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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

DESCONFINAMENTO PASCAL

 

Será por vezes difícil entender isso de passar de estado de emergência a calamidade, ou vice-versa. E até me dá urticária ouvir falar em confinados. Recuso-me a estar com finado ou com finados, antes desejo, procuro, quero estar com vivos. Mesmo no chamado Dia de Finados, prefiro pensar na festa dos vivos que por agora não vemos. A situação difícil que hoje vamos atravessando tem, além dos malefícios já impressionantes da própria pandemia, efeitos colaterais mais do que indesejáveis, não só pelas misérias pessoais que, dia a dia, se vão acumulando ao ponto de desastrarem a vida a muita gente, mas também pelas consequências previsíveis, a curto e médio prazo sobre a suas atuais condições de vida económica e social. Tornam-se por isso imperativas e urgentes as decisões e medidas políticas mais adequadas e eficazes ao desagravamento e tratamento possível dos casos de maior expressão, mais clara injustiça e maior necessidade.

 

Mas tais ações não podem nem devem fazer-nos esquecer que, por outro lado, a ameaça sanitária presente e as crises suas resultantes nos forçam a olhar mais pausadamente para as realidades com que deparamos e a interrogar-nos sobre elas, designadamente sobre a justeza e justiça dos modelos sociais, económicos e políticos que temos vindo a seguir, e nos quais depositamos - quiçá leviana ou exageradamente - esperanças de reconstrução. Afinal, todo este drama talvez nos traga também uma boa oportunidade de refletirmos, com menos preconceitos ou preconceito nenhum, acerca de soluções, mais do que reparadoras ou de simples conserto, verdadeiramente redentoras e propiciadoras de metanoias novas a caminho de um mundo melhor que todos desejamos, como diria - e não só em Moçambique - Manuel Vieira Pinto.

 

Emocionamo-nos muito com o espetáculo de tantas misérias pessoais e sociais que as vagabundas notícias que todos os dias nos visitam vêm trazendo. Possa tal emoção mover-nos mesmo a uma atenção e um cuidado mais vivo e ativo, mais solidário com todos aqueles que - sabe Deus desde quando - estão à nossa espera. E desejemos, com toda a nossa verdade, que tal movimento  tenha nascente no íntimo do nosso coração. Por isso, em quadra de Páscoa e mês de Ramadã, fecho este breve texto com uma oração composta por frei José Augusto Mourão, dominicano português, pela Festa da Páscoa de 2011. Encontrei nela um profundíssimo sentido da Eucaristia cristã, sobretudo neste tempo em que tantas celebrações nos estão vedadas em estilo clássico. O mesmo sentido que me atingiu, há uns anos já, ao ler o relato de outro confrade de frei José Augusto, o francês Serge de Beaurrecueil, quando era o único católico residente em Kabul: todas as noites, ao celebrar, sozinho, a missa no seu eremitério de Kabul, frei Sérgio consagrava um naco do pão que, ao almoço desse dia, partilhar com os seus alunos e amigos afegãos e muçulmanos. Escreve frei José Augusto:

 

                      nós te damos graças
                      por este dia, este lugar de trânsito,
                      esta mesa e este pão partido
                      ensina à nossa vida o dom,
                      a graça da partilha,
                      não a predação

 

                      nós to pedimos por Cristo,
                      o dom perfeito para todos
                      e pelo Espírito, o poço
                      da nossa comunhão no tempo

 

 

Camilo Martins de Oliveira

D. MANUEL VIEIRA PINTO. ÉTICA E MÍSTICA

 

“Porque é que tu, que és Bispo, quando vens falar comigo, nunca me falas de Deus e da religião, mas do povo, da defesa dos seus direitos e da sua dignidade?”, perguntou o Presidente Samora Machel a D. Manuel Vieira Pinto, arcebispo de Nampula. “Porque um deus que precisasse da minha defesa seria um deus que não é Deus. Deus não precisa que O defendam. O Homem sim”, respondeu D. Manuel.

 

Esta história foi-me contada por D. Manuel Vieira Pinto, à mesa, quando estive lá, no Paço episcopal, em Nampula, durante um mês, em 1992, a preparar uma antologia de textos seus, com o essencial do seu pensamento e que publiquei em 1992: D. Manuel Vieira Pinto. Cristianismo: Política e Mística (Antologia, Introdução e Notas de Anselmo Borges), Edições ASA. Nesse livro, publiquei também textos de homenagem, entre os quais um, excelente, de Mário Soares, então Presidente da República, que o condecorou com a Ordem da Liberdade.

 

Aquela resposta do Padre Manuel, como o arcebispo de Nampula, Manuel Vieira Pinto, gostava de ser tratado, diz bem o que é decisivo nele, para compreender o que significou a sua vida para a Igreja e para o mundo.

 

Já ia do Continente, como então se dizia, com boa e má fama, como acontece com todas as figuras que marcam a História. Com as suas conferências, a partir do movimento “Por um mundo melhor”, no contexto da assunção plena do Concílio Vaticano II, arrastava multidões.

 

Ao aterrar, em 1967, no aeroporto de Nampula, como Bispo da Diocese, Manuel Vieira Pinto, beijando um bebé africano, causou o primeiro escândalo entre a população branca. Ele rapidamente se apercebeu do intolerável da situação, das humilhações dos africanos, da iniquidade da guerra colonial. Por isso, ergueu a sua voz de Pastor e de profeta contra a injustiça do sistema colonial, e a favor da liberdade e da dignidade. Ao mesmo tempo, urgia pôr termo a uma série de ambiguidades nas relações entre a Igreja e o Estado e nas próprias estruturas eclesiais, apoiadas nos binómios: professor-catequista, escola-capela, Administração-missão, Governo-Igreja. A evangelização não poderia confundir-se com “portugalização”, mas tinha de ser anúncio da novidade libertadora e salvadora do Evangelho e formação de comunidades adultas na fé, responsáveis e responsabilizadas nos vários domínios da pastoral e da presença transformadora da sociedade.

 

Ao regime colonial não interessava uma Igreja segundo o espírito do Concílio e que hostilizasse a aliança secular da Fé e do império. A defesa da dignidade inviolável da pessoa humana, a contestação do poder colonial e da classe dominante, a denúncia da guerra de agressão e repressão, a declaração do direito à independência do Povo moçambicano mereceram-lhe a perseguição e a expulsão por ordem do Governo, primeiro, da cidade de Nampula (10 de Abril de 1974), e, depois (14 de Abril de 1974), de Moçambique. Foi enforcado em efígie, acusado de “famigerado traidor à Pátria” e declarado “indesejável em todo o território nacional”.

 

Exilado no seu próprio país, assistiu ao 25 de Abril, que vinha dar-lhe razão. Convidado pelo General Spínola para fazer parte do Conselho de Estado, comunicou-lhe que agradecia, mas que não podia aceitar.

 

Depois, em 25 de Junho de 1975, foi a proclamação da independência de Moçambique. Era o júbilo de um Povo, que detinha agora nas próprias mãos o seu futuro e podia readquirir a identidade própria.

 

Os combates, porém, não tinham terminado, pois, mais uma vez, era necessário defender o ser humano, o ser humano concreto, que era desprezado e morto. No quadro de uma situação extremamente complexa e dolorosa, que incluía a humilhação e o ataque sistemático à Igreja, o bispo Manuel Vieira Pinto, regressado a Moçambique, pela atenção que lhe concediam, dado o sofrimento que ele — era uma pessoa muito sensível — e os seus missionários decidiram, no tempo colonial, suportar por causa da dignidade e direitos do Homem e do Povo moçambicano, teve várias entrevistas com dirigentes do país, concretamente com o Presidente Samora Machel. Em todas, o centro foi sempre a dignidade, a liberdade e os direitos do Homem, fosse quem fosse, e do Povo moçambicano.

 

O entusiasmo da liberdade reencontrada também correu o terrível risco de projectar miragens, no contexto da implantação do ideal do “Homem Novo”. Permita-se-me uma nota pessoal: fiquei arrepiado, quando, em 1983, ao desembarcar no aeroporto de Maputo, vi à minha frente, em letras garrafais, o letreiro: “Zona Libertada da Humanidade”. Mas, logo em Janeiro de 1976, o Bispo Vieira Pinto falou com o Presidente, denunciando a violência contra o moçambicano, a propósito dos ataques que se faziam contra a chamada “alienação religiosa” e contra “outras alienações” de que acusavam o Povo moçambicano: “alienação” política, “alienação” cultural... Mais tarde, pouco depois de a Frelimo se ter declarado oficialmente marxista-leninista, encontrou-se de novo com o Presidente, para lhe dizer claramente que o Partido, dada a sua natureza marxista-leninista, já não era um instrumento de libertação, como tinha sido a Frente de Libertação de Moçambique, mas um instrumento que naturalmente iria causar violência, terror e excesso de sofrimento, como tinha acontecido noutros países e noutras culturas, onde a mesma ideologia e o mesmo sistema se haviam instalado. Falou-lhe também das “ofensivas” em curso e da humilhação e desumanidade dos “campos de reeducação”, que tinha visitado pessoalmente, e das próprias “aldeias comunais”.

 

Em 1979, houve novo encontro, para, mais uma vez, denunciar a malícia intrínseca do sistema, a sua desumanidade, o seu antiteísmo, a sua violência e terror. O sistema era errado e fonte de humilhações sem conta. A partir de 1980, as entrevistas foram mais na linha da guerra civil e dos crimes que uns e outros cometiam, e também na linha da necessidade do diálogo político entre a Frelimo e a Renamo, sem deixar ao mesmo tempo de chamar a atenção para a perversidade da ideologia, inclusive como causa da guerra em curso no país. Já no final da sua vida, era o próprio Presidente Machel que lhe falava da violência e da desumanidade do sistema, recordando-lhe o que lhe dissera na primeira entrevista, em 1976, queixando-se. Perguntou: “A nossa luta era justa ou não era justa? Se era justa, porque é que os países cristãos não nos ajudaram, permitindo que outros países ateus e materialistas nos ajudassem? Como sair agora de debaixo deste peso insuportável?”.

 

Com o Presidente Joaquim Chissano, os encontros foram mais numa linha de trabalho e com a presença de outros Bispos, visando sobretudo a urgência do diálogo político e a criação de condições para a instauração da paz, a que o Povo tem direito, e da legitimidade democrática, e, porque a laicidade do Estado é uma conquista que não pode ser abandonada, não deixando também de prevenir contra o perigo de um Estado fundamentalista islâmico em Moçambique.

 

A documentação disponível não permite de modo nenhum sustentar a acusação de que “o Arcebispo de Nampula, tão militante em tempos, no regime colonial, em prol dos Direitos Humanos..., nada tem podido ou querido fazer contra os fuzilamentos, julgamentos e tratos não convencionais produzidos pelo regime do Presidente Samora Machel” (O Século, 19 de Junho de 1986). A D. Manuel Vieira Pinto também não pode ser lançada a acusação de mera “denúncia de gabinete”, pois, às entrevistas e cartas a presidentes, ministros e governadores, juntou sempre a denúncia pública, em homilias, cartas pastorais, conferências, entrevistas, etc. A coragem com que enfrentou o regime colonial foi a mesma com que denunciou os crimes da ditadura marxista-leninista e da Renamo. Aliás, a mesma coragem que o levou, apesar da guerra e dos seus perigos omnipresentes, a visitar periodicamente as comunidades cristãs espalhadas pela Diocese, para levar-lhes a Palavra da esperança e partilhar festivamente com elas, como eu próprio fui testemunha, o Pão da Eucaristia, do Amor e da Paz. Entre os limites, fraquezas e defeitos que terá tido, certamente não se encontrarão o medo ou a cobardia.

 

A D. Manuel Vieira Pinto poderá aplicar-se o que ele mesmo disse de D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, igualmente exilado: “Não foi um político à frente de uma Igreja, mas um Pastor evangelizando e santificando o Povo de Deus que lhe estava confiado, assumindo como dever irrecusável a defesa e o crescimento deste Povo de Deus — um Povo de homens concretos, reais, históricos, homens e mulheres chamados a viver”, combatendo “pelo nome de Deus e pelo nome do Homem, pela glória de Deus e pela glória do Homem”. Bispo de Deus e da Igreja, quis ser Bispo do Homem, fosse ele quem fosse, independentemente da raça, cor ou religião. O seu combate não foi contra as pessoas, mas contra a injustiça e a humilhação. Na guerra colonial, não foi contra os portugueses (que, já no Governo da Frelimo, defendeu, utilizando até meios diplomáticos), mas contra um sistema estruturalmente injusto. A sua opção não foi por um regime, por uma ideologia ou sistema, mas pelo Povo e pelo Homem, tendo preferência o humilhado e esquecido, para que nunca seja objecto, mas pessoa e sujeito.

 

Por isso, acusado de novo, apelidado até de reaccionário, ameaçado em pleno regime comunista, declarou numa homilia, na Catedral de Nampula: “Meus filhos, tanto me bati pela vossa liberdade, e não sois livres! Eu fui avisado de que há quem não goste das minhas homilias. Mas eu expus a minha vida por vós. A minha vida não é minha, mas vossa. Entreguei completamente a minha vida pelo Homem em Moçambique. Se disparardes contra mim, hei-de gritar ainda mais alto, depois de morto”.

 

Para a preparação da Antologia, por ocasião do 25.ºaniversário da ordenação episcopal de D. Manuel Vieira Pinto, de que falei, fui confrontado com milhares de páginas da sua autoria. Na selecção, procurei seguir, na medida do possível, uma sequência histórica. Se dividi os textos seleccionados em duas partes (Da ética, Da graça), isso não significa que ética e mística sejam separáveis. Quis apenas sublinhar que são as duas faces do mesmo Evangelho. De facto, sem liberdade, sem autonomia, sem direitos humanos, a mística é vazia. Por outro lado, como dizia o meu amigo e mestre, Miguel Baptista Pereira, “perdido o sentido do Mistério, que une na diferença e estabelece entre os homens a communio (a comunhão), instala-se a ‘indoutrinação’ e a administração definitiva do Absoluto e consagra-se a intangibilidade dos seus burocratas, não fosse dilema humano o serviço do Mistério ou a vontade ilimitada do Poder.”

 

D. Manuel Vieira Pinto faleceu na passada Quinta-Feira, dia 30 de Abril. No Porto. A melhor homenagem é confessar que foi um Bispo cristão.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 1 MAI 2020

A VIDA DOS LIVROS

De 4 a 10 de maio de 2020

 

“D. Manuel Vieira Pinto Arcebispo de Nampula – Cristianismo: Política e Mística”, de Anselmo Borges (Edições Asa, 1992) é uma obra que espelha a ação de uma das maiores figuras da Igreja portuguesa contemporânea, com uma extraordinária coerência entre a palavra, o espírito e a ação.

 

 

CUIDAR DE UM MUNDO MELHOR
Muitos de nós começámos a ouvir falar do Padre Vieira Pinto a propósito dos encontros do Movimento por um Mundo Melhor (MMM) e da sua capacidade de mobilizar os cristãos portugueses, desejosos de verem horizontes abertos. Era o espírito do Concílio que estava a germinar e o carisma do Padre Manuel era capaz de tornar os sinais dos tempos marcas efetivas de mudança… Nascido em Amarante em 1923 foi ordenado presbítero no Porto em 1949, tendo sido assistente da Ação Católica, diretor espiritual do Seminário Diocesano no Porto, além de ter desempenhado funções nas paróquias de Campanhã e Cedofeita. Envolvido no MMM, visita Roma em 1960 e na sequência do Concílio Vaticano II, participa com o Padre Vítor Feytor Pinto num conjunto de ações no sentido da renovação da Igreja. A renovação da vida cristã, a leitura dos sinais dos tempos, o lançamento de estratégias que favorecessem a mudança e a conversão, bem como a promoção da justiça social, a paz e a reconciliação entre os povos e nações constituíram prioridades defendidas pelo Padre Riccardo Lombardi, S.J., fundador em 1952 do Movimento. A teologia do Concílio constituiu um corolário lógico desse espírito e um exigente desafio em que o então jovem sacerdote se envolveu com muito entusiasmo e com uma especial preocupação teológica e pastoral. E assim impulsionou em Portugal esse movimento e essa motivação. E muitos recordam a sua grande capacidade mobilizadora no sentido de uma Evangelização renovada e aprofundada, na linha da “Gaudium et Spes” e da “Lumen Gentium” – em iniciativas que ficaram na memória de todos no Pavilhão dos Desportos em Lisboa e no Palácio de Cristal no Porto. O Povo de Deus não era uma abstração, era um apelo concreto, para tornar o mundo melhor, com mais atenção e cuidado, mais justiça e paz. Em abril de 1967, o Papa Paulo VI nomeou-o Bispo da nova Diocese de Nampula, tendo recebido a ordenação episcopal no dia 29 de junho desse ano, festividade de S. Pedro.

 

UMA NOVA MISSÃO
Ao chegar à sua nova diocese faz questão de assumir uma atitude aberta, de acordo com o espírito conciliar. E assim, para escândalo de alguns, logo no aeroporto, beija uma criança africana, antes das autoridades civis e militares, como sinal de paz e da universal dignidade humana. Mas as dificuldades começam logo. Pouco depois de chegar, corresponde a um pedido dos comandos militares e do Movimento Nacional Feminino para presidir a uma celebração em memória dos militares portugueses mortos em combate. Aceita, afirmando, porém, que também devia lembrar todos os mortos, uma vez que a Igreja não tem inimigos. “Esta minha observação causou uma certa surpresa (disse D. Manuel). E a surpresa tornou-se escândalo quando, na homília, afirmei, entre outras coisas, que a guerra era um mal e uma fonte de males e que a paz jamais viria das armas”. Racismo e guerra, bem como a denúncia da violência, iriam constituir pontos marcantes da missão do Bispo. Para D. Manuel Vieira Pinto, “a discriminação racial, a falta de respeito pelo homem negro, a ausência total de convivência entre brancos e negros, a falta de diálogo do bispo com os seus cristãos, em maioria negros, eram pecados que saltavam imediatamente à vista. Mas as tensões políticas eram claras, e levaram a um ponto de rutura quando foi publicada a carta pastoral “Repensar a Guerra”, em janeiro de 1974, onde se dizia que o conflito em Moçambique era uma guerra não desejada. E então perguntava pelas causas, falando de mentiras e violência e do legítimo direito à autodeterminação. A guerra surgira da “tomada de consciência dos povos ontem dominados por sistemas coloniais, hoje em busca progressiva de uma justa e efetiva emancipação”. Importaria assim dar mais atenção à ação política do que à força das armas, pelo “reconhecimento da dignidade do homem e do povo de Moçambique e das iniciativas que (dessem) conteúdo e expressão real aos direitos inerentes a uma justa e progressiva autodeterminação”. Cerca de um mês depois, o Bispo e os Missionários Combonianos, que trabalhavam na diocese, publicaram uma carta, sob o título “O Imperativo de Consciência”, onde se defendia a autonomização e das estruturas missionárias. Em consequência, a 10 de abril, quinze dias apenas antes da revolução democrática em Portugal, D. Manuel é expulso da diocese e quatro dias depois, o governo força-o a sair de Moçambique e a regressar a Lisboa. No entanto, no mesmo mês de abril inicia-se o processo de descolonização e D. Manuel regressa a Moçambique em janeiro de 1975.

 

UM NOVO TEMPO…
Mas o Bispo não baixa os braços no seu combate pastoral pela liberdade, pela justiça e pela emancipação dos moçambicanos. O desenvolvimento é, afinal, o outro nome da paz, que disse S. Paulo VI. Iniciava-se um novo capítulo no seu múnus. Samora Machel respeita o Bispo, até pelo papel desempenhado na luta contra o racismo e o colonialismo e na defesa da autodeterminação. Mas, quando D. Manuel se encontra com o Presidente, do país recém-chegado à independência, levanta questões polémicas, como a dos campos de reeducação criados pela FRELIMO, onde não se estavam a respeitar os direitos elementares dos cidadãos. Em encontros e cartas, D. Manuel suscita questões ligadas a novos atentados à dignidade humana, à falta de liberdade individual e de liberdade religiosa, às prisões arbitrárias, aos erros e violência do sistema. E a partir de 1980, as conversas do Bispo com Samora Machel incidem essencialmente sobre o tema da guerra civil e a ameaça ditatorial do regime. Em janeiro de 1984, dez anos depois da sua expulsão, D. Manuel assina uma nova carta pastoral intitulada “A Coragem da Paz”, onde pede ao Governo e à Renamo que “se empenhem com coragem e decisão, com espírito de serviço e bem integral do povo e da nação, na construção da paz, hoje e aqui”. E já no final da vida, era “o próprio Presidente Machel que lhe falava da violência e da desumanidade do sistema”. Em maio de 1984, o prelado solicita, em nome do povo, ao seu Presidente o gesto de negociações com a Renamo. “Não, não me peça uma coisa dessas”. E o Bispo insistiu. “O Presidente olhou-me, deixando transparecer a luta que lhe ia no espírito e perguntou-me: ‘com quem vou falar?’. Respondi: ‘Eu não sei, presidente. Não sou político nem tenho meios políticos que me permitam saber quem são os responsáveis’”. Então ajudou ao caminho da paz e da reconciliação e discretamente apoiou as negociações que levariam ao Acordo Geral de Paz de 1992. Houve um outro dia em que Samora Machel fez a pergunta que tem sido tão propalada: “Por que é que você, que é bispo, quando vem falar comigo nunca me fala de Deus e da religião, mas do povo, da defesa dos seus direitos e da sua dignidade?” E o homem da Igreja respondeu: “Porque um deus que precisasse da minha defesa seria um deus que não é Deus. Deus não precisa que o defendam. O homem sim”. Em 1998, D. Manuel Vieira Pinto pediu ao Papa a resignação por ter chegado ao limite de idade, mantendo-se ainda à frente dos destinos da arquidiocese até novembro de 1980, sucedendo-lhe D. Tomé Makhweliha. Mário Soares tinha-o condecorado com a Ordem da Liberdade… D. Manuel deixou-nos há poucos dias. O seu exemplo perdurará para sempre! 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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