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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL


(II) AFONSO HENRIQUES

 

Depois de vistas as origens míticas de Portugal, descritas tardiamente no século XV, cinco anos depois da conquista de Ceuta e, mais tarde, durante a dinastia filipina, importa centrarmo-nos na personalidade do artífice da independência pátria. Lendo a biografia de José Mattoso de D. Afonso Henriques (c. 1110-1185), percebemos a força da sua liderança estratégica construindo o poder condal à imagem e semelhança de um verdadeiro reino. Há três datas significativas que correspondem a esse caminho: 24 de junho de 1128, a batalha de S. Mamede (a primeira tarde portuguesa); 25 de julho de 1139, a batalha de Ourique; e 5 de outubro de 1143, o Tratado de Zamora. Centrado na reconquista a Sul da Galiza, sem entrar nos conflitos de poder do Reino de Leão e das ambições teocráticas do Arcebispo Diego Gelmires de Santiago de Compostela, Afonso Henriques articula a posição dos barões portucalenses com a lógica moçárabe do condado de Coimbra e com a aliança aos municípios meridionais. Enquanto D. Teresa alimenta o sonho da influência em Leão, com a aristocracia galega, concorrendo com D. Urraca e a posição de Afonso Raimundes (futuro Afonso VII) – Afonso de Portugal, como seu pai, o Conde D. Henrique, privilegia a aposta estratégica que se revelará de sucesso: mais do que o domínio militar importaria dar estabilidade à população moçárabe em termos sociais e económicos, com os privilégios foraleiros, o que realmente aconteceu. Daí o avanço significativo para Sul e a afirmação inequívoca do poder real, em aliança com os municípios, em contraponto ao alto clero e à alta nobreza. É assim importante a afirmação cultural dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, os crúzios de Coimbra, cabendo um papel preponderante a S. Teotónio, mas também dos beneditinos, designadamente em Alcobaça, numa ação decisiva de povoamento. O caso português pode ser referenciado como pioneiro numa longa e fecunda gestação — a emancipação de D. Afonso Henriques, a fronteira de D. Dinis, a adoção do romance galaico‑português como língua oficial, a revolução de 1383-85, a afirmação do Estado moderno com D. João II, o império universal português, a decadência e a Restauração, a Regeneração liberal, o Republicanismo, a democracia… De facto, este pioneirismo fez-se a partir de um Estado que precedeu a Nação (como afirmou Herculano) — realizando-se a construção da identidade a partir do século XII, pela convergência entre a Reconquista e a decadência e fragmentação dos reinos taifas, mediada pela influência moçárabe e pela persistente ânsia de autonomia e de regeneração. A verdade, porém, é que com o andar do tempo houve interações simbólicas e materiais entre a comunidade e o Estado. Como ter afirmado Manuel Villaverde Cabral, o caso português ilustra a ideia de “meio – caminho” entre as conceções instrumental e primordial da identidade nacional. Em lugar do primado ontológico da Nação, tivemos uma interação entre o Estado e a Nação, na qual o primeiro teve um papel orientador insubstituível. José Mattoso defendeu, por isso, uma ideia que se demarca do essencialismo identitário — apesar de se interrogar sobre se não seriam já portugueses os habitantes do futuro Portugal. Sem haver uma etnia, mas sim várias (ou apenas duas), a verdade é que a identidade foi sendo moldada pelo Estado e por uma vontade — a partir de um melting-pot, do diálogo e da tensão, soberbamente abordadas por Orlando Ribeiro entre o Atlântico e o Mediterrâneo ou entre o Litoral Norte, o Interior Norte e o Sul. Em suma, Afonso Henriques não foi, contudo, apenas um chefe militar, foi um administrador, um político e um condutor de homens experimentado, que merece ser conhecido à luz da História… Só um grande medievalista, como José Mattoso, com provas dadas, poderia demonstrar, como fez, tanta segurança no uso das fontes e dos elementos relevantes disponíveis. E assim podemos contar com a superação das referências puramente míticas ou imaginárias, para passar a dispor de dados que permitem entender melhor a época em que a independência portuguesa se concretizou.

 

GOM


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A VIDA DOS LIVROS

De 28 de outubro a 3 de novembro de 2019

 

«D. Afonso Henriques» de Diogo Freitas do Amaral (Bertrand, 2000) constitui exemplo pedagógico de defesa do património cultural como realidade viva.

 

 

UM HOMEM DE CAUSAS
A última vez que estivemos juntos foi há algumas semanas, a trabalhar, em casa de uma amiga comum, a Professora Maria da Glória Garcia. Apesar de frágil fisicamente, continuava a ser o mesmo, extremamente metódico e rigoroso, afável e disponível, sem perder o fio condutor do bom método. Tratava-se de reorganizar o grupo dos amigos do Mosteiro dos Jerónimos, nascido da preocupação de não considerar o Ano Europeu do Património Cultural como um momento passageiro e sem consequência. Quando, há dias qualifiquei, sentidamente, Diogo Freitas do Amaral como um homem de causas, estava a pensar em vários dos momentos da sua vida, alguns em que nos encontrámos e convergimos. Para o jovem professor que encontrei na Faculdade de Direito em 1970, foi essa uma das marcas do seu carácter que me atraiu. Mais do que o formalismo do ato administrativo, importava, essencialmente, ver a Administração Pública como realidade viva, ao serviço dos cidadãos e da realização do bem comum. E quando, nesse tempo, estudávamos realidades novas, como o ordenamento do território, era a aproximação aos cidadãos que estava em causa. E quando líamos Alexandre Herculano a reclamar a governança do país pelo país e a ligar a liberdade cívica à melhor organização dos povos e ao reconhecimento do valor matricial do municipalismo, descobríamos, naturalmente, a importância do reformismo. Estávamos num tempo em que a ideia de reforma não podia deixar de entrar na ordem do dia.

 

O CULTO DA HISTÓRIA
Se falo de Herculano é, também, para dizer que encontrei sempre em Diogo Freitas do Amaral a paixão da história, da história política e da história das ideias. Os temas culturais entusiasmavam-no. Nota-se essa inclinação em obras como: “D. Afonso Henriques – Uma Biografia” (2000), “D. Afonso III, o Bolonhês, um Grande Homem de Estado” (2015) e “Da Lusitânia a Portugal. Dois Mil Anos de História” (2017). Tivemos oportunidade de falar sobre esses temas, e a leitura dessas obras significa, antes do mais, repercussão de uma prática anglo-saxónica evidenciada em muitos grandes intelectuais e políticos (como Roy Jenkins) que leva à reflexão e à escrita, muitas vezes biográfica, de modo a enriquecer o debate de ideias. As três obras referidas enquadram-se nessa boa tradição. Mas outras houve que deixou, designadamente para melhor compreensão dos diversos temas jurídicos e políticos que estudou. É a reflexão política que está presente – ligando a visão crítica dos acontecimentos históricos e sobre a evolução de Portugal. O caso de D. Afonso III é evidente. De facto, o pai de D. Dinis é quem cria condições para a constituição pioneira de um Estado pós-medieval, com unidade política, administrativa, económica e cultural. Vindo do centro da Europa, o Bolonhês, o grande homem de Estado, conseguiu construir no ocidente peninsular uma realidade moderna, que abrirá horizontes para os fulgurantes séculos XIV e XV. Esse sentido reformador entusiasmou o nosso autor, que escreveu a obra histórica a pensar no Portugal de hoje, a partir da Europa, e na necessidade de planear o futuro com horizontes abertos e largos. O mesmo se diga da biografia de D. Afonso Henriques, onde é a rigorosa análise política que prevalece, com destaque para a compreensão da importância de consolidar a frente marítima – que até aos nossos dias se tem revelado essencial. Aqui esteve a divergência política (longe explicações psicanalíticas) com a mãe, D. Teresa, que estava apegada à manutenção de influência no reino asturo-leonês e na Galiza… O que esteve em causa, como o autor confirma, seguindo a melhor doutrina, foi a amplitude significativa da revolta dos barões portucalenses, bem como “a impressão causada pelas qualidades combatentes e de liderança demonstradas pelo jovem príncipe português”. Uma leitura atenta das obras referidas confirma plenamente como o cidadão culto e estudioso, ciente da importância da História política, contribui com sentido pedagógico e capacidade crítica para a reflexão, de que tanto está carenciada uma sociedade que se deseja esclarecida e madura – em lugar dos tempos de imediatismo e de superficialidade. A História política tem de ser valorizada, não apenas na dimensão historiográfica, mas também no campo das ideias. Essa era uma convicção clara que sempre encontrei no estudioso.

 

UM PEDAGOGO ATIVO
Já referi a anglofilia de Diogo Freitas do Amaral, que levava, nestes últimos tempos, à amargura pelo que via na evolução dos acontecimentos ligados ao “Brexit”, no qual ninguém se entende, contrariando um proverbial “british common sense”, que tanto admirava. Para além de ser um cultor exemplar do “Direito Administrativo”, na senda de Marcelo Caetano, com novas perspetivas científicas e pedagógicas abertas, tornou-se um exemplar pedagogo da “História das Ideias Políticas”, sobre que também muito falámos. Na ”História do Pensamento Político Ocidental”, de Thomas Morus a Montesquieu, até Burke e Tocqueville, chegando nos nossos dias a Karl Popper, Raymond Aron, Isaiah Berlin ou Jacques Maritain o que o preocupa é a compreensão da democracia como realidade dinâmica, em permanente transformação, num sentido reformista, com instituições mediadoras, capazes de garantir a representação e a participação dos cidadãos. Leia-se, aliás, o “Manual de Introdução à Política” (2014), onde as ameaças sobre democracia estão evidenciadas, com uma preocupação especial com a verdade e a justiça. E não esquecemos que foi por proposta do CDS que a Constituição da República refere expressamente no seu articulado a Declaração Universal dos Direitos Humanos, como garantia de um Estado de Direito e de direitos. As três revoluções, inglesa, americana e francesa, tinham de ser vistas pelo autor articuladas entre si, no contexto do pluralismo e da separação e interdependência de poderes. E o “New Deal” de Franklin D. Roosevelt permitiu às economias mistas modernas dar resposta às incapacidades do mercado e às incapacidades da intervenção do Estado. As encíclicas de João Paulo II, Bento XVI e do Papa Francisco sobre a idolatria do mercado, sobre a “economia que mata” e sobre os desafios ligados ao meio ambiente mereceram, assim, especial atenção ao cidadão preocupado com a emergência de democracias ditas iliberais, que considerava chocantes contradições nos termos. Como homem de causas, como homem de cultura, empenhou-se ativamente pela cultura da paz, pela defesa e salvaguarda dos direitos fundamentais e, para referir um dos seus últimos combates empenhou-se em considerar a defesa do património cultural como um dever fundamental de uma sociedade mais humana e respeitadora da sua memória. Deixar ao abandono a herança e a memória das gerações que nos antecederam é destruir o carácter e a identidade, como realidade abertas, não do passado, mas do presente e do futuro. O património material e imaterial, a natureza e as paisagens, o mundo digital e a criação contemporânea exigem a nossa responsabilidade. Diogo Freitas do Amaral ensinou-nos a não baixar os braços.  

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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