Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CADA TERRA COM SEU USO


VII. A atração do mar


A expansão marítima europeia, que teve como precursores os portugueses, é de significativa complexidade, não sendo compatível com simplificações. A costa marítima atlântica de Portugal, o conhecimento antigo de África e do Mediterrâneo Ocidental, a longa prática dos pescadores algarvios nas relações económicas com Marrocos, as necessidades económicas determinadas pela carência de meios (cereais e ouro) – vão conduzir à conquista de Ceuta e às viagens para sul na costa africana. A obtenção de ouro, primeiro, mercê de trocas com os tuaregues e depois através da descoberta de jazidas conhecidas das tribos do deserto, permitiu a cunhagem de cruzados, de uma grande pureza e geral aceitação, com grande estabilidade no respetivo valor. Depois de 1442, verifica-se o desenvolvimento do comércio de escravos, no início por capturas diretas e depois através da mediação dos povos africanos. Nascem as feitorias, de que um primeiro exemplo é Arguim, onde os portugueses trocavam cavalos, tecidos, objetos de cobre e trigo por pó de ouro, escravos e marfim. E com a chegada destes bens a Portugal as expedições da África ocidental tornam-se lucrativas, nunca os portugueses descobriram, porém, as minas de onde vinha o ouro nem conseguiram estabelecer feitorias no interior. «Mas (segundo Charles Boxer) a luta das caravelas portuguesas contra as caravanas mouras de camelos do Sara teve como resultado a predominância das primeiras no comércio do ouro, por um período de 100 anos, de 1450 a 1550». Só de S. Jorge da Mina (depois de 1452) registar-se-iam importações anuais de 170 mil dobras e às vezes mais. «Se bem que os principais produtos que os portugueses procuravam na Senegâmbia e na Guiné continuassem a ser os escravos e o ouro, outros produtos oeste-africanos, como a malagueta ou grão-do-paraíso, uma especiaria parecida com a pimenta, além de macacos e papagaios, encontravam, também, um mercado lucrativo em Portugal». As mercadorias que permitiam a compra de escravos e ouro vinham do estrangeiro. A malagueta ia para a Flandres e os escravos para Espanha e Itália, antes da descoberta das Américas.


Infantes D. Henrique e D. Pedro: complementaridade ou oposição?


Como compreender, na Ínclita Geração, o Infante D. Henrique, se não o ligarmos à figura moral de D. Duarte, o Leal Conselheiro, e à fulgurante inteligência estratégica de D. Pedro, “o português universal”? Contudo, essa complementaridade, que permitiu a afirmação de Portugal na Europa e no mundo não foi isenta de dramáticos ajustes de contas, como o trágico episódio da Batalha de Alfarrobeira (20.5.1449)?… Alfarrobeira foi resultado de uma intriga palaciana, envolvendo o Duque de Bragança, D. Afonso, filho bastardo de D. João I. D. Afonso V escreveu ao referido Duque, seu tio, requisitando-o à corte, acompanhado de escolta uma vez que teria de atravessar terras de Coimbra. D. Pedro, Duque de Coimbra, sabedor da vinda do seu inimigo, proíbe-lhe a passagem por suas terras e é considerado súbdito desleal ao rei. Publicam-se éditos contra o D, Pedro e seus aliados e o rei investe na tentativa de submetê-los, instalando-se em Santarém. Por sua vez D. Pedro desce de Coimbra em direção a Lisboa e encontra as tropas de D. Afonso V no lugar de Alfarrobeira, em Vialonga. Apesar das tentativas do Infante D. Henrique para evitar a contenda, bem como do Conde de Avranches, D. Álvaro Vaz de Almada, a batalha tem lugar, vencendo o rei e perdendo a vida D. Pedro, e o Conde de Avranches, o qual perante a derrota deu o célebre grito: “É fartar vilanagem”…


A ideia fundamental do Infante D. Pedro das Sete Partidas era a de termos de ser europeus, de estar no núcleo mais dinâmico do continente, de ligar quem ficava e quem partia, para melhor projetarmos a influência económica e política, sendo a lição essencial da nossa cultura a capacidade de prever, de planear e de persistir. Esse projeto transformaria profundamente a sociedade portuguesa e as relações de poder. Contudo, a estratégia continental resistia, por contraponto à vocação marítima. 


A visão ecuménica de D. João II: o Plano da Índia e Tratado de Tordesilhas


Depois da derrota de D. Afonso V nas suas pretensões ao trono de Castela, †i†nicia-se um novo período histórico, no qual irá pontuar D. João II, neto por via materna do Infante D. Pedro. O comércio africano era partilhado entre a coroa e os mercadores, com o controlo apertado da Casa da Mina, situada no edifício do Paço da Ribeira – cabendo à Coroa o monopólio do ouro. As receitas do comércio do ouro e dos escravos permitiram a D. João II avançar para o Golfo Arábico e Índia – para as especiarias asiáticas. Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa Esperança (1488) e Pero da Covilhã e Afonso de Paiva são enviados por terra em busca do Reino do Preste João e para conhecerem a Índia. Pero da Covilhã sobrevive e, ao regressar ao reino, é solicitado por um mensageiro de D. João II, na cidade do Cairo, para «continuar até ao reino do Preste João, que tinha sido então localizado nas montanhas da Abissínia». O relatório que teria enviado para Lisboa não se sabe se chegou ao destino. Vasco da Gama saberia que tinha de aportar no sudoeste da Índia, mas tinha informação insuficiente e foi incapaz de distinguir os templos hindus das igrejas cristãs… O certo é que a política de D. João II levaria ao fim do monopólio veneziano-mameluco das especiarias no oriente do Mediterrâneo. Em 1485, o discurso de obediência proferido por Vasco Fernandes de Lucena perante o Papa aponta claramente para a concretização da chegada dos portugueses ao Oceano Índico. Quando D. Manuel herdou a coroa de seu cunhado, seguiu claramente a estratégia do Príncipe Perfeito. E Vasco da Gama «levava credenciais dirigidas ao Preste João e ao rajá de Calecute, juntamente com amostras de especiarias, ouro e aljôfar… A partida para a Índia ocorreu nove anos depois de Bartolomeu Dias ter regressado do Cabo. Entretanto Colombo tinha regressado da sua «histórica viagem», pensando ter chegado à Ásia Oriental. Por que razão tanto tempo depois da chegada ao Cabo da Boa Esperança? As explicações são contraditórias – os novos acontecimentos em Marrocos, a morte de D. Afonso, o herdeiro de D. João II; ou a doença do Rei. Mas há quem pense que houve, entretanto, viagens no Atlântico Sul para encontrar a melhor rota para o Índico e que teriam permitido não só favorecer as navegações com segurança, mas também encontrar o importante território brasileiro.


A figura de D. João II, o Príncipe Perfeito (1455-1495) continua envolta em dúvida e mistério. Filho de D. Afonso V, e irmão de Santa Joana Princesa, a verdade é que a sua personalidade e a sua política demarcaram-se das de seu pai, apesar da nítida complementaridade. Se é certo que foi desde muito cedo associado à governação do reino, a ponto de ter a direção das “navegações” desde 1475, seis antes de subir ao trono, não podemos esquecer que a sua ação se inseriu na continuidade do plano concebido pelos filhos de D. João I, o seu avô paterno D. Duarte, o seu avô materno D. Pedro e, naturalmente, o tio-avô D. Henrique. E se encontramos formulada uma “estratégia nacional”, tal fica claro se nos recordarmos: da política de segredo, como modo de defesa de uma ampla zona de influência perante a ameaça do concorrente mais próximo; da definição de um “modus vivendi” na Península Ibérica que garantisse à entrada do Mediterrâneo uma base económica e política sólida no continente europeu para o “plano da Índia”; e a afirmação de um poder político forte, centrado na Coroa, sem a “perturbação” das influências da alta nobreza e do alto clero.


Como reparação relativamente à derrota do Infante D. Pedro em Alfarrobeira, D. João II define a exigência de um “poder europeu” ligado à ideia de um “império universal”. De facto, como aconteceu, Portugal sozinho teria dificuldade em ser cabeça de um império global. Daí a necessidade de uma aliança ibérica, com salvaguarda da prevalência marítima. Naturalmente, que a análise deste tema complexo conduz invariavelmente ao risco de transposições abusivas. Impõe-se, por isso, ter presente a reflexão da historiografia dos últimos dois séculos a este propósito, designadamente quanto às “causas da decadência dos povos peninsulares” (de Antero e de Oliveira Martins) ou quanto à alternância entre “fixação” e “transporte” (que António Sérgio foi beber na Geração de 1870 e aos sequazes desta). E essa explicação considera ser D. João II o paradigma da “fixação” e herdeiro do “europeísmo universalista” de D. Pedro. Deve haver, porém, cautelas nas transposições, apesar de ser insofismável que a “política” de D. Manuel, se trouxe a pompa e circunstância do nosso “século de ouro”, veio a prenunciar a incapacidade do “Estado” para administrar um império de dimensão mundial, bem como a falta de uma base financeira e económica (agravada pela expulsão dos judeus e da sua “partida” sobretudo para o Mar do Norte) e a influência crescente dos “fumos da Índia”, com todas as suas consequências morais e sociais.


O caminho da centralização, aprendido por D. João II na escola italiana de Direito Público e na prática francesa de Luís XI, baseou-se na ideia da proveniência divina do poder, aliada ao necessário “consentimento do povo” – como o Infante D. Pedro defendera na “Virtuosa Benfeitoria”. Daí a necessidade de limitar o poder da nobreza e do alto clero e de assegurar uma ligação efetiva aos povos, representados nos municípios. O rei seria, assim, um defensor dos povos, devendo, para o efeito, reforçar a sua própria autoridade. Daí o lema “Pola Ley e Pola Grey”, sob a imagem de um pelicano que, ferindo o peito, assegurava o sustento das crias no ninho. Eis por que razão não se deve falar de conceção “absolutista” com D. João II, mas de um entendimento mais próximo da ideia de “proteção”, com raízes na tradição que vinha dos acontecimentos de 1383. Esse o contraponto em relação aos inimigos que tinham conduzido o pai à derrota em “Alfarrobeira” – apostando na fragmentação do poder, no enfraquecimento da Coroa e no enriquecimento de uns poucos à custa do Erário Régio.


D. João II não esqueceu, contudo, a trágica morte de seu avô e a consequência que esta teve na aceleração do prematuro desaparecimento de sua mãe. Só um poder eficaz e forte seria respeitado, nacional e internacionalmente. Para o Príncipe Perfeito importaria, assim, delinear e prosseguir o plano das navegações da Índia, a partir de uma posição consolidada. Daí as mil cautelas, a diplomacia secreta e o combate a todas as subtis formas de erosão do Estado e do poder. Como numa partida simultânea de xadrez, vemos o monarca lançar diversas vias de ação: retomar sistematicamente as viagens na costa africana, que desde a morte do Infante (1460) tinham perdido ímpeto, mandar missões por terra em busca do Preste João e a preparar a chegada à Índia (Afonso de Paiva e Pêro da Covilhã), desenvolver uma complexa ação diplomática quer com a Santa Sé quer com os Reis Católicos. Paralelamente, haveria que reorganizar a Administração do Reino, profundamente desorganizada. Assim, o final da década de oitenta do século XV representa o culminar da “afirmação” de D. João II, no dizer da Prof. Manuela Mendonça (autora da obra fundamental D. João II, um percurso humano e político nas origens da modernidade em Portugal, Estampa, 1991). Estamos diante do corolário lógico de uma ação de grande clarividência – desde a reorganização do reino até ao casamento do príncipe herdeiro D. Afonso com a filha dos Reis Católicos, D. Isabel, passando pela afirmação internacional, pelas navegações no Atlântico Sul (em que Diogo Cão, Duarte Pacheco Pereira e Bartolomeu Dias desempenharam papel essencial).


O célebre discurso de Vasco Fernandes de Lucena em Roma por ocasião da entronização do novo Papa Inocêncio VIII e o cerimonial de investidura do Marquês de Vila Real, D. Pedro de Menezes, em Beja, em março de 1489, bem como os esponsais do malogrado príncipe D. Afonso constituíram simbolicamente os momentos cruciais de afirmação da grandeza de D. João II como grande monarca europeu (leia-se por todos Martim de Albuquerque, O Poder Político no Renascimento Português, s.d.). Mas para chegar onde chegou, D. João teve de afirmar o seu génio económico e político. Foi graças às receitas obtidas no comércio da Guiné que pôde estabelecer definitivamente em bases científicas a solução do problema da descoberta do caminho por mar até à Índia. No dizer de Jaime Cortesão: “sob a direção real, uma nova ciência náutica é criada, que dominará os séculos XVI e XVII, sendo ensinada secretamente aos pilotos portugueses. Com este fim, o rei enviou às terras descobertas, em expedições sucessivas, os melhores astrónomos e técnicos encarregados de ensaiar os novos métodos como os novos instrumentos e de calcular as posições geográficas destas regiões e a grandeza do grande círculo terrestre, que conseguiram determinar com uma notável exatidão” (L’Expansion des Portugais dans l’histoire de la civilisation, Anvers, 1930).


A morte trágica do Príncipe D. Afonso (1475-1491) em Almeirim, por queda de cavalo, deitou por terra todos os sonhos e projetos. Os reinos ibéricos não chegariam à glória abraçados, como D. João teria pensado… A decadência seria compartilhada, dramaticamente. Haveria a demonstração de que Colombo não tinha a chave da chegada à Índia (mas de um Novo Mundo), e de que era D. João II quem estava na vanguarda da organização e da ciência. E haveria Tordesilhas e o misterioso volte face final, com Portugal a reivindicar uma zona que só o próprio Príncipe Perfeito conhecia…


Falando do Tratado de Tordesilhas, de 7 de junho de 1494, este estabeleceu a divisão das áreas de influência dos países ibéricos, cabendo a Portugal as terras “descobertas e por descobrir” situadas antes da linha imaginária que demarcava 370 léguas (1770 km) a oeste das ilhas de Cabo Verde (Santo Antão) e a Castela as terras que ficassem além dessa linha. O diplomata Duarte Pacheco Pereira, que conheceria as terras do Brasil, fez com que essa linha avançasse de modo a abranger um espaço maior no território americano do que previsto inicialmente. Bartolomeu de Las Casas dirá: os portugueses tiveram “mais perícia e mais experiência” do que os castelhanos.


Dir-se-á que D, João II foi um monarca duro e implacável. As mortes dos Duques de Bragança e de Viseu (seu cunhado) ilustram esse carácter. No entanto, sabemos que houve uma conspiração contra o Rei, para ir às últimas consequências (“por ferro ou por peçonha”). Mas se falarmos do prestígio do Príncipe Perfeito, basta lembrarmos como Isabel, a Católica o designou quando soube de sua morte: – o Homem! Haveria sempre tempo de coruja e tempo de falcão. D. João soube-o bem, ao morrer como coruja no Alvor, envolto em enigma, depois de ter sido falcão…


Agostinho de Morai
s

 

>> Cada Terra com seu Uso no Facebook

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

Mia Couto.png

 

     Minha Princesa de mim:

 

Ocorre-me um trecho de uma entrevista de Mia Couto ao Jornal de Letras (?), não me recordo agora de quando, apenas leio a transcrição que anotei. Penso que falava dos frutos de Moçambique: A maior parte não tem nome em português. A maior parte dos animais também não. Os ingleses, nas suas ex-colónias, foram capazes de chegar até aí, e toda a fauna e toda a flora estão nomeadas em inglês. Eles tinham uma aproximação à natureza. Os portugueses não; diziam a "passarada" o "mato", a "bicharada" e pronto. Deves lembrar-te, Princesa, das vezes em que te falei da minha comichão epidérmica ao ouvir as lusas pronúncias "kivi" e "Havai", por exemplo, de nomes que ingleses haviam transcrito do original (kiwi ou quiúi, Hawai ou Haùaií) para a fonética da sua língua... E que nós, hoje, teimamos em pronunciar à "alemã"! Ignorantes de que também dizemos Molucas em vez de Malucas, quando nomeamos as ilhas cujo nome malaio indonésio foi corretamente transcrito para a fonética portuguesa, por portugueses, e mais tarde, a partir dessa, para a inglesa por ingleses, que escreveram Molucas para lerem Malucas. O nosso desentendimento com o rigor decorre da nossa educação: transmite-nos mais sentimento do que pensamento (os nossos debates públicos, sobretudo políticos, são exemplares dessa carência intelectual), mais desejos e fantasia do que capacidade de análise fria e espírito crítico. A tal diferença sergiana entre política de fixação e de transporte é muito mais profunda do que possa parecer: não foi, ou é, só perder oportunidades de criação local de riqueza, por indústria transformadora ou comércio sustentável, é quase repugnância por obra construtiva a longo prazo, é a pressão da mentalidade de um indigente para que a realização da riqueza, por altos que sejam os riscos, se faça rapidamente e em força. Os trunfos que elites portuguesas detiveram no século XVI foram desbaratados pela ganância de uma classe comerciante que não chegou à humildade de vindouros emigrantes, desses que, sobretudo nossos contemporâneos, foram lá para fora aprender o que é trabalho organizado e produtivo e a realizá-lo por conta própria. Destes, pouco ou nada falam os nossos intelectuais, que insistem em repetir o que os nossos humanistas da Renascença espalhavam pela Europa culta e curiosa sobre os inauditos feitos dos portugueses de então, em textos e traduções latinas, o latim sendo a língua franca da ciência daquele tempo...

 

   Tenho à minha frente um texto curioso, redigido por um tal Zinadim (não o Zidane, que também se chama Zinadim, mas é cidadão francês de origem argelina e, em pleno século XXI, treinador do Real Madrid, da equipa de futebol cuja estrela polar é o português CR7...), este Zinadim a que me refiro foi um árabe do Malabar, ali vivo e ativo no século XVI. Esse texto, de que apenas transcrevo alguns trechos, foi traduzido do árabe e publicado sob o título de História dos Portugueses no Malabar, por um tal David Lopes, em Lisboa, em 1899:

   Em nome de Deus, o Piedoso e Misericordioso!

   Os muçulmanos no Malabar viviam no bem estar e comodidade da vida graças à brandura dos príncipes do país, ao respeito dos seus antigos usos e à amenidade do seu trato. Eles, porém, esqueceram o benefício, pecaram e revoltaram-se contra Deus. Por isso, pois, Deus mandou-lhes como senhores os Portugueses, franges cristãos - queira Ele abandoná-los! - que os tiranizaram, corromperam e praticaram contra eles atos ignóbeis e infames. Eram sem conta as violências, o desdém, o escárnio, quando os obrigavam a trabalhar; punham as suas embarcações a seco; lançavam-lhes lama ao rosto e ao resto do corpo, e escarravam-lhes; despojavam-nos no seu tráfego, impediam sobretudo a sua peregrinação [a Meca], roubavam-nos, queimavam as suas cidades e mesquitas, a apresavam-lhes os navios, maltratavam o seu Livro Santo e os livros, pisando-os e queimando-os; profanavam os recintos sagrados das mesquitas; incitavam os muçulmanos à apostasia e à adoração da cruz, peitando-os para tal; enfeitavam suas mulheres com as joias e os ricos vestidos arrancados às mulheres dos muçulmanos; assassinavam os peregrinos e os demais muçulmanos com toda a espécie de violentações; insultavam o Apóstolo de Deus publicamente; cativavam os muçulmanos e aos cativos punham pesadas cadeias [...] Quantas mulheres de distinção eles cativaram e violaram até terem delas filhos cristãos, inimigos da fé de Deus e danosos dos muçulmanos! Quantos senhores, homens de ciência e principais cativaram e violentaram até que os mataram! Quantos muçulmanos e muçulmanas eles converteram ao cristianismo! E muitos outros atos semelhantes eles cometeram, tão afrontosos e ignóbeis que a língua se cansa a narrá-los, e tem repugnância em pô-los a claro: queira Deus, glorioso e omnipotente puni-los!

 

O nosso padre António Vieira escreve algures:

Se não tivessem ido os comerciantes em busca de tesouros terrenos na Índia Oriental e Ocidental, quem teria então transportado os pregadores que levavam consigo os tesouros celestiais? Os pregadores levaram o Evangelho e os comerciantes levaram os pregadores. 

Cita este trecho da História do Futuro de Vieira o professor Charles Boxer, no seu The Portuguese Seaborne Empire - 1415-1825, mais precisamente a abrir o capítulo III (Converts and Clergy in Monsoon Asia - 1500-1600), na página 65 da edição que possuo (Hutchinson & Co, Londres, 1969). Mas antes dessa transcrição, Boxer refere que the importance of Japanese silver, Chinese silks, Indonesian spices, Persian horses, and Indian pepper in Portuguese Asia should not obscure the fact that God was omnipresente as well as Mammon. E logo a seguir à citação do jesuíta, continua (traduzo do inglês): Se o comércio seguiu a bandeira no império britânico, o missionário vinha mesmo atrás do mercador no império português. Admite-se geralmente que se os homens de Vasco da Gama disseram que tinham vindo à Índia em busca de cristãos e especiarias, a procura destas foi feita com muito mais vigor do que o posto em cuidar de achar os outros durante as primeiras quatro décadas da atividade portuguesa no Oriente. A alusão a Vasco da Gama refere-se, penso eu, Princesa, a um episódio relatado no Diário de Álvaro Velho, aquando da chegada do Gama a Calecute. Vale a pena relê-lo, sobretudo como aqui te lo deixo no contexto em que Sanjay Subrahmanyam o apresenta no capítulo III do seu O Império Asiático Português, 1500-1700. Digo-te isto, minha Princesa de mim, por me parecer que a livre abertura das nossas interpretações ao critério e análise de outros nos ajudará certamente a melhor entender como a complexa realidade das coisas se pode disfarçar - ou descobrir - pela contraposição de pontos de vista e pelas intenções que os inspiram...

 

Começa assim esse capítulo, intitulado Dois Modelos e a sua Lógica: a Criação de um Império, 1498-1540 (na versão portuguesa da DIFEL, Lisboa, 1995): A chegada dos portugueses à Ásia em 1498 não passou despercebida nas obras asiáticas de História de então. Um dos trabalhos mais pormenorizados dedicado às suas atividades é uma crónica árabe Tuhfat al-Mujahidin (ou "Dádiva aos Guerreiros Santos"), escrita nos finais da década de 70 por um tal Zaid al-Din Ma´bari, [o mesmo Zinadim que te citei], que pretendia glorificar os feitos dos adversários muçulmanos dos Portugueses na Ásia. Mas Zain al-Din queria igualmente elaborar um argumento teórico, justificando a guerra contra os Portugueses e demonstrando como estes haviam desrespeitado os modelos de comportamento […] Zain al-Din escreveu quase três quartos de século depois da chegada dos Portugueses à costa do Malabar, no sudoeste da Península Indiana. Uma vez que escreveu a posteriori não se pode julgar a sua visão como representativa da reação espontânea das elites islâmicas locais para com os recém chegados. É de facto o primeiro a sugerir que os muçulmanos do Malabar (os chamados Mapilas) «pecaram e desobedeceram-lhe [a Deus]. Então, Ele mandou-lhes como senhores um povo frangue, os Portugueses - queira Deus abandoná-los! - que os oprimiram, vexaram e hostilizaram com toda a sorte de opressões e vexames!» [Subrahmanyam também retoma aqui a tradução de Zinadim ou Zain al-Din, editada por David Lopes, em Lisboa, 1899]. E, adiante, comenta:

   Como visão dos factos, Zain al-Din é, de um modo perturbante, próximo de alguns dos primeiros textos portugueses respeitantes aos seus feitos na Ásia. O conceito de guerra santa está tão presente nestes últimos como na "Dádiva aos Guerreiros Santos" daquele. Subrahmanyam realça e sublinha que a cronologia e geografia dos factos imputáveis aos recém chegados portugueses é corretamente notada por Zinadim, designadamente o despoletamento da "Guerra Santa" logo desde o final da segunda viagem: As hostilidades entre os recém chegados e os "mouros" não foram porém indiscriminadas: os Portugueses faziam agora uma cuidada distinção entre os mouros da terra e os mouros de Meca (ou seja, do Médio Oriente); viam nestes últimos os seus principais inimigos, mais do que aqueles. Tal distinção havia, porém, resultado de uma árdua aprendizagem. Mau grado os intensos contactos que a Europa medieval mantivera com o Índico, a primeira expedição de Vasco da Gama foi levada a cabo sob uma ignorância considerável acerca da geografia religiosa, política e económica da Ásia e da África Oriental... Mas, paulatinamente e porque a "experiência é madre de todas as cousas", como nos lembrou Duarte Pacheco Pereira, lá se foram adquirindo novos conhecimentos e perspetivas...

 

Deixo mais desenvolvimentos para próxima carta, em que te falarei também do Tratado das Cousas da China, do dominicano frei Gaspar da Cruz, impresso em Évora por André de Burgos, em 1569/70, e primeira obra sobre a China a ser publicada na Europa. Trabalho pioneiro.

 

 

     Camilo Maria 

  

 

Camilo Martins de Oliveira

 

 

 

A VIDA DOS LIVROS

 

De 31 de julho a 6 de agosto de 2017.

 

“As Surpresas da Flora no Tempo dos Descobrimentos” de Alfredo Margarido (Elo, 1994) constitui uma excelente oportunidade para compreendermos como os portugueses fizeram mudar os hábitos do mundo, alimentares e outros, mercê das viagens para outros continentes.

 

A CIRCULAÇÃO DE CONHECIMENTOS E HÁBITOS
Se o pequeno livro de Alfredo Margarido contém um conjunto notável de informações sobre os movimentos de influência mútua entre culturas gerados pela primeira globalização, a verdade é que podemos descobrir aí as origens de hábitos alimentares que os nossos antepassados antes do período dos descobrimentos não poderiam sequer suspeitar ou sonhar. E à obra que hoje trazemos, devemos associar outro precioso pequeno volume acabado de sair, graças à Biblioteca Nacional de Portugal, o guia da exposição a propósito dos 450 anos da publicação do “Colóquio dos Simples, e Drogas he cousas medicinais da Índia” de Garcia de Orta (2013) da autoria de João José Alves Dias – “Antes de Lineu – O Mundo das Plantas nas Coleções de Impressos da BNP” (Lisboa, 2017). Aí se afirma que pode dizer-se que no mundo científico assim como há um momento crucial representado pela obra de Carlos Lineu (1707-1778), o mesmo se pode dizer do português Garcia de Orta (1501-1568) – pelo caracter inovador da sua investigação e pelo pioneirismo do seu método. Começando pela ilustração que apresentamos, importa explicar que o quadro da autoria de Josefa de Óbidos mostra a extraordinária banalização do açúcar na vida portuguesa, durante o século XVII, que precede a grande voga europeia dos séculos seguintes, por contraste com o que ocorria anteriormente – o mel mais raro dá lugar ao açúcar, como o Infante antecipara no Algarve. Pode dizer-se, aliás, que o açúcar constitui uma das marcas do barroco português e brasileiro – lembrando-nos bem do poema ao “Menino Deus em metáfora de doce”… Perante mudanças profundas ditadas pela primeira globalização, João de Barros falou do comércio como uma ciência, afirmando-se o Renascimento sob o influxo da expansão, com “novas experiências e conhecimentos, novas formas e novos gostos”. “A paisagem modifica-se substancialmente devido à introdução de novas plantas, sobretudo americanas, tal como se alteram os jardins que mandados construir por «novos-ricos», cuja fortuna provinha do novo comércio internacional, rompiam com a velha ordem botânica da Idade Média”. De facto, “a modernidade começou a elaborar-se no momento em que os homens decidiram modificar a natureza em função dos seus interesses, alargados estes à escala intercontinental. Ou seja, a ecologia-mundo é a consequência direta e inelutável da nova leitura do mundo a que procedem os europeus: o conhecimento permite reforçar e alargar o económico, o que implica a construção de novas formas de relações humanas. (…) A ecologia-mundo permite a estruturação da economia-mundo, do que não pode deixar de resultar um homem novo, potencial cidadão do mundo” – afirma Alfredo Margarido. “Organizar e banalizar o conhecimento, eis a tarefa principal dos portugueses. Não há hoje paisagem que não conserve um traço, mesmo mínimo, das alterações introduzidas pela atividade portuguesa”.

 

UM PERCURSO APAIXONANTE
O percurso desde as plantas medievais até às plantas da modernidade é apaixonante. Em Porto Santo, os portugueses encontram o dragoeiro. Luigi de Ca da Mosto, em Cabo Verde, fala do encontro do trigo e da cevada com “o sangue de drago, que nasce em algumas árvores (…). A dita árvore produz certo fruto que está maduro no mês de Março, e é muito bom para comer; assemelha-se às cerejas, mas é amarelo”. Gil Eanes, depois de passar o Bojador, traz ao Infante D. Henrique, demonstrando que a terra não é tão estéril como as gentes diziam, um barril cheio de terra com umas ervas que se pareciam com outras a que chamam rosas de Santa Maria… Na Madeira, Cabo Verde e S. Tomé inicia-se a produção industrial da cana-de-açúcar, o que determina uma verdadeira revolução. Apesar da destruição de muitas espécies autóctones madeirenses, a Laurissilva consegue ser mantida… A descoberta da malagueta constitui uma extraordinária surpresa (“no gosto é tão forte que uma onça faz o efeito de meia libra de pimenta comum”). Afinal, em África havia especiarias cuja qualidade ombreava com o comércio da Índia… Os exemplos das boas surpresas multiplicam-se: as bananas são comparadas aos figos, a cola é muito estimada como boa mercadoria (mas não entusiasma os europeus), o azeite e o vinho de palma surpreendem pela multiplicidade de usos oferecidos pelos produtos da palmeira dendém… “Lisboa parece ser das primeiras cidades a receber e a adotar uma parte substancial das plantas que marinheiros, cientistas ou comerciantes vão encontrando pelo caminho”. Mas é a chegada ao Oriente que introduz novos e muito significativos fatores, apesar da desconfiança expressa por Gil Vicente, Sá de Miranda ou Garcia de Resende sobre o “cheiro a canela” que levaria o reino a despovoar-se… A transferência das plantas orientais para África, Reino e Brasil irá produzir a verdadeira alteração, que caracterizará a nova economia-mundo. E neste ponto a perspetiva científica é a de Garcia de Orta. Das explicações fantasiosas passa-se às análises rigorosas, no terreno, com conhecimento de causa. Em lugar da mitificação de Heródoto e contra mil fingimentos adotados pelos tradicionais intermediários, para aumentar o preço da mercadoria, havia que usar o rigor do conhecimento. “A lenta, mas constante eliminação dos mitos e das imprecisões, permitiu aos portugueses concluir que a canela fina, verdadeira, só se produz em Ceilão”. O novo método de Garcia de Orta exigia ver, desenhar e conhecer as plantas – no que o médico será seguido por Cristóvão da Costa, ilustrador exímio. Em lugar de analogias fantasiosas, importaria reproduzir exatamente as realidades até então desconhecidas pelos europeus. Os exemplos são curiosos e as plantas não servem para unir, mas para dissociar culturas: as folhas de betel serviam para mascar (mas não caíram no gosto dos portugueses); o coco ganhará fama por dar muitas cousas necessárias à vida humana, sendo assim batizado porque parecia o rosto do bugio ou de outro animal e fazia medo às crianças; a noz moscada e o cravinho – que se cultivavam nas cinco ilhas de Maluquo (Pachel, Moreu, Machiam, Tidore e Ternate) tinham grande procura - “aqui vem cada ano muitas naus de Malaca e de Java carregar”.

 

A ECONOMIA LIGADA À CIÊNCIA
“Dada a maneira como se organizou a informação portuguesa, encontramos constantemente em Garcia de Orta o contraponto científico de Duarte Barbosa: o médico retoma os materiais do marinheiro, e é por isso forçado a confirmar as informações recolhidas por Barbosa”. A bananeira continua a ser designada no vulgo como figueira-da-Índia, mas Orta já fala de banana e indica-lhe finalidades culinárias e terapêuticas. Sobre o sagu, há resistências europeias, a ponto do Padre Francisco Vieira, preso em Ternate, recusar durante trinta dias o sagu que lhe apresentam por ser comida de negro, preferindo pão e vinho. São ainda referidas as mangas (que Orta cultivava), os duriões, as líxias, as jacas e as carambolas… Sobre o chá (tendo os portugueses adotado a pronúncia de Cantão, enquanto outros europeus deram preferência ao vocábulo malaio t’e) fica um mistério, pois não encontramos descrição da planta, mas sim da bebida. Só Wenceslau de Morais, já próximo de nós, se ocupará em pormenor da planta e do ritual. E resta a América, que surpreendeu Colombo por este desconhecer tudo o que encontrava. Não podia antecipar a riqueza que o novo continente albergava. Álvares Cabral e os seus apenas identificam as palmeiras. Pero Magalhães Gândavo diz-nos: “O que lá se come em lugar de pão é farinha de pau. Esta se faz da raiz d’uma planta que se chama mandioca, a qual é como inhame…”. A mandioca, a banana-pão, a batata doce, o amendoim, o caju, grande variedade de feijões, o milho, e uma grande riqueza de frutos, como o ananás. É um mundo inesgotável. A melhor planta que corresponde ao chá do Oriente, é, na América do Sul, o tabaco. E foi de Lisboa que o embaixador Jean Nicot levou a planta do tabaco para Paris, celebrizando-a… É notável como plantas vindas de outros lugares se tornam mais férteis em novas situações… Inesgotável viagem, quando o diálogo entre a cultura e a natureza se torna tão fecundo.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

19713355_i0PQI.jpeg

De 4 a 10 de julho de 2016.

«O Império Marítimo Português – 1415-1825» de C. R. Boxer (Edições 70, 1992) é uma obra tornada clássica, publicada pelo célebre estudioso britânico em 1969 e que nos fornece uma indispensável síntese panorâmica da expansão portuguesa no mundo através da consideração das suas origens, vicissitudes, limitações e desenvolvimentos.

Vida Dos Livros.jpg
ESTUDIOSO APAIXONADO
Charles R. Boxer (1904-2000) tornou-se, após uma vida militar atribulada no Oriente, em 1947, titular da cátedra Camões no King’s College em Londres, onde exerceu funções até 1967. Profundo conhecedor das línguas e culturas asiáticas e sendo estudioso apaixonado do contacto destas com as culturas europeias, designadamente a portuguesa e a holandesa, Boxer tornou-se uma autoridade respeitadíssima relativamente ao conhecimento da primeira globalização, tendo ainda sido Professor da História do Extremo Oriente na Universidade de Londres no início dos anos cinquenta. A obra a que hoje nos referimos culmina a ação na capital britânica – tendo-se tornado um manual indispensável para o conhecimento sério das viagens dos portugueses pelo mundo e das suas consequências para a génese da economia e da sociedade modernas. Depois de 1967, aceitou ainda a cátedra de História da Expansão Europeia na Universidade de Indiana, a que se seguiu semelhante função na Universidade de Yale – tendo tido até à sua morte uma relevante influência no estudo complexo dos acontecimentos que determinaram a criação do Império Marítimo Português, desde a conquista Ceuta até ao ocaso da presença asiática. O tema da expansão marítima europeia, que teve como precursores os portugueses, é de significativa complexidade, não sendo compatível com simplificações unívocas. A costa marítima atlântica de Portugal, o conhecimento antigo de África e do Mediterrâneo ocidental, as necessidades económicas determinadas pela carência de meios – tudo isso determinou a conquista de Ceuta e as viagens para sul na costa africana. A obtenção de ouro, mercê de trocas com os tuaregues, e depois pelo conhecimento de jazidas das tribos do deserto, permitiu a cunhagem de Cruzados, de uma grande pureza, geral aceitação e estabilidade no respetivo valor. Depois de 1442, temos o desenvolvimento do comércio de escravos, no início com capturas diretas e depois com a intermediação dos povos africanos. Nascem, entretanto, as feitorias, de que um primeiro exemplo é Arguim, onde os portugueses trocavam cavalos, tecidos, objetos de cobre e trigo por pó de ouro, escravos e marfim. E com a chegada destes bens a Portugal as expedições da África ocidental tornam-se lucrativas, Nunca os portugueses descobriram, porém, a fonte direta de onde vinha o ouro nem conseguiram estabelecer feitorias no interior. «Mas (segundo Boxer) a luta das caravelas portuguesas contra as caravanas mouras de camelos do Sara teve como resultado a predominância das primeiras no comércio do ouro, por um período de 100 anos, de 1450 a 1550». Só em S. Jorge da Mina registaram-se importações anuais de 170 mil dobras e às vezes mais. «Se bem que os principais produtos que os portugueses procuram na Senegâmbia e na Guiné continuassem a ser os escravos e o ouro, outros produtos oeste-africanos, como a malagueta ou grão-do-paraíso, uma especiaria parecida com a pimenta, macacos e papagaios encontravam, também, um mercado lucrativo em Portugal». As mercadorias que permitiam a compra de escravos e ouro vinham do estrangeiro. A malagueta ia para a Flandres e os escravos para Espanha e Itália, antes da descoberta das Américas.

 

A CASA DA MINA
O comércio africano era partilhado entre o Estado e os mercadores, com o controlo apertado da Casa da Mina, situada no edifício do Paço da Ribeira – cabendo à Coroa o monopólio do ouro. As receitas do comércio do ouro e dos escravos permitiram, todavia, a D. João II avançar para o Golfo Arábico e Índia – em direção às especiarias asiáticas. Entretanto, Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa Esperança e Pero da Covilhã e Afonso de Paiva são enviados por terra em busca do Reino do Preste João e para conhecerem a Índia. Pero da Covilhã sobrevive e depois, ao regressar ao reino, é solicitado por um mensageiro do rei, na cidade do Cairo, para «continuar até ao reino do Preste João, que tinha sido então localizado nas montanhas da Abissínia». O relatório que teria enviado para Lisboa não se sabe se chegou ao destino. Vasco da Gama saberia, porém, que tinha de aportar no sudoeste da Índia, mas foi incapaz de distinguir os templos hindus das igrejas cristãs… O certo é que a política de D. João II levaria ao fim do monopólio veneziano-mameluco das especiarias no Levante, o oriente do Mediterrâneo. Em 1485, o discurso de obediência proferido por Vasco Fernandes de Lucena perante o Papa aponta claramente para a concretização da chegada dos portugueses ao Oceano Índico. Contudo, quando D. Manuel herdou a coroa de seu cunhado, seguiu claramente a estratégia do Príncipe Perfeito. E Vasco da Gama «levava credenciais dirigidas ao Preste João e ao rajá de Calecute, juntamente com amostras de especiarias, ouro e aljôfar»… A partida para a Índia ocorreu nove anos depois de Bartolomeu Dias ter regressado do Cabo. Entretanto, porém, Colombo tinha regressado da sua «histórica viagem», pensando ter chegado à Ásia Oriental. Por que razão mediou tanto tempo até recomeçar a empresa das descobertas? As explicações são contraditórias – os novos acontecimentos em Marrocos, a morte de D. Afonso, as dúvidas sobre o herdeiro de D. João II ou a doença do Rei. Mas não devemos esquecer, entretanto, as viagens no Atlântico Sul para encontrar a melhor rota para o Índico e que teriam permitido não só favorecer as navegações com segurança, mas também encontrar o importante território brasileiro.

 

CRISTÃOS E ESPECIARIAS
Sobre Vasco da Gama, importa lembrar que depois da morte do Infante D. Henrique as navegações «eram sobretudo impulsionadas pela procura do Preste João e do ouro da Guiné, e que, durante o reinado de D. João II, estes motivos foram reforçados pela procura de especiarias asiáticas – compreendendo-se a resposta do enviado de Gama sobre o que fariam ali aqueles navegadores. «Viemos procurar cristãos e especiarias». O certo, porém, é que os conselheiros de D. Manuel, ouvidos em Montemor-o-Novo, mais se inclinaram para que a Índia não se deveria descobrir – como no-lo diz João de Barros. Quando regressou ao reino, em Agosto de 1499, Vasco da Gama perdera dois navios e cerca de metade da tripulação, no entanto a abertura de novos contactos permitiria novos horizontes, que a embaixada de Pedro Álvares Cabral viria a consolidar – com a concretização do Achamento do Brasil, documentado na carta de Pero Vaz de Caminha, bem como com o delineamento de uma nova estratégia de acordos locais, designadamente em Cochim e Cananor. Segundo Boxer: «a mira dos lucros a ganhar com o projetado monopólio português das especiarias e a confiança na possibilidade de encontrar aliados cristãos nas terras que confinavam com o Índico permitiram a D. Manuel vencer hesitações de alguns dos seus conselheiros e lançar este pequeno reino na espetacular carreira de empreendimentos militantes na Ásia das Monções».    

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença