Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
É tempo de recordar que a Constituição da República fará em breve cinquenta anos, e que celebrámos meio século das primeiras eleições com sufrágio universal, pelo que importa tirar lições no sentido de aprofundar o compromisso democrático.
O segundo Pacto MFA-Partidos foi assinado em 26 de fevereiro de 1976. Era uma nova solução e não uma simples modificação do primeiro Pacto. Como reconheceu Miguel Galvão Teles, os nossos militares conseguiram fazer uma coisa extraordinária: cumpriram rigorosamente a sua missão de fazer sair as Forças Armadas da cena política. Os militares conseguiram preparar a sua saída do palco no sentido do normal jogo democrático, deslocando a legitimidade para os partidos políticos e para o Presidente da República. O compromisso constitucional de 1976 procurou, assim, ser coerente com o conceito de democracia representativa pluralista, limitada pela competência revolucionária militar e jurisdicional do Conselho da Revolução, semipresidencial ou de parlamentarismo racionalizado, descentralizada, participativa, no âmbito de um Estado de Direito. Marcam-no a tentativa de fazer uma síntese original entre a democracia representativa tradicional e a formulação de um programa de transformação económica. A articulação entre os direitos, liberdades e garantias fundamentais e os direitos económicos e sociais consignavam uma autêntica liberdade económica que devia gozar de proteção idêntica a qualquer outra das liberdades previstas na Lei Fundamental. Aliás, a definição do setor privado da economia por exclusão de partes levava, por exemplo, António Sousa Franco a considerar tal setor como regra, segundo a noção de uma Constituição material consagradora da liberdade do mercado.
O carácter compromissório da Constituição é assim evidente. Veja-se que os direitos, liberdades e garantias e a democracia política resultam da convergência PS, PPD e CDS; o socialismo, da confluência do PS, PPD e PCP; os aspetos coletivistas do entendimento PS-PCP; o sentido personalista – PPD-CDS; os direitos sociais, a autogestão e o planeamento foram defendidos pelo PS; as autonomias regional e local e as garantias jurisdicionais pelo PPD; a defesa das nacionalizações, a reforma agrária e as organizações populares de base pelo PCP; e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a iniciativa privada pelo CDS, como salientou Jorge Miranda. Os diversos contributos são nítidos e dão ao texto constitucional de 1976 uma configuração poliédrica e aberta, que se tem adaptado bem à evolução da realidade. Num primeiro período que podemos autonomizar na vigência constitucional (1976-1982), verifica-se uma separação de esferas de competência entre as instituições militares e as civis – sequela do período revolucionário. Após a revisão constitucional de 1982 dar-se-ia início ao segundo período de vigência da Constituição, já numa lógica europeia, tendo sido extinto o Conselho da Revolução e institucionalizada a subordinação das FA ao poder civil democrático, procedendo-se a uma redistribuição das competências do órgão extinto. Foi então criado o Tribunal Constitucional e na Constituição Económica procedeu-se à atenuação das fórmulas ideológicas unilaterais. Já com a revisão constitucional de 1989 deu-se início a um terceiro período de vigência constitucional, dominado pela abertura económica, pelo fim do princípio da irreversibilidade das nacionalizações (graças à interpretação segundo a qual a dupla revisão constitucional permitia superar a “irreversibilidade”) e pela abertura da possibilidade de reprivatizações a cem por cento de empresas nacionalizadas após 25 de abril de 1974.
No domínio cultural, importa recordar o que afirmou a deputada constituinte Sophia de Mello Breyner Andresen sobre as liberdades de criação cultural e de aprender e ensinar. “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exatamente porque é capaz de criar a cultura”. A luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas pela liberdade do povo – liberdade de expressão e de cultura. “Queremos uma relação limpa e saudável entre a cultura e a política” – insistiu a deputada. “Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anti cultura e toda a anti cultura é reacionária”. Premonitoriamente, contra todos os dirigismos e totalitarismos, a poeta deixava claro um sentido essencial para a interpretação da nova Constituição – sendo a liberdade a pedra angular, contra os referidos dogmatismos indiscutíveis e os maximalismos irreais. Por isso, atacava o “poder totalitário”, que persegue o intelectual e manipula a cultura. “Nenhuma forma de cultura se pode atribuir o direito de destruir ou menorizar outras formas de cultura”. Mas havia que considerar a educação como objetivo essencial. “Ensinar é pôr a cultura em comum e não apenas a cultura já catalogada e arrumada do passado, mas também a cultura em estado de criação e de busca”. Que melhor forma poderíamos encontrar para falar do tema da Educação? E que deve ser a liberdade de aprender e ensinar senão a procura de “novas formas de ensino que possam procurar, ensaiar e inventar”? Tudo, em nome de um “ensino livre onde nenhuma iniciativa seja desperdiçada”, sendo a escola vista como lugar de liberdade e de justiça, de participação e de solidariedade.
O compromisso complexo alcançado em 1976 correspondeu, pois, ao culminar de um processo de construção democrática marcado não só pela história constitucional inaugurada em 1820, mas também pela longa experiência de uma nação antiga fundada no que Jaime Cortesão designou como fatores democráticos. Assim, o compromisso assumido em 25 de abril de 1974 pelo Movimento das Forças Armadas pôde ser cumprido pela convergência entre os poderes militar e civil, e pelo acordo político estabelecido entre as forças políticas com assento na Assembleia Constituinte.
O processo complexo de génese do compromisso constitucional corresponde à convergência entre o impulso insubstituível do Movimento das Forças Armadas e a capacidade alcançada pelos partidos políticos e movimentos sociais no sentido de gerarem um documento marcado pelo tempo em que foi elaborado, mas suficientemente flexível para se adaptar às novas circunstâncias, em especial da integração europeia e da relação com o mundo da língua portuguesa, no âmbito da CPLP. O Movimento das Forças Armadas soube, assim, superar naturais vicissitudes internas, e as forças políticas e sociais democráticas puderam preservar o pluralismo e a legitimidade representativa dos interesses e valores da sociedade e da cidadania. Na história constitucional portuguesa temos hoje um período singularmente longo de permanência do sistema, graças às suas virtualidades, suscetíveis de aperfeiçoamento até pela previsão (ainda não concretizada) de um círculo nacional (artigo 149º), introduzido na revisão constitucional de 1997. Importa assim salvaguardar momento a momento “o respeito da vontade do povo português”.
Para grandes males grandes remédios. Vivemos um dos momentos mais graves da história contemporânea. O que aconteceu nos últimos dias na cena internacional, quanto a hesitações, avanços, recuos e discursos absurdos assemelha-se aos tempos mais tristes da história. Precisamos de cabeça fria e nervos de aço, para não corrermos atrás dos estranhos acontecimentos que povoam o mundo… O caos instalado está a prejudicar todos e corresponde a uma pulsão suicida, que se assemelha à parábola dos cegos no precipício. E nós portugueses, ainda que distantes do epicentro do temporal, não podemos alhear-nos do que se passa. Somos, por isso, chamados à responsabilidade.
Há dias, numa entrevista de rara lucidez, com a coerência que lhe conhecemos, António Barreto disse preto no branco o que deve ser dito: “Se houver maioria de um só partido ou se os dois partidos centrais fizerem coligação e governo talvez haja uma mudança positiva. Haverá mais possibilidades de resolver a questão dos financiamentos europeus, os problemas de segurança e defesa e o relançamento do Serviço Nacional de Saúde. Talvez a justiça mereça mais atenção por parte do legislador; depois destes anos de verdadeira desordem institucional. (…). Defendo um governo de coligação nacional, com os dois maiores partidos, com um programa escrito, assinado com validade para quatro anos” (DN, 28.3.2025). Está tudo dito. E não se perca muito tempo. Sabemos que há mil argumentos sobre futuros imponderáveis, contudo a coragem obriga a forçar os acontecimentos e a não seguir os falsos lugares comuns. Estamos numa circunstância única. Não podemos dar-nos ao luxo de continuar a debater o sexo dos anjos.
Veja-se o que ocorre neste momento na Alemanha. Os riscos da grande coligação são evidentes, mas a ausência de uma solução forte determinaria necessariamente uma crise arrastada e fatal. Num tempo em que se tornou moda não ouvir a ciência e a sabedoria, devemos desconfiar das frases bombásticas e das simplificações grotescas. Impõe-se, pois, criar condições de governabilidade e se as mesmas funcionarem, não há o perigo de dar argumentos aos discursos radicais, pois já sabemos do que não são capazes e dos efeitos nefastos das suas políticas. Mais do que a moderação, precisamos de cuidar do bem comum e do interesse geral. Os maiores economistas do último século e meio – Knut Wicksell e John Maynard Keynes – ensinaram-nos a necessidade de estarmos atentos aos acontecimentos, às incertezas e à “experiência madre de todas as cousas”. Para o sueco, importaria encontrar consensos duráveis nas políticas estruturais entre os principais partidos, para que as alternativas pudessem funcionar nos ciclos eleitorais democráticos, sem sobressaltos e demagogias. Para o britânico, haveria que ligar a procura efetiva global à capacidade de realizar investimentos reprodutivos pelos diferentes agentes económicos privados e públicos, com atenção especial à criatividade, à ciência e até à arte. Infelizmente, um certo hedonismo cínico tem esquecido estes elementares ensinamentos e o nosso antigo “saber todo de experiências feito”, que Camões elogiou no centro de “Os Lusíadas”. Gerir é menos que governar, e do que precisamos é de capacidade para dar um rumo, uma orientação à sociedade e ao Estado, centrada no pluralismo, na liberdade e no Estado de Direito. Eis o que importa.
NOTA - O título da crónica é o mesmo do livro que escrevemos em 1978 com António Rebelo de Sousa.
A superioridade da democracia é muitas vezes atribuída ao papel que a discussão, a participação generalizada dos interessados e o confronto de opiniões têm nela. A emoção das grandes decisões e das grandes opiniões dá-lhe muitas vezes o aspecto de um jogo divertido e interessante; e tem ainda por cima a vantagem de, ao contrário do futebol dos Aztecas, não requerer o uso de cabeças humanas. Esta ideia geral sobre a superioridade da democracia coexiste porém com uma noção generalizada, mais sombria, sobre o pouco que se pode esperar de uma discussão e o pouco que as opiniões mudam por causa do confronto de opiniões; e com a noção aparentemente oposta mas porventura ainda mais sombria de que se a participação dos interessados nas decisões fosse total os resultados seriam os melhores para todos.
Pelo contrário, uma vantagem não negligenciável da democracia parece-me antes ser a de não exigir a discussão permanente, a participação generalizada dos interessados, ou o confronto de opiniões; e de os substituir pelo voto periódico. O processo tem inúmeras virtudes. Uma das principais é a de, pelo facto de, salvo em regimes mais duvidosos, o voto não ser obrigatório, as pessoas terem a possibilidade de não votar. E essa é a principal diferença entre a democracia e as variadas formas de tirania: a participação dos interessados nas decisões não é requerida; a falta de interesse não é punida; e ninguém é excluído por não mostrar as virtudes cívicas relevantes. A baixa afluência às urnas lembra-me países que admiro e enche-me quase sempre de alegria – e a alta afluência lembra-me países que não admiro, e enche-me quase sempre de preocupação.
Esta ideia de democracia supõe uma ideia particular de política e de governação. Por exemplo, contraria a ideia de que a política e a governação sejam uma forma de entretenimento, de manipulação, ou dependam demasiado do amor dos governados; diminui a importância que nela têm os grandes desígnios, as epopeias públicas e, sobretudo, as frases memoráveis. Chama, pelo contrário, a atenção para o papel de uma série de actividades baças e, apresso-me acrescentar, completamente legais: decisões técnicas, com certeza, mas também mudanças imperceptíveis em leis e soluções baseadas em compromissos; dilemas que são vividos sem fingir que se conhece a solução, e que são expressos por memorandos de prosa detestável; alterações de opinião sobre assuntos que só quatro seres humanos alguma vez perceberam; momentos de improvisação, segredos e ignorância; e muitas horas passadas cortesmente a falar com pessoas com quem nunca por livre escolha se beberia um café. A isto tudo um autor chamou “governação sem graça.” “A falta de graça”, como ele observou, “deve ser o nosso lema”.
Miguel Tamen Escreve de acordo com a antiga ortografia
A morte de Bernard Manin (1951-2024), mestre indiscutível da ciência política moderna, com fecunda obra produzida na Europa e nos Estados Unidos e um reconhecimento geral, coincidem com a conjuntura complexa que atravessamos. E pode dizer-se que as suas lições são fundamentais para agora, devendo estar bem presentes para que não continuemos a viver uma perigosa letargia animada pela repetição de estranhos lugares-comuns. Não podemos cruzar os braços perante a erosão da democracia. Por isso, o seu livro Principes du gouvernement représentatif (Calmain-Lévy, 1995) merece releitura atenta. Fala-nos das invenções institucionais experimentadas pelas três revoluções modernas inglesa, norte-americana e francesa e renovou significativamente a compreensão da democracia representativa, centrando-se no consentimento dos cidadãos, diferentemente da democracia ateniense até às repúblicas italianas da Renascença, em que o tirar à sorte correspondia ao método igualitário por excelência. A prevalência da legitimidade do voto concede à decisão popular uma legitimidade aristocrática, a que se juntam os princípios do governo representativo: eleição periódica dos governantes pelos governados, ausência de mandatos imperativos, liberdade da opinião pública e decisão pública depois de confronto e discussão de ideias. É a plasticidade destes princípios que permite a adaptação da democracia às transformações sociais. As investigações de Bernard Manin decorrem de um método muito pertinente: estudar os discursos e as práticas do passado para fazerem luz sobre o presente.
Com a releitura dos pensadores clássicos e a análise das instituições políticas, encontramos as bases para a descoberta de caminhos que visam ultrapassar a atual crise da democracia. Dois são os modelos de limitação do poder de que parte – a limitação pela regra ou pela delimitação de esferas de competência e a limitação pelo equilíbrio de poderes. Estudioso profundo de Montesquieu e da sua atualidade, opôs no plano filosófico o liberalismo monista, na linha de Hayek, e um liberalismo pluralista, na linha de Isaiah Berlin. Assim, pôde ler o autor das Cartas Persas considerando os riscos atuais das autocracias e das novas tendências para a concentração de poderes, sob influência económica e tecnológica. Dir-se-ia que no horizonte se desenham sombras preocupantes de um novo despotismo oriental, sob vestes inesperadas, mas igualmente perturbadoras. Aliás, a última obra, ainda inédita, que nos deixou sobre a quarta feira.Revolução francesa e as origens do Terror, Un Voile sur la Liberté, deverá revelar importantes pistas de reflexão para o tempo atual. É impressionante a atualidade das reflexões que Bernard Manin nos deixou, designadamente quanto ao compromisso social-democrata e sobre a sua perenidade, com Alain Bergounioux – ligando a legitimidade da lei e do voto e a legitimidade do exercício e da justiça e pondo a tónica na ideia de deliberação política. Daí ainda a importância da análise dos dispositivos constitucionais de natureza excecional, comparando a ditadura romana, o estado de sítio, a suspensão do habeas corpus e a lei marcial, no contexto da abolição provisória da ordem constitucional. De facto, a democracia como sistema de valores, centrados na dignidade humana e na salvaguarda da liberdade e dos direitos fundamentais, apenas pode afirmar-se plenamente se o primado da lei for servido pelo compromisso dos cidadãos e pela limitação do poder.
Quando lembramos as datas fundamentais do constitucionalismo português (1820, 1834, 1910 e 1974), verificamos que correspondem à necessidade de concretizar a democracia como permanente atenção à liberdade, à responsabilidade e à participação, enquanto cidadania ativa, como respeito mútuo e defesa dos valores éticos. Em 1820 e na Constituição de 1822 o absolutismo cedeu lugar à soberania dos cidadãos e à separação, interdependência e limitação dos poderes. Depois da guerra civil, a causa de D. Pedro e de D. Maria da Glória viu reconhecida a vitória da liberdade em Évora Monte e a Carta Constitucional de 1826 pôde renovar o caminho para o Estado liberal, graças à Constituição de 1838 e ao Ato Adicional à Carta de 1852, que permitiram à Regeneração modernizar o País, aproximá-lo da Europa e pôr a tónica no primado da lei e na liberdade de opinião, sendo a proibição ocorrida nas Conferências do Casino de 1871 uma singular exceção, que levou à solidariedade entre os jovens amigos de Antero de Quental e a primeira geração romântica, representada por Alexandre Herculano. A República de 1910 e o republicanismo, de que foi símbolo a “Renascença Portuguesa”, representou a procura de um novo alento para os valores democráticos. Daí a necessidade de compreendermos o que Jaime Cortesão afirma sobre a importância dos fatores democráticos na formação de Portugal (envolvendo a independência da nação, a legitimidade das Cortes de Coimbra de 1385, a aclamação de D. João I, o municipalismo, os descobrimentos, a Restauração e a proclamação da liberdade) – consumados no constitucionalismo.
Após a ditadura (1926-1974), ao chegarmos a 25 de abril de 1974, tratou-se de fazer renascer a democracia em toda a sua vitalidade num contexto europeu e no concerto das nações, pela autodeterminação e independência dos países de língua oficial portuguesa. Em 1820, com todas as vicissitudes conhecidas, renovou-se a tradição portuguesa, a um tempo fiel ao espírito de independência de D. Afonso Henriques e de D. Dinis, e à audácia de 1383-1385 e da Ínclita Geração e dos Altos Infantes, mas também às tradições do povo e à expansão da língua portuguesa em todos os continentes. A democracia e o constitucionalismo não são obra do acaso, mas de trabalho persistente e de grandes responsabilidades. A opção europeia, a “Europa Connosco” de Mário Soares (1976), com a adesão de pleno direito a partir de 1986 às Comunidades Europeias, hoje União Europeia, e a entrada na moeda europeia, o Euro, depois de 2001 fazem pleno sentido no âmbito da afirmação da identidade democrática de Portugal no âmbito da cooperação entre Estados e cidadãos soberanos e livres, para quem a cultura é um fator de emancipação e desenvolvimento. Fiel às raízes históricas de uma identidade de nove séculos, Portugal, a cultura e a língua afirmam-se como realidades abertas e acolhedoras, em nome da diversidade matricial de um cadinho de várias influências. Língua de várias culturas, cultura de várias línguas – eis a chave desta convergência de fatores. Nas artes e na literatura, na educação, na cultura e na ciência, Portugal afirma-se através de nomes como Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, Vitorino Nemésio, Vergílio Ferreira, José Régio, Alves Redol, José Cardoso Pires, António Ramos Rosa, Herberto Helder, Manuel Alegre, Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, Ruy Belo, Eduardo Lourenço, David Mourão-Ferreira, Augusto Abelaira, José Saramago, António Lobo Antunes, Manuel António Pina, Lídia Jorge, Nuno Júdice ou de artistas como Maria Helena Vieira da Silva, Paula Rego, Júlio Pomar, Ângelo de Sousa, Graça Morais, Siza Vieira, mas também Agustina Bessa-Luís, Maria Judite de Carvalho, Fernanda Botelho, Isabel da Nóbrega, Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. A atribuição a José Saramago do Prémio Nobel da Literatura em 1998 é corolário da afirmação da cultura da língua portuguesa como marca do Portugal democrático.
As marcas da contemporaneidade portuguesa são a abertura e a liberdade. O primado da lei, a legitimidade do voto, a legitimidade do exercício e a justiça como valor ético – distributiva e intergeracional – constituem os elementos cruciais de uma cultura de respeito mútuo, de solidariedade e de proximidade, centrada na dignidade da pessoa humana.
Como imaginar o futuro da democracia em Portugal? Eu tinha vinte e um anos em 25 de Abril de 1974 e as esperanças que tive nesse tempo mantêm-se. O mundo alterou-se profundamente, mas as preocupações fundamentais persistem. “Por um país de pedra e vento duro / Por um país de luz perfeita e clara / Pelo negro da terra e pelo branco do muro” – assim definiu a Pátria Sophia de Mello Breyner (Livro Sexto, 1962). É a dignidade humana dos portugueses, como seres livres e iguais em dignidade e direitos, que está em causa, muito mais do que longas listas de boas intenções. E se a palavra-chave é Democracia, temos de compreender que é um sistema de valores que está em causa. Temos de estar determinados numa cidadania inclusiva, muito mais do que em desenvolver estados de alma ou do que propor listas de encargos. Urge combater a indiferença e a mediocridade, bem como a tentação das soluções providenciais. Ou os cidadãos e a sociedade toda assumem responsabilidades, pela descentralização, pela participação e pela subsidiariedade ou o fatalismo do atraso e a subalternização prevalecerão. É o Estado de Direito que temos de continuar a aperfeiçoar – com o primado da lei, a justiça justa e célere, a transparência nas instituições, instâncias mediadoras próximas dos cidadãos, governo do país pelo país, poderes locais prestigiados e eficazes, legitimidade do exercício, avaliação e prestação de boas contas, economia humana, preservação da biosfera e da qualidade ambiental… Aplique-se, por exemplo, a Constituição, quando prevê no sistema eleitoral um círculo nacional em complemento da proporcionalidade.
Ter caminhado de 25 por cento de analfabetos, há cinquenta anos, para um número despiciendo hoje foi um avanço significativo que deve ser preservado e consolidado. O mesmo se diga da mortalidade infantil, da escolaridade obrigatória de 12 anos, da melhoria nos índices de retensão e de abandono escolares, mas também do investimento em investigação científica e da cooperação internacional. A qualidade das aprendizagens no ensino e na formação tem de melhorar, valorizando e avaliando as escolas, os professores e educadores e criando uma responsabilidade partilhada com as comunidades e as famílias. O aumento da esperança média de vida, o crescimento da população com mais idade, a melhoria na qualidade dos cuidados de saúde e o envelhecimento ativo, eis o que não poderemos esquecer. Como disse Eduardo Lourenço, temos de ser nós próprios, sem a tentação de ilusões de grandeza ou de miséria, em nome de um patriotismo prospetivo e audaz. Só a democracia pluralista e a cidadania inclusiva preservar-nos-ão de perigosos retrocessos. Só se formos exigentes, se soubermos querer, se cuidarmos do partir e do regressar, se dispusermos do saber de experiências feito, se tivermos memória, se não esquecermos o legado de quem nos antecedeu, se planearmos e avaliarmos – é que podermos ser relevantes. A Europa e os mundos da língua portuguesa abrem-nos horizontes de diálogo, de cooperação e intercâmbio que temos de prosseguir, porque a cultura da paz obriga a maior partilha de soberanias. Como na “Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya” de Jorge de Sena, cabe-nos desejar “Um simples mundo, / onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém / de nada haver que não seja simples e natural” (Metamorfoses, 1963).
O ser humano nasceu imperfeito, é imperfeito e será sempre imperfeito. A democracia surgiu imperfeita, é imperfeita e será sempre imperfeita. A liberdade germinou imperfeita, é imperfeita e será sempre imperfeita. Pela sua própria natureza o ser humano é imperfeito, finito e limitado perante o infinito, dado o seu desconhecimento de valores e princípios intemporais e universais, numa vivência que se move entre o que é tido por real e o ideal, rumo a uma “perfeição” imperfeita e perfectível. Também fala de imperfeição a famosa frase de Churchill segundo a qual: “A democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as outras já experimentadas ao longo da História”. Uma espécie de mal menor ou menos mau. Também a liberdade individual de cada um não pode ser usada para negar a liberdade dos outros, sendo uma miragem na sua maravilhosa imperfeição. Aspirar a um ser humano perfeito, num ser que é intrínseca e estruturalmente imperfeito, é um contrassenso. O mesmo quanto à liberdade e à democracia como ideais jamais alcançados e alcançáveis na sua plenitude. A ideia de uma crescente e permanente perfeição num mundo em que não somos a medida de todas as coisas, é um absurdo, embora todos lutemos por progressos manifestamente exequíveis e melhoráveis. Um futuro seguro e justo para todos não passa por objetivos e fins inconciliáveis com a natureza, pois a realidade é o que é e não o que gostaríamos que fosse.
António-Pedro Vasconcelos pode ser tema de muitas crónicas, tal a riqueza da sua personalidade e o carácter apaixonado dos seus combates. Segui, antes de nos conhecermos, com atenção o seu percurso de vida, que se projetou na sua filmografia, e admirei sempre a capacidade única que tinha de compreender que na literatura, no cinema ou em qualquer manifestação da arte e da cultura a narrativa constitui o melhor modo de nos fazermos entender. Ele sabia contar uma história, e sabia que essa era a chave da arte de comunicar. O domínio da escrita e a compreensão dos acontecimentos eram o seu terreno de eleição. Era um grande escritor. Stendhal era o seu confessado mestre no culto da magia das paisagens, da vertigem dos sentimentos e do encantamento do coração e do espírito. E o respeito pela importância da palavra obriga-nos a reconhecer que em António-Pedro está sempre presente o exigente realizador e diretor de cena, que sabia como ninguém ligar o desenrolar de uma história e o ritmo dos respetivos diálogos. Os espectadores mais fiéis do excecional encenador reconhecem os compassos de espera, as aparentes hesitações, já que a linguagem do cinema obriga a pensar a dramaturgia de uma maneira especial. Dir-se-ia que A Cartuxa de Parma era o seu modelo narrativo, enquanto luz sempre presente na condução da trama, dos atores e das cenas, por parte de quem sabia bem que só na tensão e no drama se pode compreender o carácter do género humano. Por isso, perguntava em Perdido por Cem (1972): “quando digo que foi isto que me aconteceu, o eu que o diz e o eu a quem tudo isto aconteceu seremos a mesma pessoa? E porquê esta necessidade de me lembrar?”
Essa mestria na ligação entre a representação e a palavra, como essência do cinema foi relatada por APV a propósito de um episódio passado na épica campanha de Mário Soares em 1986, onde melhor nos conhecemos. Na gravação de um tempo de antena sobre a importância da cultura, o encenador sugeriu ao candidato que terminasse a intervenção dizendo: “porque a cultura é o sal da democracia”. Soares resistiu primeiro, porque nunca usara essa expressão, mas com a inteligência fina que tinha depressa compreendeu que deveria dizê-lo para assim chegar ao coração dos espectadores. Hoje, voltamos a ouvir esse testemunho, e vemos como ele resulta poderoso, direto e verdadeiro. E assim compreendemos como a direção de atores e a capacidade inventiva do criador se revelam fundamentais. Percorrendo a obra de APV, ligando-a à sua coerente e determinada intervenção cívica e política e à defesa do Cinema Novo português, desde o Centro Português de Cinema, com o apoio da Fundação Gulbenkian, até à defesa da criação europeia e à persistente tentativa de atrair o grande público, encontramos bons exemplos de uma sensibilidade cosmopolita e democrática, que constitui uma referência que não pode ser esquecida. Oxalá (1981) é uma reflexão de inconformismo e esperança; O Lugar do Morto (1984) é um caso de sucesso de bilheteira, que tocou o público, pela capacidade de chegar a ele; Aqui d’El Rei! (1992) constitui uma reconstituição histórica que o tempo reconhecerá na sua grande qualidade. Sem desistir, porque foi sempre um homem determinado, continuou a demonstrar uma irrepreensível qualidade na leitura dos acontecimentos, como em Jaime (1999), Os Imortais (2003), Call Girl (2007), Os Gatos Não Têm Vertigens (2014) e Parque Mayer (2018), mantendo ativa a responsabilidade de fazer do cinema expressão de uma sociedade viva, em confronto com outras manifestações da criação cultural. A sociedade, a memória, a reflexão sobre os nossos erros, a mobilização das consciências para a liberdade, os sinais necessários contra o fatalismo e a idolatria – eis o que mantinha desperto e presente o espírito livre de António-Pedro Vasconcelos, afinal, porque a cultura é mesmo o sal da democracia.
160. A AVENTURA DA FILOSOFIA, DA CULTURA E DA DEMOCRACIA
Na filosofia, na cultura e na democracia deve imperar o incerto, o imperfeito, o impermanente, a descoberta, a diversidade, a dúvida, o que nos interpela, o que promove o diálogo, o estudo, a investigação, o que nos estimula e atrai a criar, a continuar, a inovar.
Se a filosofia é uma formulação de porquês geradores de outros porquês, se a cultura, na sua pluralidade, é uma interpelação permanente da realidade que nos liberta e transcende, se a democracia se funda na heterodoxia da liberdade de expressão, de pensamento, de informação, o que as deve entusiasmar é o que queremos saber e não sabemos, o que nos deve incentivar a uma disponibilidade constante para a aventura, desbravando e mapeando novas realidades, conhecimentos e saberes.
São a continuação da curiosidade, um formular de perguntas com poucas ou nenhumas respostas, do querer descobrir ou saber, um processo infinito e intemporal de um diálogo intergeracional que envolve ouvir, colaborar, participar, conflituar e negociar, rumo a um ideal de referências tidas como comuns e sem absolutização de valores pré-fixados.
Prevalecendo nelas o ir mais além do além, a sua evolução é gradual e por fraturas, qual matéria viva e incandescente, que pulsa, respira e demanda o desconhecido.
E se o nosso mundo é feito pela variedade de pequenos mundos, o relativismo será um dos seus fundamentos, aceitando, reconhecendo e valorando a ideia de que a capacidade de nos aproximarmos da verdade intrínseca e estrutural da filosofia, cultura e democracia deriva, no essencial, do escrutínio, do sentido crítico, do pleno exercício do contraditório, da complexidade e multiplicidade de ideias que proporciona, aceitando o compromisso como um fim inevitável a alcançar, com adequação, proporcionalidade e razoabilidade.
Questionando o que sabemos e não reunindo um conjunto de verdades absolutas, todos podemos filosofar, ser mensageiros culturais e defensores da democracia, mas nem todos querem fazê-lo, desde logo porque mal visto, por muitos, o querer pensar sobre nós, o que nos rodeia e ultrapassa, não admirando que tal atitude seja estimulante para uns (democratas) e perigosa para outros (autocracias, ditaduras e totalitarismos).
É nos domínios em que é maior a nossa ignorância que a aventura filosófica, cultural e democrática é mais importante, onde a noção de liberdade é mais urgente, não se adaptando a organizações hierárquicas anárquicas, ditatoriais ou totalitárias.
O seu cerne é a liberdade, mesmo em tempos de escuridão, como escreveu o poeta: “Uma pequenina luz bruxuleante/ … brilhando no extremo da estrada/ aqui no meio de nós/ … Mas brilha/ … Brilha” (Jorge de Sena, “Uma pequenina luz”).
«Morte e Democracia» de José Gil (Relógio d’Água, 2023) é constituído por um conjunto de ensaios que nos permite compreender as virtualidades e as fragilidades da organização da sociedade contemporânea.
PRODUÇÃO DE VIDAS LIVRES A procura da identificação do que torna possível a produção de vidas livres e singulares numa “democracia imanente” constitui o objetivo primordial do estimulante conjunto de ensaios, da autoria de José Gil, Morte e Democracia (Relógio d’Água, 2023). De facto, a necessidade de construir um “plano de imanência” do campo político ao social é condição primeira para a formação de multiplicidades singulares que compreendam a complexidade e o pluralismo. Se hoje falamos justamente de crise de democracia, torna-se indispensável realizar uma reflexão aprofundada sobre as razões para uma perniciosa tendência para a fragilização de uma sociedade que se deseja baseada na liberdade e na cidadania. Não se trata, assim, de reduzir os termos desta reflexão fundamental sobre a sociedade, sobre o Estado de direito e sobre uma cidadania inclusiva a aspetos apenas formais, mas antes de considerar a democracia como um sistema de valores, capaz de integrar e de incluir uma cidadania de respeito mútuo, sem interferências de fantasmas ilusórios, incapazes de suscitar a compreensão de quem somos como seres humanos livres e iguais em dignidade e direitos.Compreende-se, pois, os quatro momentos escolhidos por José Gil, a partir da demonstração dos paradoxos do pensamento da morte e dos postulados que comprometem a sua consideração ponderada e complexa: a imortalidade da alma, a natureza dos espectros que emergem e a noção de Abismo inerente ao termo da vida. O segundo momento reporta-se ao laço indelével entre a crença da imortalidade, assumida por certos grupos-tipo de organizações políticas que se afirmam através de referências da morte, enquanto “experiências do impensável”, reportadas à violência e ao terror (que Hannah Arendt encontra nas raízes do totalitarismo). Segue-se a análise das correspondências entre afetos, formações sociais e políticas e modos de existência dos mortos como referências de negação e de injustiça. E, chegados à quarta reflexão, temos a exploração da possibilidade de substituir a transcendência ilusória pela imanência na prática política da democracia. Nestes quatro pontos, trata-se de situar a vivência democrática, não na lógica de uma sociedade ancorada em referências de eternidade, de suposta perfeição ou de infalibilidade, mas na procura de referências baseadas na concreta relação de pessoas de carne e osso entre si. Para o filósofo, trata-se de denunciar “a dinâmica política atual que as democracias conservadoras afrontam constantemente, sob formas novas, por todo o planeta, ressurgências de velhos e fantasmáticos autoritarismos, fascismos e mesmo teocracias”. Dir-se-ia que encontramos então a situação inversa do “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Para José Gil há a verificação de que as forças que querem a imanência se encontram reprimidas e encarceradas nas estruturas sociais e políticas estabelecidas”. E tal contração reduz as possibilidades de autonomia, responsabilidade e autogoverno. Contudo, “o plano da imanência da democracia tem uma consistência frágil”. Gianni Vattimo, há pouco desaparecido, chegou a conclusão próxima.
A IMANÊNCIA NA PÓLIS O que distingue as democracias formais dos sistemas autocráticos é contraditório. As primeiras podem favorecer a transcendência do poder do Estado e das instituições, os segundos procuram a dissolução do Estado na figura do líder que se projeta no plano social. Daí a necessidade de distinguir uma imanência de “fusão” por contraponto a uma imanência de “reversibilidade” (o respeito é biunívoco), que encontramos em Claude Lefort e na consideração por este de que o simbólico se torna fundamento da democracia representativa. De facto, o simbólico é finito, está ao nosso alcance. O poder democrático é transitório e efémero na sua indeterminação. A institucionalização de um “lugar vazio” do poder, confere aos cidadãos uma igualdade de direitos na participação no poder democrático. “O vazio criador de possíveis, dispensa a posição da imortalidade”. E Lefort fala, assim, de “institucionalização do conflito”, ou seja, da superação da violência do enfrentamento dual do corpo-a-corpo., que obriga a uma “mediação apaziguadora”, a transformação do conflito aberto em conflito de partidos políticos e de debates jurídicos. Se a vendetta mediterrânica gera uma espiral de confronto e de violência, a mediação permite considerar o tempo e a ponderação. A literatura convoca, assim, os que “partiram”, extraindo daí mais força para se poder viver. É o que encontramos em Platão, no Górgias e no Fédon, mas também nas grandes sagas como a Epopeia de Gilgamesh, a Ilíada, a Odisseia, a Eneida, ou a Divina Comédia, onde se criam “personalidades espectrais”, que projetam o passado no presente. E é oportuna a referência nesse tema a artistas como Lourdes Castro e Jorge Martins nas representações espectrais… Também em Ésquilo, Sófocles, Shakespeare ou Racine encontramos a atração poderosa que as figuras do passado exercem sobre os vivos. O “presente alimenta-se do passado, de um passado móvel, não petrificado”. Os mortos passam a ter um tempo limitado e tornam-se exemplos. A democracia e a cidadania reportam-se, deste modo, à vida comum.
A democracia imanente vai, deste modo, buscar os mortos para os trazer à expressividade da vida. É isso o que encontramos nas tragédias gregas – representando Antígona o confronto entre as leis eternas e a realidade humana. E um dos sinais que José Gil encontra na situação caótica em que vivemos é o desaparecimento de um critério de verdade para o discurso político. As fake news testemunham a incapacidade de os democratas construírem um discurso credível, capaz de persuadir e de mobilizar. Desmoronou-se o passado, os valores da tradição, mas o caos pode trazer possibilidades de criação. O fantasma de Polinices permite ganhar força para pôr em causa as leis terrestres, transformando o sofrimento e a revolta em coragem para lutar contra a injustiça representada por Creonte. Construir a imanência é entrar no mundo e no cosmos e dar continuidade ao desejo de viver. E esse desejo de viver é considerado por José Gil nos quatro modos de envelhecer: uns fecham-se sobre si com medo da morte; outros resignam-se e vão vivendo; outros ainda negam o envelhecimento e querem viver eternamente jovens, seguindo Falstaff e Fausto. Mas ainda há o envelhecimento mais raro – nos casos de uma velhice saudável, não só fisicamente, mas sobretudo espiritualmente. O envelhecimento não quebra o curso da vida, prolongando-o e transformando. É a imanência ativa que prolonga o tempo.