Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Graça Morais e Lídia Jorge têm pontos de encontro. Há um diálogo entre as obras de ambas, que nos permite entender como a cultura portuguesa contemporânea, para ser adequadamente compreendida, necessita de uma procura das raízes e dos seus desenvolvimentos.
UMA IDENTIDADE PRÓPRIA A obra de Graça Morais tem uma identidade própria, em que violência e ternura se encontram, na expressão de Fernando de Azevedo. Não podemos compreender a sua pintura sem entender o sentido do caminho trilhado e a ligação às raízes. Assim se compreende que “As Escolhidas” fossem “trabalhadoras de uma classe que viveu mal, todas elas falam de uma infância em que passaram fome e andaram descalças. Havia o domínio do masculino sobre o feminino”. Graça Morais é uma artista comprometida. O clima duro e adverso transmontano está vivo na sua pesquisa, através da representação das pessoas concretas que são protagonistas da sua obra. E a sua mãe, forte e corajosa, é quem lhe transmite a determinação e a agudeza do olhar. Como disse Jeanette Zwingenberger: “a paleta de Graça é a da terra e a da luz. Nos seus desenhos a sépia e a tinta-da-china, regista com um traço a força vital da natureza: a eclosão de uma romã, um ramo de oliveira, cerejas, o voo de um inseto ou a agitação febril de um cão. A série da perdiz, seu animal totémico, traduz o ciclo da maturação, do voo, e mais tarde da decomposição”. E o imaginário da infância está bem presente, correspondendo o bestiário a uma verdadeira metáfora da vida. Os gafanhotos evocam tanto as mulheres lutadoras como “anjos de asas translúcidas”, ainda na expressão de Zwingenberger. E são os mitos da natureza e da vida que encontramos nos temas que a artista escolhe. Como diria Octavio Paz e também Eduardo Lourenço: “vemos numa coisa outra coisa”. E a ideia de metamorfose torna-se essencial para entendermos a originalidade da obra. Segundo Fernando Pernes, “os frutos aludem caprichosamente à fecundidade dos ventres maternais”. E, na palavra de Nuno Júdice, há “uma descoberta de passados secretos, revelando que nada morre”. As raízes populares, que Graça Morais vai recordando, esclarecem-nos sobre essa continuidade. Os caretos representam a interrogação dos mitos e a força da relação múltipla no seio da natureza, entre vencedores e vencidos. Por isso, a pintora faz a natureza dialogar em si mesma trazendo à luz do dia a diversidade da vida. E nessa demanda encontramos as referências fundamentais que a influenciam: Miguel Ângelo, Goya, Van Gogh, Picasso e Bacon. Mas a poesia e o romance também a atraem – Torga, Sophia, Saramago, Nuno Júdice, Agustina, Maria Velho da Costa, Vasco Graça Moura, Manuel António Pina, além da omnipresença de Ovídio nas “Metamorfoses” ou de Dante na “Comédia”. E o teatro, de Shakespeare a Jean Genet está igualmente evidente. Há, deste modo, uma permanente procura da identidade da artista, através da interrogação sobre a existência e a busca do universo.
CONTRA O MEDO, A DETERMINAÇÃO O medo, a violência, a incerteza, as dúvidas misturam-se com a determinação e a luta. A série “A Caminho do Medo”, apresentada na exposição “Tudo o que eu Quero”, na Gulbenkian e depois em Tours, revelam-se proféticas. Tendo sido concebida em 2011, durante a crise económica, a austeridade e a emergência da chegada dos refugiados, anuncia já a pandemia e a guerra, numa sucessão de momentos dramáticos, representados por uma estranha máscara cirúrgica, apanágio do confinamento que viria depois. E os tempos que aqui se configuram (crise, drama dos refugiados, pandemia e guerra da Ucrânia) definem a incerteza e o medo, que continuam a pôr a humanidade de sobreaviso. A liberdade e a dignidade tornam-se, deste modo, fatores capazes de contrariar o puro ceticismo, seguindo os passos determinados das mulheres, e em especial de sua mãe, trazidas à ribalta na sua produção artística. Como Helena de Freitas lembra: num diário na aldeia, a artista “corporiza a perdiz, o animal que na cadeia da sobrevivência é o animal caçado, que na representação simbólica evoca o feminino na sua duplicidade de luxúria e morte”. “As minhas personagens (lembra a artista) são sempre vítimas, mas que resistem”. E temos assim um inequívoco sinal de esperança, que a dinâmica constante e interminável das metamorfoses nos dá. O mundo transforma-se e aperfeiçoa-se. Se há um paralelo digno de nota entre duas mulheres artistas na cultura portuguesa contemporânea, é o encontro entre Graça Morais e Lídia Jorge. Ambas representam, de modo diferente, uma ligação íntima e insofismável às raízes. E se Trás-os-Montes e o Algarve são distantes, o certo é que têm proximidades maiores do que pode parecer à primeira vista. Portugal é, afinal, o continente em miniatura, que está cheio de tensões e complementaridades que a pintura de Graça Morais e a literatura de Lídia Jorge revelam de um modo exemplar. Tradição e modernidade são chamadas a conciliar-se, num caminho emancipador. E as mães de ambas são símbolos que as aproximam, como intérpretes e mediadoras, cuja influência se projeta nas respetivas obras. Se nos ativermos, aliás, a Misericórdia (D. Quixote, 2022) podemos entender em que medida há uma especial ligação às raízes, à presença e à ausência, à continuidade e à interrogação a respeito do choque entre esperança e desespero. E Lídia Jorge sente uma angústia semelhante à de Graça Morais: “Há trinta anos, nós tínhamos um programa para sair da ruralidade da escola. Aconteceu que, entretanto, o mundo tecnológico veio contrariar esse projeto. E está provado que os países que têm menos tradição letrada e cultural incorporam acriticamente a informação, tendo uma noção de vanguarda – porque é muito fácil uma pessoa quase analfabeta manejar com muita facilidade todos os gadgets – e transitaram de uma cultura iletrada para uma cultura tecnológica, sem passagem pelo filtro civilizante. Foi o caso da sociedade portuguesa, que não tinha suficientes hábitos de leitura, de crítica, de liberdade ou de ousadia da expressão do pensamento para o evitar” (entrevista, revista “Ler”, Inverno de 2022). Lídia Jorge vê aqui o perigo de uma nova barbárie, que pode resultar da recusa da coragem de assumir as diferenças e os riscos, sem a tentação do complexo por não se ser o melhor e o mais avançado, esquecendo que importa cuidar do nosso jardim, sem pretendermos ser melhores ou piores, mas tão só nós mesmos, abertos à compreensão dos outros e dum caminho de verdadeiro diálogo de culturas, baseado no melhor conhecimento mútuo.
UM DIÁLOGO PORTUGUÊS O diálogo na sociedade portuguesa passa por esta tensão, representada nos dois polos sobre que Graça Morais e Lídia Jorge procuram refletir, o respeito das raízes e a recusa do fatalismo do atraso, num sentido de emancipação, capaz de entender os riscos do medo e da uniformização, da indiferença e do esquecimento. O compromisso deve ser com a humanidade e a dignidade do ser. As personagens que são vítimas resistem e o sinal de esperança baseia-se na ideia da metamorfose, num mundo que se transforma e aperfeiçoa. Eis o ponto em que Graça e Lídia se aproximam.
No centenário de José-Augusto França recordamos os passos fundamentais da sua vida como referência fundamental da cultura portuguesa.
HOMENAGEM DA UNESCO Quando a então Diretora-Geral da UNESCO, Irina Bokova, homenageou José-Augusto França, em 2012, na passagem dos seus noventa anos, sublinhou o que representou um reconhecimento internacional da maior justiça. Disse então: “Grande historiador, crítico de arte e escritor prolífico, os trabalhos de J.-A. F. alargaram consideravelmente o nosso olhar sobre os séculos XIX e XX, em particular sobre a criação artística em Portugal e na Europa. Especialista mundialmente reconhecido na arte portuguesa, autor de um livro fundamental sobre o Romantismo em Portugal, o Professor França teve um papel esclarecedor sobre as origens da nossa própria modernidade, explorando algumas das mais importantes fases da história da civilização europeia. A sua obra é testemunho de uma infinita curiosidade pela cultura sob todas as suas formas: arte, literatura, teatro, cinema, alargando as fronteiras de qualquer destas disciplinas. A sua paixão e o seu empenho ressoam no coração das atividades da UNESCO, mostrando de maneira brilhante a importância da cultura para a compreensão da sociedade em geral”. O percurso e a obra de José-Augusto França merecem uma análise circunstanciada, nos diversos campos em que desenvolveu atividade. Quando hoje relemos “Une Ville des Lumières: la Lisbonne de Pombal” compreendemos a importância do que ocorreu na sequência da catástrofe de 1755, na profunda renovação do urbanismo, nos alvores da chamada idade contemporânea. Como nos casos de S. Petersburgo e de Washington, D.C., na reconstrução global da cidade de Lisboa deparamo-nos com a antecipação de um tempo no qual emergiu uma nova conceção e organização das sociedades. Os três casos são, assim, considerados internacionalmente como modelares e o caso da capital portuguesa assume um especial significado por se tratar de uma sociedade destruída, que foi referida por Voltaire e Kant, e para a qual houve capacidade para começar de novo.
A RECONSTRUÇÃO DE LISBOA O processo de planeamento e reedificação de Lisboa foi estudado criteriosamente pelo historiador, que afirmou: “A sua criação tornou-se possível graças a uma legislação que soube ligar o facto urbanístico ao facto político, dentro duma visão global onde se verificam perspetivas sociais e económicas, tanto como culturais e ecológicas. Entender a cidade como um todo foi a razão de ser do fenómeno sócio-cultural pombalino, num processo de prática coletiva ligado ao passado tanto quanto ao futuro, à tradição tanto quanto à modernidade, necessários ambos para a definição de um discurso ideológico coerente. Dentro dele, o interesse público era devidamente sublinhado, novo valor que uma nova classe encarnava, com uma nova função. Tal função expressou-se na ‘Praça do Comércio’, na sua monumentalidade tanto como no seu nome, ambos adequados ao papel simbólico, senão mítico exercido no quadro duma sociedade reformada por via iluminista”. A compreensão da obra complexa de Pombal aliou-a José-Augusto França ao estudo do que se seguiu a esse segundo terramoto, que foi a edificação de uma nova cidade. Como ficaria demonstrado no extenso estudo sobre o Romantismo, o estudioso procurou olhar a realidade social, económica e cultural de Portugal em termos complexos e dinâmicos – procurando olhar a modernização a partir das raízes pré-existentes, articulando a tradição e as resistências conservadoras às forças e intenções modernizadoras, bem como aos seus resultados. E a Lisboa pombalina nasceu dos esforços conjugados de três gerações diferentes e de três perspetivas geracionais, representadas por Manuel da Maia, um velho general com mais de oitenta anos, que procurou “acordar” o antigo e o moderno; por Carlos Mardel, vindo de fora, para quem o barroco “ganhara desinências de elegância cosmopolita” mais moderna, e por Eugénio dos Santos, falecido jovem, esgotado de trabalho, para quem era necessária uma cultura nova adequada às circunstâncias. Maia representou a transição de dois séculos, Mardel, o fim do primeiro quartel de setecentos e Eugénio dos Santos, os meados racionais do século.
Se virmos bem, o percurso de vida de J.-A- França foi feito sempre com larga intervenção no campo da cultura, designadamente no período surrealista, na Galeria de Março e em “Unicórnio” e seguintes, representando na escrita e na historiografia a capacidade de ligar o pensamento e a ação. A análise pioneira do Romantismo, considerado com um longo período corresponde a essa ambivalência criativa. Afinal, o caminho português obrigaria a entender a História, desde os prolegómenos iluministas de Pombal, da relevância das guerras peninsulares até às origens do liberalismo, da Revolução de 1820 à vitória liberal de 1834, início do processo romântico português, a culminar em 1880, “no momento em que se caracteriza uma viragem da sociedade portuguesa, e onde sobretudo esta sociedade toma consciência dos seus próprios valores – e da sua própria falência”. E as datas charneira são 1835, 1850, 1865 e 1880. E é neste ponto que o historiador passa do reconhecimento da importância do naturalismo oitocentista, com os seus avanços e recuos, para o seu esgotamento e para a génese do modernismo do século XX. E não por acaso Rafael Bordalo Pinheiro surge como referência especial, na transição, ao caricaturar o romantismo que decai e se transforma. E são 1915 e “Orpheu” que emergem no novo século XX com intensa energia – na heteronímia de Fernando Pessoa, ao lado de Amadeo de Souza-Cardozo, “o Português à Força” e de Almada Negreiros, “o Português sem Mestre”.
UM AUTOR MULTIFACETADO A obra rica e multifacetada de escritor leva-nos ao romance, de que é um exemplo “A Bela Angevina” (2005), baseado numa estada de Eça de Queiroz no Hotel du Cheval Blanc, em Angers, onde poderia ter encontrado uma jovem, cuja fotografia conhecemos. Tê-la amado e sido amado por ela, cerca de 1880? J.-A. França cria esse encontro, com base em documentação conhecida e também imaginada, numa história atraente que passa por Paris, Bristol, Lisboa e sobretudo por Angers, onde Eça teria escrito o “Mandarim”, enquanto ia andando às voltas com “Os Maias”. A biografia do historiador de Arte é significativa – professor da Universidade Nova de Lisboa, presidente do Centro Nacional de Cultura (1974-76), do Instituto de Língua e Cultura Portuguesa (1976-79), diretor da revista Colóquio – Artes (1971-76), diretor do Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian de Paris (1983-89), membro do Comité do Património Mundial (UNESCO) (2001-2005), presidente do Conselho Literário do Grémio Literário, sócio emérito das Academias das Ciências e Nacional de Belas-Artes (a que presidiu em 1976-79), presidente de honra da AICA – Association Internationale des Critiques d’Art. Em qualquer destas funções teve sempre um papel fundamental. Ao recordarmos as ações que desenvolveu é impressionante o que nos legou como chave essencial dos tempos que atravessou e soube sempre interpretar de modo inexcedível. Não é possível conhecer a história da Arte portuguesa dos dois últimos séculos sem estudar o que o mestre nos deixou, com o rigor e a sabedoria que são dignos da melhor memória, num permanente diálogo entre o autor e o crítico, como na luta entre Jacob e o anjo, capa do seu derradeiro livro.
Cantigas de Amigo e cantigas de Amor representam a dimensão lírica da influência trovadoresca. Assim nasceu a língua portuguesa, filha do galaico português, como idioma de poetas. Mas para compreender as raízes da nossa cultura, temos de entender também o escárnio e maldizer. Longe de qualquer tentação de sobrevalorizar o picaresco, a verdade é que a ironia e o humor fazem parte das características próprias do português.
Reparem bem, se há um novo episódio da vida nacional, eis que surge uma anedota, se há uma nova personagem que sobressai, então aparece uma alcunha, uma piada. Não nos damos bem com a sisudez, mesmo que aparentemos conformarmos com ela. E há mesmo casos em que o escárnio ocupa um espaço indevidamente excessivo – como acontece com Bocage, um dos nossos grandes poetas, símbolo rico da literatura pré-romântica e que para o vulgo se confunde com um conjunto de falsos episódios que alimentam a ignorância cultural.
Por outro lado, o nosso Mestre Gil não aparece plenamente, como deveria, na sua dimensão plural e riquíssima da simbologia do maldizer, com sentido pedagógico e extremamente rico. Neste folhetim, poisamos no Nobiliário de D. Pedro – e damos neste capítulo um bom exemplo em que se reúne a gastronomia e o anedotário. O autor é Joham de Gaia, falecido em 1330, “boo trobador e mui saboroso” no dizer do Conde D. Pedro.
Eis o verso:
Eu convidei um prelado a jantar, se bem me venha.
Diz ele em est’: E meus narizes de color de berengenha?
Vós avedes os alhos verdes e matar-m’íades com eles.
O jantar está guisado e, por Deus, amigo, trei-nos.
Diz el em est’: E meus narizes de color de figos çofeinos?
Vós avedes os alhos verdes e matar-m-íades com eles.
Comede migu’ e diram-nos cantares de Martim Moxa.
Diz el em est’: E meus narizes de color d’escarlata roxa?
Vós avedes os alhos verdes e matar-m’-íades com eles.
Comede migu’ e dar-vos-ei ua gorda garça parda.
Diz el em est’: E meus narizes de color de rosa bastarda?
Vós avedes os alhos verdes e matar-m’-íades com eles.
Comede migu’ e dar-vos-ei temporão figo maduro.
Diz el em est’: E meus narizes de color de moréc escuro?
Vós avedes os alhos verdes e matar-m’-íades com eles.
Treide migu e comeredes muitas boas assaduras.
Diz el em est’: E meus narizes de color de moras maduras?
Vós avedes os alhos verdes e matar-m’-íades com eles.
O tema desta cantiga é a trajetória de um cavaleiro que circula de serviço em serviço de um senhor com certa presteza e grande oportunismo, graças às divergências entre facções que disputam o poder. A cantiga era seguida de uma bailada dedicada a um Bispo de Viseu, originário de Aragão, que tinha o rosto arroxeado. Cuida-se que os alhos verdes suscitavam a vontade de beber. E anote-se que berengenha era beringela; trei-nos significa vamos e treide, vinde; çofeimos é arroxeados; mórec é o moluco donde se extrai a púrpura; cárdeo é violáceo e apoiam-lho, quer dizer, acusam-no…
Perante um texto do século XIV, encontramos uma proximidade notável em termos vocabulares com a língua portuguesa moderna. Tal deve-se ao facto de em pleno século XIII a língua vulgar ter sido adotada como língua oficial e comum. Lembrando-nos de Rosalia de Castro, facilmente percebemos que é a castelhanização do espanhol do século XX que afastou o galego do português. Mas quando nos reportamos à relação cultural na raia de Entre Douro e Minho ou quando percebemos que o mirandês á a melhor recordação do asturo-leonês, compreendemos que o galego moderno apenas tem a ganhar em contacto com o português como língua de várias línguas com projeção global.
A Ideia de Decadência na Geração de 70, de António Manuel Machado Pires (Ponta Delgada, 1980) constitui uma obra fundamental para a compreensão da cultura portuguesa, numa perspetiva panorâmica.
FRADIQUE MENDES E ANTERO DE QUENTAL
A última vez que estivemos juntos, foi em S. Miguel, nos Açores. António Machado Pires ainda teve ânimo para nos lembrar as diabruras do nosso amigo Fradique Mendes. Companheiro de muitas peregrinações, ora intelectuais, ora sociais e políticas, ora profissionais, cheguei mesmo a desafiá-lo para uma difícil missão educativa, era um amigo dileto. Fradique foi nosso companheiro de reflexões e lembranças. Sobre ele falámos nesse último encontro: “Fradique Mendes viaja por todo o mundo civilizado (entenda-se Europa) e vai mesmo até ao oriente, onde constata que este está já tão decadente como o Ocidente… Aliás, a ideia de decadência havia de perseguir esta geração, que nos anos oitenta já estava a dar lugar a outra, fim de século. Num verdadeiro discurso de tentação, o diabo fala a Teodoro (n’ “O Mandarim”, de Eça de Queiroz) em carruagens de luxo com molas fofas como nuvens e Carlos da Maia também usufrui do conforto da mobilidade parisiense. De Paris vem a imagem do 202 de Jacinto, a quem Eça empresta traços que o fazem pertencer à geração de 70, contemporâneo de Antero” (Antero Hoje, 2017). Na lembrança do amigo que nos deixou, recordo ainda Almada Negreiros a afirmar, de modo insidiosamente chocante: «Ainda nenhum português realizou o verdadeiro valor da língua portuguesa (…) porque Portugal, a dormir desde Camões, ainda não sabe o verdadeiro significado das palavras». E António Machado Pires, com Vitorino Nemésio, compreendeu-o muito bem, afirmando as duas linhas de pensamento dominantes na reflexão sobre a cultura portuguesa, uma idealista e outra racionalista, representadas por Teixeira de Pascoaes e António Sérgio, devendo ambas ser consideradas “para o balanço de ser português na vida, na cultura e no mundo”. Dando maior importância ora a uma ora a outra, o certo é que os dois polos têm de estar presentes na compreensão e na construção do “ser de Portugal” (para usar uma expressão de Pedro Lain Entralgo). A vontade, o sentimento de pertença, “a estruturação da Cultura e a organização do Estado”, caminhando a par, na análise de António José Saraiva, a construção de um imaginário, a experiência “madre de todas as cousas” (de Duarte Pacheco Pereira e de Camões), os conflitos entre a sociedade antiga e a sociedade moderna (bem evidentes no Portugal Contemporâneo), a compreensão de um culto de sentimentos contraditórios, os mitos da origem, de resistência ou de predestinação, tudo nos permite tentar perceber quem somos e o que nos motiva e desafia. Daí termos de comparar, de ver de dentro e de fora, de cruzar saberes e campos de pesquisa.
UMA VISÃO PANORÂMICA
Ao contrário de considerações superficiais, designadamente sobre a Geração de 70, sem esquecer as raízes vindas de Garrett e Herculano, verdadeiros fundadores da nossa modernidade, António Machado Pires ocupou-se, com grande rigor, na demonstração do carácter complexo da cultura portuguesa como “melting pot” de múltiplas influências e de uma capacidade especial de assumir uma atitude crítica positiva, orientada num sentido emancipador, centrada não só nas preocupações ligadas à justiça e à coesão social, mas também na criação de condições concretas para pôr o coração do país a bater ao ritmo da civilização. Por isso, Machado Pires, ao analisar o final do século XIX português como período de paradoxal decadência considera essa ideia «como “complexo de inferioridade” de povo que olha outros povos com consciência da sua inferioridade e com nostalgia da grandeza passada, mas, apesar de tudo, ainda com um sentimento de missão, que, mesmo em períodos de crise, parece poder manter-se. Não julgamos ter sido outro o mérito maior da geração de 70: inebriada de leituras novas, ter-se ocupado muito da decadência e da Revolução, acabando “vencida” ou conformada, mas como diz Eça de Fradique, nobilitando a nação e a cultura nacional pelo próprio ato de refletir e pensar. Isto é, provando que uma nação existe porque pensa». E assim se confirma que essa complexa geração de 1870 não tenha sido verdadeiramente vencida, até porque «Vencidos da Vida» é uma expressão irónica, como bem sabemos, saída de um diálogo irónico entre Ramalho e Oliveira Martins. “Battus” é o que verdadeiramente somos, diziam os dois companheiros, no sentido de zurzidos pelos acontecimentos, mas não como desistentes ou conformistas. Foi essa, aliás, a mesma ideia defendida por Eduardo Lourenço, em nome de uma imperfeição que originava uma exigência de atenção aos movimentos globais e de capacidade crítica capazes de entender o “país relativo” de Alexandre O’Neill como “meu remorso de todos nós”. E a circunstância de ter havido a atitude depressiva do pessimismo, a verdade é que nos libertamos dessa tentação, ficando-nos na real convergência entre o picaresco do maldizer e o amor-próprio que nos leva ao orgulho essencial quando falamos da grei. Daí a ideia cultivada por Machado Pires, na linha dos mestres das Conferências do Casino Lisbonense da crença numa capacidade regeneradora, já que a nação existe porque pensa.
AUTONOMIA AÇORIANA
Defensor da autonomia açoriana, o estudioso da cultura portuguesa compreendeu como poucos a pluralidade de fatores que permitem considerar uma identidade aberta. O Atlântico constitui uma convergência de influências, um verdadeiro laboratório cultural, que invoca a mítica Atlântida e articula a Macaronésia. Estamos na base do paradigma de um idioma que se projeta em várias culturas e diversas línguas. O Roteiro Cultural dos Açores que, Machado Pires coordenou, constitui um trabalho muito sério e aprofundado que não pode confundir-se com uma obra de divulgação, como alguns pretenderam. Trata-se de um repositório fundamental que terá de se constituir em ponto de partida para uma ação necessária de apresentação de um percurso esclarecedor para o visitante, que permita descobrir a magia de uma natureza inesgotável e de uma história complexa, a ligar naturalmente património material e imaterial, flora e fauna, paisagem única, além de lugar de criação artística e literária, social e cultural. Quem quisesse um simples roteiro turístico e se contentasse com superficialidades, precisaria de outro instrumento. No caso do mestre humanista, encontram-se as grandes referências culturais dos Açores, muito para além de postais à la minuta. E assim poderemos encontrar Gaspar Frutuoso, Antero de Quental, Vitorino Nemésio, Manuel de Arriaga ou Natália Correia e a esplendorosa identidade açoriana – onde tudo floresce entre o diálogo universalista, o sentido de pertença e a criatividade humana. Não por acaso, a iniciar A Ideia de Decadência na Geração de 70, Garrett é citado nas inesquecíveis Viagens: “Vi o Tejo, vi a bandeira portuguesa flutuando com a brisa da manhã, a Torre de Belém ao longe… E sonhei, sonhei que era português, que Portugal era outra vez Portugal».
“A Mocidade de Herculano” é a dissertação de doutoramento de Vitorino Nemésio (1934). Mas é muito mais do que isso: é o romance de uma figura cultural única e marcante – e aí encontramos não só a paixão poética, mas também a mestria romanesca, que prenuncia o genial “Mau Tempo no Canal”.
Na década emblemática de 1930, devemos chamar à colação Vitorino Nemésio de um modo talvez inesperado, mas depressa compreensível. Refiro-me à dissertação de doutoramento “A Mocidade de Herculano até à volta do Exílio”, defendida em 1934, que constitui muito mais do que um documento académico, já que é uma obra-prima da ensaística portuguesa. E se falo desta referência é porque não é despicienda a escolha do tema e o seu tratamento. Pode dizer-se que é o romancista e o poeta que aqui se anunciam, o que nem sempre foi bem entendido no claustro académico. Bem assinala David Mourão-Ferreira “o rigor da minudência erudita e a certeira intuição de quem sabe sondar, a um século de distância, toda a complexidade de um grande destino que se vai construindo”. Herculano surge como uma grande personagem, como um defensor da liberdade, num caminho de dúvidas e incertezas, mas um verdadeiro símbolo de um pensamento que estava em perigo quando o investigador o escolheu. Sente-se no jovem Nemésio uma especial identificação, subtil é certo, mas evidente – sobretudo por contraponto a um tempo em que o panorama político se apresentava como adverso relativamente à defesa e preservação dos valores queridos pelo historiador. Quando lemos “A Mocidade de Herculano” sentimos que o rigor historiográfico permite a construção de um quadro narrativo de uma grande riqueza, em que a singularidade se junta à necessidade de compreensão do contexto social e político – que será de grande utilidade para a riqueza da obra romanesca do autor. “Tenho pensado e vivido tanto com Herculano, que agora sou assim uma espécie de seu neto póstumo. Neto, não!, que o meu avô mais velho nasceu em 1841 (…) e Herculano é de 1810. E, mesmo para o meu bisavô, talvez fosse velho de mais. Como seria meu bisavô? Sei ou julgo saber como foi Herculano: não sei de meu bisavô senão por vagas memórias”. E o escritor lembra, ao menos, que em 1832, quando Herculano desembarcou na Terceira, o historiador e seu bisavô respiraram o mesmo ar, qualquer que fosse a distância a que tivessem estado. Estamos perante um verdadeiro romance, mas é o “abalo do poeta” que está na raiz do biógrafo. Perante a massa enorme de elementos sobre a emigração portuguesa existente no Museu Britânico, Nemésio restringe-se ao exílio de Herculano, “não sem investigar manu diurna et nocturna (como diziam nossos mestres), em três anos de full time, todo o âmbito da operosidade e da espiritualidade do escolhido. Interessava-me o homem inteiro (…) sempre e em tudo indistintamente filósofo, poeta – homo sum, nihil humanum a me alienum…”. A leitura dos dois volumes é apaixonante, porque neles deparamos com o feliz encontro de uma irrepreensível análise histórica e literária, que enriquece um percurso acidentado de carácter pessoal, com uma magnífica ilustração do contexto cultural europeu e nacional. Sentimos a presença desde a comum mediania à emergência de uma perceção elevada das mais relevantes personagens do tempo. “Emigrei da idade de vinte anos em consequência da infeliz tentativa da revolução do 4º Regimento de Infantaria, tentativa conduzida com tanto valor pelos meus honrados amigos o capitão Albino Francisco de Figueiredo e tenente-coronel Bravo…”. E assim Herculano foi cúmplice de um “agente incógnito” e teve de fugir para a fragata “Melpotmène” e depois para bordo de um paquete inglês que o levou ao litoral da Mancha. E por muito que Inocêncio (o dicionarista) se afadigasse em referir as origens miguelistas de Herculano, a verdade é que encontramos o percurso natural de um português num tempo de contradições, cuja coerência determinada é feita de um percurso sempre sério e refletido…
AINDA O SIGNO DA LIBERDADE
Se a liberdade é o pano de fundo na prova académica de Nemésio no tempo em que o horizonte se enchia de nuvens totalitárias, na década seguinte Mau Tempo no Canal é a obra-prima, escrita nos anos de início da Guerra, a partir de 1939, na qual encontramos também o elogio da liberdade, na personalidade de Margarida Clark Dulmo, num tom original a superação dos limites do psicologismo “presencista”, bem como da lógica social neorrealista. É algo de próprio e de original, que podemos aproximar do rigor da “Mocidade de Herculano” de uma extraordinária dimensão poética. Trata-se de uma narrativa que concilia o genuino sabor local e uma reflexão universalista, relaciona a singularidade e o destino, o mistério e o presságio, o sonho e a tragédia. David Mourão-Ferreira classificará, com justiça, a obra romanesca como «a mais complexa, mais variada, mais densa e mais subtil em toda a nossa história literária». Margarida e João Garcia protagonizam, de início, um namoro contrariado pelas relações tensas entre as famílias de ambos, no contexto da sociedade açoriana plena de ressentimentos, medos, angústias, contradições, uma família de raízes aristocráticas, mas em situação difícil, e a ambição de um novo-riquismo desejoso de legitimação. E a grande metáfora é a da melancolia das ilhas e do mar oceano, da distância, mas também da liberdade e da esperança, da incerteza e da dúvida sentidas, em especial, entre o Faial e o Pico, entre o anfiteatro da cidade da Horta e o majestoso Pico, referência mítica do tempo que permanece inexorável, belo e ameaçador. Fica lembrada a carta de Antero a Oliveira Martins: “Aqui nos Açores, há um provérbio que reza: ‘S. Miguel, burgueses ricos; Terceira, fidalgos pobres; Faial, contrabandistas espertos’. Com efeito, a Terceira é uma terra essencialmente portuguesa e peninsular: fidalguia, pobreza, toiros, insouciance sóbria e filosófica, entusiasmo, bizarria e parlapatice: numa palavra os defeitos e as qualidades correspondentes do idealismo peninsular, que V. tão bem conhece e não menos bem descreveu já”… Margarida é a figura marcante do romance, forte e sensível, inteligente e arguta, livre e determinada, uma personalidade que não nos pode deixar indiferentes, porque compreende como ninguém a terrível teia em que está envolvida, entre sonhos e augúrios. Como é insondável o destino. Mas, no final, sente-se cega…"cega como a serpente do anel que nenhum ventre de peixe levaria a mesa humana e que àquela hora jazia, como a cucumária dos abismos, no mais secreto do mar"… E entre a força destas duas obras maiores da cultura portuguesa, lembramos o que Nemésio considera ser a sua existência. “Toda a vida estudei de tudo e o mais que podia para o que desse e viesse. Não me preparava dia a dia para amanhã e depois ou racionando, como a formiga, do verão propício ao Inverno rigoroso. Mas talvez não fosse apenas leviano, como a cigarra, pois tive de dançar no Inverno e cantei sempre”.
“Contos Populares Portugueses” de Adolfo Coelho (Paulo Plantier, 1879) constitui uma tentativa séria de preencher uma lacuna na cultura portuguesa e que tem a ver com a ausência de uma recolha sistemática, ao longo dos séculos, de exemplos coevos da cultura popular no imaginário literário.
CONTOS DA CULTURA POPULAR
Como diz Adolfo Coelho (1847-1919) no prefácio da obra: «Os contos que publicamos não têm todos igual valor, mas oferecem todos mais ou menos interesse sob o ponto de vista tradicional. Em regra, pode considerar-se a tradição dos contos entre nós como assaz obliterada; falta-lhes vida, poesia, muitas vezes referência; muitas feições significativas em versões doutros países tornaram-se aqui ininteligíveis e só pela comparação se explicam. A sua forma em geral é seca, monótona, enumerativa. Alguns, porém, apresentam-se ainda numa forma excelente, menos deturpados por elementos modernos; noutros, como em todos os países sucede, há o resultado de estranhas combinações de elementos de contos diversos». Insiste o pedagogo que os contos populares «não são ridículas invenções, boas só para divertir gente rude, que não tem cousa melhor para pasto do seu espírito e da sua ociosidade» - e continua: «muita gente, séria e grave na própria opinião, pasmará de que haja quem gaste o seu tempo com tais coisas; mas algumas pessoas haverá também que queiram aprender e para essas escrevemos as observações que seguem, desnecessário aos que estão ao corrente da ciência». Mas reconhece que «a novelística culta de fundo tradicional é um dos ramos mais pobres da nossa literatura; por essa razão a história dos contos populares entre nós não se pode estudar com a clareza que haveria se tivéssemos numerosos documentos do género do que trasladamos. O Orto do Esposo e os Contos de proveito e exemplo de Gonçalo Fernandes Trancoso assumem, por isso, uma importância excecional». A mais antiga edição desses contos é de 1575, segundo Teófilo Braga, mostrando que foram escritos por ocasião da peste de 1569. E Trancoso terá usado a tradição popular como fonte». Entre os contos populares reunidos por Adolfo Coelho, podemos referir: A história da Carochinha; A Formiga e a Neve; O Rabo do Gato; A Torre da Babilónia; Mais vale quem Deus ajuda do que quem muito madruga; História do Grão-de-Milho; O Príncipe Sapo; O homem que busca estremecer, O Príncipe com Orelhas de Burro; Os Três Estudantes e o Soldado; a Moura Encantada…
CIDADÃO E PEDAGOGO
Francisco Adolfo Coelho foi pedagogo, filólogo, etnólogo, linguista e escritor. Exerceu funções de professor do Curso Superior de Letras, onde ensinou Filologia Românica Comparada e Filologia Portuguesa, foi diretor da Escola Primária Superior e lecionou na Escola do Magistério Primário de Lisboa, onde organizou o Museu Pedagógico. Nas Conferências do Casino, em 1871, tratou do tema “A Questão do Ensino”, onde defendeu a separação da Igreja do Estado e a promoção da liberdade de pensamento, como essenciais para o progresso do País pela Instrução Pública. O novo Portugal nasceria, para Adolfo Coelho, da incorporação da cultura popular num projeto da nação no qual a Educação fosse central. As tradições do povo, o seu saber e a pedagogia popular seriam considerados para alicerçar a modernização da sociedade portuguesa e o espírito da sociedade nova centrados na sua cultura. Figura considerada e prestigiada teve nas duas primeiras décadas do século XX um papel importante, designadamente na institucionalização da República, em especial no tocante à organização do ensino secundário superior. Assim, acentuou a necessidade de só se apresentar aos educandos aquilo que estivessem preparados para entender e de lhes dar liberdade de escolha entre algumas disciplinas de opção nas classes superiores do ensino secundário.
UM CONTO ATUAL
Como exemplo de pedagogia pela recordação da cultura popular, lembramo-nos do célebre conto tradicional das culturas europeias, que muitos de nós ouvimos contado pelas nossas avós. “O Homem que busca estremecer”, incluído nos “Contos Populares Portugueses”, que constitui uma versão nossa do velho conto dos irmãos Grimm do jovem que partiu em busca do medo. “Era um homem rico e tinha um filho que nunca estremeceu com nada. Dava-lhe o signo dele de ir passar muitas terras e nunca seria timorato, nunca teria medo a cousa nenhuma”. Pediu então o filho a seu pai que lhe desse o seu quinhão para poder partir em busca do medo que lhe faltava. E assim aconteceu, enfrentando mil situações aterradoras. Com demónios estoirando dentro de casas, sempre sem o mínimo calafrio. A tradição germânica relatada pelos Grimm é semelhante. “Um pai tinha dois filhos, o mais velho deles era sábio e sensato, e sabia fazer tudo, mas o mais novo era tolo, e não conseguia aprender nem entender o que quer que fosse”. Mas enquanto o mais velho se negava a ir para locais sombrios e assustadores, nada atemorizava o mais novo. Por mais que tentassem, nada havia que lhe metesse medo – até que um pobre sacristão ficou em muito mau estado quando quis assustá-lo como se fora um fantasma, pois o jovem não se deixou perturbar pela suposta ameaça. Então partiu pelo mundo em demanda do medo. Com cinquenta moedas no alforge, enfrentou perigos, até com risco de vida, mas sempre sem o menor temor. José Gomes Ferreira também tratou do tema nas “Aventuras de João sem Medo” (inicialmente publicadas nas páginas da revista “O Senhor Doutor”, em 1933). Aí, cansado de viver numa terra de choros e queixas, a aldeia de Chora-Que-Logo-Bebes, João decidiu saltar o muro que separava o lugarejo do mundo, em busca de enigmas da infância e de entes fantásticos – bichas de sete cabeças, gigantes de cinco-braços, fadas, bruxas, animais que falavam e ainda o mítico Príncipe de Orelhas de Burro… No conto de Adolfo Coelho o medo seria encontrado num cabaz de pombas que «lhe esvoaram para a cara», causando-lhe estremecimento; no relato de Grimm, o jovem tornar-se-ia rei e tudo terminou num epílogo algo ingénuo e pouco épico, com um balde de água fria, lançado por uma aia da rainha, cheio de gobiões, peixinhos moles e peganhentos, com barbatanas perturbadoras. As metáforas merecem ser lembradas. Os tempos muito incertos e cheios de ameaças que vivemos não permitem que facilitemos as coisas. Ainda estamos longe de nos libertarmos destas condições trágicas. Precisamos de encontrar todos os meios possíveis para inverter a tendência e para podermos salvar vidas. A liberdade individual e a proximidade uns dos outros terão de ser recuperadas com solidariedade e esperança. Sendo atuais, urge compreender o medo e a verdadeira audácia, para não nos desprevenirmos nesta pandemia que nos enlouquece…
“Um Homem na Cidade”(1977) resultou de um desafio de José Carlos Ary dos Santos a Carlos do Carmo, ao encontro de compositores como José Luís Tinoco, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho e António Vitorino d’Almeida.
AMAR A LIBERDADE “Eu sou o homem da cidade / que manhã cedo acorda e canta, / e, por amar a liberdade, / com a cidade se levanta”. Tratava-se de assumir um modo renovado de ligar as raízes culturais da música portuguesa e as novas tendências cosmopolitas das artes, num tom popular, mas exigente. Era a cultura portuguesa que se projetava para além dos limites da inércia ou da continuidade. Afinal, ele era o filho de Lucília do Carmo, nome grande do Fado, e sucedera a seu pai, Alfredo de Almeida, desaparecido precocemente, ao timão de um dos lugares sagrados de Lisboa, “O Faia”. Sabia bem que só poderia singrar no meio artístico se representasse uma diferença substancial. Conseguiu-o até porque conhecia como ninguém as virtudes da cultura tradicional e a necessidade desta ganhar asas, para poder alcançar direitos de modernidade. Naturalmente, houve quem não entendesse, quem julgasse que havia uma espécie de desrespeito pela tradição. Mas o tempo venceu tudo. Thilo Krassmann ajudava na musica, Ary dos Santos entusiasmava-se na lógica da intervenção, contudo Carlos do Carmo compreendia bem que não poderia fazer um disco datado, mesmo que popular. Percebia o impulso, mas sabia que o julgamento do tempo iria ser inexorável – e isso seria muito mais importante dos que as incompreensões do curto prazo. E Ary dizia: “o senhor está muito exigente e até um bocadinho reacionário”. Ambos teriam as suas razões, mas no domínio artístico Carlos do Carmo tinha a razão essencial. E se dúvidas houvesse, bastaria ver como o tempo não deixou que o talento ficasse afetado pela moda passageira. E ambos ganharam, o poeta e o intérprete. O génio é, afinal, o que pode perdurar. E entende-se bem como o jovem que partiu para a Suíça em busca de uma aprendizagem de horizontes largos, pôde encontrar a qualidade dos melhores artistas do seu tempo.
CULTO E COSMOPOLITA Era um português culto que gostava de ouvir Sinatra e Tony Bennet e que aprendeu com eles a conversar com o público e a estar em cima de um palco, a renovar a linguagem da representação. Como ensinaram os maiores clássicos, havia que saber aliar a arte, a palavra e a expressão dramática, com verdade e inovação. Sem a tentação de repetir ou de imitar, usando a língua como modo de nos entendermos melhor. “Cantar é um ato de prazer, mas sobretudo no palco, que é um constante jogo de sedução, uma troca indescritível de sentimentos e emoções”. Ouvindo coisas muito boas, aprendendo com os melhores, Carlos do Carmo sabia que fazendo mais do mesmo não ajudaria ninguém – “ouvi coisas tão boas, tão boas, que sou muito exigente em relação ao que aparece”… Luiz Gonzaga, Dorival Caymmi, Sinatra, Brel, Elis Regina e a sombra eterna da Mãe guiaram os passos do artista. Era daqueles para quem apenas havia boa e má música. “O fado tradicional merece-me um profundo respeito. (…) Em cada dez composições do Alfredo Marceneiro nove são muito, muito boas…” (Notícias Magazine, 3.11.2019). Mas não era o fado triste que lhe interessava. Conhecia bem as primeiras origens da arte. Por isso, quando Carlos Saura se propôs fazer o extraordinário filme “Fados”, houve que reinventar a dimensão do fado dançado, como manifestação artística e não como reconstituição historiográfica.
No fundo o Fado como realidade viva tem de se renovar permanentemente. Só assim pode ser fiel aos melhores de cada tempo: Armandinho, Marceneiro, Maria Teresa de Noronha ou Carlos Ramos… A genial Amália tornou-se parte de outra galáxia. “As bases musicais do fado são fado menor, que é o fado triste, o fado mouraria ou fado maior ou fado corrido, fado que é dançável. Temos três frentes. Porquê cantar sempre o fado menor?”. Mas eis que sempre ensinou a recusar a facilidade – “o fado precisa de ser apreendido, respirado, de maneira a provocar reflexão. E que seja para quem o ouve um banho de afetividade”. Homem de cultura, leitor por prazer, muito cuidadoso com a palavra e com a dicção (as palavras deveriam ser ditas e compreendidas), Carlos do Carmo escolheu quem gostava, e eram os melhores, além de José Carlos Ary dos Santos, José Luís Tinoco, Manuel Alegre ou Alexandre O’Neill: António Lobo Antunes (Canção da Tristeza Alegre), José Saramago (Aprendamos o rito), Vasco Graça Moura (Nasceu assim cresceu assim), Manuela de Freitas (Fado Penélope), Nuno Júdice (Lisboa Oxalá), Maria do Rosário Pedreira (Pontas Soltas; Vem, não te atrases), Fernando Pinto do Amaral (Fado da Saudade), Sophia de Mello Breyner, Hélia Correia, Herberto Helder, José Manuel Mendes, Jorge Palma e Júlio Pomar…
CIDADANIA CULTURAL Foi com especial orgulho que, como presidente do júri do Prémio Vasco Graça Moura da cidadania cultural, tive o gosto de comunicar de viva voz a Carlos do Carmo que o galardão lhe tinha sido atribuído. E tenho na memória a sua reação de autêntica afetuosidade. E senti a alegria partilhada de Judite. Como afirmou o júri: “Os prémios nacionais e internacionais que obteve pela qualidade das suas edições discográficas, onde surge como um dos grandes intérpretes do fado que soube renovar, dão conta de uma das mais exemplares carreiras do panorama artístico português. Desde cedo que a sua voz soube quebrar fronteiras, atravessar gerações, tornando o fado uma interpretação artística de expressão universal. Essa expressão universal foi determinante para a candidatura do Fado a património imaterial da humanidade da UNESCO, de que Carlos do Carmo foi um dos embaixadores”. Senti, de facto, genuína satisfação da sua parte, que selou profundamente a minha amizade e admiração. Foi um ato de inteira justiça e não esqueço a referência sentida que fez à memória de Vasco, exemplo para todos. Não falámos apenas do poeta, que Carlos do Carmo cantou, mas da importância essencial da cultura como fator de enriquecimento da sociedade, de dignidade humana e de emancipação cívica. Tradição e modernidade, compreensão das raízes e audácia modernizadora, liberdade e responsabilidade, igualdade e diferença, qualidade e exigência – eis o que ligava profundamente Vasco Graça Moura e Carlos do Carmo. Num tempo em que assinalamos o centenário de Amália, em que as Artes, a Poesia e o Sentimento se têm associado no mundo largo das culturas de língua portuguesa (lembrando o Cante alentejano e a Morna cabo-verdiana – e não esquecendo que há pouco nos deixou a extraordinária artista e pedagoga, Celina Pereira), Carlos do Carmo é um símbolo que reconhecemos e que não deixaremos de lembrar sempre.
“Temas de Cultura Portuguesa” de Joel Serrão (Ática, 1960) é, enquanto leitura, um excelente modo de terminar um ano e de começar outro, a refletir sobre temas múltiplos e controversos na nossa realidade cultural.
Joel Serrão por Nikias Skapinakis (Pormenor de “Tertúlia”, 1960)
COMPREENDER O SÉCULO XX
Este pequeno volume, com data do mesmo ano em que Nikias Skapinakis fez o retrato de Joel Serrão no celebrado quadro “Tertúlia”, é utilíssimo e atual. O quadro representa uma atitude centrada na liberdade e no diálogo de ideias. O livro é uma ilustração prática dessa perspetiva, reunindo um precioso conjunto de reflexões sobre a cultura portuguesa, terminando com um percurso global e multifacetado desde Sampaio Bruno a António Sérgio, com referência a Mário de Sá-Carneiro e Jaime Cortesão. Joel Serrão é um autor fundamental para a compreensão do pensamento do século XX português, a partir de uma ligação essencial entre a génese da modernidade, fruto do nosso romantismo mais perene, e a ligação ainda não cabalmente compreendida entre a geração de 1871 e o século XX do “Orpheu”, da “Seara Nova” e da presença. Dir-se-á, aliás, que a leitura triangular de Joel Serrão, José-Augusto França e Eduardo Lourenço constitui um modo de compreender a emancipação cultural do novo Portugal Contemporâneo, que chega à democracia dos nossos dias. Na revista “Bicórnio” (de J.-A. França), em 1952, Eduardo Lourenço colocava quatro perguntas sacramentais: (1) «Pode falar-se sem equívoco de “cultura portuguesa”? Ou será preferível falar antes de “cultura em Portugal”?»; (2) Num caso como noutro, é «possível discernir nessa cultura alguma permanência de intenção, ideais, valores, problemas com características próprias; (3) «Em que medida o debatido problema da “universalidade” ou “não universalidade” dessas criações culturais tem sentido?»; (4) É «possível ou conveniente impor ao conjunto das manipulações espirituais dos portugueses qualquer espécie de orientação geral apoiada sobre a existência pretendida ou real, de uma maneira de ser portuguesa, unitária e indiscutível?».
QUE CULTURA PORTUGUESA?
Para Joel Serrão “cultura portuguesa” é a cultura do povo português, vista em movimento criador, com uma história ainda por fazer, num sentido prospetivo de exigência e emancipação. No fundo, trata-se de uma “cultura condicionada, não por misteriosas e incompreensíveis virtudes ou vícios rácicos, mas pela nossa história, pela construção e mentalidade dos grupos sociais e das suas tarefas, temporalmente consideradas». Neste sentido, os elementos de permanência não são fáceis de discernir, devendo prevalecer os problemas, mais do que as respostas. Quanto ao universalismo, fica o alerta: “quando tivermos, em mais larga escala, uma literatura e uma arte com o nível a que podemos aspirar; quando tivermos ciência de facto e filosofia a sério, o problema, evidentemente, deixará de pôr-se…”. Por outro lado, “se, por hipótese, existe ‘uma maneira de ser portuguesa’, impô-la seria tirania perfeitamente dispensável”. Deveremos, pois, evitar “impor fictícias unidades a priori, arquétipos a que incriticamente devamos submeter-nos”. Esta questão constituiu, aliás, cavalo de batalha para Eduardo Lourenço na sua “psicanálise mítica do destino português”. “Não há cultura sem autonomia; ora, a autonomia implica a humana diversidade, imagem da própria vida”. Afinal, como disse Agostinho de Hipona, importaria não desejar a unidade em relação ao que facilmente pode ser separado… Urgia, deste modo, fazer um caminho de compreensão da “cultura em Portugal”, a caminho de uma “cultura portuguesa”, aberta, complexa, exigente – assente na valorização da educação e da ciência, da criatividade e da aprendizagem, do exemplo e da experiência. E a crítica de Joel Serrão ao empolamento de uma “filosofia portuguesa” centra-se nesta preocupação: o fechamento, qualquer que seja, é sempre empobrecedor. Não estaria em causa a qualidade lírica de Pascoaes ou a capacidade intelectual de José Marinho, mas sim uma absolutização do que é próprio e nacional – que deve ser considerado à luz da dualidade cultura em Portugal / cultura portuguesa. Se é facto que se pode sempre seguir o que é positivo e criador numa cultura, não podemos esquecer a qualidade e a exigência, que pressupõe a educação, e em especial uma reforma do ensino da filosofia. Caberia, assim, garantir a autonomia desse ensino, o diálogo além-fronteiras e a ligação ao progresso científico: “Onde não haja ciência, não há nem pode haver filosofia. Onde não haja filosofia não há nem pode haver ciência que mereça tal nome”.
NEM COMPLEXOS NEM ILUSÕES
“Diante da filosofia estrangeira, nem complexos de inferioridade nem megalomanias me parecem adequados a resolver o problema do baixo nível da nossa especulação. Teremos filosofia a valer quando, libertos de tais perturbações, tenhamos alcançado, pelos nossos meios, o nível que nos permita o diálogo autónomo. Diálogo autónomo relativamente a problemas comuns. E todos os caminhos serão bons – e só serão bons -, quando o fim seja o universal, que, a partir de Sócrates, é timbre do homem que se interroga e busca saber, mediante a inteligencia, e em termos de ciência”… Na linha de pensamento de António Sérgio, Joel Serrão põe a tónica na orientação pedagogista. Importaria, deste modo, não só a audácia da reflexão, mas também o permanente sentido crítico. Afinal, há sempre um diálogo no tempo histórico, entre o que recebemos das gerações que nos antecederam e o que transmitimos ao devir. Assim, Sérgio assumia a causa de um patriotismo prospetivo, capaz de valorizar o que é próprio, sem a tentação do autocomprazimento, e com recusa da tentação de uma fantasiosa glorificação retrospetiva. “Se mais não houvesse a relevar na obra de Sérgio, - e há - , como contribuição talvez essencial para a historiografia do nosso tempo, bastaria a propedêutica do saber histórico, que ou é problemático, ou não é coisa alguma, em que tanto tem insistido, para que todos lhe estivéssemos reconhecidos, e para que não seja difícil fazer uma previsão: esse será o aspeto da sua atividade mental que o futuro se encarregará de valorizar mais e mais”. Afinal, também Jaime Cortesão afirmou emblematicante: “Toda a história escrita tende a tornar-se uma interpretação atual do passado. Por isso se tem dito que cada geração escreve, à sua maneira, a história. Assim é, e assim deve ser”. E não por acaso, na nota inicial, o autor cita o belo poema de Jorge de Sena: “Uma pequenina luz bruxuleante e muda / Como a exatidão como a firmeza / Como a justiça. /Apenas como elas. / Mas brilha. / Não na distância. Aqui / No meio de nós. / Brilha”…
Maria Aliete Galhoz é uma referência fundamental na cultura portuguesa, para quem a cultura era uma só, apesar das cambiantes erudita e popular.
SURPRESA E DESLUMBRAMENTO
Toda a vida ouvi falar de Maria Aliete. Era da mesma geração e conterrânea de minha Mãe. As referências e a admiração foram sempre indiscutíveis e uma constante. E com o tempo fui seguindo o seu percurso de professora, de investigadora, de referência fundamental da cultura portuguesa, no sentido mais amplo. Se foi das primeiras a desvendar o lado menos conhecido de Fernando Pessoa, em especial com “O Livro do Desassossego”, cuja revelação se deve ao trabalho minucioso da infatigável estudiosa, com Teresa Sobral Cunha, na equipa de Jacinto do Prado Coelho, também foi e é uma referência essencial na descoberta da cultura popular, com fantásticas revelações, que nos permitem compreender as raízes da dimensão meridional da nossa identidade. De facto, ao lermos a interpretação que foi fazendo de um material riquíssimo recolhido na tradição oral algarvia, facilmente percebemos como a cultura portuguesa que herdámos e continuamos a construir se foi fazendo no continente em curiosos movimentos das gentes e das tradições, de norte para sul, de sul para norte, e internamente em trocas complexas, fruto dos movimentos migratórios entre regiões diversas e de uma rica oralidade, numa sociedade com muito analfabetismo. Há dias, trocando mensagens com Lídia Jorge, partilhámos a grande admiração por Maria Aliete Farinho das Dores Galhoz (dela vos falo), e considerámos ser essencial manter viva a sua memória, não como mera recordação de quem foi - e isso é indispensável para quem, como nós a conheceu e admira -, mas por fidelidade ao trabalho que lançou e fez, nos vários domínios em que se empenhou, para que não se perca e para que continue, em nome dessa simbiose necessária entre a cultura popular e a cultura dita erudita. Em bom rigor, as duas culturas fazem parte de uma mesma realidade, mas só seguindo a orientação que a investigadora adotou podemos enriquecer o património cultural, como realidade viva. De facto, quando aprofundamos o conhecimento do património imaterial, as tradições, os falares, as crenças, as artes, as estórias, é que podemos entender melhor o conjunto do património, da herança e da memória. Quando saiu a primeira edição de O Dia dos Prodígios logo se notou a presença forte dessa oralidade algarvia, palavrosa e criativa. E a razão de ser dessa mágica criatividade está muito explicada no que Maria Aliete foi estudando e investigando. Não esqueço, de muito pequeno, ouvir as estórias mirabolantes de lobisomens aparecidos nas encruzilhadas dos caminhos no breu da noite, dos fantasmas aparecidos e desaparecidos, e das mouras encantadas… E se isto assim era na memória letrada de meu avô Mateus, também o era nas canções e toadas transmitidas por quem não sabia ler nem escrever, mas tinha em si uma reserva literária incomensurável. As mulheres, enquanto faziam empreita de esparto ou de palma, faziam gala em praticar o cancioneiro popular, com os inevitáveis versos-bordão e muita ironia e escárnio… A poesia de António Aleixo está impregnada dessa influência. Muitas narrativas populares misturavam invariavelmente a verdade e o sonho, a realidade e a imaginação. E quando estudamos a rica história algarvia descobrimos a verosimilhança de muitas referências reais, desde a memória moçárabe e da presença da cultura e poesia em língua árabe, até à lembrança da presença dos piratas, vindos do norte, mas também do Mediterrâneo, numa costa vulnerável e plena de inesperados sortilégios.
CULTURA ERUDITA E POPULAR
Insistindo na compreensão da cultura popular, Maria Aliete Galhoz considerava que a ideia de um Cancioneiro ajuda a proteger o “perfil ecológico da ecúmena”, ou seja, da grande casa que habitamos: a Terra. E assim “todo o cancioneiro popular é coerente na sua expressão total da natureza do homem integrado no Cosmos, relacionado numa sociedade, confrontado consigo mesmo”. O trabalho partilhado com Idália Farinho Custódio no caso do Cancioneiro Popular vale pela ligação entre a tradição oral (como acontecia na antiga Grécia com os aedos) e a compreensão etnográfica, antropológica e historiográfica de uma das regiões mais ricas de Portugal no campo da memória cultural. Na linha de Ataíde Oliveira e Estácio da Veiga, permito-me ainda referir o trabalho de José Ruivinho Brasão que tem sido fundamental nesta procura da riqueza cultural de uma verdadeira encruzilhada de influências, num cadinho inesgotável de identidades e diferenças. Este trabalho baseia-se numa lição muito fecunda em que nos é dito que deveremos aproveitar os ensinamentos da tradição que nos podem ajudar a mudar de vida – num sentido de valorizar mais o ser, em relação ao ter, e de praticar a existência simples, o contacto com a natureza viva, e a procura da natureza das palavras, dos afetos e menos das aparências – “Não há luz como a do sol / nem água como a da chuva, / nem pão como o do trigo / nem vinho como o da uva”… Lídia Jorge fala de “uma sombra luminosa, muito amada” – e recorda Maria Aliete “passeando na Praia dos Olhos de Água, com um barrete às riscas, era ela então muito jovem. E mais tarde, já nos anos 60, vejo-a no mesmo areal, levando um pequeno cesto no braço. Dentro desse cesto, guardava umas tiras de papel que decifrava” (cf. JL, 7 a 20 de outubro de 2020). Sim, essa é a verdade. Não há que ter dúvidas. Tenho, na distância, a mesma memória de uma menina muito jovem, célebre por lidar com a melhor literatura, de uma investigadora prestigiada, a revelar um Fernando Pessoa que não se suspeitava que existisse – novo semi-ortónimo, para além dos heterónimos. Isto, para não falar de Mário de Sá Carneiro ou José Régio e da sua própria poesia, em Poeta Pobre (1960), Não choreis meus olhos (1971) ou em Poemas em Rosas (1985). E Luiz Fagundes Duarte tem razão ao afirmar que, nos estudos pessoanos, Maria Aliete Galhoz veio introduzir um novo paradigma: “a obra de um autor é aquela que ele efetivamente escreveu, e tal como a fez: é solidária na sua variedade com a unidade do autor (Campos, Caeiro e Reis são heterónimos, mas todos eles são Pessoa) e, num autor de grande envergadura, como é o caso de Pessoa, é tão válida a obra que ele deu por terminada e que publicou, como aquela que, por qualquer razão, ele entendeu não publicar” (Ibidem.). De facto, Maria Aliete Galhoz foi em Portugal a primeira pessoa a entender o trabalho filológico aplicado aos textos modernos – transmitindo a interpretação dos textos aos leitores e estudiosos, de forma clara, persistente e sempre disponível para repensar o sentido das palavras. E não esqueço a dedicatória de amizade que me enviou quando na Edição crítica das obras de Fernando Pessoa publicou Rubaiyat. Como disse da sua frequência da Biblioteca Nacional, a experiência que mais a entusiasmava era “sempre a surpresa e o deslumbramento”, como em Fernando Pessoa, “poeta da fulguração, do ‘encontro’ de um fulcro de poema à altura dessa primeira fulguração: tenteando, riscando, optando, retomando e, ao fim, a impecabilidade do conseguido”.
Chegamos ao fim do folhetim. Muitas coisas ficaram por dizer.
Finalizo, como comecei, com palavras de Garrett, a terminar “Viagens na Minha Terra”:
«Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas quantas viagens porém fiz, as que mais me interessaram sempre foram as viagens na minha terra. Se assim o pensares, leitor benévolo, quem sabe? pode ser que eu tome outra vez o bordão de romeiro, e vá peregrinando por esse Portugal fora, em busca de histórias para te contar. Nos caminhos-de-ferro dos barões é que eu juro não andar. Escusada é a jura porém. Se as estradas fossem de papel, fá-las-iam, não digo que não. Mas de metal! Que tenha o Governo juízo, que as faça de pedra, que pode, e viajaremos com muito prazer e com muita utilidade e proveito na nossa boa terra»...
E completando o folhetim, imagino-me, beneficiando da hospitalidade do meu Amigo Pedro Canavarro, na sua casa de Santarém. Aí reencontrei diletos viajantes que me disseram ter sido tratados nesta viagem com excesso de simpatia. E quem foram eles? Garrett, naturalmente, maravilhado com os benefícios que a cidade escalabitana foi sofrendo. Herculano e o seu amigo dedicado Raimundo Bulhão Pato, agradados com o sucesso do seu azeite e dos seguidores do senhor Jerónimo Martins – e animados com a conversação afável de Manuel da Silva Passos, o extraordinário proprietário da casa, sobre a procura necessária destas boas razões para Portugal, em nome de uma boa instrução pública.
E calculem que descobri nessa cavaqueira de bons e aprazíveis companheiros, a paixão de Almeida Garrett pelas histórias de quadradinhos e pelo facto de, nas aventuras de Tintin, Oliveira da Figueira ser o símbolo do português. Garrett percebeu bem a importância da ilustração, Bulhão Pato também manifestou curiosidade e interesse – e até o velho Herculano, com algum ceticismo, manifestou atenção, sabedor que as suas lendas e narrativas têm sido boa matéria para todos os principais ilustradores. Com a ajuda de Pedro Canavarro lá explicámos quem era este Oliveira da Figueira que conheciam mal…
A sua primeira aparição foi em 1932, como personagem de «Os Charutos do Faraó», num episódio em que Tintin é atirado ao Mar Vermelho, por engano, num sarcófago egípcio. Salvo «in extremis», o jornalista encontrou-o na embarcação que milagrosamente o recolheu e Oliveira da Figueira pôs-se-lhe à inteira disposição: «se puder ajudá-lo, posso fornecer-lhe a preços competitivos qualquer artigo de que necessite». Começou então por um conjunto flamante de gravatas, às riscas, às bolas ou com figuras exóticas. Seguiu-se um lote de magníficos sabres, com lâminas de Toledo, mil outras bijuterias, além dos brindes: um despertador, escova de dentes etc… Tintin saiu literalmente carregado, com um balde, um regador, uma gaiola com papagaio, uns esquis, tacos de golfe, uma casota e uma coleira de cão, além do inevitável despertador – confessando: «Ainda bem que não me deixei levar pela conversa dele. A tipos como este acabamos sempre por comprar uma série de coisas inúteis». Na costa árabe, Oliveira da Figueira demonstrará a sua extraordinária arte de convencer. Chamam-lhe «o-branco-que-vende-tudo»… E diz orgulhoso: «Então que tal? Chama-se a isto eficiência! E o melhor é que os meus clientes voltarão». Apesar de tudo aparece alguém a protestar porque parece ter ingerido um naco de sabão, que lhe produz o óbvio mal-estar originado pelas bolas que o atormentam - «Antes da Lua Nova, o meu Senhor, o Xeque Patrash Pacha, ter-te-á castigado»…
Depois a rotunda personagem é encontrada no «País do Ouro Negro», obra iniciada em 1939, interrompida pela guerra e recomeçada em 1948. E ajuda Tintin a encontrar os segredos do temível Dr. Müller, descobrindo um sagaz subterfúgio. Mascarado de sobrinho do comerciante, sob o nome de Álvaro, quase invisual com uma estória de contornos mirabolantes. É extraordinária a capacidade fabulatória de Oliveira da Figueira. Inventa que o sobrinho é filho de um criador de caracóis, vítima de uma trama terrível que envolve uma mulher rica que morre de desgosto aos noventa e sete anos e a influência de duas imortais palavras, ditas em português, «Oh! Oh!», cujo sentido nunca chegamos a conhecer…
Depois, em «Carvão no Porão» («Coke en Stock», publicado no «Cavaleiro Andante», em 1959 e 1960, sob o título «Mercadores de Ébano»), Tintin e o Capitão Haddock, pedem apoio e hospitalidade em Wadesdah. Oliveira da Figueira recebe surpreendido e assustado a visita noturna de Tintin, com a cidade em estado de sítio, cheia de cartazes a pedir a sua captura. «Que faz aqui, desgraçado? Não sabe que tem a cabeça a prémio?». O português conta o que se passa. Há agitação e um conflito entre a Arabair e o Emir… Tintin diz que precisa absolutamente de ajudar o Emir e Oliveira da Figueira informa que teve de fugir para casa de Patrash Pacha. Tintin e Haddock treinam desesperadamente o equilíbrio das bilhas à cabeça, para que possam não dar nas vistas, mascarados de mulheres árabes com as suas burkas. O resultado do treino é desastroso. Os estragos são enormes e os cacos enchem o armazém do comerciante, que se vê na obrigação de dizer às clientes que as bilhas estão esgotadas. No momento da verdade, tudo parece salvo, mas eis escandalizada. O desastre anuncia-se, mas tudo se arranja, graças ao apoio providencial de Oliveira da Figueira.
A charla continuou e os convivas assinalaram temas que poderiam ter sido acrescentados aos célebres 30. Bulhão Pato foi o mais loquaz – falou da gastronomia que poderia ser acrescentada, elogiou o Mestre João da Matta, falou de Paulo Plantier, e assinalou as maravilhas do Queijo da Serra e do seu sucedâneo de Azeitão (com a ajuda de Periquita, boa pomada) e saudou o esclarecimento da confusão das ameijoas, que nunca ele cozinhou, mas com que se deleitou no Central… Garrett, atentíssimo ao espírito do tempo, falou, imaginem lá!, dos desportos e dos ídolos, e deu nota que lá no assento etéreo onde se encontra se apercebeu dos sucessos desde Eusébio a Cristiano. Uma cultura popular faz-se dessa ligação aos ídolos e aos efémeros sucessos. Herculano, circunspecto, preferiu chamar a atenção para a necessidade de uma visita ao Convento de Tomar, charola, janela manuelina, memória de Gualdim Pais, rio Nabão e à importância do monumento como património vivo. Achou justa a referência a Camilo e a Júlio Dinis. E lembrou ainda a Biblioteca Joanina de Coimbra, a inesgotável Livraria da Ajuda, que ele conhece como as suas próprias mãos, a Torre do Tombo e a Portugaliae Monumenta Historica… Pato e Garrett falaram de música, lembraram os “Tentos” de Frei Manuel Correia, mas também José António Carlos Seixas e o tempo joanino, Luísa Todi na corte de Catarina da Rússia… Garrett insistiu especialmente em João Domingos Bontempo, seu amigo e colega de lides na formação musical do Conservatório Nacional. Bulhão Pato, especialmente loquaz, falou da importância das peregrinações, antigas e modernas – e lembrou o Almirante D. Fuas Roupinho e o milagre da Nazaré. Afinal a língua galaico-portuguesa nasceu em campo de peregrinação a Santiago de Compostela. E Pedro Canavarro, concordando com o que era dito, lembrou a importância da XVII Exposição Europeia de Arte Ciência e Cultura (1983), sob os auspícios do Conselho da Europa e de tão boa memória, onde imperavam as boas razões para Portugal, e lembrou ainda os caminhos de Fátima e a fundação do Centro Nacional de Cultura no ano de 1945, oito dias depois do fim da guerra no continente europeu – bem como o projeto cultural moderno dos “Caminhos de Fátima”, idealizado por Gonçalo Ribeiro Telles e Helena Vaz da Silva.
As rotas do Património nasceram, assim, dos caminhos de peregrinação, per agros, pelos campos… Hoje o peregrino é o que cuida de ir ao encontro do património cultural, material e imaterial, natural e paisagístico, tecnológico e digital, sem esquecer a contemporaneidade e a sua criação.
E nessa tarde imaginária à vista do Tejo, Bulhão Pato, pegou num livro e leu-nos pausadamente: «Houve tempo em que a velha catedral conimbricense, hoje abandonada de seus bispos, era formosa; houve tempo em que essas pedras, ora tisnadas pelos anos, eram ainda pálidas, como as margens areentas do Mondego. Então, o luar, batendo nos lanços dos seus muros, dava um reflexo de luz suavíssima, mais rica de saudade que os próprios raios daquele planeta guardador dos segredos de tantas almas, que creem existir nele, e só nele, uma inteligência que as perceba»… E assim Herculano despediu-se e foi até à sua quinta, acompanhado de Pato – e Garrett como Passos Manuel foram discretear um pouco, olhando o belo Vale de Santarém.