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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

 

(XIV) D. SEBASTIÃO E O SEBASTIANISMO

 

O mito sebastianista corresponde a um delírio, sentimentalmente verdadeiro embora racionalmente falso. Miguel Real tem razão. Assim, o sebastianismo constitui uma espécie de motor ético dos portugueses, forçando-os “a acreditarem dever ser o futuro melhor do que o presente, mesmo que para tal se sintam obrigados a fugir da medíocre elite portuguesa, que do país se apodera como coutada sua…” (“Nova Teoria do Sebastianismo”, D. Quixote, 2014). Contra o conselho dos mais avisados, D. Sebastião sentiu-se motivado pelo sucesso de Lepanto e envolveu-se numa questão dinástica no reino de Marrocos. O resultado foi um desastre, tanto maior quanto não havia descendente que lhe sucedesse em Portugal – com três reis mortos e um reino momentaneamente pedido. Não houve avisada prudência e a nação ficou órfã. E a loucura gerou um mito. Eduardo Lourenço, no prefácio a “Origens do Sebastianismo” de Costa Lobo (1909), lembra o sentido crítico de António Sérgio, em justa demarcação do saudosismo sebastianista, pouco conforme com as suas preocupações de lançar para o tempo atual as bases de uma autêntica reforma de mentalidades. Tratava-se sergianamente de combater a generalização perniciosa justificativa de uma acomodação sentimentalista. Se Oliveira Martins considerou o sebastianismo uma “prova póstuma da nacionalidade”, haveria que compreender que «do que era um fenómeno extravagante ou uma aberração sem lugar no discurso histórico”, nasceu um «mito cultural de ressonância incomparável». O que estaria em causa no caso português era uma “decadência inconformada consigo mesma”, assumida após um momento dramático em que um passado glorioso deu lugar a uma humilhação incompreensível nas areias de Marrocos e depois a uma “Corte na Aldeia”, recriada por Rodrigues Lobo. E assim o sebastianismo tornou-se “o epílogo, e a manifestação mais palpável do espírito nacional”, (…) “embebido na imaginação” e “nutrido pelo conhecimento da decadência nacional e pela recordação e saudades de tempos mais felizes”. O episódio pode comparar-se a uma espécie de cativeiro da Babilónia, visto como um «avatar delirante», mas mais do que isso como símbolo de uma história que alterna momentos gloriosos e decadentes, em que a fatalidade e a vontade se entrecruzam e se alimentam mutuamente. Vinha à memória a analogia entre o messianismo judaico e a ideia nacional de um império futuro. E Eduardo Lourenço liga o mito cultural de Alcácer Quibir a uma «estrutura de ausência», vista como corolário do tempo em que substancialmente perdemos a independência, ainda que juridicamente tal nunca se tenha consumado verdadeiramente na Monarquia Dual, mesmo que o império do Oriente tenha sofrido dramaticamente por força da expansão holandesa. E Portugal fica «ausente de si mesmo e esperando-se nessa ausência». Só quando o Conde Duque de Olivares teve a tentação unificadora peninsular, a revolta tornou-se inexorável, com apoio francês no desenrolar da Guerra dos Trinta Anos. Indagador dos mitos nacionais, Eduardo Lourenço demarca-se das leituras negativistas e fatalistas, considerando, como Oliveira Martins, que a «estrutura de ausência» não podia confundir-se com uma incapacidade de espera. Veja-se como Garrett trata dos temas da ausência e da espera em “Frei Luís de Sousa”. O sebastianismo, como mito, é um sonho e uma vaga esperança messiânica. E neste ponto o ensaísta contemporâneo não pôde deixar de se cruzar com Fernando Pessoa, poeta que pensa no mito como impulso libertador. Estamos perante um «mito», mas não diante de uma ideia transcendente ou religiosa. É o «herói simbólico» que encontramos – na tradição do ciclo bretão, do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda (também ele viria de Avalon numa manhã de nevoeiro) ou de Amadis de Gaula. Contra o fatalismo, ressurge a nação como vontade, na expressão de Alexandre Herculano - vontade temperada pela índole coletiva. Sampaio Bruno preferiu procurar uma significação metafísica, Teixeira de Pascoaes ligou o sebastianismo à saudade lusíada (lembrança e desejo, segundo Duarte Nunes do Leão) e Costa Lobo ancorou nas razões históricas as repercussões do cativeiro – desde as Cortes de Tomar (1581) até ao Primeiro de Dezembro de 1640. Eduardo Lourenço, como Sérgio, chega ao século XX e longe de qualquer tentação ilusória, diz-nos que «o Portugal – D. Sebastião de Pessoa é todo-o-mundo-e-ninguém com ele Pessoa – D. Sebastião é ninguém-e-todo-o-mundo, um e outro, a “eterna criança que há de vir”, aquele que morre como particularidade nacional ou pessoal, para ser tudo em todos, exemplo de um mundo e de uma personalidade sem limites nem fim». Lembramo-nos do “Auto da Lusitânia” de Gil Vicente. Deste modo, o autor de «A Nau de Ícaro» faz um retrato fulgurante da mitologia portuguesa, na linha da sua psicanálise mítica do destino português. “Louco, sim, louco, porque quis grandeza / Que a sorte a não dá”… Para o Padre António Vieira o que estaria em causa era um império sobrenatural, capaz de superar os «fumos da Índia» e as fragilidades que conduziram a Alcácer Quibir. «Assim o que começou como um sonho de um Império redivivo termina com Pessoa em Império de sonho».

 

GOM

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A VIDA DOS LIVROS

De 10 a 16 de setembro de 2018

 

O códice número 477 da Biblioteca Nacional de Portugal, intitulado “Crónica de El Rei Dom Sebastião, Décimo Sexto Rei dos de Portugal na qual se contém, por maior, os sucessos do seu Reinado e vida”, da autoria de Miguel Pereira (1584), constitui o mais antigo relato sobre a vida e reinado de D. Sebastião que chegou até nós.

 

 

UM TEXTO IMPORTANTE
Até ao momento contávamos, além de obras esparsas, como a Crónica de Bernardo da Cruz (1586), podendo ainda referir-se o controverso texto de Girolamo Franchi Cosnestaggio (1585) e a brevíssima relação da Batalha de Alcácer-Quibir de Goes Loureiro (1595). Recorde-se que a Crónica de Frei Bernardo da Cruz, frade menor e capelão-mor da armada de D. Sebastião, que não há certeza de presenciado a batalha, foi publicada pela primeira vez por Alexandre Herculano em 1837. O manuscrito que serve de base à publicação da presente obra é de 1795, sendo uma cópia de outra anterior, que se diz ter sido “tirada fielmente do original”, sendo segundo testemunho do copista, a que Barbosa Machado encontrou ou viu na Biblioteca do Duque de Lafões. A Crónica, como é fácil de ver, corresponde a um roteiro que deveria ter sido escrito para ulterior desenvolvimento, dado o teor parco dos textos. O seu interesse assenta, contudo, no facto de haver uma indicação suficientemente precisa do conteúdo essencial. É certo que faltam pormenores, mas deparamos com a base fundamental que nos permite compreender o curso dos acontecimentos. Não nos fazem falta as considerações pessoais que se adivinham. O texto cobre 59 capítulos curtos, onde se referem os elementos mais significativos da vida do Rei Desejado. Os primeiros 14 capítulos referem-se à regência de D. Catarina, viúva de D. João III, com as vicissitudes conhecidas, e à do Cardeal D. Henrique. Fala-se depois do cerco de Mazagão e do seu levantamento, da chegada ao trono do jovem monarca, de diversas medidas de governo adotadas, designadamente no tocante à desvalorização da moeda (abatimento às valia dos patacões), à evolução legislativa e judiciária, à grande peste (1569), às intervenções militares em África (como em Monomotapa), ao cerco de Goa e Chaul, à exploração das Minas de Achém em Angola, à ida do rei a Ceuta e Tânger, à crise económica e às fomes em Entre-Douro-e-Minho e Beira, até ao embarque do Rei para Alcácer-Quibir. Fica claro que Filipe II de Espanha, tio do Rei, tentou por diversos meios demover D. Sebastião da empresa de África, pedindo mesmo ao Duque de Alba, D. Fernando Álvarez de Toledo y Pimentel, que enviasse um parecer circunstanciado sobre os perigos da guerra. Afinal, apesar da vitória dos cristãos na Batalha de Lepanto sobre os turcos, a conjuntura apresentava-se largamente desfavorável relativamente a uma intervenção em Marrocos, como veio a acontecer. O Rei persiste no intento, procurando mobilizar a fina-flor da nobreza – que, em grande maioria, sente no íntimo que se trará de uma aventura perigosa. Prevalece a ideia da pouca ponderação do monarca. A posição do Cardeal D. Henrique não oferece dúvidas, sendo claramente contrária ao projeto.

 

A PARTIDA PARA ÁFRICA
Até que finalmente na manhã do dia de S. João de 1578 ocorre a partida, com perto de mil velas em que entravam Galés e Galeões, Naus, Caravelas e “outras embarcações de toda a sorte, vela e remo”. Se a racionalidade vê com reserva a empresa, o aventureirismo excede-se em número e dimensão, o que também não facilitou a criação de condições favoráveis. Estava-se no verão, as condições atmosféricas eram desfavoráveis, pelo extremo calor, que reduzia drasticamente a eficácia das tropas mobilizadas. Na descrição rápida de que dispomos, depressa percebemos que tudo se encaminha para um desastre. Após 4 ou 5 horas de combate intenso, verifica-se a completa derrota dos exércitos de D. Sebastião e do seu aliado Abu Addallah Mohammed II Saadi (Mulei Mohammed) com quase 9 mil mortos e 16 mil prisioneiros, nos quais se inclui grande parte da nobreza portuguesa. A batalha ficaria conhecida como “dos três Reis”, todos mortos. D. Sebastião, ao finar-se, abriu de imediato uma grave questão dinástica. A morte deu-se em combate, tendo o seu corpo sido reconhecido por um grupo de nobres portugueses. Abu Abdallah Moahmmed II morreria afogado no rio Mocazim (Mekhazen) e, em sinal trágico, o vencedor da contenda Abdal-Malik I Saadi (Mulei Moluco), tio do aliado de D. Sebastião, também se finaria durante a batalha, uma vez que a sua saúde já era muito precária, tendo mesmo sido obrigado ao esforço de aparecer montado no seu cavalo antes da batalha, numa demonstração inútil de autoridade. Esta morte abriria caminho ao reinado de Amade Almançor Saadi (1578-1603). Precocemente desaparecido aos 24 anos, D. Sebastião é descrito como homem de estatura média, “alvo, loiro e, em boa maneira afigurado, dobrado em carnes e de grandes forças”. Sem grande pormenor e originalidade, a figura do rei é enaltecida pela elegância - “airoso a pé e muito a cavalo, principalmente à gineta, tomava lança com tanto ar, e seguro na sela, que obrigava a quem o via folgar de o imitar”. Trabalhador, determinado, “atrevido mais do que convinha a Rei”. Como caçador era, no entanto, imbatível, e ninguém ousava concorrer com ele. Nos amores, nada se lhe conhece. “Foi tão casto e honesto, que nunca lhe sentiram juntar-se com mulher, nem se inclinar à Damas do Paço no modo que nos Príncipes se permite e lhes é dado”…

 

MAUS AUGÚRIOS
Mas, ao autor não escapa o mau agoiro que rodeia a preparação da batalha. Dir-se-ia que tudo apontava para o desastre. E que sinais foram esses? A passagem de um cometa, o fogo ateado nas tercenas da pólvora, os sinais proféticos aparecidos em Trancoso, um ano antes, com a representação de gente de guerra, tal como se referia o livro dos Macabeus. Se tudo isto não fosse já suficientemente perturbador, ainda havia referência ao texto de S. Lucas sobre os desenganos da guerra, texto da liturgia diária da Missa celebrada perante o Rei. Ainda por cima, o Alferes-Mor encarregado de trazer o estandarte, embicou com ele de modo que “foi causa da bandeira se inclinar de má feição”, ainda que não caísse. Tudo eram sinais perturbadores que culminariam no facto da Galé onde estava El-Rei, apesar do mar quieto, ter sido abalroada por outra embarcação, tendo-lhe quebrado o esporão. Maus agouros acumularam-se. É certo que o autor procura evitar essas considerações pagãs, mas a verdade que não passam despercebidas, como maus augúrios, devendo-se haver “por admoestações e avisos certos”.  

 

O SIGNIFICADO DO MITO…
O sebastianismo, analisado criticamente, tem sido considerado uma «prova póstuma da nacionalidade». Contudo, fácil é de entender que o sebastianismo não é de compreensão fácil. Pode ser visto como um «avatar delirante», mas mais do que isso é o símbolo de uma história complexa que alterna momentos gloriosos e decadentes, em que a fatalidade e a vontade se entrecruzam e se alimentam mutuamente. Qual a relação entre o messianismo judaico e a ideia nacional de um império futuro? Eduardo Lourenço liga o mito cultural de Alcácer Quibir a uma «estrutura de ausência», vista como corolário do tempo em que substancialmente perdemos a independência, ainda que juridicamente tal nunca se tenha consumado verdadeiramente. E é assim que Portugal aparece como «ausente de si mesmo e esperando-se nessa ausência». Interrogando-se sobre os mitos portugueses, Eduardo Lourenço demarca-se das leituras negativistas e fatalistas, uma vez que considera, com Oliveira Martins, que a «estrutura de ausência» não pode confundir-se com a incapacidade de espera. E o certo é que o autor de “Portugal Contemporâneo” sempre se dispôs a crer em uma «Vida Nova», capaz de fazer regressar a pátria a um caminho de vontade e prosperidade. Ao contrário do que se exigiria, o sebastianismo, como mito, é uma prova póstuma da nacionalidade, mas também sonho ou vaga esperança messiânica – e neste ponto o ensaísta contemporâneo chega a Fernando Pessoa. E o poeta pensa no mito cultural como impulso libertador. No pensamento de Eduardo Lourenço estamos perante um «mito», mas não uma esperança de índole transcendente ou religiosa. É o «herói simbólico» que se apresenta – na tradição do ciclo bretão, do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda. E o tema do herói merece atenção. Por contraponto a D. Sebastião, há Nun’Álvares, os Filhos de D. João I e o Príncipe Perfeito. Contra o fatalismo, surge a vontade de Herculano temperada pela índole coletiva. Teixeira de Pascoaes ligou o sebastianismo à saudade lusíada (lembrança e desejo, de Duarte Nunes do Leão) e Costa Lobo procurou ancorar nas razões históricas as repercussões do cativeiro – desde as Cortes de Tomar a Dezembro de 1640. Lembramo-nos do Quinto Império de Vieira ou de Pessoa e é de um Império espiritual e cultural que se trata. Entrando de pleno no mundo dos mitos, Eduardo Lourenço chega ao século XX e longe de qualquer tentação ilusória, diz-nos, com clareza, que «o Portugal – D. Sebastião de Pessoa é todo-o-mundo-e-ninguém com ele Pessoa – D. Sebastião é ninguém-e-todo-o-mundo, um e outro, a “eterna criança que há de vir”, aquele que morre como particularidade nacional ou pessoal, para ser tudo em todos, exemplo de um mundo e de uma personalidade sem limites nem fim». Para o Padre António Vieira o que estaria em causa era um império sobrenatural, capaz de superar os «fumos da Índia» e as fragilidades que tinham conduzido a Alcácer Quibir. «Assim o que começou como um sonho de um Império redivivo termina com Pessoa em Império de sonho». E, deste modo, a propósito do «Desejado», Lourenço regressa à sua leitura histórica fundamental – da natureza imperfeita de Portugal como cais de partida e de chegada, do regresso ao infante D. Pedro das Sete Partidas, da compreensão da Europa como lugar de ambição mais amplo do que as suas fronteiras e de um universalismo heterogéneo de uma lusofonia de grandes diferenças e complementaridades, que obriga a entender os mitos e essa ligação extraordinária de reminiscências vicentinas de Todo o Mundo e Ninguém, metáfora de um império que se fez mundo fora na reunião de condições inesperadas e impossíveis, e de que o mais adequado símbolo é o herói picaresco por excelência da nossa literatura, Fernão Mendes Pinto.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

MADE IN PORTUGAL…

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TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

Diário de Agosto * Número 24

 

José de Guimarães intitulou esta sua obra como “D. Sebastião e Camões”. São dois símbolos que devem ser lidos, como nos ensinou Eduardo Lourenço, com perspetiva crítica. São duas faces da nossa existência coletiva que devem constituir desafios de exigência e rigor. António Sérgio e Jaime Cortesão refletiram sobre a necessidade de darmos sequência positiva ao melhor do que temos feito. Como? Pela fixação, pela criação de riqueza, menos pela lógica exclusiva do transporte. Contra a ideia de improviso e as curtas vistas – importa aproveitar nas melhores condições as nossas qualidades.

 

Hoje o “Made in Portugal” começa a ser, no mundo, exemplo de qualidade – na moda, no vestuário, na alimentação, nos vinhos, na investigação científica, nas novas tecnologias, nos serviços, no turismo. Poderemos dar muitos exemplos – mas o culto do rigor, da exigência e do planeamento não podem ser esquecidos. É bom preferir o que produzimos, se isso for sinal de maturidade e de qualidade – não se for protecionismo. Há um longo caminho a percorrer, com trabalho, planeamento, educação, ciência e cultura…

 

Um dia, António Alçada disse-me que ninguém definiu melhor a pátria do que Alexandre O’Neill no seu poema “País Relativo”. Leia-se verso por verso e veja-se como o poeta de “Feira Cabisbaixa” tem toda a razão. Portugal merece o nosso muito especial afeto pelo que tem de relativo, de imperfeito, mas capaz de ser melhor… António Tabucchi compreendeu-o também ao citar o “Pranto de Maria Parda” e ao chamar a atenção para o picaresco, ao lado do épico e do lírico. Nem melhores nem piores, nem heróis do mar nem lixo – apenas nós, capazes de sermos melhores, com capacidade de nos rirmos de nós mesmos…

 

«País por conhecer, por escrever, por ler...
País purista a prosear bonito,
a versejar tão chique e tão pudico,
enquanto a língua portuguesa se vai rindo,
galhofeira, comigo.
País que me pede livros andejantes
com o dedo, hirto, a correr as estantes.
País engravatado todo o ano
e a assoar-se na gravata por engano.
País onde qualquer palerma diz,
a afastar do busílis o nariz:
-Não, não é para mim este país!
mas quem é que bàquestica sem lavar
o sovaco que lhe dá o ar?
Entrecheiram-se, hostis, os mil narizes
que há neste país.
País do cibinho mastigado
devagarinho.
País amador do rapapé,
do meter butes e do parlapié,
que se espaneja, cobertas as miúdas,
e as desleixa quando já ventrudas.
O incrível país da minha tia,
trémulo de bondade e de aletria.
Moroso país da surda cólera,
de repente que se quer feliz.
Já sabemos, país, que és um homenzinho...
País tunante que diz que passa a vida
a meter entre parêntesis a cedilha.
A damisela passeia
no país da alcateia,
tão exterior a si mesma
que não é senão a fome
com que este país a come.
País do eufemismo, à morte dia a dia
pergunta mesureiro: - Como vai a vida?
País dos gigantones que passeiam
a importância e o papelão,
inaugurando esguichos no engonço
do gesto e do chavão.
E ainda há quem os ouça, quem os leia,
lhes agradeça a fontanária ideia!
Corre boleada, pelo azul,
a frota de nuvens do país.
País desconfiado a reolhar para cima
dum ombro que, com razão duvida.
Este país que viaja a meu lado,
vai transido mas transistorizado.
Nhurro país que nunca se desdiz.
Cedilhado o cê, país, não te revejas
na cedilha, que a palavra urge.
Este país, enquanto se alivia,
manda-nos à mãe, à irmã, à tia,
a nós e à tirania,
sem perder tempo nem caligrafia.
Nesta mosquitomaquia
que é a vida,
ó país,
que parece comprida!
A Santa Paciência, país, a tua padroeira,
já perde a paciência à nossa cabeceira.
País pobrete e nada alegrete,
baú fechado com um aloquete,
que entre dois sudários não contém senão
a triste maçã do coração.
Que Santa Sulipanta nos conforte
na má vida, país, na boa morte!
País das troncas e delongas ao telefone
com mil cavilhas para cada nome.
De ramona, país, que de viagens
tens, tão contrafeito...
Embezerra, país, que bem mereces,
prepara, no mutismo, teus efes e teus erres.
Desaninhada a perdiz,
não a discutas, país!
Espirra-lhe a morte pra cima
com os dois canos do nariz!
Um país maluco de andorinhas
tesourando as nossas cabecinhas
de enfermiços meninos, roda-viva
em que entrássemos de corpo e alegria!
Estrela trepa trepa pelo vento fagueiro
e ao país que te espreita, vê lá se o vês inteiro.
Hexágono de papel que o meu pai pôs no ar,
já o passo a meu filho, cansado de o olhar...
No sumapau seboso da terceira,
contigo viajei, ó país por lavar,
aturei-te o arroto, o pivete, a coceira,
a conversa pancrácia e o jeito alvar.
Senhor do meu nariz, franzi-te a sobrancelha;
entornado de sono, resvalaste para mim.
Mas também me ofereceste a cordial botelha,
empinada que foi, tal e qual clarim!»

(Feira Cabisbaixa 1965).

 

   Agostinho de Morais

 

 

 

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A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
#europeforculture