A VIDA DOS LIVROS
De 21 a 27 de outubro de 2024
Recordamos o Cardeal D. Alexandre do Nascimento e a sua colaboração com a Livraria Moraes, através da tradução do “Diário Íntimo” de João XXIII, bem como da proximidade com a revista “Concilium” e com o Centro Nacional de Cultura.
O ESPÍRITO DO CONCÍLIO
Com a morte de D. Alexandre Nascimento, Cardeal de Luanda, desaparece uma das grandes referências da Igreja Católica contemporânea, símbolo do aggiornamento lançado por João XXIII, no Concílio Vaticano II, de quem fez a tradução portuguesa do Diário Íntimo (Morais Editores, 1964), obra marcante demonstrativa da riqueza humana do Sumo Pontífice, onde se notam o humor, a fé, a espiritualidade, a sensibilidade, a esperança e a consciência dos sinais dos tempos. E sentimos especialmente a reflexão papal de 11 de outubro de 1962 – o dia da abertura solene do Concílio Ecuménico. Roma estava no coração de todos e a primeira centelha divina permitira que este acontecimento saísse da sua boca e do seu coração. Com grande serenidade repetia “faça-se a Tua vontade” num momento crucial de abertura de horizontes – que o tradutor sentia intimamente com grande alegria, pois compreendia bem a génese das novas nações.
A minha memória do Cardeal Nascimento envolve três momentos – desde os anos sessenta do século passado até à vida simples do clérigo na última década. Conheci-o no tempo em que viveu em Lisboa, com residência fixa, na paróquia de Santo Condestável e como aluno da Faculdade de Direito de Lisboa. Ligou-se desde muito cedo ao grupo da Livraria Morais e da revista O Tempo e o Modo, em torno de António Alçada Baptista, onde estavam João Bénard da Costa, Pedro Tamen e Nuno Bragança. O seu livro O Meu Diário (Luanda, 2017) ilustra bem uma grande riqueza humana e cívica e uma forte consciência cultural do Padre Alexandre Nascimento, que de um modo determinado lançou as bases fundamentais da criação de Angola como uma jovem nação independente. Como poucos, teve a aguda consciência do colonialismo e da sua natureza, bem como do que seria necessário fazer para superar os efeitos dessa situação. Anos mais tarde, tive o gosto de o reencontrar quando estava com Mário Soares na Presidência da República, numa circunstância em que era necessário lançar a reconstrução de Angola, depois da guerra civil. Encontrei então um líder do episcopado, sem ilusões, com um conhecimento profundo da situação do seu país, uma visão de conjunto e uma lucidez como ninguém mais tinha. Mário Soares admirava-o profundamente, e muitas vezes recorreu ao seu douto conselho. Perante fatores contraditórios, com o Cardeal Nascimento era possível obter um retrato rigoroso da situação angolana, no contexto nacional e internacional. O terceiro momento que evoco, já com muita saudade, foi o do último encontro que tivemos, em Luanda, na sua casa modesta, em que tivemos oportunidade de recordar esses outros tempos. O seu olhar continuava vivo e sobretudo senti a mesma fé inabalável e a esperança num futuro de desenvolvimento e de justiça. Era o mesmo sábio que eu conhecera na flor da idade, e que nos deixou sendo o mais velho cardeal da cúria romana, alguém que continuava a acreditar em Angola como país de futuro.
UMA RESISTÊNCIA DETERMINADA
João Miguel Almeida no estudo publicado na Lusitania Sacra (nº 46, julho-dezembro 2022) sobre o Cardeal Nascimento afirma que quaisquer que fossem as suas ligações aos nacionalistas angolanos, antes de 1974, o certo é que desenvolveu uma apurada consciência crítica do colonialismo português. Logo na década de 50 com Joaquim Pinto de Andrade desempenhara papel relevante no Colégio da Casa das Beiras. Em 1958 dizia que “pelo que tenho ouvido, está-se a criar contra mim um ambiente político hostil. Há quem pense e diga que devo abandonar Angola”. Em abril de 1961 é-lhe fixada residência em Lisboa. Os seus comentários inseridos no diário são significativos. Fica clara a proximidade com os outros padres sujeitos a vigilância pelo regime (como Vicente Rafael) ou presos, como Monsenhor Manuel das Neves, que morrerá em 1966. Nesse período em que está em Portugal, estabelece contactos estreitos com Nuno Teotónio Pereira e Natália Duarte Silva, com Frei Bento Domingues, com o Padre Felicidade Alves e com o Padre Alberto Neto, em especial no tocante ao “Direito à Informação” sobre a situação colonial, designadamente em iniciativas no Centro Nacional de Cultura, graças ao apoio de Francisco de Sousa Tavares. São oito anos de exílio forçado e dum trabalho intenso. Quando o Bispo do Porto regressa ao País, já na transição que se segue à sucessão de Salazar, é recebido por Marcelo Caetano, em julho de 1969, sendo autorizado a ir a Angola para visitar sua mãe, podendo deslocar-se ao estrangeiro desde que comunicasse às autoridades. A audiência concedida por Paulo VI aos líderes dos movimentos de libertação, Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Marcelino dos Santos, em 1970, compromete, porém, as relações do governo português com a Igreja.
Depois da independência, é inequívoco o papel fundamental que desempenhou, logo em abril de 1975, presidindo ao encontro realizado no Huambo com padres nativos. Intervém, contrariando uma tomada de posição contra uma “hierarquia estrangeira”. “A cor da pele e o facto de havermos nascido em Angola não nos atribuía certamente o privilégio do acerto”. Consegue então capitalizar as relações que estabelecera com nacionalistas angolanos durante o período colonial. Desenvolve intensos contactos políticos, com Lúcio Lara e Pepetela, e mais tarde com o seu antigo aluno José Eduardo dos Santos, e também com a UNITA. É reconhecido como excelente mediador e fator de unidade pelos clérigos angolanos, assumindo uma atitude moderada, mas firme. É, contudo, envolvido em polémicas e guerras de informação entre o MPLA e a UNITA, sendo sequestrado durante uma visita pastoral por militantes da UNITA, em outubro de 1982, e libertado um mês depois, após o apelo do Papa João Paulo II. Procurando desdramatizar o episódio, afirmaria: «Tenho por norma ser o mais reservado possível relativamente a esse episódio da Jamba. O meu papel é unir. Não gostaria que uma afirmação minha prejudicasse qualquer das partes. Sou irmão de todos e ministro da reconciliação». Em 1983, D. Alexandre Nascimento foi o primeiro angolano a ser investido como Cardeal. De 1986 a 2001 exerceu funções na Arquidiocese de Luanda, tendo tido um papel insubstituível como fator de unidade. No Pentecostes de 1992, o Presidente da República Popular de Angola participou na missa campal, celebrada em Luanda e presidida pelo Papa João Paulo II. Pode dizer-se que o Cardeal de Luanda mostrou a maior capacidade de mediação de conflitos entre a hierarquia católica e as diferentes sensibilidades de clérigos e religiosos, estabelecendo pontes de diálogo duradouras com os diversos protagonistas políticos, num contexto de grande tensão e até de confronto civil. Como afirma João Miguel Almeida: “A sua trajetória atesta a capacidade da Igreja católica de promover lideranças com presença na cultura e na sociedade, quer a nível nacional, quer internacional e de dialogar com todas as instâncias de poder”.
Guilherme d'Oliveira Martins
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