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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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  De 7 a 13 de janeiro de 2019

 

«Tempo Brasileiro – Fascínio e Miragem» de Eduardo Lourenço (Fundação C. Gulbenkian, 2018) é o quarto volume das Obras Completas do grande ensaísta.

 

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UM TEMPO BRASILEIRO

“Há muitos Brasis no Brasil, múltiplas faces que se revelam sobretudo nas diversas imagens criadas pelos seus autores mais representativos, como Eduardo Lourenço sublinhou na altura da atribuição do Prémio Camões a Jorge Amado, ‘para o mundo inteiro, nenhum é ‘tão Brasil’ como Amado’. O autor de Gabriela plasmou ‘qualquer coisa de primordial, uma autêntica mitologia que é impossível julgar no horizonte ‘esteticista’ do puro literário’. E foi essa ‘mitologia solar tão brasileira, mas sobretudo tão baiana’, que Jorge Amado exportou ‘para o mundo inteiro’”. Quem o afirma é Maria de Lourdes Soares na introdução ao quarto volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço (Fundação Calouste Gulbenkian, 2018), que leva por título Tempo Brasileiro: Fascínio e Miragem. O volume, feito com extremo cuidado e um conhecimento muito seguro das realidades brasileira e portuguesa e da obra do ensaísta, revela-se uma preciosidade, uma vez que há um vai-e-vem permanente entre as duas margens do mundo da língua portuguesa. E vamos assistindo, ao longo do tempo, a uma evolução no pensamento do analista relativamente a um diálogo cultural pleno de aproximações e afastamentos, de entendimentos e distâncias. E ninguém melhor do que Eduardo Lourenço para retratar esta relação, tão cheia de complexos, ressentimentos e contradições. Desde o momento em que o pensador chega ao Brasil, para aí ficar durante um ano na Bahia (1958-59), até aos dias de hoje, houve um caminho de afinação permanente de entendimento e de perspetiva, em que o melhor conhecimento da realidade vital, para além, da dimensão literária, permite-nos usufruir de uma leitura crítica que muito enriquece o conhecimento da relação cultural luso-brasileira. E assim a descoberta do Brasil faz-se de diversos espantos e da compreensão de que “nós só existimos no espelho dos outros”.

 

PENSAR AS DESCOBERTAS COMO UM TODO

Longe de qualquer simplificação, Eduardo Lourenço não esquece a imagem contemporânea dos três anéis (Portugal, Brasil e África) sem a qual não podemos perceber a relação complexa que se estabelece entre as nossas culturas. “As Descobertas são um todo. Não há de um lado a aventura pura de um desvendamento de mares e ilhas desconhecidas e de outro o implacável processo que com o tempo se chamará Colonização, com a sua finalidade prática de lucro ou submissão alheia”. A colonização do Brasil foi assim clássica e específica. Isto explica um círculo de ressentimento entre colonizador e ex-colonizados, que se constitui em labirinto de difícil saída. E o momento da ida da Corte para o Brasil, a criação do Reino Unido de Portugal e do Brasil ou a independência de Ipiranga, proclamada por D. Pedro, marcam uma especificidade diferenciadora dos outros casos conhecidos. E o certo é que ninguém perdoou a D. Pedro, príncipe de dois mundos (e verdadeiramente de nenhum), nem brasileiros nem portugueses… Os três anéis têm Portugal como “função de uma mitologia cultural que tem o seu tempo forte no passado”, África como “espera de um novo presente” e Brasil como “exigência condicionada por um futuro onde pode ver-se já como uma das configurações civilizacionais e culturais mais relevantes do próximo século. A bem dizer, o Brasil vive-se e imagina-se, naturalmente inscrito num espaço de que ele é o centro e a circunferência”. Na relação de Portugal com o Brasil (vemos isso na CPLP) fica, assim, o problema de saber como atravessar “a barreira fonética de ressonância ideológica e comercial”. Daí ter Fernando Henrique Cardoso razão quando diz que “o facto de usarmos a mesma língua não significa que tenhamos a mesma cultura”. E Lourenço frisa que “a questão é realmente de cultura, ou, talvez melhor, de mitologia cultural, ou até de hermenêutica, imposta pela complexidade dos laços que o mundo lusófono suscitou”.

 

PENSAR UM SERTÃO MUNDO

Refira-se aqui o encontro com Agostinho da Silva – “personagem de romance”, que “exerceu a multímoda atividade de passador de fronteiras como se a obrigação de transcender a sua raiz portuguesa fosse o primeiro dever, para não dizer, a essência mesma de ‘ser português’”. No entanto, Agostinho e Lourenço distanciam-se quanto ao papel da Europa, mau exemplo para o primeiro e ligação natural para o segundo (“nous sommes tous dans le même bateau”). No entanto, deste encontro resulta a necessidade de agir e de encarar criticamente o mito, como elemento que não pode ser esquecido. Há, de facto, uma história comum a considerar, e uma reflexão comum a fazer. Aliás, a propósito do romance de Almeida Faria Cavaleiro Andante, Eduardo Lourenço lança um apelo aos elementos dos três anéis da lusofonia no sentido de visitarem em comum a história “para além do que nela houve de doloroso e inexpiável, o que apesar de tudo, emerge desse processo como possibilidade e promessa de um diálogo que mutuamente nos enriqueça e nos humanize”. E se falamos do romance da Almeida Faria e do percurso errante de André, não esquecemos o paralelo que o nosso ensaísta estabelece com Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa. “O paradigma do cavaleiro andante já tinha na nossa língua, em Riobaldo, a sua versão contemporânea e arcaica, menos encarnação triunfal do Bem do que anjo imune, por essência ao Mal que o rodeia”… E o Grande Sertão (o mais belo romance de amor da nossa língua, com Menina e Moça) leva-nos a pensar na imagem do Mar Português de Fernando Pessoa – e além desses dois Sertões, a partir de um romance que deixou Eduardo rendido, tendo começado por ler por dever de ofício, graças à invetiva de Glauber Rocha, e depois por sedução – tal como Alçada Baptista, após o fundamental conselho de Alexandre O’Neill - descobre o terceiro Sertão, Sertão-Mundo, sertão-miragem, sertão linguagem, à semelhança da terceira margem do memorável conto também de Guimarães Rosa. E chegados aos Sertões de Euclides da Cunha e aos canudos fanatizados por António Conselheiro vamos à interrogação essencial sobre o providencialismo encontrado no sebastianismo – e ao filme de Glauber Rocha Deus e o Diabo na Terra do Sol, “simultaneamente sinfonia e tragédia, imagem, canto e música constituindo-se como autêntica ópera popular”. Trata-se da interrogação sobre os mitos que nos unem e separam, mas que exigem revisitação comum que ocupa e preocupa Eduardo Lourenço. Referimo-nos a uma casa habitável e imperdível a que o escritor sempre regressa: “casa-país ‘habitável de todos’, a das línguas-pátrias e das pátrias-línguas dos ‘nossos criadores mais inventivos’”, onde “sentimos e experimentamos que somos eternos, como diria Spinoza: ‘nenhuma língua morre no círculo da poesia, pois é ela a chama no coração de todas as línguas” e “como escreveu Nietzsche todo o prazer pede eternidade”. Assim, sobre o “Tempo Brasileiro”, Maria de Lourdes Soares reúne e analisa, de modo superior, um fascinante conjunto de textos que vão ao âmago da originalidade lourenciana, grande interrogadora sobre uma língua de várias culturas que apela intensamente à visitação comum de caminhos múltiplos, tantas vezes paradoxais e contraditórios, que nos permite existir também pelo espelho de outros.   

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

  


   Minha Princesa de mim:

 

   Em carta anterior à minha última, já te falava de condicionantes que dificultam maior liberdade de interpretação do Corão e mais dinamismo progressista do Islão. Tal questão é também abordada por Michel Onfray:

 

   Tudo começa com um problema que deu lugar, na filosofia muçulmana, a abundantes debates: foi o Corão criado (tese mutazilita) ou é ele incriado (tese axarita)? Tudo decorre da resposta que se der a esta pergunta. Se o Corão foi criado, foi-o por homens que, mesmo inspirados por Deus, podiam ter-se enganado, porque é humano errar. Se não foi, é diretamente palavra de Deus; consequentemente, é verdade absoluta, e cada vírgula é vontade de Deus...  ...O mutazilismo permite tornar a razão em instrumento de leitura do Corão, porque faz dele um livro escrito pelos homens e podemos lê-lo com os mesmos olhos com que lemos Homero, enquanto o axarismo faz da fé o a priori necessário a qualquer leitura: devemos acreditar, ponto, parágrafo.

  
   E Onfray, conhecedor de correntes contemporâneas do pensamento islâmico, sabe como as muitas contradições detetadas entre passos do Corão - que não se explicam mutuamente, mas antes se excluem - têm justificado a orientação mais racional das escolas muçulmanas herdeiras do mutazilismo (que nasceu em Bassorá, no século VIII). E, em favor dela, cita também este trecho da sura III do Corão: «Há um só Deus, o Poderoso, o Sábio! É Ele que sobre ti faz descer o Livro. Neste encontramos versículos claros - a Mãe do Livro - e outros figurativos. Aqueles cujo coração se inclina para o erro agarram-se ao que é dito em figuras, pois procuram a discórdia e são ávidos de interpretações. Mas só Deus conhece a interpretação do Livro. Os que estão enraizados na Ciência dizem: "Nós cremos nele! Tudo vem do nosso Senhor!", mas apenas os homens dotados de inteligência dele se lembram.»

 

   Pessoalmente, pelo conhecimento que vou tendo de escritos de pensadores islâmicos do nosso tempo, creio que se vão afirmando - à margem e contra o fanatismo de muitos imãs e o terrorismo de alguns movimentos, e também governos, islamistas - correntes e escolas teológicas e sociais que se comprometem com a modernidade do islão e lhe descobrem uma versão universalista que já não assenta em qualquer império.

 

   Nesse sentido, também se impõe uma limpeza do nosso olhar para o mundo. E eu, que não subscrevo, nem a nomenclatura das civilizações que Huntington propõe, nem quaisquer teorias de conspirações ou da fatalidade de conflitos - mas antes e sempre insisto na procura e partilha de pontes e pontos de encontro - recorro aqui a um texto desse professor da Universidade de Harvard:

 

   O Ocidente é a única civilização que teve um impacto importante e por vezes devastador sobre todas as outras. A relação entre o poderio e a cultura do Ocidente e o poderio e culturas das outras civilizações é também uma das chaves do mundo civilizacional. Na medida em que aumenta o poderio das outras civilizações, a atração que apresenta a cultura ocidental esbate-se, e os não-Ocidentais ganham confiança nas suas culturas indígenas e vão-se implicando mais nelas. O problema central das relações entre o ocidente e o resto do mundo é por conseguinte a discordância entre os esforços do Ocidente - em particular da América - para promover uma cultura ocidental universal e a sua declinante capacidade para fazê-lo.

   A queda do comunismo exacerbou esse fenómeno, reforçando no Ocidente a ideia de que a sua ideologia democrata liberal teria triunfado globalmente e seria portanto universalmente válida. O Ocidente, particularmente os Estados Unidos, que sempre foi uma nação missionária, pensa que os não-Ocidentais deveriam adotar os valores ocidentais, a democracia, o livre-câmbio, a separação dos poderes, os direitos do homem, o individualismo, o Estado de direito, e conformarem as suas instituições a estes valores. Há minorias que abraçam estes valores e os defendem, no seio de outras civilizações, mas a atitude dominante, nas culturas não-ocidentais, antes vai do ceticismo à rejeição. O que parece universalismo aos olhos do Ocidente, parece imperialismo alhures.

 

   Estamos aqui em acordo. Mas isto que se disse não pode ser justificação para conflitos. Simplificando, direi que, tal como a cristandade europeia gerou iluminismo e laicidade, os ideais "ocidentais" de liberdade, igualdade, fraternidade, não impostos, mas simplesmente propostos, se poderão acasalar em sociedades e culturas que, como tudo no mundo, e nas nossa vidas, vão mudando, tomando sempre novas qualidades. Ou melhor: como diz, ao João Semana (Nicolau Breyner)médico agnóstico da série da TV com o seu mesmo nome, o padre reitor António (João d´Ávila), na hora em que ambos, gastos pela vida, morrem na igreja da vila que Júlio Dinis inventou para As Pupilas do Senhor Reitor: Os homens não valem pelo que pensam, mas pelo que amam...

 

   Mas, da "civilização ocidental", o que recentemente mais contagiou o mundo, outras culturas, foi o gosto do dinheiro, o culto das finanças, o prazer do consumo. A tal ponto que no dia-a-dia das vidas humanas já menos se apercebem fatores culturais de identidades e diferenças, mas cada vez mais motivos normalizadores de comportamentos económicos. Nesse sentido, à parte pormenores aparentes que os distinguem, o chinês médio, o carioca, o "yankee", o "alfacinha", têm condutas cada vez mais semelhantes, com as suas TV, os seus frigoríficos, automóveis, computadores e "net". Os mesmos desportos os entusiasmam e enchem estádios, e ei-los que escutam as mesmas músicas, da clássica à "pop", passando pela "world", etc... O contacto generalizado faz-se hoje sem filtros, quem disponha de um computador pessoal tem acesso à omnipresença, sem outro controlo além do seu próprio. Que cultura ou culturas se vão tecendo e como nos envolverão é algo talvez ainda do foro da ficção. Tudo sempre foi mudando - todo o mundo é composto de mudança - mas hoje muda depressa e muito imprevisivelmente. Até se fala de trans-humanismo (neologismo inventado em 1957 pelo biólogo Julien Huxley, irmão de Aldous, o autor do Brave New World) e pós humanismo, este querendo já significar o advento de uma nova espécie humana, de vidas longas e quiçá eternas, de uma nova inteligência (artificial?) liberta da gravidade dos nossos corpos biológicos, algo como a noosfera de que falava Teilhard de Chardin...

 

   Meu Deus, meu Deus, onde eu já vou, Princesa, a solidão põe-me a divagar, quando falo comigo mesmo torno-me perdido vagabundo, vou por onde não sei, nem ouço o que grito, mas apenas ecos vários do que já pensei ou me disseram. Paro aqui, espero por próxima carta, talvez acerte.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira