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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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DAVID MOURÃO FERREIRA E O TEATRO


Como já aqui escrevemos, David Mourão Ferreira, é um exemplo flagrante deste grupo escolhido de talentos multiformes. Escritor inconfundível e ímpar na obra, em extensão, variedade e qualidade, deixou escritos memoriais onde evoca a sua participação direta, como ator e como dirigente de iniciativas que marcaram a renovação cultural do teatro- espetáculo ao longo dos anos 50-60. Isto, conciliado, no que respeita ao teatro, com a escrita e a produção de algumas peças de notabilíssima qualidade, no ponto de vista poético-literário e no ponto de vista técnico-dramatúrgico.

Cito, nessa área específica da criação teatral, “Isolda”, estreado em 1948 no Teatro Estúdio do Salitre, grupo percursor da renovação modernizante do teatro português, a que se seguiu “Contrabando”, (1956) e “O Irmão”, esta escrita originalmente em 1955 e sucessivamente ampliada e alterada, até à versão e edição definitiva em 1988.

E nesta dramaturgia breve conciliam-se aspetos estruturais da obra vasta e variada de David, no teatro, na poesia, na ficção e no ensaio e docência: designadamente, nos contextos dramáticos contemporâneos, uma referencia permanente a padrões e paráfrases que percorrem desde a tragédia grega ao realismo social dos dias de hoje. Tudo isto num termo de modernidade e qualidade ímpar da escrita: e não por acaso a vida e a obra surgem diretamente ligadas a versões cinematográficas da sua ficção.

Mas voltemos ao teatro. Em 1997, a revista Colóquio/ Letras da FCG (nº145/146) publicou um vasto memorial sobre David Mourão Ferreira, que abre com uma extensa entrevista de vida e obra concedida por David. A edição inclui em destaque a reprodução fac-similada do manuscrito não datado mas claramente dos primeiros anos do autor David Ferreira, de uma pequena peça intitulada “O Intrujão - peça em dois atos” (8 páginas) com a seguinte anotação: “esta peça é dedicada à Ex.ma Srª Professora D. Carmen”.

E justamente: este escritor de obra imensa e variada, mas limitada no teatro a quatro textos, sendo um esquecido (“O Irmão)”, outro nunca publicado (“Isolda”) os outros publicados mas profundamente e sucessivamente alterados até às versões finais, foi ator no Teatro Estúdio de Lisboa, companhia referencial. da renovação do teatro português – e foi ainda ator esporádico em outas produções e em outros espetáculos.

Lembremos as suas recordações na entrevista citada:

“Comecei por participar num grupo de teatro da própria faculdade (…) Depois, em 1948, tinha vinte e um anos, comecei a representar (…) num grupo de teatro que teve grande importância nesses anos em Portugal, e que tem muito a ver com a Itália porque tinha a sede no Instituto Italiano de Cultura. Tratava-se do Teatro-Estúdio do Salitre dirigido por Gino Saviotti, também diretor do Instituto e que era uma figura muito interessante (…). O repertório de peças que nós representávamos era basicamente italiano e português mas levaram-se à cena autores portugueses que nunca tinham sido representados, alguns muito jovens como era o meu caso; representaram-se duas pequeninas peças minhas (…) “Isolda” e “Contrabando”. Entrei como ator em peças da Comedia dell Arte e dum autor do século XVII. (…) No começo dos anos 50 ainda tive uma certa atividade como ator”…

Em artigo que publiquei na revista Colóquio citada, identifiquei pelo menos duas intervenções de David Mourão Ferreira no TES: “Florina” de Angelo Beolco, e “O Rei Veado” de Carlo Gozzi.  

E mais uma nota pessoal: em conversas com David Mourão Ferreira, a propósito de estudos que publiquei sobre o seu teatro, David referiu-me a intenção de escrever uma peça inspirada na vida e obra de Garrett. Ora, bem podemos dizer que há afinidades entre estas duas grandes figuras da cultura portuguesa – cada um na sua época, no seu estilo, na sua biografia pública, literária e até política –ambos integraram governos, ambos marcaram a cultura e a sociedade – há realmente paralelismos e convergências.

Mas sobretudo ambos foram profundamente renovadores da época respetiva, e como tal continuam ambos profundamente modernos.

 
DUARTE IVO CRUZ

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

XXXI - DAVID MOURÃO FERREIRA

 

“Não acredito propriamente no Quinto Império; nem estou seguro do advento da Idade do Espírito Santo. Mas reconheço o que estas utopias contêm de positivo e de exaltante se delas não excluirmos a Magia do Corpo e da Palavra, a Palavra e o Corpo da Magia. E continuo a crer que os textos literários de matriz lusófona terão, também quanto a isto, um principal papel a desempenhar” (David Mourão Ferreira, “Magia, Palavra, Corpo: Perspetivas da Cultura de Língua Portuguesa”, Cotovia, Lisboa, 1993, p. 28).

 

Esta citação do texto de David Mourão Ferreira, parece ter por função não permitir confundir o discurso (pretensamente objetivo) do seu autor com quaisquer conceções providencialistas, míticas ou messiânicas, tantas vezes cheias de emotividade, sobre o destino manifesto e universal do povo português, do seu insondável mistério e da sua irreduzível originalidade, afastando, desde logo, qualquer familiaridade com a ideia do Quinto Império, de Joaquim de Fiore, Padre António Vieira e Fernando Pessoa, com a Idade e Culto do Espírito Santo, de Agostinho da Silva e António Quadros, com as teorias providencialistas, ocultistas e esotéricas, com particularidades próprias, de António Telmo, Manuel Gandra, Dalila Pereira da Costa, Eduardo Amarante, Rainer Dachnhardt, Raul Leal e Augusto Ferreira Gomes, o sebastianismo ou a saudade de António Sardinha, o lirismo sonhador de Jorge Dias, entre outros.

 

Conclusão que as palavras seguintes não confirmam, dado reconhecer o que essas utopias têm de construtivo, desde que assentes no valor da língua, para além da crença no papel a desempenhar pela palavra escrita, neste particular pela literatura de matriz lusófona.

 

Assim, apesar de todos os cuidados tidos pelo autor para se exprimir, não deixa de, curiosamente, permitir que se coloque o seu prognóstico num lugar próximo ao que as conceções do Quinto Império e do Espírito Santo têm de comum: o visionar e o advento de um tempo novo ou de uma nova era em que Portugal, neste caso, a Cultura da Língua Portuguesa, tem uma missão fraternal e solidária a cumprir, por desígnios manifestos da sua própria história, e o constatarmos revestir-se essa missão de um universalismo augurado em vários momentos da nossa existência secular. Cita, a propósito, Afonso Lopes Vieira ao admitir, cinquenta anos antes, a enorme importância do número de falantes que viriam a exprimir-se em língua portuguesa.

 

Nesta perspetiva, encontramos aqui, uma vez mais, a tal linha de continuidade entre utopias que só aparentemente são diversas: a do Quinto Império, religioso para António Vieira, cultural para Fernando Pessoa, a da Idade do Espírito Santo para Joaquim de Fiore, Agostinho da Silva e António Quadros, a da Era Lusíada para Teixeira de Pascoais e a da Cultura de Língua Portuguesa para David Mourão Ferreira.

 

Sonhos ou utopias que pressupõem todos uma realidade espiritual, imaterial, um universalismo como vocação de um Povo ou de uma Cultura que conseguirá com vantagem substituir-se ao poder predominantemente económico que outras culturas atualmente dispõem.

 

Defende, porém, uma relação igualitária da cultura portuguesa com outras culturas de língua portuguesa, defendendo uma Comunidade Lusófona com uma componente de absorção e recetividade, em termos linguísticos e literários, criticando os que se crispam ao verem o nosso léxico “invadido” por termos vindos de outros países lusófonos (por exemplo, de telenovelas brasileiras ou de canções cabo-verdianas), posição também defendida por Eduardo Lourenço e Gilberto Freyre. Refere palavras de Afonso Lopes Vieira, segundo as quais “para tal glória da Linguagem é mister que a leguemos pura e forte, latina na raiz e nacarada nos Trópicos, com a sintaxe plantada em chão natal, mas liberal no acolher de vocábulos, Língua sempre dona e perpétua donzela, nobre de passado senhorial e crioula em todas as latitudes, capaz, enfim, de aparelhar com gesto airoso para os rumos prodigiosos do porvir” (ibidem, p. 7).

 

Portugal crescerá porque a sua língua crescerá também, em comunhão de esforços com o restante mundo lusófono, apesar do caráter mais restrito desta Cultura de Língua Portuguesa, em termos literários e linguísticos, a que não foi alheia a profissão do seu autor.  

 

20.03.2018

Joaquim Miguel De Morgado Patrício 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

    Minha Princesa de mim:

 

   A história de Isaac e Rebeca vem contada no livro do Génese, no capítulo 24. O anterior é curto, regista a morte de Sara, mãe de Isaac, e a sua inumação na gruta do campo de Makpela, em Canaã, onde mais tarde também o corpo de Abraão, seu marido, será tornado à terra. Isaac será o único herdeiro universal de Abraão, o pai dos povos, é elo fundamental da linhagem dos eleitos. Por isso o Patriarca mandara o mais velho dos seus servos à cidade de Nahor, seu irmão, para aí escolher, entre as suas parentes, a que seria a mulher de seu filho. O sinal do reconhecimento de Rebeca é proposto, em oração, pelo próprio servo a Yahvé: será aquela que lhe der de beber, e aos seus camelos, quando lhe pedir água. Rebeca é filha de Nahor, prima, portanto, de Isaac. E irmã de Labão, que a autorizará a seguir com o servo de Abraão até à terra deste, em Canaã. Mais tarde, será o mesmo Labão que dará as suas filhas - Lia, primeiro, Raquel depois - em casamento a Jacó, filho de Isaac e Rebeca. Lembras-te do lindíssimo soneto de Camões? Sete anos de pastor Jacó servia / Labão, pai de Raquel, serrana bela / mas não servia o pai, servia a ela / que a ela só por prémio pretendia... Aí o tens, é esse mesmo.

 

   Quando o servo e a noiva chegaram ao país de Negeb, onde Isaac vivia, este, conta-nos a narrativa bíblica, saíra de casa para passear nos campos, ao cair do dia, e erguendo os olhos viu camelos a aproximarem-se. E Rebeca, erguendo os olhos, viu Isaac. Desceu do camelo e disse ao servo: "Quem é aquele homem que vem pelos campos ao nosso encontro?" O servo respondeu: "É o meu senhor"; então, ela pegou no véu e cobriu-se. O servo contou a Isaac tudo o que tinha feito. E Isaac levou Rebeca para a sua tenda. Tomou-a, ela tornou-se sua mulher e ele amou-a. E Isaac consolou-se da perda de sua mãe. Não sei dizer-te bem porquê, mas há neste texto algo de muito belo, que me comove. Rebeca cobre a cabeça e o rosto, como as noivas judias, em sinal de reserva, como quem embrulha um presente (perdoa-me, compreende a lhaneza da comparação). E depois de se unir à mulher, Isaac sente-se consolado da morte de sua mãe, porque realiza que volta a regressar às origens. Eis uma experiência erótica profundamente humana e mística. O que mais me choca na pornografia devassa que por aí tanto se vende, é o desvio, o encobrimento da beleza intrínseca do erotismo. No sentido que lhe deu Georges Bataille, e eu tantas vezes recordo: L´érotisme c´est l´affirmation de la vie jusque dans la mort. Um ser monocelular reproduz-se dividindo-se, morre um para resultarem vários. Nós fazemo-lo unindo-nos, essa união de dois - que inevitavelmente morrerão - afirma, continua a vida na sua descendência.

 

   O poema de David Mourão Ferreira, que Amália canta, é claramente erótico, inconscientemente místico. Cito de memória, perdoar-me-ás, Princesa, um qualquer lapso: Bebi por tuas mãos esta loucura / de não poder viver longe de ti... / És a noite que à noite me procura / és a sombra da casa onde nasci... // Deixa ficar comigo a madrugada / para que a luz do sol me não constranja, / numa taça de sombra estilhaçada / deita sumo de lua e de laranja... //  Só os frutos do céu que não existe / só os frutos da terra que me deste / irão fazer-te a ausência menos triste / tornar-me a solidão menos agreste... // Vou recolher à casa onde nasci / por teus dedos de sombra edificada... / Nunca mais, nunca mais longe de ti / se comigo ficar a madrugada!

 

   Na pintura da Noiva Judia de Rembrandt, a mão direita do noivo (Isaac) pousa levemente no ventre da noiva (Rebeca), cuja mão delicada se une à do seu eleito numa carícia. Ambos, afinal, acariciam o fruto do ventre dela, que é deles dois. Nós, humanos, somos, ontologicamente, relação. Por isso, o filho pródigo regressa sempre. Porque é de saudade que vivemos.

 

          Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira