assumiu a direção-geral do IADE, sendo docente das cadeiras de História da Arte e de Cultura Portuguesa, o que manteve ininterruptamente até 1992. Acumulou essa função com as de Diretor-adjunto das Bibliotecas Itinerantes, sob a direção de Branquinho da Fonseca, lecionando ainda na Universidade Católica Portuguesa Deontologia da Comunicação. Em 1972 com a demissão de Lima de Freitas como diretor do IADE deixou a direção-adjunta das Bibliotecas, ficando como Inspetor-Geral e vogal da Comissão de Leitura. Após o falecimento de Branquinho da Fonseca, em maio de 1974, António Quadros foi nomeado para exercer interinamente as funções de diretor de serviço das Bibliotecas Itinerantes, o que acontece até 1975, com a nomeação de Domingos Monteiro, regressando ao cargo de Inspetor-Geral. Depois da morte de Domingos Monteiro assumiu de novo o cargo de Diretor do Serviço das Bibliotecas Itinerantes (1980), mas no ano seguinte decidiu reformar-se antecipadamente na Fundação Gulbenkian, dedicando-se à sua obra, mantendo a atividade como diretor e docente do IADE e da Universidade Católica.
Nos domínios em que exerceu atividade, António Quadros demonstrou sempre uma grande coerência, considerando que «o grande problema moderno não é um problema económico, é um problema de valores e há uma riqueza de valores em suspensão em toda a cultura portuguesa». A verdade é que o pensador nunca desistiu da tarefa fundamental de «desentranhar esses valores», fazendo-os trazer para a luz do dia. O que deveria ser construído como império do futuro, não seria uma quimera, deveria ser algo a criar com o nosso pensamento e esforço. Com as Bibliotecas Itinerantes, a cultura ia até junto das pessoas nos lugares mais recônditos Tratava-se de um «mundo de valores que nos pertence a nós criar». Um país antigo apenas pode persistir com conhecimento, vontade e determinação. E, por isso mesmo, o pensador deixou-nos um apelo de esperança: «acreditem em Portugal, porque Portugal está no mais fundo de cada um de nós e sem Portugal sereis menos do que sois».
O Centro Nacional de Cultura assinala o centenário de Natália Correia, no dia do seu nascimento, 13 de setembro, nome maior da cultura portuguesa contemporânea.
Foi uma voz rebelde que construiu o seu percurso literário e cívico juntando o talento poético e a energia, orientados pelos valores da verdade e da justiça. A sua voz é singular e presente. Nunca se fechou numa torre de marfim. Trilhou sempre os caminhos da liberdade. A «Mátria» era, para si, a demonstração da força da mulher e do feminino, como marca de sensibilidade e de determinação. E sobre a missão da mulher era claríssima: «Acho que a missão da mulher é assombrar, espantar. Se a mulher não espanta... De resto, não é só a mulher, todos os seres humanos têm que deslumbrar os seus semelhantes para serem um acontecimento. Temos que ser um acontecimento uns para os outros. Então a pessoa tem que fazer o possível para deslumbrar o seu semelhante, para que a vida seja um motivo de deslumbramento. Se chama a isso sedução, cumpri aquilo que me era forçoso fazer. O meu primeiro contacto com as pessoas é de uma grande afabilidade. Quando as pessoas recusam essa afabilidade, então eu dou-lhes o que elas me pedem: irascibilidade. Volto-lhes as costas irascivelmente, mais nada. Se é isso mau génio, talvez seja» (Entrevista de 1983).
Conheci Natália, já não no período da sua aura mítica de sedução, mas no tempo da sua força, do seu entusiasmo, da fantástica capacidade de afrontar tudo e todos, em nome dos valores em que acreditava. Convidei-a muitas vezes para debates e reflexões e nunca se negava, desde que o combate valesse a pena. A cultura para a poeta e para a escritora significava, a um tempo, ter capacidade criadora, e poder comunicar a força íntima. Era uma açoriana de gema, que fazia das suas ilhas encantadas um sinal indómito de autonomia e força anímica. Acreditava, por isso, nas identidades abertas – e proclamava a açorianidade como uma marca indelével de espírito e de vontade. O culto do Espírito Santo sobre que a ouvi falar, em cumplicidade estreita com Agostinho da Silva ou Lima de Freitas, era um modo de afirmar a sua heterodoxia, salientando como essa forma de pensar era um modo de afirmar a vontade de ligar o primado das pessoas ao sonho de uma utopia onde não houvesse amos e súbditos, onde houvesse a partilha plena da riqueza e onde uma mulher pudesse ser coroada com a coroa do Espírito. Nesta linha, demarcava-se com clareza de qualquer fechamento provinciano ou de um qualquer protecionismo cultural. Dava-se muito mal com o egoísmo e com a hipocrisia. Tantas vezes usou a sua coragem para desafiar os poderes mais instalados e subservientes. No caso do amor de Snu Abecasis e Francisco Sá Carneiro, não dissimulou, desde o primeiro momento, a sua consideração positiva. O mesmo se diga de tantas outras atitudes poéticas, intelectuais, políticas e cívicas, mesmo contra as correntes dominantes. Nunca regateou esforços por uma boa causa em que acreditasse. E o seu tempo e a sua atitude foram precursores em muitos combates – entre os quais o direito inalienável à diferença.
Dizia os poemas de Antero de Quental com uma verve e uma intensidade, como ninguém mais fazia. Compreendia Vitorino Nemésio, nas suas diversas facetas, ponto de encontro de desassossego e de inconformismo, como ninguém mais. Dialogava com Agostinho da Silva, de igual para igual, com o mesmo idealismo, mas sem esquecer a racionalidade. Recordava com saudade os tempos em que pôde usufruir da maiêutica de António Sérgio, em inesquecíveis tardes de sábado, com um chá gordo de ideias e de pensamento crítico. Eram épicos os serões no “Botequim”, onde tudo se debatia e de tudo se falava. David Mourão-Ferreira disse que ela foi a irmã que nunca teve. José-Augusto França considerou-a a “mais bonita mulher de Lisboa”. Mário Cesariny também se deslumbrava que a sua beleza que superava as melhores obras de Miguel Ângelo. Para Fernando Dacosta: “As causas, as pessoas do coração e do sonho, e da fé, tinham-na do seu lado; as causas, as pessoas da manipulação, do utilitarismo, da serventia, conheciam-lhe a cólera, o chiste, a indignação”. A sua indignação era inexorável e não podia deixar alguém indiferente…
Um dia Natália, perante a acusação num tribunal plenário, propôs-se uma defesa intransigente e poética. O seu advogado pediu-lhe que não usasse o poema, uma vez que o mesmo lhe traria, por certo, dissabores, sendo, no mínimo, considerado ofensivo para o plenário. Hoje, lemo-lo como um verdadeiro manifesto pela liberdade. Sabemos que não foi dito, mas Natália tinha vontade e ânimo para o fazer. Ele representa, sobretudo nos dias de hoje, um alerta severo, contra as tentações que subalternizam a liberdade e que fazem regressar as formas mais subtis de condicionamento e de desenfreado populismo, que tendem a pôr a democracia entre parêntesis. A releitura do poema, publicado em “As Maçãs de Orestes” de 1970, fala por si e merece uma releitura permanente e atenta: «Senhores jurados sou um poeta / um multipétalo uivo um defeito / e ando com uma camisa de vento / ao contrário do esqueleto. / Sou um vestíbulo do impossível um lápis / de armazenado espanto e por fim / com a paciência dos versos / espero viver dentro de mim. / Sou em código o azul de todos / (curtido couro de cicatrizes) / uma avaria cantante / na maquineta dos felizes. / Senhores banqueiros sois a cidade / o vosso enfarte serei / não há cidade sem o parque / do sono que vos roubei. / Senhores professores que pusestes / a prémio minha rara edição / de raptar-me em crianças que salvo / do incêndio da vossa lição. / Senhores tiranos que do baralho / de em pó volverdes sois os reis / sou um poeta jogo-me aos dados / ganho as paisagens que não vereis. / Senhores heróis até aos dentes / puro exercício de ninguém / minha cobardia é esperar-vos / umas estrofes mais além. / Senhores três quatro cinco e sete / que medo vos pôs por ordem? /que pavor fechou o leque / da vossa diferença enquanto homem? / Senhores juízes que não molhais /a pena na tinta da natureza / não apedrejeis meu pássaro / sem que ele cante minha defesa. / Sou uma impudência a mesa posta / de um verso onde o possa escrever / ó subalimentados do sonho! /a poesia é para comer». Quando hoje voltamos ao poema, entendemos a dimensão singular de Natália Correia. E assim, podemos compreender não só a coragem de defender a liberdade criadora (que a levaria à condenação, com pena suspensa no caso da “Antologia de Poesia Erótica e Satírica”), mas também a determinação em não deixar por mãos alheias as causas cívicas em que genuinamente acreditava.
Que fantasma se segue? Um dos mais previsíveis. Um cultor de máscaras e da suprema arte de Thalia, que Talma celebrizou.. O sétimo fantasma respeita, assim, ao teatro. Das três graças da corte de Afrodite – Tália fazia nascer flores, Eufrosina dava sentido à alegria e Aglaia repesentava a claridade. Já François-Joseph Talma (1763-1826), seria o ator favorito de Napoleão, reconhecendo ao teatro uma essencial função na vida cívica, como arte por excelência da representação e da busca da verdade. O nosso Garrett seguiria esses mesmos passos, essenciais a um regime de liberdade. Mas em Portugal, é Mestre Gil (talvez autor da Custódia de Belém segundo Teófilo Braga, ou pessoa diferente segundo Camilo) o grande símbolo da representação da vida como movimento, liberdade crítica e ensinamento. Não tendo sido o primeiro no teatro português foi, no entanto, o mais célebre. De facto, Gil Vicente (c. 1465-1536), é uma das referências fundamentais da cultura e da língua portuguesas. Pouco se sabe dele, ou pelo menos muito menos do que gostaríamos, mas lê-lo e seguir a sua obra multifacetada e rica, é o modo que temos para poder compreender as nossas raízes. Lembremo-nos do “Auto da Índia” (1509), retrato das contradições das gentes na capital do Império e da presença dos “fumos da Índia”, mas também do “Auto da Lusitânia” (1532), que a audácia de Almada Negreiros representou como se os dois protagonistas – Todo o Mundo e Ninguém – fossem dois irmãos gémeos, como verdadeiramente o são. Quer no “Auto da Índia”, quer no “Auto da Lusitânia”, mestre Gil representou as figuras essenciais da epopeia da Índia como verdadeiros símbolos, o que levou Almada Negreiros a fazer uma interpretação livre na caracterização das personagens. Como acontece com a maior parte dos Autos, Comédias e Farsas de Gil Vicente, há um fundo ético, que não significa sisudez, mas que representa aguda consciência do picaresco. Este fundo lírico e religioso leva-nos às raízes trovadorescas, mais uma vez, designadamente aos temas das “Cantigas de Santa Maria” de Afonso X e ao “Cancioneiro Geral” de Garcia de Resende… E assim temos os Autos de Devoção (como da “Visitação”, no “Monólogo do Vaqueiro”, ou nos “ Auto da Alma”, de “Mofina Mendes” e na “Trilogia das Barcas”), as Comédias (como a “do Viúvo”), as Tragicomédias (como “D. Duardos”, e “Amadis de Gaula”), as Farsas (como “Quem tem Farelos?”, “Auto da Índia”, “Velho da Horta” ou “da Lusitânia”, com o célebre entremez “Todo o Mundo e Ninguém”), além das “Obras Miúdas” (como o “Pranto de Maria Parda”). E não esquecemos o que António Tabucchi disse sobre o nosso lado trocista e o culto de trocadilhos, dando como exemplo o Pranto de Maria Parda, onde ela diz “cada traque que eu dou é um suspiro de saudade”. Ruben A. e Nuno Bragança concordariam com a expressão bem portuguesinha. O “Auto da Lusitânia” foi representado quando a corte regressou a Lisboa, depois de ter passado a epidemia de peste na capital (1532). Retrata-se uma família judaica de Lisboa. Lediça, a filha do alfaiate Jacob, varre a “logea”. E entra um cortesão galanteador, fazendo-se a jovem desentendida. Sem sucesso, o atrevido sai, entrando o pai alfaiate, vindo de negócios na cidade. E um amigo diz que é preciso “inventar” um auto, pois a Lusitânia desperta em Portugal um amor especial. Assiste-se então ao frutuoso casamento de Portugal com a princesa Lusitânia. Dinato descreve a Berzebu o diálogo entre Todo o Mundo e Ninguém. E conclui com a célebre frase “Todo o Mundo é mentiroso e Ninguém diz a verdade”. A sobriedade e a sabedoria são qualidades que a Lusitânia e Portugal representam nas suas almas gémeas. Eis por que razão este sétimo fantasma diz, assim, muito sobre quem somos. Diferentes e insatisfeitos. Reconhecendo a imperfeição. Buscadores de mitos como chave da compreensão das nossas raízes.
Zé Fernandes e porventura Jacinto poderiam ter encontrado um dos fantasmas de Pessoa… Como saído da lâmpada de Aladino, esse espírito encontra-se na misteriosa arca… Pessoa é um escritor vulcânico, di-lo Richard Zenith: “quando as palavras começavam a fluir, usava todos os tipos de papel à disposição – folhas soltas, blocos de notas, papel de carta dos cafés que frequentava, páginas arrancadas de agendas ou calendários, as costas de tiras de banda desenhada e folhetos, sobrecapas, bilhetes de visita, sobrescritos e margens de manuscritos alinhavados alguns dias ou anos antes. E todos eram por ele depositados na grande arca de madeira: a herança que deixou ao mundo.
«Mais surpreendentes do que os escritos exumados da arca (foram) as dúzias de alter egos desconhecidos que, depois de se esconderem lá durante anos, entraram no mundo como se tivessem sido despertados de um sono encantado”. Do filósofo esotérico Raphael Baldaya ao ultra-racional Barão de Teive, passando pelo único heterónimo feminino, o da tuberculosa Maria José, apenas três dos autores criados por Pessoa, tiveram desenvolvimento pleno – Alberto Caeiro da Silva (1889-1915) autor de “O Guardador de Rebanhos” e de “O Pastor Amoroso”; Ricardo Sequeira Reis (1887), médico, professor de Latim no liceu, autor de odes clássicas ao modo de Horácio, emigrado no Brasil e Álvaro de Campos, engenheiro naval, formado na Escócia, nascido em Tavira (1890), o mais assertivo e prolífico dos heterónimos pessoanos… Mas o mais importante trabalho de Pessoa em prosa foi o “Livro do Desassossego”, que “ilustra o princípio da incerteza que percorre o seu universo literário”. São quinhentos fragmentos, que apenas viram a luz do dia em 1982, cujo narrador é Bernardo Soares, um semi-heterónimo, para quem “o único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios”. Zenith compara esse livro ao de Robert Musil “O Homem sem Qualidades”. Contudo, a ausência e a sobreabundância de qualidades representam as faces contraditórias do homem moderno. Foi preciso tempo, porém, para que os leitores de Pessoa pudessem compreender uma poética de identidade fragmentada. Eduardo Lourenço foi quem, de modo original, pôde compreender os elos íntimos dessa misteriosa diversidade em “Pessoa Revisitado”. Talvez tenha sido positivo o atraso na revelação dessa obra crucial, para que a crítica pudesse ultrapassar as primeiras impressões. Com recusa do completo e do definitivo, Pessoa interessa-se pelo oculto e a heteronimia pode ser explicada como um meio quase religioso, mágico ou alquímico que permite progredir, na viagem espiritual de Pessoa, que anseia sentir por tudo de todas as maneiras possíveis. E há uma citação misteriosa e isolada, entretanto encontrada, de um fragmento da carta de S. Paulo aos Coríntios, que parece ser reveladora: “Eu me fiz tudo para todos, a fim de salvar a todos”. A diversidade é uma indelével marca pessoana. Nos amores, tem com Ofélia Queiroz uma relação indecisa e a marca de uma sexualidade difusa. Na política, António Mora defende a causa alemã na guerra, enquanto Pessoa se inclina para os Aliados, com entusiasmo limitado. A verdade é que é a arca, mais do que os testemunhos pessoais, a grande reveladora da vida misteriosa do poeta. Tímido e delicado na conversa, tinha sentido de humor, vestia com esmero e era muito educado. Há unanimidade na apreciação. Quanto a confissões autobiográficas, encontramo-las em toda a parte. Na “Tabacaria”, Campos fala do hipotético amor com a filha da lavadeira e acena ao Esteves pela janela. Tudo pode acontecer. Como afirmou John Keats, “a vida de um homem digna de valor é uma alegoria contínua”. O que Pessoa imaginou, visionou e projetou foi único na sua vastidão e variedade. - «Sê plural como o universo!» - escreveu de forma imperativa num papel encontrado na arca, na década de 1960. Que fantasma se segue?
“Chiquinho” pôs-nos perante o dilema do ficar ou do partir – eis a grande dúvida, neste ponto do nosso folhetim… Se falamos de enigmas numa história de fantasmas, nada melhor do que seguir caminho até ao Olimpo, para nos encontrarmos perante um curioso debate entre espíritos supremos sobre esse dilema de seguir em frente ou de tornar atrás. Para chegar ao Olimpo é preciso passar por “perigos e guerras esforçados, mais do que permitia a força humana”. E damo-nos com um Concílio. Eu sei que podemos escrever Consílio, mas mantemos a fórmula comum, mesmo que esta se confunda com a reunião de um areópago religioso. Olimpo é mais do que isso, e mantem-se a letra c… “Já no largo Oceano navegavam, as inquietas ondas afastando” … “…Os Deuses no Olimpo luminoso / onde o governo está da humana gente / Se ajuntam em concílio glorioso”. E ouvimos a voz de Júpiter, a defender os portugueses, afirmando serem estes um povo de grande valor, como ficou demonstrado no tempo largo. É a coragem dos portugueses que os leva a navegarem em mares desconhecidos, em frágeis naus, enfrentando ventos e tempestades. Que diz o pai dos deuses? “Que sejam, determino, agasalhados / nesta costa africana como amigos, / E, tendo guarnecida a lassa frota / tornarão a seguir a sua longa rota” (C. I, 29). E eis que irrompe a voz de Baco, opondo a sua voz à decisão de Júpiter, argumentando que os portugueses se tornariam superiores a ele próprio no Oriente. Vemos aqui o confronto da primeira globalização. Baco teme a mudança. Júpiter compreende o desenho do novo mundo. Mas, depois de Baco, ouvimos Vénus, belamente representada na gravura de Desenne da edição de 1837 de “Os Lusíadas” do Morgado de Mateus. Vénus defende os portugueses porque se trata de gente que se assemelhou ao povo romano, em coragem e valentia. E assim com o contributo dos portugueses seria Roma, por certo, pela fama e pela língua, venerada também no Oriente. “Ou porque o amor antigo o obrigava / ou porque a gente forte o merecia”. E Marte também defende a estirpe dos descendentes de Luso ou Lisa, de Baco filhos ou companheiros, porque achava que eles bem o mereciam e, deste modo, Vénus estava na plena razão. Por isso, Marte ordena que se façam respeitar as ordens de Júpiter pois Baco não tinha razão, agindo por despeito, devendo os descendentes de Luso ou Lisa merecer recompensa. E Camões escreve no mármore puro: “E tu Padre de grande fortaleza, / Da determinação que tens tomada / Não tornes por detrás, pois é fraqueza / Desistir-se da cousa começada. / Mercúrio, pois, excede em ligeireza / Ao vento leve e à seta bem-talhada. / Lhe vá mostrar a terra, onde se informe / Da Índia e onde a gente se reforma”. Mas a história fantasmática prossegue, e Baco, inconformado, instiga o governador de Moçambique contra os portugueses e põe a bordo um falso piloto, mas graças a Vénus, às nereidas, a Mercúrio e à coragem de Gama, os portugueses chegam a Melinde. Inicia-se o relato ao rei Melinde da história de Portugal, “onde a terra se acaba e o mar começa” e das origens, de Viriato até à morte de Inês de Castro. É claramente o partir que prevalece e o longo e belo episódio da Ilha dos Amores corresponde à decisão de Vénus de premiar os navegadores por tal decisão, numa ilha paradisíaca. E oiçamos o soneto: “Busque Amor novas artes, novo engenho, / para matar-me, e novas esquivanças; / que não pode tirar-me as esperanças, / que mal me tirará o que eu não tenho…”. Luís de Camões representa a maturidade poética da língua portuguesa. É o supremo cultor do idioma. Toda a obra do grande épico e lírico constitui oportunidade para lidarmos com uma riquíssima convergência entre o amor e a beleza, os maravilhosos pagão e cristão, servidos pelo domínio exemplar da palavra e da imagem. E prosseguimos assim a caminhada entre espíritos, como se estivéssemos numa máquina do tempo…
O fantasma que encontramos hoje chama-se “Chiquinho”, nasceu em Cabo Verde em S. Nicolau, estudou em S. Vicente, regressou como professor a S. Nicolau, mas teve de partir para os Estados Unidos em busca de uma vida melhor… “A identidade cabo-verdiana não poderia ter sido decretada por nenhum poder: foi, como aconteceu com todos os povos, o resultado final de muitas interacções…”. Leia-se “A Construção da Identidade Nacional – Análise da Imprensa entre 1877 e 1975” (Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, Praia, 2006) de Manuel Brito-Semedo. É fundamental seguir a evolução do pensamento da elite intelectual cabo-verdiana no desenvolvimento dos níveis de instrução, através do qual é possível entender a riqueza e a singularidade da cultura cabo-verdiana. Os nativistas, na passagem do século XIX para o XX, da geração de Eugénio Tavares (1867-1930), sobretudo autodidatas, passaram o testemunho aos regionalistas, de trinta e quarenta do século XX, já formados no Liceu e alguns no ensino superior, que abriram caminho aos nacionalistas, formados nas Universidades da Metrópole. Houve, assim, uma continuidade que definiu o processo de maturação, que permite hoje entender a consolidação de uma rica identidade cultural. Saliente-se o papel desempenhado pelo magistério pedagógico de Baltasar Lopes da Silva (S. Nicolau, 1907-1989) e de António Aurélio Gonçalves (S. Vicente 1901-1984) que permitiu uma sólida transmissão da mensagem identitária. Enquanto no tempo de Eugénio Tavares prevaleceu o combate contra as leis discriminatórias que afetavam o nativo, reivindicando um estatuto semelhante ao que vigorava para os habitantes dos Açores e da Madeira, o período da influência de Baltazar Lopes pretendeu definir Cabo Verde como um caso de “regionalismo europeu”. Depois, a geração de Amílcar Cabral, com Gabriel Mariano, Manecas, Abílio Monteiro Duarte, José Leitão da Graça, José Araújo, Corsino Fortes e Onésimo Silveira enalteceu a componente cultural africana, como um caso de “regionalismo africano”. A dialética afirmação / negação marcou, assim, o século XX, o que permitiu enriquecer a “identidade complexa”, e abrir o caminho da independência e da abertura cultural. Uma síntese pressupõe sempre que se afirmem e, num dado momento, até se extremem, os diversos polos em presença, o que aliás permite o enriquecimento do resultado, como acontece na “caboverdianidade” contemporânea. E assim o homem crioulo nasceu em diálogo e em confronto – que envolveram o sobressalto nativista, que se centrou valores originais, e que evoluiu para a tomada de consciência regionalista e nacionalista, que conduziu à identidade nacional. As três gerações marcantes representaram, deste modo, uma continuidade. A reclamação do estatuto de igualdade, a reivindicação da diferenciação regional e a exigência de autonomia política aparecem, deste modo, imbuídos de uma coerência que foi concretizando a construção da identidade nacional. O romance “Chiquinho” de Baltazar Lopes (1947) constitui a ilustração de uma identidade crioula dual, entre os que ficam e os que partem – e a palavra “morabeza” traduz um afeto que baseia a hospitalidade e a solidariedade. E é marcante a revista “Claridade”, de Baltazar Lopes, Jorge Barbosa, Manuel Lopes e Aurélio Gonçalves, publicada em S. Vicente, entre 1936 e 1960, por entre muitas dificuldades e vicissitudes materiais e dispersão de colaborações. O programa, no dizer de Manuel Lopes (1907-2005), era “fincar os pés na terra cabo-verdiana” e teve uma influência muito significativa no sentido de uma autêntica impregnação cívica e da procura das raízes mais fundas da cultura cabo-verdiana – “em contacto com a terra os pés se transformaram em raízes e as raízes se embeberiam no húmus autêntico das nossas ilhas”. Aí temos a modernidade crioula, ligada ao próprio e ao genuíno e ao universal, na busca da emancipação… “Você Brasil, é parecido com a minha terra. / As secas do Ceará sãos nossas estiagens, / com a mesma intensidade de dramas e renúncias” (Jorge Barbosa). Na identidade crioula, a raiz etimológica da palavra tem a ver com um permanente ato de criação. Além da geração da “Claridade”, houve outras influências: a Academia Cultivar, ainda na senda do movimento claridoso (tendo como órgão de imprensa “Certeza – Folha da Academia”, 1944, S. Vicente), a “Nova Largada” (Praia, 1958, com o Suplemento Cultural do “Cabo Verde”, com Aguinaldo Brito Fonseca, Gabriel Mariano, Francisco Lopes da Silva…) e do “Seló” (Praia, Folha de Novíssimos, 1962). “Chiquinho” põe-nos perante o dilema do ficar ou do partir – eis a grande dúvida, neste ponto do nosso folhetim…
(Ilustração – “Paisagem com Caminho” de Lima de Freitas. Fund. Gulbenkian)
B. BERNARDIM RIBEIRO
«Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava». Bernardim Ribeiro é um dos grandes mistérios da nossa literatura. Pouco se sabe e muito se especula. Foi amigo de Francisco Sá de Miranda, mas “Menina e Moça ou a novela Saudades” (Ferrara, 1554) é um verdadeiro símbolo da nossa tradição lírica, bucólica e romanesca… Eduardo Lourenço considerou o grande enigma razão suficiente para não se aventurar no seu comentário. Para Pina Martins, a história de “Menina e Moça” é uma novela sentimental. «Há que lê-la e não subentende-la. Há que interpretá-la à luz das categorias do seu tempo e não do nosso…». O primeiro romance principia pelo monólogo de uma jovem que não conhecemos nem de nome nem de condição. A jovem queixa-se, como numa cantiga de amigo, de uma dolorosa separação e de mudanças que a atiraram para o desterro de um monte solitário, onde vive há dois anos. E conta o que ocorreu dias antes, estando numa solidão sem medida. Viu a manhã formosa por entre os prados do vale, sentou-se debaixo de um freixo, à beira-rio, e não faltou muito que numa ramada viesse poisar um rouxinol. Cantou um triste trinado e caiu morto na corrente larga da água, que o arrastou para longe. Aproximou-se então uma mulher idosa, com quem a jovem encetou um diálogo sobre as desventuras de cada uma. E esta contou-lhe a perdição daquele lugar, em que dois amigos acabaram mortos à traição, deixando as suas amadas sós, à sua espera. Há um amor cavalheiresco, que lembra a saga de Amadis de Gaula, com duas narrativas, de Lamentor e de Avalor. O cavaleiro Lamentor, chega de longes terras, acompanhado de Belisa, dele grávida, e de Aónia, duas irmãs. Belisa dá à luz Arima, mas morre na sequência do parto. Entretanto, em momento inesperado e trágico, Lamentor mata o Cavaleiro da Ponte e chega um desconhecido, Binmarder (anagrama do autor), que se apaixona por Aónia e pela sua extraordinária beleza. Há, assim, três núcleos deste misterioso enredo: Lamentor e Belisa, que constituem o início do relato, Binmarder e Aónia; e Avalor e Arima… Binmarder e Avalor marcam a narrativa com uma geração de permeio, de Aónia à sobrinha Arima, órfã de Belisa. Aónia e Arima encontram destinos semelhantes; amam e são amadas por homens comprometidos, com Aquelísia e a Senhora Deserdada. Binmarder e Avalor estão condenados a viver o sofrimento da separação. E temos um caleidoscópio de amores: Aquelísia ama Binmarder que ama Aónia, obrigada a casar com um vizinho e a Senhora Deserdada ama Avalor que ama Arima. Encontramos, assim, um mundo de amores e desencontros – num romance que termina com uma dama ultrajada nos seus desejos amorosos, que pede ajuda a Avalor… O amor e o sofrimento estão, assim, sempre presentes. E é a saudade ou soydade que faz Lamentor ficar para sempre ligado à memória de Belisa, como Avalor à esperança de encontrar Arima. A saudade, como lembrança e desejo, é sofrimento e esperança, feitos de separação e ânsia de regresso, numa dimensão religiosa e lírica que Pina Martins considera cristã, e que Helder Macedo vê à luz da tradição judaica. Bernardim é, pois, um símbolo da tradição antiga do amor saudoso dos trovadores provençais…